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7h30m

O pequeno helicóptero Bell sobrevoou a cidade, logo abaixo da cerração, e continuou subindo as encostas para ultrapassar o funicular do Pico e os múltiplos prédios altos que pontilhavam os morros íngremes. Agora, o helicóptero estava quase na camada inferior das nuvens.

Cuidadosamente, o piloto subiu mais trinta metros, diminuiu a velocidade e ficou pairando, depois viu a pista de pouso nublada nos terrenos da Casa Grande, perto de um grande jacarandá. Imediatamente, baixou para aterrar. Dunross já estava à espera. Abaixou-se para evitar as hélices em movimento, entrou no lado esquerdo do aparelho e colocou o cinto de segurança e os fones de ouvido.

— Bom dia, Duncan — cumprimentou, ao microfone. — Pensei que não fosse conseguir chegar até aqui.

— Nem eu — falou o homem mais velho, e Dunross ajustou o volume do fone de ouvido, para escutar melhor. — Duvido que consigamos voltar, tai-pan. A cerração está baixando muito depressa de novo. Melhor irmos logo, se é que vamos. Assuma o controle.

— Lá vamos nós.

Suavemente, a mão esquerda de Dunross torceu a garra do acelerador, inverteu suavemente a marcha e levantou a alavanca, enquanto a mão direita movia a alavanca de controle para a direita, para a esquerda, para a frente, para trás, fazendo um circulozinho suave, tateando e buscando o bolsão de ar que estava se formando direitinho... a mão esquerda controlando a velocidade, a subida ou a descida, a direita, a direção, os pés nos pedais do leme de direção, mantendo firme o aparelho instável, impedindo a força de torção. Dunross adorava dirigir helicópteros. Era um desafio muito maior do que pilotar aviões de asas fixas. Exigia muito mais concentração e perícia, e ele esquecia seus problemas enquanto voava, purificando-se. Mas raramente voava sozinho. O céu era para os profissionais ou para aqueles que voavam diariamente. Por isso ele sempre tinha um piloto-instrutor ao lado, mas a presença do outro homem não empanava o seu prazer.

Suas mãos sentiram o bolsão aumentando, e logo o helicóptero ergueu-se do chão alguns centímetros. Instantaneamente, ele corrigiu o leve desvio para a direita, causado por uma rajada de vento. Verificou os instrumentos, atento aos perigos, olhar Iá fora, ouvidos atentos à música do motor. Quando tudo estava estável, aumentou a inversão; enquanto erguia a alavanca esquerda, moveu a alavanca de controle um pouco para a frente e para a esquerda, compensando com os pés, e fez uma curva derrapante para a esquerda, ganhando altura e velocidade para descer montanha abaixo.

Logo que o aparelho se estabilizou, ele apertou o botão de transmissão da alavanca de controle, comunicando-se com o controle de tráfego aéreo em Kai Tak.

— Cuidado com a ré — disse Mac.

— Pronto. Desculpe.

Dunross corrigiu uma fração depressa demais, e se xingou, depois colocou o helicóptero em posição direitinho, voando macio, a trezentos metros acima do nível do mar, dirigindo-se para o outro lado da baía, para Kowloon, os Novos Territórios e a área da subida do morro.

— Vai mesmo subir o morro, tai-pan?

— Duvido, Duncan — falou ao microfone. — Mas queria dar o nosso passeio, de qualquer maneira. Há uma semana que espero por ele.

Duncan Maclver dirigia o pequeno negócio de helicópteros do aeroporto. A maior parte do seu comércio era local, especialmente pesquisas encomendadas pelo governo. Às vezes a polícia o contratava, ou o Corpo de Bombeiros, ou a alfândega. Era um homem baixo, antigo membro da raf, com um rosto vincado, olhos muito amplos e vivos, que se moviam constantemente.

Logo que Dunross estabilizou o aparelho, Maclver inclinou-se para a frente e colocou círculos de papelão sobre os instrumentos, para forçar Dunross a voar apenas pelo tato e pelo ouvido, para escutar a arfagem e o tom; mais devagar significava que o motor estava dando mais de si, que estavam subindo — cuidado para não perder velocidade —, e mais depressa significava que estavam mergulhando, perdendo altitude.

— Tai-pan, olhe só para Iá. — Maclver apontou para a cicatriz que cortava uma das encostas logo antes de Kowloon; abria uma trilha por uma das imensas favelas. — Há deslizamentos de terra por toda parte. Ouviu o noticiário das sete?

— Ouvi.

— Deixe-me pegar o controle um minuto.

Dunross tirou as mãos e os pés dos controles. Maclver deu um lindo mergulho para chegar mais perto da favela e examinar os estragos. Eram grandes. Talvez duzentos barracos estivessem espalhados e soterrados. Outros, junto ao deslizamento, estavam agora mais precários do que antes. A fumaça dos incêndios que sempre acompanhavam os deslizamentos ainda pairava como uma cortina.

— Meu Deus! Que coisa terrível!

— Acordei de madrugada hoje. O Corpo de Bombeiros me pediu que os ajudasse na Colina Três, acima de Aberdeen. Há dois dias houve um deslizamento ali, e uma criança quase ficou soterrada. Ontem à noite houve novo desabamento no mesmo local. Muito perigoso. A área atingida mede sessenta metros por quinze, mais ou menos. Uns duzentos ou trezentos barracos sumiram, mas houve apenas dez mortos... uma sorte danada! — Maclver sobrevoou em círculo por um momento, tomou nota num bloquinho, depois levou o helicóptero de volta para a altitude e curso anteriores. Assim que ele ficou firme e estabilizado, falou: — É todo seu.

Dunross reassumiu os controles.

Sha Tin vinha surgindo no horizonte, no lado direito. Quando estavam perto, Maclver tirou as coberturas de papelão dos instrumentos.

— Ótimo — falou, verificando a leitura dos instrumentos. — Precisos.

— Teve algum serviço interessante, ultimamente?

— Tudo a mesma coisa. Tenho um vôo marcado para Macau, amanhã de manhã, se o tempo permitir.

— Lando Mata?

— Não, um americano chamado Banastasio. Cuidado com a ré! Olhe, Iá está o nosso destino.

A aldeia pesqueira de Sha Tin ficava perto de pistas que levavam aos morros onde se realizaria a subida. O percurso consistia em uma tosca estrada de terra batida, aberta na encosta da montanha. No sopé das colinas havia alguns carros, alguns sobre reboques, e equipamentos de reboques, mas quase nenhum espectador. Normalmente haveria centenas, na maioria europeus. Era a única competição de carros na colônia. A lei britânica proibia o uso de qualquer parte do sistema público de rodovias para corridas, e esse era o motivo pelo qual o Grand Prix amador anual em Macau fora organizado conjuntamente pelo Clube de Carros Esporte e Rali de Hong Kong e o Conselho Municipal Português. No ano passado, Guillo Rodríguez, da polícia de Hong Kong, vencera a corrida de sessenta voltas em três horas e vinte e seis minutos, a uma velocidade média de cento e quinze quilômetros horários, e Dunross, guiando um Lotus, e Brian Kwok, num Jaguar modelo E emprestado, disputavam palmo a palmo um segundo lugar, até que um pneu de Dunross estourou, fazendo-o entrar a toda na Curva do Pescador, e quase o matou no mesmo lugar em que o seu motor estourara, em 59, um ano antes de se tornar tai-pan.

Dunross agora se concentrava no pouso, sabendo que estariam sendo observados.

O helicóptero estava alinhado, a ré na posição correta para a descida, o vento à frente e à direita, rodopiando um pouco enquanto se aproximavam do chão. Dunross segurou o aparelho meticulosamente. No local exato, ele corrigiu o rumo e parou, pairando, em controle total. Depois, mantendo tudo coordenado, soltou o acelerador, oh, tão de leve, erguendo a alavanca esquerda para mudar a arfagem das hélices a fim de amaciar a aterragem. As sapatas de pouso tocaram o chão. Dunross desacelerou completamente e baixou suavemente a alavanca até o fundo. Fora um dos melhores pousos que já fizera.

Maclver não falou nada, nem lhe fez um belo elogio, fingindo que era sempre assim, e observou enquanto Dunross iniciava o processo de desligamento.

— Tai-pan, por que não deixa que eu acabe para o senhor? — disse. — Aqueles sujeitos parecem um tanto ansiosos.

— Obrigado.

Dunross manteve a cabeça abaixada e dirigiu-se ao grupo que vestia capas impermeáveis, os pés afundados na lama.

— Bom dia.

— Está terrível, tai-pan — falou George T'Chung, o filho mais velho de Shitee TChung. — Tentei experimentar com o meu carro, e ele atolou na primeira curva. — Apontou para a pista. O modelo E estava atolado, com um dos pára-lamas curvado. — Vou ter que arranjar um trator.

Novas gotas de chuva os molharam.

— Uma droga duma perda de tempo — falou Don Nikklin com azedume. Era um homem baixo e belicoso, de vinte e muitos anos. — Devíamos tê-la cancelado ontem.

"É verdade", pensou Dunross, satisfeito, "mas aí eu não teria tido a desculpa de voar, e o extremo prazer de vê-lo, aqui, com a sua manhã desperdiçada."

— Todos concordaram em tentar hoje. Era arriscado, mas concordaram — disse Dunross, suavemente. — Você estava presente. Seu pai também, não foi?

— Sugiro formalmente que a adiemos — disse McBride, apressadamente.

— Aprovado.

Nikklin voltou para o seu caminhão de quatro rodas novinho, com o seu Porsche envenenado sob uma cobertura de oleado.

— Sujeito simpático — comentou alguém.

Ficaram olhando enquanto Nikklin pôs o caminhão em movimento e se afastou com grande perícia na estrada de terra perigosa, passando pelo helicóptero, com o motor morrendo e as hélices parando de girar.

— Uma pena que ele seja um merda tão grande — falou alguém. — É um excelente motorista.

— Que Macau chegue logo, hem, tai-pai? — falou George T'Chung com uma risada, a voz aristocrática, o sotaque de internato inglês.

— É — disse Dunross, a voz cortante, louco para que novembro chegasse, para derrotar Nikklin de novo. Vencera-o três vezes, em seis tentativas, mas jamais vencera o Grand Prix. Os carros nunca eram fortes o bastante para agüentar o seu pé direito pesado. — Por Deus, desta vez vou vencer.

— Ah, não vai, não, tai-pan. Este ano é meu! Tenho um Lotus 22, um barato! Meu velho pagou tudo. Vai ver a traseira do meu carro nas sessenta voltas!

— Vou, uma ova! O meu novo modelo. E vai... Dunross se deteve. Um carro de polícia vinha deslizando e derrapando no lodaçal, aproximando-se dele. "Por que o Sinders veio tão cedo?", pensou, o estômago se contraindo. Dissera meio-dia. Involuntariamente, a mão se moveu para verificar se o envelope estava em segurança no bolso. Seus dedos o tranqüilizaram.

Na véspera, quando retornara ao escritório de P. B. White, pegara novamente os onze pedaços de papel e os examinara à luz. Os códigos não tinham sentido para ele. "Ainda bem", pensou. Depois, fora até a máquina copiadora que estava ao lado da mesa de tampo de couro, e fizera duas cópias de cada página. Colocou cada grupo num envelope separado e lacrou-os. Num deles escreveu: "P. B. White — por favor, entregue isso ao tai-pan da Struan, sem abrir". Este, pôs num livro que escolheu ao acaso nas prateleiras, recolocando-o com grande cuidado. Seguindo as instruções de Alan, marcou o segundo com um G para Riko Gresserhoff, e colocou-o no bolso. Lacrou os originais noutro envelope e também o guardou no bolso. Com uma verificação final de que a porta secreta estava ajustada no seu lugar, destrancou a porta e foi embora. Dali a alguns minutos, ele e Gavallan saíram com Casey e Riko, e, embora tivesse havido muitas oportunidades para entregar a Riko o seu envelope particularmente, resolvera que era melhor esperar até que os originais tivessem sido entregues.

"Será que devo entregar ao Sinders os originais agora ou ao meio-dia?", perguntara-se, observando o carro da polícia. O carro parou. O inspetor-chefe Donald C. C. Smyth saltou. Nem Sinders nem Crosse estavam com ele.

— Bom dia — cumprimentou Smyth polidamente, tocando o quepe com o bastão, o outro braço ainda na tipóia. — Com licença, sr. Dunross, foi o senhor que alugou o helicóptero?

— Foi, sim, inspetor-chefe — disse Dunross. — O que houve?

— Estou com um probleminha Iá embaixo na estrada, e vi o senhor chegar. Será que pode nos emprestar Maclver e o aparelho por uma hora... ou, se o senhor vai voltar agora, talvez pudéssemos usá-lo depois.

— Sem dúvida. Já estou de saída. A subida do morro foi cancelada.

Smyth lançou um olhar à pista aberta na montanha e ao céu e soltou um resmungo.

— Diria que foi uma medida sensata, senhor. Pode apostar que alguém iria sair ferido. Será que posso dar uma palavrinha ao Maclver?

— Claro. Não é nada sério, espero.

— Não, absolutamente. Mas é interessante. As chuvas desenterraram dois cadáveres na mesma área em que o corpo de John Chen foi encontrado.

Os outros se aproximaram.

— Os Lobisomens? — perguntou George T'Chung, chocado, — Mais vítimas de seqüestro?

— Supomos que sim. Os dois eram jovens. Um deles teve a cabeça esmagada, e o outro, pobre sacana, metade da cabeça cortada fora, aparentemente com uma pá. Os dois eram chineses.

— Meu Deus! — exclamou o jovem George T'Chung, quase sem cor.

Smyth balançou a cabeça, com azedume.

— Não ouviram falar de nenhum filho rico que tenha sido seqüestrado, ouviram?

Todos fizeram que não com a cabeça.

— Não estou surpreso — disse Smyth. — É uma burrice da parte das famílias das vítimas negociarem com os seqüestradores e ficarem caladas. Infelizmente, os cadáveres foram descobertos por gente local, portanto haverá manchetes até hoje à noite, daqui até Pequim.

— Quer levar os corpos de volta de helicóptero?

— Ah, não, tai-pan. Tenho pressa de trazer para cá alguns peritos do DIC para revistarem a área antes que as chuvas voltem. Precisamos tentar identificar os coitados. O senhor pode partir imediatamente?

— Sim, sem dúvida.

— Obrigado. Desculpe o incômodo. Uma pena o que houve com Noble Star. Mas apostarei a minha bolada no senhor no sábado.

Smyth fez um gesto cortês de cabeça e se afastou. George T'Chung estava francamente nervoso.

— Somos todos alvos para aqueles filhos da mãe, os Lobisomens. Você, eu, o meu velho, qualquer um. Pombas, como poderemos proteger-nos contra eles?

Ninguém lhe respondeu. A seguir, Dunross disse, com uma risada:

— Não há motivo para se preocupar, meu velho. Somos todos invioláveis.


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