26

20h35m

O cule estava nas sombrias caixas-fortes de ouro do Ho-Pak Bank. Era um velho miúdo, usando uma camiseta suja e rasgada, e calções esfarrapados. Enquanto os dois porteiros erguiam o saco de lona e o colocavam sobre as suas costas curvadas, ele ajustava o cabresto à testa e apoiava-se nele, suportando o peso com os músculos do pescoço, as mãos agarrando as duas tiras gastas. Agora que agüentava o peso total, sentia o coração sobrecarregado batendo forte, rebelando-se contra o fardo, as juntas gritando por alívio.

O saco pesava pouco mais de quarenta quilos... quase mais do que o seu próprio peso. Os contadores haviam acabado de lacrá-lo. Continha exatamente duzentos e cinqüenta dos pequenos lingotes de contrabandista, cada um com cinco taéis — pouco mais de cento e setenta gramas —, e bastaria um deles para mantê-lo, e à sua família, em segurança durante meses. Mas o velho nem sequer pensava em tentar roubar um só deles. Todo o seu ser estava concentrado em como dominar a agonia, como manter os pés em movimento, como fazer sua parte do trabalho, receber o seu pagamento no fim do turno e depois descansar.

— Ande logo — falou com azedume o capataz —, ainda temos mais vinte malditas toneladas para carregar. O seguinte!

O velho não replicou. Fazê-lo gastaria mais da sua preciosa energia. Tinha que poupar avaramente suas forças naquela noite, se é que pretendia terminar. Com esforço, pôs os pés em movimento, as batatas das pernas duras, cheias de varizes e cicatrizes, fruto de tantos anos de trabalho.

Outro cule tomou o seu lugar enquanto ele se arrastava devagar para fora do úmido aposento de concreto, as prateleiras abarrotadas de um suprimento aparentemente inesgotável de pilhas meticulosas de lingotes de ouro que esperavam sob os olhos atentos dos dois funcionários bem-arrumados do banco... esperavam para ser enfiados no próximo saco de lona, para ser contados e recontados, e depois lacrados, com um floreio. Na escada estreita, o velho falseou o pé. Recuperou o equilíbrio com dificuldade, depois ergueu um pé para subir mais um degrau... agora só faltavam mais vinte e oito... e depois mais outro. Mal tinha acabado de chegar ao patamar quando suas pernas cederam. Oscilou de encontro à parede, apoiando-se nela para suavizar o peso, o coração sofrendo com o esforço, agarrando as tiras com ambas as mãos, sabendo que jamais conseguiria acomodar de novo o fardo se se soltasse do cabresto, apavorado de que passasse por ali o capataz ou um subcapataz. Através do espectro da dor, ouviu passos que vinham em sua direção, e lutou para colocar o saco mais no alto das costas, e para voltar a se mover. Quase caiu de cara no chão.

— Ei, Chu Nove Quilates, está passando bem? — perguntou o outro cule em dialeto de Chantung, ajeitando o saco para ele.

— Sim... sim... — Soltou um suspiro de alívio, agradecido por ser o seu amigo, da sua aldeia bem ao norte, e o líder do seu grupo de dez. — Danem-se todos os deuses, eu... só escorreguei...

O outro homem espiou-o à luz áspera da única lâmpada nua do teto. Notou os velhos olhos torturados e lacrimejantes, os músculos estirados.

— Eu carrego esse, você descansa um momento — falou. Habilmente, tirou o saco das costas do outro e colocou-o no chão. — Direi àquele estrangeiro sem mãe que acha que tem inteligência bastante para ser capataz que você foi fazer as necessidades. — Enfiou a mão no bolso da calça rasgada e passou para o velho um dos seus pedaços pequenos e amassados de folha laminada de cigarro. — Pegue. Descontarei do seu pagamento, logo mais.

O velho resmungou seus agradecimentos. Agora mal pensava de tanta dor. O outro homem jogou o saco às costas, gemendo com o esforço, apoiou-se contra a faixa de cabeça, depois, os músculos da barriga da perna retesados, voltou a subir as escadas, satisfeito com o negócio que fizera.

O velho esgueirou-se para fora do patamar, enfiou-se numa alcova poeirenta e se agachou. Os dedos lhe tremiam enquanto desamassava o papel laminado de cigarro, com sua pitada de pó branco. Acendeu um fósforo e colocou-o cuidadosamente sob o papel laminado, para aquecê-lo. O pó começou a ficar preto e a fumegar. Cuidadosamente, segurou o pó fumegante sob as narinas e inspirou profundamente, repetidas vezes, até que cada grão tivesse desaparecido na fumaça que ele tragava tão agradecido para dentro dos pulmões.

Recostou-se na parede. Logo a dor sumiu, e veio a euforia, que o invadiu totalmente. Sentiu-se jovem de novo, forte de novo, agora sabia que terminaria seu turno perfeitamente, e nesse sábado, quando fosse às corridas, ganharia o prêmio da loteria dupla. É, aquela seria a sua semana de sorte, e ele aplicaria a maior parte dos seus ganhos num terreno. "É, um terre-ninho pequeno, a princípio, mas com a alta minha propriedade subirá de preço, e mais e mais, e depois eu a venderei e ganharei uma fortuna, e comprarei mais e mais, e então serei um ancestral, meus netos à volta dos meus joelhos..."

Levantou-se e ficou ereto; depois desceu as escadas de novo e entrou na fila, esperando sua vez com impaciência.

— Dew neh loh moh, andem depressa — falou no seu dialeto cantante de Chantung —, não tenho a noite toda! Tenho outro emprego à meia-noite.

O outro emprego era numa obra na zona central, que não ficava longe do Ho-Pak, e ele sabia que era abençoado por ter dois empregos extras numa noite, além do seu trabalho regular diurno como operário de obra. Sabia, também, que fora o dispendioso pó branco que o transformara e afastara de si a fadiga e a dor. Claro que sabia que o pó branco era perigoso. Mas era um homem sensato e cauteloso, e só fazia uso dele quando estava no limite de suas forças. O fato de estar fazendo uso dele agora quase todos os dias, duas vezes por dia, na maioria das vezes, não o preocupava. "Joss", falou consigo mesmo, colocando nas costas o novo saco de lona.

No passado fora fazendeiro, o filho mais velho de fazendeiros proprietários de terras na província setentrional de Chantung, no delta fértil e móvel do rio Amarelo, onde, durante séculos, haviam plantado cereais, frutas e soja, amendoim, tabaco e todos os legumes que podiam comer.

"Ah, nossos belos campos!", pensou, feliz, subindo agora as escadas, ignorando o coração disparado, "nossos belos campos cheios de colheitas florescentes. Tão lindo! É. Mas depois começou a Época Ruim, faz trinta anos. Os Demônios do Mar do Leste vieram com suas armas e tanques e violentaram a nossa terra, e depois, quando o senhor da guerra Mao Tsé-tung e o senhor da guerra Chang Kai-chek os expulsaram, lutaram entre si, e novamente a terra foi destroçada. Assim, fugimos da fome, eu, minha jovem mulher e meus dois filhos, e viemos para este lugar, o Porto Fragrante, para viver no meio de estranhos, bárbaros meridionais e demônios estrangeiros. Viemos a pé. Sobrevivemos. Carreguei meus filhos a maior parte do trajeto, e agora eles estão com catorze e dezesseis anos, e temos duas filhas, e todos comem arroz uma vez por dia, e este será o meu ano da sorte. É, vou ganhar a loteria, ou a dupla diária, e um dia voltaremos à minha aldeia, recuperarei minhas terras, plantarei nelas de novo. O presidente Mao nos receberá de volta ao lar, deixará que eu retome as minhas terras e viveremos tão felizes, tão ricos e tão felizes..."

Agora, já estava do lado de fora do prédio, na noite, ao lado do caminhão. Outras mãos ergueram o saco e empilharam-no junto com todos os outros sacos de ouro, mais funcionários do banco verificando e reverificando os números. Havia dois caminhões na rua lateral. Um deles já estava cheio, e esperando sob guarda. Um único policial desarmado observava despreocupado o tráfego que passava. A noite estava quente.

O velho virou-se para ir embora. Foi então que notou os três europeus, dois homens e uma mulher, que se aproximavam. Pararam perto do caminhão mais afastado, olhando para ele, que ficou de queixo caído.

— Dew neh loh moh! Olhe para aquela piranha... o monstro com o cabelo cor de palha — falou, sem se dirigir a ninguém em particular.

— Incrível! — um outro replicou.

— É — concordou ele.

— É revoltante o modo como as piranhas deles se vestem em público, não é? — comentou um velho carregador enrugado, enojado. — Exibindo suas partes íntimas com essas calças justas. Dá para a gente ver cada porra de prega nos seus lábios inferiores.

— Aposto que dava para a gente enfiar nela o punho inteiro e o braço inteiro e nunca chegar ao fundo! — riu um outro.

— E quem iria querer fazer isso? — perguntou Chu Nove Quilates, escarrando ruidosamente e cuspindo, e depois deixando a mente vagar agradavelmente para o sábado, enquanto descia de novo.

— Gostaria que eles não cuspissem desse jeito. É nojento! — comentou Casey, com o estômago embrulhado.

— É um velho costume chinês — disse Dunross. — Eles acreditam que existe um espírito mau na garganta, do qual é preciso se livrarem constantemente, para que não os sufoque. Claro que cuspir é contra a lei, mas isso nada significa para eles.

— O que foi que aquele velho falou? — perguntou Casey, vendo-o arrastar-se de volta para dentro do banco, pela porta lateral. Agora já não sentia raiva, e estava muito satisfeita de ter ido jantar fora com os dois.

— Não sei... não entendi o dialeto dele.

— Aposto que não foi um elogio.

Dunross riu.

— Essa aposta você ganharia, Casey. Eles não nos apreciam, absolutamente.

— Aquele velho deve ter no mínimo uns oitenta anos, e carregou o seu fardo como se fosse uma pena. Como eles se mantêm assim tão em forma?

Dunross deu de ombros e ficou calado. Ele sabia. Outro cule jogou sua carga para dentro do caminhão, fitou-a, escarrou, cuspiu, e foi se afastando.

— Vá tomar no rabo você também — resmungou Casey, e depois parodiou um tremendo escarro e um cuspe à distância, e eles riram com ela. O chinês apenas ficou olhando.

— Ian, do que se trata? Para que estamos aqui? — quis saber Bartlett.

— Pensei que gostariam de ver cinqüenta toneladas de ouro.

Casey soltou uma exclamação abafada.

— Esses sacos estão cheios de ouro?

— Estão. Vamos.

Dunross foi na frente, descendo as escadas sombrias que levavam à caixa-forte do banco. Os funcionários do banco cumprimentaram-no cortesmente, e os guardas desarmados e os carregadores os fitaram. Os dois americanos sentiram-se inquietos, sob os olhares fixos. Mas a inquietação deles foi sufocada pelo ouro. Pilhas certinhas de barras de ouro sobre as prateleiras de aço que os cercavam... dez em cada camada, cada pilha com dez camadas de altura.

— Posso segurar uma? — perguntou Casey.

— À vontade — falou Dunross, observando-os e tentando testar a extensão da sua cobiça. "Estou apostando alto", pensou de novo. "Tenho que conhecer até onde vão esses dois."

Casey nunca tocara em tanto ouro na sua vida. Nem Bartlett. Os dedos deles tremiam. Ela acariciou uma das barrinhas, olhos arregalados, antes de erguê-la.

— É pesada, para o tamanho — murmurou.

— São chamadas de barras de contrabandista, porque são fáceis de esconder e transportar — falou Dunross, escolhendo as palavras deliberadamente. — Os contrabandistas usam uma espécie de colete de lona com bolsinhos, que acomodam direitinho as barras. Dizem que um bom mensageiro pode carregar até trinta e seis quilos por viagem... são quase mil e trezentas onças. Claro que têm que estar em forma, e bem treinados.

Bartlett sopesava duas em cada mão, fascinado por elas.

— Quantas delas perfazem trinta e seis quilos?

— Umas duzentas, aproximadamente.

Casey olhou para ele, os olhos cor de avelã maiores do que de costume.

— É tudo seu, tai-pan?

— Santo Deus, não! Pertencem a uma firma de Macau. Estão transferindo-as daqui para o Victoria. Pela lei, os americanos ou ingleses sequer têm o direito de possuir uma delas. Mas pensei que poderiam se interessar, porque não é sempre que se vêem cinqüenta toneladas juntas num só lugar.

— Nunca me dei conta do que era o dinheiro de verdade, antes — dizia Casey. — Agora posso entender por que os olhos do meu pai e do meu tio se iluminavam quando falavam em ouro.

Dunross a observava. Não via cobiça nela, apenas assombro.

— Os bancos fazem muitas transferências como esta? — perguntou Bartlett, com voz rouca.

— Sim, o tempo todo — falou Dunross, imaginando se Bartlett havia mordido a isca e estava planejando um assalto à moda da Máfia, com seu amigo Banastasio. — Vai chegar um carregamento muito grande daqui a umas três semanas — falou, aumentando a tentação.

— Quanto valem cinqüenta toneladas? — perguntou Bartlett.

Dunross sorriu consigo mesmo, recordando Tung Zeppelin com sua exatidão de cifras. Como se isso tivesse importância!

— Legalmente, sessenta e três milhões de dólares, com uma diferença para mais ou para menos de alguns milhares.

— E vocês os estão transportando só com um bando de velhos, dois caminhões que nem sequer são blindados, e sem guardas?

— Claro. Isso não é problema em Hong Kong, o que é um dos motivos pelo qual nossa polícia é tão sensível quando se fala em armas. Se eles possuem as únicas armas da colônia, bem, o que podem os bandidos e os homens maus fazer, exceto xingar?

— Mas onde está a polícia? Só vi um guarda, e não estava armado.

— Ah, está por aí, acho eu — disse Dunross, deliberadamente bancando o indiferente.

Casey olhou para o lingote de ouro, curtindo o toque do metal.

— Parece tão fresco e permanente. Tai-pan, se elas valem legalmente sessenta e três milhões, qual o seu valor no mercado negro?

Dunross notou agora leves gotículas de suor no seu lábio superior.

— O quanto alguém estiver disposto a pagar. No momento, soube que o melhor mercado é a índia. Pagariam de oitenta a noventa dólares americanos a onça, entregues na índia.

Bartlett deu um sorriso torto e relutantemente recolocou seus quatro lingotes na pilha deles.

— É um bocado de lucro.

Ficaram olhando em silêncio enquanto outro saco de lona era lacrado, as barras verificadas e reverificadas por ambos os bancários. Novamente, o saco foi colocado sobre as costas curvadas de um homem, e ele foi embora, caminhando penosamente.

— E aquelas, o que são? — indagou Casey, apontando para umas barras bem maiores que estavam noutra parte da caixa-forte.

— São as barras regulamentares de quatrocentas onças — disse Dunross. — Pesam cerca de onze quilos cada. — A barra estava marcada com a foice e o martelo, e 99,999. — Esta é russa. É 99,99 por cento pura. O ouro da África do Sul é geralmente 99,98 por cento puro, portanto o russo é mais procurado. Claro que ambos são fáceis de comprar no mercado de ouro de Londres. — Deixou que olhassem mais um pouco, depois falou: — Vamos indo, agora?

Na rua estavam apenas um único policial e os guardas do banco desleixados e desarmados, os dois motoristas de caminhão fumando nas suas boléias. O tráfego passava por ali, ocasionalmente. Uns poucos pedestres.

Dunross ficou contente por sair do confinamento da caixa-forte. Sempre detestara porões e masmorras desde que o pai o trancara num armário, quando era muito pequeno, por um delito de que agora não se recordava. Mas recordava-se da velha Ah Tat, sua amah, salvando-o e defendendo-o... enquanto ele fitava o pai, tentando deter as lágrimas de terror que não podiam ser detidas.

— É bom estar de volta ao ar livre — falou Casey. Usou um lenço de papel. Inexoravelmente, seus olhos foram atraídos para os sacos no caminhão quase cheio. — Isso é dinheiro de verdade — murmurou, quase consigo mesma. Um leve estremecimento a percorreu, e Dunross soube imediatamente que descobrira a sua jugular.

— Estou com vontade de tomar uma cerveja — falou Bartlett. — Tanto dinheiro me dá sede.

— E eu de tomar um uísque com soda! — disse ela, e o encantamento se quebrou.

— Vamos até o Victoria ver a entrega começar a ser feita, e depois comeremos...

Dunross se interrompeu. Vira os dois homens batendo papo perto dos caminhões, parcialmente ocultos nas sombras. Enrijeceu-se ligeiramente.

Os dois homens o viram. Martin Haply, do China Guardian, e Peter Marlowe.

— Oh, alô, tai-pan — disse o jovem Martin Haply, aproximando-se dele com seu sorriso confiante. — Não esperava vê-lo aqui. Boa noite, srta. Casey, Sr. Bartlett. Tai-pan, gostaria de fazer algum comentário sobre o assunto do Ho-Pak?

— Que assunto do Ho-Pak?

— A corrida ao banco, senhor.

— Não sabia que estava havendo uma.

— Não leu a minha coluna sobre as várias agências e os boa...

— Meu caro Haply — falou Dunross, com o seu charme tranqüilo —, sabe que não procuro entrevistas, nem as dou por qualquer motivo... e nunca nas esquinas.

— Sim, senhor. — Haply fez sinal para os sacos. — Transferir todo esse ouro é um golpe duro para o Ho-Pak, não é? Será o beijo da morte para o banco, quando isso transpirar.

Dunross soltou um suspiro.

— Esqueça o Ho-Pak, Sr. Haply. Posso lhe falar em particular? — Segurou o jovem pelo cotovelo e afastou-o dali com firmeza de veludo. Quando estavam sozinhos, meio encobertos por um dos caminhões, soltou o braço do outro. Sua voz baixou. Involuntariamente, Haply se crispou e deu meio passo para trás. — Já que anda saindo com minha filha, só quero que saiba que gosto muito dela, e que entre cavalheiros existem certas regras. Estou supondo que seja um cavalheiro. Se não for, Deus o ajude. Terá que prestar contas a mim, pessoalmente, imediatamente e sem piedade. — Dunross deu meia-volta e foi juntar-se aos outros, cheio de súbita bonomia. — Boa noite, Marlowe, como vão indo as coisas?

— Muito bem, obrigado, tai-pan. — O homem alto fez um sinal de cabeça para os caminhões. — É um espanto, toda essa fortuna!

— Onde ouviu falar da transferência?

— Um amigo jornalista tocou no assunto há cerca de uma hora. Falou que umas cinqüenta toneladas de ouro estavam sendo transferidas daqui para o Victoria. Pensei que seria interessante ver como a coisa é feita. Espero que não... espero não estar pisando em nenhum calo.

— De modo algum. — Dunross virou-se para Casey e

Bartlett. — Estão vendo, não falei que Hong Kong era como uma aldeia... nunca se pode guardar segredos aqui por muito tempo. Mas tudo isso... — indicou os sacos — tudo isso é chumbo... ouro de tolos. O carregamento real foi completado há uma hora. Não eram cinqüenta toneladas, e sim alguns milhares de onças. A maior parte das reservas em ouro do Ho-Pak ainda está intacta.

Sorriu para Haply, que não estava sorrindo, mas ouvindo, de cara fechada.

— Então é tudo mentira, afinal? — exclamou Casey, com voz abafada.

Peter Marlowe riu.

— Devo confessar que achei toda essa operação um tanto descontraída!

— Bem, boa noite, vocês dois — Dunross disse despreocupadamente para Marlowe e Martin Haply. Tomou o braço de Casey, momentaneamente. — Vamos, está na hora do jantar.

Começaram a descer a rua, Bartlett ao seu lado.

— Mas, tai-pan, aquelas que nós vimos — disse Casey —, aquela que peguei, era de mentira? Teria apostado a minha vida, você não, Linc?

— É — concordou Linc. — Mas o despiste foi muito sensato. É o que eu teria feito.

Dobraram a esquina, na direção do imenso prédio do Victoria, o ar quente e pegajoso.

Casey soltou uma risada nervosa.

— Aquele metal dourado estava mexendo comigo... e era falso o tempo todo!

— Na verdade, era real — Dunross falou em voz baixa, e ela parou. — Desculpe confundi-la, Casey. Falei aquilo apenas para os ouvidos de Marlowe e Haply, para criar desconfiança na sua fonte. Eles não podiam provar nem uma coisa nem outra. Pediram-me que tomasse as providências para a transferência há pouco mais de uma hora... o que fiz, obviamente, com grande cautela.

Seu coração bateu mais depressa. Perguntou-se quantas outras pessoas sabiam dos documentos de Alan Medford Grant e da caixa-forte e do número do cofre individual na caixa-forte.

Bartlett o observava.

— Eu acreditei no que você disse, e portanto, acho que eles também acreditaram — falou, enquanto pensava: "Por que nos trouxe para ver o ouro? É o que eu gostaria de saber".

— É curioso, tai-pan — disse Casey com uma risadinha nervosa. — Eu sabia, simplesmente sabia que o ouro era de verdade, para começo de conversa. Depois acreditei em você quando disse que era falso, e agora voltei a acreditar que é real. É tão fácil falsificar ouro?

— Sim e não. Só se sabe ao certo quando se põe ácido nele. Tem que passar pelo teste do ácido. Este é o único teste verdadeiro para o ouro. Não é? — acrescentou para Bartlett, e viu o sorriso e ficou se perguntando se o americano compreendia.

— Acho que é, Ian. Para o ouro... ou para as pessoas. Dunross devolveu o sorriso. "Ótimo", pensou sombriamente, "entendemo-nos perfeitamente."

Agora era bem tarde. As barcas e balsas do Terminal da Balsa Dourada tinham parado de funcionar, e Casey e Linc Bartlett estavam numa lanchinha alugada, atravessando a baía, a noite maravilhosa, um cheiro gostoso de maresia no vento, o mar calmo. Estavam sentados num dos bancos de frente para Hong Kong, de braços dados. O jantar fora o melhor que já haviam comido, a conversa entremeada de muitas risadas, Dunross encantador. Tinham terminado a noite tomando conhaque no topo do Hilton. Ambos estavam se sentindo maravilhosamente em paz com o mundo e consigo mesmos.

Casey sentiu a ligeira pressão do braço dele, e apoiou-se de leve contra ele.

— É romântico, não é, Linc? Olhe para o Pico, e todas as luzes. Incrível. É o lugar mais lindo e excitante em que já estive.

— Melhor do que o sul da França?

— Aquilo foi muito diferente. — Haviam passado umas férias juntos na Cote d'Azur, há dois anos. Fora a primeira vez que tiraram férias juntos. E a última. Fora um esforço grande demais para ambos se manterem separados. — Ian é fantástico, não é?

— É. E você também.

— Obrigada, gentil senhor, e você também. Eles riram, felizes, juntos.

No cais, no lado de Kowloon, Linc pagou ao barqueiro e foram andando devagar até o hotel, de braços dados. Alguns garçons ainda estavam de serviço no saguão.

— Boa noite, senhor, boa noite, senholita — falou o velho ascensorista, sibilantemente, e, no andar deles, Chang Noturno saiu apressado à sua frente para abrir a porta da suíte. Automaticamente, Linc deu-lhe um dólar, e ele curvou-se enquanto eles entravam. Chang Noturno fechou a porta.

Ela a trancou.

— Uma bebida? — indagou ele.

— Não, obrigada. Iria estragar o conhaque.

Ela o viu olhando para ela. Estavam de pé no meio da sala de estar, a imensa janela panorâmica descortinando Hong Kong inteira às costas dele, seu quarto à direita, o dela à esquerda. Ela podia sentir a veia no seu pescoço pulsando, sentia-se toda molhada, e ele lhe parecia tão belo!

— Bem, é... obrigada por uma noite maravilhosa, Linc. Eu... até amanhã — falou. Mas não se mexeu.

— Faltam três meses para seu aniversário, Casey.

— Treze semanas e seis dias.

— Por que não os driblamos e nos casamos agora? Amanhã.

— Você... tem sido tão maravilhoso comigo, Linc, tão bom ao ser paciente e aturar a minha... doidice. — Ela sorriu para ele, um sorriso tentador. — Não vai demorar muito agora. Vamos fazer o que combinamos. Por favor?

Ele ficou ali parado, desejando-a. Depois, falou:

— Claro. — Quando chegou à porta, parou. — Casey, você tem razão quanto a este lugar. É romântico e excitante. Também mexeu comigo. Quem sabe... quem sabe não seria melhor você arranjar outro quarto?

Fechou a porta.

Naquela noite, ela chorou até dormir.


Quarta-feira

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