54

23h05m

Dunross esperava por Brian Kwok no Quance Bar, do Mandarim, bebericando um conhaque com Perrier. O bar era exclusivo para homens e estava quase vazio. Brian Kwok nunca se atrasara antes, mas agora estava atrasado.

"É a coisa mais fácil do mundo surgir uma emergência no serviço dele", pensou Dunross, sem se preocupar. "Vou esperar mais uns minutinhos. "

Naquele dia, Dunross não se incomodava de ter de esperar. Tinha tempo de sobra para chegar a Aberdeen e encontrar Wu Quatro Dedos, e, como Penn estava a caminho da Inglaterra, não havia pressão para voltar para casa.

"A viagem lhe fará bem", pensou. "Londres, teatros, depois o Castelo Avisyard. Lá será formidável. Logo será o outono, as manhãs ficarão frias, o hálito das pessoas, visível, começará a temporada dos tetrazes, e depois virá o Natal. Será fantástico passar o Natal em casa, com neve. O que esse Natal nos trará, e no que estarei pensando ao recordar esta época, esta época ruim? Há problemas demais, agora. O plano funcionando, mas já entrando areia, tudo fora de controle, do meu controle. Bartlett, Casey, Gornt, Quatro Dedos, Mata, Pão-Duro, Havergill, Johnjohn, Kirk, Crosse, Sinders, Alan M. Grant, a sua Riko, todos mariposas ao redor da chama... e agora uma nova, Tiptop, e Hiro Toda, que chega amanhã, ao invés de sábado. "

À tarde, conversara longamente com seu amigo japonês e sócio armador. Toda fizera perguntas sobre o mercado de capitais e sobre a Struan, não diretamente, à moda inglesa, mas oblíqua e polidamente, à moda japonesa. Mesmo assim, fizera perguntas. Dunross percebera a gravidade na voz suave e com leve sotaque americano, produto de dois anos de pós-graduação em Harvard.

— Vai dar tudo certo, Hiro — dissera-lhe Dunross. — É um ataque temporário. Vamos receber os navios, conforme o planejado.

"Vamos mesmo?

"Vamos. De um jeito ou de outro. Linbar vai para Sydney amanhã, tentar ressuscitar o negócio da Woolara e renegociar a fretagem. Uma tentativa a esmo. "

Inexoravelmente, sua mente se voltava para Jacques. "Será que Jacques é realmente um traidor comunista? E Jason Plumm e Tuke? Quem será R. ? Roger Crosse ou Robert Armstrong? Mas é claro que nenhum dos dois, e é claro que Jacques também não é! Pelo amor de Deus, conheço Jacques por quase a vida inteira... conheço os De Villes por quase toda a vida. É verdade que Jacques podia ter dado ao Bartlett algumas informações sobre o nosso funcionamento interno, mas não todas. Não a parte da companhia, de conhecimento apenas dos tai-pans. O que significa Alastair, papai, eu ou o velho Sir Ross, e isso é inconcebível.

"É.

"Mas alguém é traidor, e não sou eu. E, depois, há a Sevrin. "

Dunross olhou ao redor. O bar ainda estava praticamente vazio. Era uma sala pequena, agradável, confortável, com cadeiras de couro verde-escuro e velhas mesas de carvalho encerado, as paredes cheias de telas de Quance. Eram todas cópias. Muitos dos originais estavam na Galeria Longa da Casa Grande, a maioria dos restantes nos corredores do Victoria e do Blacs. Alguns faziam parte de coleções particulares. Recostou-se confortavelmente, satisfeito por estar cercado por uma parte tão grande do seu passado, sentindo-se protegido por ele. Logo acima de sua cabeça havia o retrato de uma barqueira haklo com um garoto louro nos braços, os cabelos dela trançados. Dizia-se que Quance o pintara como presente de aniversário para Dirk Struan, encomendado pela moça do quadro, May-may T'Chung, e presumia-se que o garoto nos braços dela fosse o filho deles, Duncan.

Seus olhos dirigiram-se para o outro lado da sala, fitando os retratos de Dirk e de seu meio irmão Robb, ao lado de outro retrato do mercador americano, Jeff Cooper, e paisagens do Pico e da praia, em 1841. "Imagino o que Dirk diria se pudesse ver agora a sua criação. Florescendo, construindo, incorporando, ainda o centro do mundo, o mundo asiático, que é o único mundo. "

— Quer mais um, tai-pan?

— Não, obrigado, Feng — disse ao barman chinês. — Só uma Perrier, por favor.

Havia um telefone próximo. Ele discou.

— Quartel-general da polícia — atendeu uma voz feminina.

— Superintendente Kwok, por favor.

— Um momento, senhor.

Enquanto esperava, Dunross tentou decidir o que fazer com Jacques. "Impossível", pensou, angustiado, "não sem ajuda. Se eu o mandar à França buscar Susanne e Avril, isso o deixará isolado por cerca de uma semana. Talvez eu fale com o Sinders, talvez eles já saibam. Santo Deus, se Alan não tivesse colocado a letra R na carta, eu teria me dirigido diretamente ao Crosse. Será possível que ele seja o Arthur?

"Lembre-se de Philby, do Ministério das Relações Exteriores", disse com seus botões, revoltado com o fato de que um inglês com aqueles antecedentes e num tal cargo de confiança pudesse ser um traidor. Do mesmo modo os outros dois, Burgess e Maclean. E Blake. Até onde era possível acreditar em Alan? Pobre coitado. Até onde era possível confiar em Jamie Kirk?

— Por favor, quem quer falar com o superintendente Kwok? — perguntou uma voz de homem ao telefone.

— O sr. Dunross, da Struan.

— Um momentinho, por favor.

Uma pequena espera, depois uma voz masculina que reconheceu imediatamente.

— Boa noite, tai-pan. É Robert Armstrong... desculpe, mas o Brian não está aqui. É alguma coisa importante?

— Não. Tínhamos marcado um encontro para tomar um drinque, e ele está atrasado.

— Ah, ele nem mencionou o encontro... geralmente é muito correto nessas coisas. Quando foi que o marcaram?

— Hoje de manhã. Ele me ligou para falar sobre John Chen. Alguma novidade sobre aqueles filhos da mãe?

— Não. Lamento. Brian teve que sair da cidade... uma viagem às pressas, sabe como é.

— Mas claro. Se falar com ele, diga-lhe que o verei no domingo, na subida do morro, se não antes.

— Ainda pretende ir a Formosa?

— Pretendo. Com Bartlett. Vou domingo, volto na terça. Parece que poderemos usar o avião dele.

— É. Por favor, certifique-se de que ele volte na terça.

— Se não voltar antes.

— Quer alguma coisa de mim?

— Não; obrigado, Robert.

— Tai-pan, nós... bem... tivemos um outro encontro muito perturbador, aqui em Hong Kong. Não precisa se preocupar, mas cuide-se até o encontro de amanhã com o Sinders, certo?

— Claro. Brian disse a mesma coisa. E Roger também. Obrigado, Robert. Boa noite.

Dunross desligou. Tinha esquecido que um guarda-costas do sei o estava seguindo. "O sujeito deve ser melhor do que os outros. Nem o notei. Bem, o que vou fazer com ele? Sem dúvida não será bem-vindo com o Quatro Dedos. "

— Volto daqui a um instante — falou.

— Sim, tai-pan — disse o barman.

Dunross dirigiu-se para o banheiro dos homens, observando sem observar. Ninguém o seguiu. Quando saiu do banheiro, entrou no mezanino lotado e barulhento, atravessou-o e desceu a escadaria principal até o saguão, onde foi comprar o jornal vespertino na banca de jornais. Havia gente por toda parte. Ao voltar, deparou com um chinês magro e de óculos, que o observava por cima de uma revista, sentado numa cadeira do saguão. Dunross hesitou, voltou para o saguão e notou que os olhos o acompanhavam. Satisfeito, subiu de novo as escadas lotadas.

— Oh, alô, Marlowe — exclamou, quase colidindo com ele.

— Oh, alô, tai-pan.

Dunross notou imediatamente o grande cansaço na fisionomia do outro.

— O que aconteceu? — perguntou instantaneamente, pressentindo problemas e afastando-se do caminho das outras pessoas.

— Ora, nada... nada mesmo.

— Aconteceu alguma coisa — disse Dunross, com um sorriso suave.

Peter Marlowe hesitou.

— É, é a Fleur — disse, contando o que se passara. Dunross ficou imensamente preocupado.

— O velho Tooley é um bom médico, o que já é uma grande coisa. — Contou a Marlowe como Tooley os enchera, a ele, Bartlett e Casey, de antibióticos. — Está se sentindo bem?

— Estou. Só um pouco desarranjado. Não há com que me preocupar, por cerca de um mês. — Peter Marlowe contou-lhe o que Tooley dissera sobre a hepatite. — Isso não me preocupa, é a Fleur e o bebê que estão me preocupando.

— Vocês têm uma amah?

— Temos, e o hotel é maravilhoso. Todos os criados de quarto estão dando uma mão.

— Tem tempo para tomar alguma coisa?

— Não, não, obrigado, é melhor eu voltar. A amah não... não há lugar para ela ficar, portanto está só olhando as crianças. Preciso dar uma passada na casa de saúde, no caminho, só para ver como vão as coisas.

— Está bem, então fica para outra vez. Por favor, dê lembranças minhas à sua mulher. E como vão indo as pesquisas?

— Bem, obrigado.

— Que outros segredos tenebrosos conseguiu arrancar dos nossos yan de Hong Kong?

— Muitos. Mas são todos simpáticos. — Peter Marlowe deu um débil sorriso. — Dirk Struan era um homem e tanto! Todos dizem que você também é, e todos esperam que você derrote Gornt, que vença de novo.

Dunross olhou para ele, satisfeito.

— Incomoda-se de que lhe façam perguntas sobre Changi? — indagou, e viu uma sombra passar pelo rosto sofrido, jovem e velho ao mesmo tempo.

— Depende.

— Robin Grey disse que você negociava com o mercado negro no campo. Com um americano. Um cabo.

Houve uma longa pausa, e o rosto de Peter Marlowe não se alterou.

— Eu era um comerciante, sr. Dunross, ou melhor, um intérprete para o meu amigo, que era comerciante. Ele era um cabo americano. Salvou minha vida e a vida dos meus amigos. Nós éramos quatro, um major, um capitão, um seringalista e eu. Salvou dúzias de outros também. O nome dele era King, e era mesmo um rei, rei de Changi, de certo modo. — Novamente, o débil sorriso. — Comerciar era contra a lei dos japoneses... e a lei do campo.

— Você disse "japoneses", e não "amarelos". É interessante — disse Dunross, prontamente. — Depois de todos aqueles horrores em Changi, não os detesta?

Depois de uma pausa, Peter Marlowe sacudiu a cabeça.

— Não detesto ninguém. Nem mesmo Grey. Uso toda a minha concentração e energia para apreciar o fato de estar vivo. Boa noite — falou, virando-se para ir embora.

— Escute, Marlowe, mais uma coisinha — disse Dunross depressa, tomando uma decisão. — Gostaria de ir às corridas no sábado? Na minha tribuna? Haverá gente interessante... já que está pesquisando sobre Hong Kong, é melhor fazê-lo numa boa, hem?

— Obrigado. Muito obrigado, Donald McBride já me convidou. Mas gostaria de dar uma passada Iá para tomar um drinque, se puder. E o livro?

— Como?

— O livro sobre a história da Struan, o tal que ia me emprestar.

— Ah, claro. Mandei rebatê-lo à máquina — disse Dunross. — Parece que há apenas um exemplar. Pode ter um pouquinho de paciência?

— Claro. Obrigado.

— Lembranças a Fleur. — Dunross observou-o enquanto ele se afastava, satisfeito porque Marlowe entendia a diferença entre comércio e mercado negro. Seu olhar caiu sobre o chinês do sei, que ainda o observava por cima da revista. Caminhou devagar de volta ao bar, como que imerso em pensamentos. Quando estava Iá dentro, em segurança, disse rapidamente: — Feng, há um maldito jornalista Iá embaixo que não estou querendo ver.

Imediatamente, o barman levantou a passagem para dentro do balcão.

— É um prazer, tai-pan — disse, sorrindo, sem acreditar na desculpa.

Seus fregueses usavam com freqüência a saída dos empregados, atrás do bar. Como não era permitida a entrada de mulheres no bar, era comum que se quisesse evitar uma mulher do lado de fora. "Qual será a prostituta que o tai-pan está querendo evitar?", perguntou-se o barman, intrigado, vendo-o deixar uma gorjeta generosa e sair apressado pela porta dos empregados.

Logo que chegou à rua, no beco lateral, Dunross dobrou rapidamente a esquina e tomou um táxi, encolhendo-se no banco traseiro.

— Aberdeen — disse, e explicou aonde queria ir, em cantonense.

— Ayeeyah, como uma flecha, tai-pan — falou o motorista, prontamente, animado ao reconhecê-lo. — Posso lhe perguntar quais as chances para o sábado? Com ou sem chuva?

— Sem chuva, por todos os deuses.

— Eeee, e o vencedor do quinto?

— Os deuses não o sussurraram para mim, nem os Grandes Tigres sujos que subornam jóqueis ou dopam cavalos para fazerem as pessoas honestas perderem uma aposta honesta. Mas Noble Star estará se esforçando.

— Todos os fornicadores estarão se esforçando — falou o chofer, com azedume —, mas quem será o escolhido dos deuses e do Grande Tigre do Hipódromo Happy Valley? Que tal Pilot Fish?

— O garanhão é bom.

— Butterscotch Lass? O Banqueiro Kwang está precisando que sua sorte mude.

— É. A Lass também é boa.

— A Bolsa ainda vai cair mais, tai-pan?

— Vai, mas compre ações da Casa Nobre às quinze para as três da sexta-feira.

— A que preço?

Use a cabeça, Veneravel Irmão. E eu Iá sou o Velho Cego Tung?

Orlanda e Linc Bartlett estavam dançando bem juntinhos na penumbra da boate, os corpos colados. A música, suave e sensual, de ritmo gostoso, era tocada por um conjunto filipino. O grande salão espelhado e luxuoso era habilmente iluminado com luzes embutidas no chão, com nichos particulares e poltronas fundas, baixas, ao redor de mesas baixas. Garçons a rigor carregavam pequenas lanternas de mão, como se fossem um bando de vaga-lumes. Muitas moças de vestidos de noite vistosos sentavam-se juntas, batendo papo ou olhando os poucos dançarinos. De quando em vez, sozinhas ou aos pares, iam fazer companhia a um ou mais homens às mesas, oferecendo-lhes sorrisos, conversas e bebidas. Depois de uns quinze minutos, seguiam adiante, seus movimentos delicadamente orquestrados pela atenta mama-san e seus auxiliares. A mama-san era uma xangaiense esguia e atraente, na casa dos cinqüenta, bem-vestida e discreta. Falava seis idiomas, e era responsável pelas garotas perante o proprietário. Dela dependia o sucesso ou o fracasso do negócio. As moças obedeciam-na totalmente. Os leões-de-chácara e os garçons também. Ela era o núcleo, a rainha do seu domínio, e era bajulada como tal.

Era raro um homem trazer sua própria companhia, embora isso não irritasse ninguém... desde que as gorjetas fossem generosas, e as bebidas continuamente servidas. Havia dúzias desses locais de prazer noturno espalhados pela colônia, alguns particulares, a maioria públicos, destinados a homens — turistas, visitantes ou yan de Hong Kong. Todos bem-providos de parceiras de dança de todas as raças. Eram pagas para sentarem-se ao lado do freguês, para conversar, rir ou escutar. Os preços variavam, a qualidade variava conforme o lugar escolhido, mas o propósito era sempre o mesmo: prazer para o freguês, dinheiro para a casa.

Linc Bartlett e Orlanda agora estavam mais juntos, balançando-se mais do que dançando, a macia cabeça dela contra o peito dele. Uma de suas mãos estava pousada suavemente no

ombro dele, a outra estava na mão dele, fresquinha ao seu toque. Ele a envolvia com um dos braços, a mão enlaçando-lhe a cintura. Ela sentia o calor dele invadir-lhe o sexo, e quase distraidamente acariciou-lhe a nuca e aproximou-se ainda mais, atraída pela música. Seus pés acompanhavam-no perfeitamente, e o corpo também. Dali a um momento, percebeu que ele se excitava, sentindo-lhe o contato.

"Como vou lidar com ele hoje à noite?", perguntou-se, sonhadora, adorando a noite, que fora perfeita. "Vou ou não vou? Ah, mas como quero.

O corpo dela parecia mover-se por si mesmo, agora ainda mais perto, as costas levemente arqueadas, os quadris para a frente. Uma onda de calor percorreu-a.

"Calor demais", pensou. Afastou-se, com esforço.

Bartlett sentiu que ela se afastava. Continuou com a mão na cintura dela e puxou-a contra si, sentindo apenas o seu corpo sob a mão, nenhuma roupa de baixo. "Tão raro. Apenas a pele sob a gaze finíssima... e mais calor do que pele. Meu Deus!"

— Vamos nos sentar um momento — falou ela, com voz rouca.

— Quando a dança acabar — murmurou ele.

— Não, não, Linc, minhas pernas estão bambas. — Com esforço, envolveu o pescoço dele com ambas as mãos e afastou-se um pouco, mantendo-se ainda junto dele, mas jogando um pouco do seu peso no braço dele. Tinha no rosto um amplo sorriso. — Posso cair. Não vai querer que eu caia, vai?

— Você não pode cair — sorriu ele também. — De jeito nenhum.

— Por favor...

— Não vai querer que eu caia, vai?

Ela riu, e sua risada o excitou. "Pombas", pensou, "acalme-se, ela está deixando você doido. "

Dançaram mais um momento, mas separados, e isso o acalmou um pouco. Depois, ele a virou e foi seguindo atrás dela, bem juntinho. Sentaram-se à sua mesa, refestelados no sofá, ainda cônscios da proximidade mútua. Suas pernas se tocaram.

— Quer mais uma bebida, senhor? — perguntou o garçom de smoking.

— Para mim não, Linc — disse ela, querendo xingar o garçom pela falta de tato, as bebidas deles ainda por terminar.

— Outro creme de menta? — perguntou Bartlett.

— Para mim não, juro, obrigada. Mas tome mais um. O garçom desapareceu. Bartlett teria preferido tomar uma cerveja, mas não queria aquele cheiro no seu hálito, e, o que era mais importante, não queria estragar a refeição mais perfeita que já tivera. O macarrão estava uma delícia, a vitela, macia e suculenta, com um molho de vinho e limão saborosíssimo, a salada, perfeita. Depois zabaione, preparado na frente dele, ovos, vinho marsala, e magia. E sempre a alegria dela, o toque do seu perfume.

— Esta é a melhor noite que passo há anos. Ela ergueu o copo, com falsa formalidade.

— Brindemos a muitas outras — disse. "É, a muitas outras, mas depois que estivermos casados, ou, pelo menos, noivos. Você é excitante demais, Linc Bartlett, tem afinidade demais comigo, é forte demais. " — Que bom que você gostou. Eu também gostei. Ah, se gostei!

Notou que os olhos dele se desviaram quando uma recepcionista passou por eles, o vestido muito decotado. A moça era linda, mal teria vinte anos, e juntou-se a um grupo de ruidosos empresários japoneses cercados por muitas garotas, numa mesa de canto. Prontamente, outra garota levantou-se, pediu licença e se afastou. Orlanda notou-o observando-as, sua mente agora clara como cristal.

— Todas elas podem ser alugadas? — perguntou ele, involuntariamente.

— Para ir para a cama?

O coração dele falhou uma batida, e ele voltou a fitá-la, cheio de atenção.

— É, suponho que foi o que quis dizer — disse, cauteloso.

— A resposta é não, e sim. — Ela manteve o sorriso suave, a voz meiga. — Como a maioria das coisas na Ásia, Linc. Nada é realmente sim ou não. É sempre talvez. Depende da disponibilidade da moça. Depende do homem, do dinheiro, e da quantia que ela deve. — O sorriso dela era malicioso. — Pode ser que eu lhe indique a direção certa, mas aí você iria aprontar, sem dúvida... porque fascina todas as moças bonitas, um homem grande e forte como você, heya?

— Qual é, Orlanda! — riu ele, enquanto ela imitava o sotaque cule.

— Vi que você reparou nela. Não o culpo, é linda — disse, invejando a juventude da pequena, mas não a sua vida.

— O que quis dizer com dívidas?

— Quando uma moça vem trabalhar aqui pela primeira vez, tem que parecer bonita. As roupas são caras, os cabeleireiros são caros, meias, maquilagem, tudo é caro. Assim, a mama-san, a mulher que cuida das garotas, ou o dono da boate, adianta à garota o dinheiro necessário para comprar tudo de que precisa. Claro que no começo todas elas são jovens e frívolas, frescas como as primeiras rosas do verão. Portanto, compram e compram, e depois têm que pagar o empréstimo. A maioria não tem nada quando começa, exceto o seu corpo... a não ser que já tenha trabalhado em outro clube, e tenha os seus fãs. As meninas mudam de clube, Linc, naturalmente, tão logo acabam de pagar as dívidas. Às vezes um proprietário paga as dívidas de uma moça para adquiri-la, e aos seus fãs... muitas são populares e muito requisitadas. Uma moça pode ganhar bastante, se souber dançar, conversar e falar vários idiomas.

— Quer dizer que suas dívidas são grandes?

— Perpétuas. Quanto mais continuam no ramo, mais difícil torna-se manter-se bonita. Portanto, as despesas são maiores. Os juros sobre as dívidas são de vinte por cento, no mínimo. Nos primeiros meses, a moça pode ganhar o suficiente para pagar grande parte da dívida, mas nunca o bastante. — Uma sombra toldou-lhe o rosto. — Os juros se acumulam, as dívidas se acumulam. Nem todos os patrocinadores são pacientes, portanto a moça tem que recorrer a outras formas de financiamento. Às vezes tem que pedir emprestado aos agiotas para pagar ao financiador original. Inevitavelmente, busca ajuda. Então, certa noite, a mama-san aponta um homem. "Ele quer comprar o seu tempo", diz ela. E...

— Como assim, comprar o seu tempo?

— Ah, é só um costume das boates daqui. Todas as moças têm que estar aqui pontualmente às oito, digamos, quando o clube abre. Arrumadas, impecáveis. Têm que ficar até a uma da manhã, ou serão multadas; serão multadas também se faltarem, se chegarem atrasadas, se não estiverem arrumadas, impecáveis, se não forem amáveis com os clientes. Se um homem quer sair sozinho com uma garota, para jantar ou seja Iá o que for — e muitos fregueses levam as garotas apenas para jantar fora, muitos levam até mesmo duas garotas, principalmente para impressionar os amigos —, ele compra o tempo da garota, paga uma taxa ao clube. A quantia depende de quanto tempo falta para o clube fechar. Não sei quanto ela recebe dessa taxa, acho que são trinta por cento, mas o que conseguir fora do clube é todo seu, a não ser que a mama-san negocie por ela, antes de sair. Aí, a casa recebe uma taxa.

— Sempre uma taxa?

— É uma questão de prestígio, Linc. Neste lugar, que é um dos melhores, comprar o tempo de uma garota lhe custaria uns oitenta HK por hora, cerca de dezesseis dólares americanos.

— Não é muito — falou, distraidamente.

— Não muito para um milionário, meu caro. Mas, para milhares aqui, oitenta HK têm que bastar para uma família por uma semana.

Bartlett a fitava, fazendo-se perguntas sobre ela, desejando-a, feliz por não ter que comprar o tempo dela. "Porra, mas isso seria terrível. Seria mesmo?", perguntou-se. "Pelo menos, seriam alguns cobres, depois uma trepada, e fim de papo. É isso o que quero?"

— O que foi? — perguntou ela.

— Só estava pensando que vida desgraçada têm essas meninas.

— Ah, não, não é nada desgraçada — disse ela, com a imensa inocência que ele achava devastadora. — Esta é provavelmente a melhor época na vida delas, certamente a primeira vez na vida que usam roupas bonitas, são aduladas ou requisitadas. Que outro tipo de emprego podem conseguir, sendo moças sem grande instrução? De secretária, se tiverem sorte. Caso contrário, numa fábrica, doze a catorze horas de trabalho por dez HK ao dia. Você devia ir visitar uma delas, Linc, ver as condições. Eu o levo. Precisa ver como as pessoas trabalham, assim nos compreenderá melhor. Adoraria ser sua guia. Agora que vai ficar, deve saber de tudo, Linc, conhecer tudo. Ah, não, elas se acham afortunadas. Pelo menos por um curto tempo de vida vivem bem, comem bem e riem um bocado.

— Nada de lágrimas?

— Sempre lágrimas. Mas as lágrimas são um meio de vida, para uma garota.

— Não para você.

Ela soltou um suspiro e pousou a mão no braço dele.

— Já tive a minha cota. Mas você faz com que eu esqueça todas as lágrimas que chorei. — Uma súbita explosão de risos fez com que erguessem os olhos. Os quatro empresários japoneses estavam rodeados por seis garotas, a mesa cheia de bebidas. — Sinto-me muito feliz por não ter que... servir aos japoneses — disse ela, simplesmente. — Abençôo minha sorte por isso. Mas eles são os que mais gastam, Linc, muito mais do que quaisquer outros turistas. Gastam até mais do que os xangaienses, portanto obtêm o melhor serviço, embora sejam odiados e saibam disso. Não parecem se importar que sua prodigalidade consiga comprar-lhes apenas falsidades. Talvez saibam disso, são espertos, muito espertos. Sem dúvida têm uma atitude diferente quanto a ir para a cama, e quanto às Damas da Noite, uma atitude diferente da das outras pessoas. — Outra explosão de risos. — Os chineses os chamam de lang syin gou fei, que, em mandarim, quer dizer literalmente "coração de lobo, pulmões de cachorro". Quer dizer, homens sem consciência.

— Isso não tem sentido — comentou ele, franzindo o cenho.

— Ah, tem, sim! É que os chineses cozinham e comem todas as partes do peixe, aves ou outro animal, exceto o coração do lobo e os pulmões do cachorro. São as duas únicas coisas que não se pode temperar... sempre fedem, não importa o que se faça com elas. — Ela voltou a olhar para a outra mesa. — Para os chineses, os japoneses são lang syin gou fei. O dinheiro também. O dinheiro também não tem consciência. — Deu um sorriso estranho e bebericou o seu licor. — Hoje em dia, muitas mama-sans e donos de clubes emprestam dinheiro às moças para aprenderem japonês. Para entreter, é preciso comunicar-se, não é?

Outro grupo de garotas passou por eles, e ela notou que olhavam para Bartlett, depois para ela, com ar especulador, e afastavam o olhar. Orlanda sabia que a desprezavam porque era eurasiana, e estava com um cliente quai loh. Foram fazer companhia aos homens de outra mesa. O clube começava a ficar cheio.

— Qual delas você quer? — perguntou Orlanda.

— Como?

Ela riu do choque dele.

— Ora, qual é, Linc Bartlett! Pensa que não notei os seus olhares? É...

— Pare com isso, Orlanda! — disse ele, constrangido, uma ponta de irritação na voz. — Neste lugar é impossível não notá-las.

— Claro, foi por isso que o sugeri — replicou imediatamente, forçando-se a manter o sorriso firme, as reações muito rápidas. Tocou-o novamente, a mão macia sobre o joelho dele. — Escolhi este lugar para que você pudesse deleitar os olhos. — Estalou os dedos. Instantaneamente o maitre apareceu, ajoelhando-se educadamente ao lado da mesinha baixa. — Dê-me seu cartão — falou imperiosamente em xangaiense, quase doente de apreensão, mas disfarçando-a perfeitamente.

Imediatamente o homem entregou o que parecia ser um programa de teatro.

— Deixe sua lanterna comigo. Chamo quando precisar.

O homem se afastou. Como uma conspiradora, ela chegou mais perto dele. Agora, suas pernas se tocavam. Linc abraçou-a. Ela dirigiu o facho de luz para o programa de teatro. Havia fotos, retratos de vinte ou trinta garotas. Sob as fotos, filas de caracteres chineses.

— Nem todas estas moças estão presentes hoje, mas se você vir uma de que goste, nós a traremos até aqui.

— Fala a sério? — perguntou, os olhos fitos nela.

— Muito sério, Linc. Não precisa se preocupar, negocio por você, se gostar dela, depois de conhecê-la e conversar com ela.

— Não quero nenhuma delas, quero você.

— É. É, eu sei, meu querido, e... mas, apenas por esta noite, tenha paciência comigo, por favor. Entre no jogo, deixe-me planejar a sua noite.

— Deus do céu, você é demais!

— E você é o homem mais maravilhoso que já conheci. Quero fazer a sua noite perfeita. Não posso me dar a você agora, por mais que deseje fazê-lo. Portanto, vamos achar uma substituta temporária. O que me diz?

Bartlett ainda olhava fixo para ela. Terminou sua bebida sem lhe sentir o gosto. Apareceu outra, vinda do nada. Bebeu a metade.

Orlanda sabia o risco que corria, mas achava que, de uma maneira ou de outra, aquilo o prenderia mais a ela. Se ele aceitasse, ficaria seu devedor por uma noite excitante, uma noite que nem Casey nem outra mulher quai loh seria capaz de proporcionar-lhe, nem em mil anos. Se recusasse, ainda assim ser-lhe-ia grato por sua generosidade.

— Linc, estamos na Ásia. Aqui o sexo não é nenhum bicho-de-sete-cabeças, como para os anglo-saxões, cheios de complexos de culpa. É um prazer que se busca, como boa comida e bons vinhos. Qual o valor de uma noite para um homem, um homem de verdade, com uma dessas Damas do Prazer? Um momento de prazer. Uma lembrança. Nada mais. O que tem isso a ver com o amor, o verdadeiro amor? Nada. Eu não sirvo para uma noite, não sou de aluguel. Senti o seu yang... Não, por favor, Linc — acrescentou rapidamente, vendo a reação dele. — Sobre as coisas de yang e yin não podemos contar mentiras ou falsidades, isso nos destruiria. Eu senti você, e fiquei cheia de alegria. Você não me sentiu? Você é forte, e é um homem, yang, eu sou uma mulher, yin, e quando a música é suave e... Oh, Linc! — Segurou-lhe a mão e olhou para ele, súplice: — Peço-lhe, não se prenda às bobagens anglo-americanas. Aqui é a Ásia, e eu... quero ser tudo o que uma mulher pode ser para você.

— Puxa, está falando sério?

— Claro. Juro por Deus! Gostaria de ser tudo o que você puder desejar numa mulher. Tudo. E juro também que quando for velha, ou você não me desejar mais, providenciarei para que essa parte da sua vida seja feliz, aberta e livremente. Só lhe peço para ser sua tai-tai, parte da sua vida.

Orlanda beijou-o de leve. E então notou a repentina mudança nele. Viu o assombro, o desamparo, e soube que havia vencido. Quase sufocou de alegria. "Ah, Quillan, você é um gênio!", teve vontade de gritar. "Nunca acreditei, verdadeiramente, que sua sugestão seria tão perfeita, nunca acreditei que fosse tão sábio! Ah, obrigada, obrigada."

Mas o seu rosto não deixou transparecer nada disso, e ficou esperando pacientemente, imóvel.

— O que quer dizer "tai-tai"? — perguntou ele com voz rouca.

"Tai-tai" queria dizer "suprema das supremas", esposa. Pelos antigos costumes chineses, no lar a mulher era a suprema, a todo-poderosa.

— Ser parte da sua vida — respondeu meigamente, todo o seu ser gritando que fosse cautelosa.

Ela esperou de novo. Bartlett debruçou-se, e ela sentiu seus lábios roçarem nos dela. Mas o beijo era diferente, e ela sabia que, de agora em diante, o relacionamento deles passaria a um plano diferente. Ficou emocionadíssima. Rompeu o encanto.

— Bem — falou, como quem fala com uma criança malcriada —, bem, sr. Linc Bartlett, qual delas escolhe?

— Você.

— E eu escolho você, mas nesse meio tempo temos que decidir qual destas o atrai mais. Se não gostar de nenhuma delas, iremos para outro clube. — Deliberadamente, manteve o tom de voz natural. — Bem, e quanto a esta aqui? — A moça era linda, aquela para quem ele tinha olhado. Orlanda já resolvera que aquela não servia, e escolhera a da sua preferência. "Mas", pensou, satisfeita, autoconfiante, "o pobrezinho tem direito à sua opinião. Ah, mas vou ser a mulher perfeita para você!" — O currículo diz que se chama Lily Tee... todas as moças têm nomes profissionais da sua própria escolha. Tem vinte anos, é de Xangai, fala xangaiense e cantonense, e seus passatempos são dançar, velejar e... — Orlanda olhou de perto os caracteres minúsculos, e ele notou a linda curva do seu pescoço — e dar passeios a pé. Que tal esta?

Ele olhou para o retrato.

— Escute, Orlanda, há anos que não durmo com uma prostituta, desde os meus tempos de exército. Nunca fizeram muito o meu gênero.

— Compreendo muito bem, e você tem razão — disse-lhe, pacientemente —, mas essas não são prostitutas, não no sentido americano. Não há nada de vulgar ou secreto nelas, ou no que proponho. Elas são Damas do Prazer que poderão lhe oferecer sua juventude, que tem grande valor, em troca de um pouco do seu dinheiro, que não tem quase nenhum. É uma troca justa, dada e recebida com dignidade de ambos os lados. Por exemplo, você deve saber antecipadamente quanto ela deve receber, e nunca lhe deverá dar o dinheiro diretamente, mas sim colocá-lo na bolsa dela. Isso é importante, é muito importante para mim que seu primeiro encontro seja perfeito. Tenho que proteger o seu prestígio, também, e...

— Ora, deixe disso, Orlan...

— Mas estou falando sério. Esta escolha, este presente que lhe dou, não tem nada a ver conosco, nada. O que acontece conosco é joss. É importante para mim que você curta a vida, que saiba como a Ásia realmente é, não como os americanos acham que é. Por favor...

Bartlett estava quase entregando os pontos, todos os seus sinais de alarme e perigo, tão bem testados, destroçados e inúteis contra aquela mulher que o fascinava e pasmava.

Estava bêbado do calor e carinho dela. Acreditava nela inteiramente.

Então, subitamente, lembrou-se de algo, e seu íntimo gritou-lhe que se acautelasse. Sua euforia desapareceu. Acabara de lembrar-se a quem mencionara o quanto adorava a cozinha italiana. Gornt. Gornt, há dois dias. Ao falar na melhor refeição que já comera. Comida italiana com cerveja. Gornt. "Meu Deus! Será que esses dois estão de combinação? Não pode ser, simplesmente não pode ser! Talvez tenha falado a ela da mesma refeição. Falei?"

Rebuscou na memória, mas não conseguiu se lembrar exatamente, todo o seu ser abalado. Mas seus olhos continuavam a vê-la à sua frente, esperando, sorridente, amorosa. "Gornt e Orlanda? Não podem estar de combinação! De jeito nenhum! Mesmo assim, tenha cuidado. Não sabe quase nada sobre ela. Portanto, cuidado! Pela madrugada, você está envolvido por uma teia, a teia dela. Ou será do Gornt, também?

"Experimente-a!", gritava-lhe o diabo que havia nele. "Experimente-a. Se ela realmente está falando sério, então é outra história, e ela é de outro planeta, uma jóia rara, e você terá que se resolver quanto a ela... só a terá nos seus termos.

"Experimente-a enquanto tem chance... não tem nada a perder. "

— O que foi? — perguntou ela, pressentindo a mudança.

— Só estava pensando no que você disse, Orlanda. Devo escolher agora?


Загрузка...