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22h03m

— Bem, que diabo você vai fazer, Paul? — perguntou o governador a Havergill. Johnjohn estava com eles, no terraço do Palácio do Governo, depois do jantar, encostados à balaustrada baixa. — Santo Deus! Se o Victoria também ficar sem dinheiro, a ilha inteira estará arruinada, não é?

Havergill olhou ao seu redor para se certificar de que não estavam sendo ouvidos, e baixou a voz.

— Estivemos em contato com o Banco da Inglaterra, senhor. Até a meia-noite de amanhã, hora de Londres, haverá um avião-transporte da RAF em Heathrow atulhado de notas de cinco e dez libras. — Sua confiança habitual estava voltando. — Como já disse, o Victoria é perfeitamente seguro, tem absoluta liquidez, e nossos bens aqui e na Inglaterra são substanciais o bastante para cobrir qualquer eventualidade... bem... quase qualquer eventualidade.

— Nesse meio tempo, vocês podem não ter suficientes dólares de Hong Kong para agüentar a corrida?

— Não se... bem... o problema continuar. Mas tenho certeza de que tudo sairá bem, senhor.

Sir Geoffrey fitou-o.

— Que diabo! Como fomos nos meter nessa confusão?

— Joss — disse Johnjohn, com voz cansada. — Infelizmente, a Casa da Moeda não conseguirá imprimir suficientes dólares de Hong Kong para nós a tempo. Levaria semanas para imprimir e despachar a quantia de que precisamos, e não seria saudável termos todas essas notas extras na nossa economia. A moeda britânica será um tapa-buraco, senhor. Podemos anunciar que a... Casa da Moeda está trabalhando em regime de urgência para suprir nossas necessidades.

— E de quanto estamos realmente precisando? — perguntou o governador. Viu Paul Havergill e Johnjohn se entreo-lharem, o que aumentou a sua inquietação.

— Não sabemos, senhor — falou Johnjohn. — Em toda a colônia, além de nós mesmos, todos os outros bancos terão que penhorar seus títulos (assim como nós penhoramos os nossos temporariamente ao Banco da Inglaterra) para obterem o dinheiro de que precisam. Se cada depositante da colônia quiser cada um dos seus dólares de volta... — O suor agora era evidente no rosto do banqueiro. — Não temos meios de saber exatamente qual o grau de dificuldade dos outros bancos, ou a quantia dos seus depósitos. Ninguém sabe.

— Será que um avião-transporte da raf será suficiente? — Sir Geoffrey tentou não parecer sarcástico. — Quero dizer... bem... um bilhão de libras em notas de cinco e dez? Que diabo! Como vão conseguir reunir tal quantidade de notas?

Havergill enxugou a testa.

— Não sabemos, senhor, mas prometeram que o primeiro carregamento chegará na segunda à noite, o mais tardar.

— Não antes?

— Não, senhor. Antes é impossível.

— Não há mais nada que possamos fazer? Johnjohn engoliu em seco.

— Pensamos em pedir-lhe que declarasse feriado bancário para conter a maré, mas... concluímos (e o Banco da Inglaterra concordou) que, se o senhor o fizesse, a ilha ia endoidar.

— Não há com que se preocupar, senhor. — Havergill tentou parecer convincente. — No final da semana que vem já estará tudo esquecido.

— Eu não vou esquecer, Paul. E duvido que a China esqueça... ou nossos amigos, os deputados trabalhistas. Pode ser que tenham razão sobre a necessidade de alguma forma de controle bancário.

Os dois banqueiros reagiram ao comentário, e Paul Havergill disse, reprovadoramente:

— Aqueles dois cretinos não sabem distinguir os próprios traseiros de um buraco na parede! Tudo está sob controle.

Sir Geoffrey ia discutir esse ponto, mas acabara de ver Rosemont, o vice-diretor da CIA, e Ed Langan, o homem do FBI, aparecerem no terraço.

— Quero estar a par de tudo. Quero um relatório completo ao meio-dia. Podem me dar licença um minuto? Por favor, sirvam-se de mais bebida.

Saiu para interceptar Rosemont e Langan.

— Como vão?

— Muito bem, senhor, obrigado. Bela festa. — Os dois americanos observaram Havergill e Johnjohn voltarem para dentro da casa. — Como vão nossos amigos banqueiros? — indagou Rosemont.

— Bem, muito bem.

— Aquele deputado socialista, o Grey, estava deixando Havergill irritado como o diabo!

— E o tai-pan também — acrescentou Ed Langan, com uma risada.

— Ah, não sei, não — comentou o governador, despreocupadamente. — Um pouquinho de oposição é uma boa coisa, não é? Não é assim que deve ser a democracia, no seu melhor aspecto?

— E o Vic, senhor? Como vai indo a corrida?

— Nenhum problema que não possa ser solucionado — replicou Sir Geoffrey, com o seu charme tranqüilo. — Não há com que se preocupar. Quer me dispensar um momento, sr. Langan?

— Mas certamente, senhor. — O americano sorriu. — Eu já ia embora.

— Não da minha festa! Só para ir se servir de mais uma bebida, não é?

— Sim, senhor.

Sir Geoffrey foi para o jardim com Rosemont. As árvores ainda estavam pingando, e a noite estava escura. Ele se manteve numa trilha que estava empoçada e lamacenta.

— Temos um probleminha, Stanley. O sei acaba de pegar um dos seus marujos do porta-aviões passando segredos para um sujeito do KGB. Ambos...

Rosemont parou, estupefato.

— Alguém do Ivánov?

— É.

— O Suslev? O comandante Suslev?

— Não, não, o nome não é esse. Posso sugerir-lhe que entre em contato com Roger imediatamente? Ambos estão sob custódia, ambos foram acusados segundo a Lei dos Segredos Oficiais, mas já falei com o ministro em Londres, e ele concorda em que você se encarregue do seu sujeito imediatamente... fica menos embaraçoso, não é? Parece que ele... bem... lida com computadores.

— Filho da puta! — murmurou Rosemont, enxugando com a palma da mão o suor repentino da face. — O que foi que ele entregou?

— Não sei exatamente. Roger lhe dará todos os detalhes.

— Também vamos poder interrogar... entrevistar o sujeito do KGB?

— Por que não discute isso com Roger? O ministro também está em contato direto com ele. — Sir Geoffrey hesitou. — Eu... bem... estou certo de que você entende que...

— Sim, naturalmente. Desculpe, senhor. É... melhor eu ir imediatamente.

O rosto de Rosemont estava completamente sem cor, e ele se retirou rapidamente, levando Ed Langan consigo.

Sir Geoffrey soltou um suspiro. "Malditos espiões, malditos bancos, malditos toupeiras e malditos socialistas idiotas, que não entendem nada de Hong Kong. " Olhou para o relógio. Hora de encerrar a festa.

Johnjohn entrou na ante-sala. Dunross estava perto do bar.

— Ian?

— Oh, alô! Quer a saideira? — perguntou Dunross.

— Não, obrigado. Posso lhe falar um instante em particular?

— Claro. Terá que ser rapidamente, estou de saída. Disse que deixaria os nossos simpáticos deputados nas balsas.

— Você também está de posse de um "bilhete rosa?" Dunross deu um leve sorriso.

— Na verdade, meu velho, estou de posse de um sempre que quero, quer Penn esteja aqui, quer não.

— É. Você tem sorte, sempre teve a vida bem organizada — falou Johnjohn, sombriamente.

— Joss.

— Eu sei. — Johnjohn foi na frente, até a varanda. — Que horrível o que houve com John Chen, não é?

— É. Phillip está sofrendo demais. Onde está Havergill?

— Saiu faz alguns minutos.

— Ah, foi por isso que você falou em "bilhete rosa"! Ele está farreando?

— Não sei.

— E quanto a Lily Su, de Kowloon? Johnjohn fitou-o.

— Ouvi dizer que Paul está apaixonado — continuou Dunross.

— Como é que você consegue saber tanta coisa? Dunross deu de ombros. Estava se sentindo cansado e inquieto. Fora difícil não perder a paciência várias vezes, naquela noite, cada vez que Grey se metia em outra discussão acalorada com alguns dos tai-pans.

— A propósito, Ian, tentei fazer com que Paul convocasse uma reunião de diretoria, mas isso não é da minha competência.

— Claro.

Estavam numa ante-sala menor. Boas pinturas em seda chinesa, lindos tapetes persas e prataria. Dunross notou que a tinta estava descascando nos cantos da sala e nas molduras do teto, e isso o ofendeu. "Esta é a sede do governo britânico, e não devia haver tinta descascando. "

O silêncio ficou pesado. Dunross fingiu examinar alguns dos exóticos vidros de rapé que estavam numa prateleira.

— Ian... — começou Johnjohn, e mudou de idéia. Começou de novo. — Isso é só entre nós. Conhece o Tiptop Toe muito bem, não é?

Dunross fitou-o. Tiptop Toe era o apelido que davam a Tip Tok-toh, um homem de meia-idade de Hunan, a província natal de Mao Tsé-tung, que chegara a Hong Kong durante o êxodo de 1950. Ninguém parecia saber nada a seu respeito. Ele não incomodava ninguém, tinha um pequeno escritório no Edifício Princes e vivia bem. Ao longo dos anos ficou evidente que tinha contatos muito particulares dentro do Banco da China, e passou-se a presumir que ele era o contato não-oficial oficial do banco. Ninguém conhecia a posição dele na hierarquia, mas corria o boato de que era muito alta. O Banco da China era o único braço comercial da RPC fora da China, portanto, todos os seus compromissos e contatos eram firmemente controlados pela hierarquia governante em Pequim.

— O que é que tem o Tiptop? — perguntou Dunross, fechando a guarda, pois simpatizava com Tiptop, um homem encantador, de fala mansa, que gostava de conhaque e falava um inglês excelente, embora, em obediência ao costume, quase sempre utilizasse os serviços de um intérprete. Suas roupas eram bem-talhadas, embora a maioria das vezes usasse um paletó maoísta, se parecesse um pouco com Chu En-lai e fosse tão sagaz quanto este. Na última vez que Dunross negociara com ele fora sobre alguns aviões civis que a RPC queria. Tip Tok-toh arranjara as letras de crédito e financiamento através de vários bancos suíços e estrangeiros, em vinte e quatro horas.

"O Tiptop é sagaz, Ian", dissera Alastair Struan muitas vezes. "Você tem que ficar de olho aberto, mas ele é o homem com quem se deve lidar. Eu diria que ocupa uma posição muito alta no partido, em Pequim. Muito. "

Dunross observava Johnjohn, disfarçando sua impaciência. O homem menor pegara um dos vidros de rapé. Os vidros eram minúsculos, de cerâmica, de jade ou de vidro puro... muitos deles lindamente pintados por dentro do vidro: paisagens, dançarinas, flores, pássaros, marinhas, até mesmo poemas numa caligrafia incrivelmente delicada.

— Como é que fazem isso, Ian? Pintar assim por dentro?

— Ah, usam um pincelzinho muito fino. O cabo do pincel fica num ângulo de noventa graus. Em mandarim dão-lhe o nome de li myan huai, "pintura na face interna".

Dunross segurou um vidro elíptico que tinha uma paisagem num dos lados, um buquê de camélias no outro, e caligrafia miudinha sobre as pinturas.

— Espantoso! Que paciência! O que está escrito? Dunross olhou para a coluna miúda de caracteres.

— Ah, é uma das máximas de Mao: "Conheça a si mesmo, conheça o seu inimigo; uma centena de batalhas, uma centena de vitórias". Na realidade, o presidente Mao copiou isso de Sun Tse.

Pensativo, Johnjohn examinou o vidro. As janelas às suas costas estavam abertas. Uma leve brisa torcia as cortinas.

— Quer falar com Tiptop por nós?

— Sobre quê?

— Queremos pedir emprestado o dinheiro do Banco da China.

— Hem? — exclamou Dunross, fitando-o, boquiaberto.

— É, por uma semana, mais ou menos. Eles estão cheios até a tampa de dólares de Hong Kong, e não há corrida ao banco deles. Chinês algum ousaria fazer fila diante do Banco da China. Eles têm dólares de Hong Kong como parte de suas operações cambiais no exterior. Pagaríamos bons juros pelo empréstimo, e daríamos a garantia de que precisassem.

— É um pedido formal do Victoria?

— Não. Não pode ser formal. A idéia é minha. Nem a discuti com Paul... só com você. Quer falar com ele?

A excitação de Dunross chegou ao auge.

— Vocês me darão o empréstimo de cem milhões amanhã às dez horas?

— Lamento, não posso fazer isso.

— Mas Havergill pode.

— Pode, mas não o fará.

— Então, por que eu deveria ajudar?

— Ian, se o banco não estiver tão sólido quanto o Pico, o mercado vai entrar em colapso, e a Casa Nobre também.

— Se eu não conseguir algum financiamento rapidinho, estou na merda, de qualquer maneira.

— Farei o que puder, mas quer falar logo com o Tiptop? Peça-lhe. Eu não posso procurá-lo... ninguém pode, oficialmente. Você estaria prestando um grande serviço à colônia.

— Garanta o meu empréstimo e falo com ele ainda hoje. Olho por olho, empréstimo por empréstimo.

— Se você conseguir dele a promessa de um crédito de meio bilhão em espécie até as duas da tarde de amanhã, arranjarei o apoio de que você precisa.

— Como?

— Não sei!

— Dê-me isso por escrito até as dez da manhã de amanhã, assinado por você, Havergill e a maioria da diretoria, e eu irei vê-lo.

— Não é possível.

— Que pena! Olho por olho, empréstimo por empréstimo.

— Dunross se levantou. — Por que o Banco da China deveria salvar a pele do Victoria?

— Somos Hong Kong — disse Johnjohn, com grande confiança. — Nós somos. Somos o Victoria Bank of Hong Kong and China! Somos velhos amigos da China. Sem nós nada existe... a colônia cairia aos pedaços, e a Struan também, com elas a maior parte da Ásia.

— Não aposte nisso!

— Sem os bancos, especialmente o nosso, a China estaria numa pior. Há anos que somos sócios da China.

— Então peça ao Tiptop você mesmo.

— Não posso. — O queixo de Johnjohn estava empinado.

— Sabia que o Banco Mercantil de Moscou pediu novamente licença para operar em Hong Kong?

Dunross soltou uma exclamação abafada.

— Se eles entrarem na jogada, vamos todos ficar atrapa-lhadíssimos!

— Ofereceram-nos, particularmente, uma quantidade substancial de dólares de Hong Kong, imediatamente.

— A diretoria vai votar contra.

— A questão, meu caro, é que se você já não fizer parte da diretoria, a nova diretoria pode fazer o que lhe der na telha

— disse Johnjohn, simplesmente. — Se a "nova" diretoria concordar, o governador e o escritório colonial podem ser facilmente persuadidos. Seria um preço pequeno a pagar... para salvar os nossos dólares. Tão logo um banco oficial soviético se instale aqui, que outras coisas poderiam aprontar, hem?

— Você é pior do que o maldito Havergill!

— Não, amigão, melhor! — O ar de pilhéria deixou o rosto do banqueiro. — Qualquer mudança maior, e nós nos tornamos a Casa Nobre, quer você queira, quer não. Muitos dos nossos diretores preferem vê-lo pelas costas, a qualquer preço. Estou apenas lhe pedindo um favor em benefício de Hong Kong, e portanto, de você mesmo. Não se esqueça, Ian, o Victoria não vai afundar. Vamos sair feridos, mas não arruinados. — Enxugou uma gota de suor. — Sem ameaças, Ian, estou lhe pedindo um favor. Algum dia, posso ser o presidente da junta diretora, e não vou esquecer.

— Haja o que houver.

— Exatamente, meu velho — disse Johnjohn, docemente, e foi até o aparador. — Que tal a saideira agora? Conhaque?

Robin Grey estava sentado no banco de trás do Rolls de Dunross com Hugh Guthrie e Julian Broadhurst. Dunross sentava-se à frente, ao lado do chofer uniformizado. As vidraças estavam embaçadas. Ociosamente, Grey procurou desemba-çá-las, apreciando o luxo do couro cheiroso.

"Logo vou ter um desses", pensou. "Um Rolls só meu. Com chofer. E em breve todos esses filhos da mãe vão estar rastejando, inclusive o maldito Ian Dunross. E Penn! Ah, é, a minha querida e meiga irmã vai assistir à humilhação dos poderosos. "

— Será que vai chover de novo? — perguntava Broadhurst.

— Vai — replicou Dunross. — Este temporal pode se transformar num tufão em alta escala... pelo menos é o que disse o Departamento de Meteorologia. Hoje recebi um informe do Eastern Cloud, um dos nossos cargueiros que está vindo para cá, e está próximo de Cingapura. Ele diz que o mar está agitado até por lá, bem ao sul.

— O tufão vai atingir Hong Kong, tai-pan? — perguntou Guthrie, o deputado liberal.

— Nunca se sabe. Eles podem vir direto para cima de você, depois se desviar no último minuto. Ou o contrário.

— Lembro-me de ter lido sobre o tufão Wanda, no ano passado. Foi uma barra, não?

— O pior que já vi. Mais de duzentos mortos, milhares de feridos, dezenas de milhares desabrigados. — Dunross estava com o braço no encosto, meio virado para trás. — O tai-fun, Ventos Supremos, atingiu uma velocidade de duzentos e setenta quilômetros por hora no Observatório Real, de trezentos em Tate's Cairn. O olho do furacão caiu sobre nós na maré alta. Portanto, em certos lugares, nossas marés ficaram a sete metros acima do normal.

— Céus!

— É. Em Sha Tin, nos Novos Territórios, as rajadas de vento sopraram o macaréu canal acima, destruíram o abrigo contra tempestade, empurraram os barcos de pesca uns oitocentos metros terra adentro, na rua principal, e afogaram a maior parte da aldeia. Um total de mil barcos de pesca desapa-

receram, oito cargueiros encalharam. Milhões de dólares em danos, a maioria das nossas favelas lançadas ao mar. — Dunross deu de ombros. — Uma pena! Mas, considerando a enormidade da tormenta, até que os danos marítimos foram incrivelmente pequenos. — Seus dedos tocaram o assento de couro. Grey notou o anel de ouro pesado e heliotrópio, com o timbre de Dunross. — Um tufão de verdade nos mostra como somos realmente insignificantes — falou Dunross.

— Pena não termos tufões diariamente — disse Grey, sem conseguir se conter. — Bem que podíamos ver os poderosos de Whitehall humilhados duas vezes ao dia.

— Você é realmente um chato, Robin — disse Guthrie.

— Tem sempre que fazer um comentário amargo?

Grey voltou a ficar macambúzio, e fechou os ouvidos à conversa dos outros. "Para o diabo todos eles!", pensou.

Logo o carro parou diante do Mandarim. Dunross saltou.

— O carro os levará para casa, para o Vic. Até sábado, se não nos virmos antes. Boa noite.

O carro se afastou. Rodeou o imenso hotel, depois dirigiu-se para a balsa que ficava ligeiramente a leste do Terminal da Balsa Dourada, na Connaught Road. No terminal, uma fila malfeita de carros e caminhões esperava. Grey saltou.

— Acho que vou esticar as pernas, voltar para o terminal e atravessar numa das barcas — disse, com simpatia forçada.

— Estou precisando de exercício. Boa noite.

Caminhou ao longo do cais da Connaught Road rapidamente, aliviado por ter se livrado deles com tanta facilidade. "Malditos idiotas", pensou, a excitação crescendo. "Bem, não vai demorar muito para que todos recebam o que merecem, principalmente Broadhurst. "

Quando teve certeza de que estava livre, parou sob um poste de luz, criando um remoinho no fluxo de pedestres que andavam, apressados, e fez sinal para um táxi.

— Tome — disse, e entregou ao motorista um endereço datilografado num pedaço de papel.

O motorista segurou-o, fitou-o, e coçou a cabeça, carrancudo.

— Está em chinês. Está em chinês no verso — disse Grey, para ajudar.

O motorista nem deu bola. Simplesmente fitou, com cara de bobo, o endereço em inglês. Grey estendeu a mão e virou o papel para que ele lesse.

— Olhe!

Prontamente o motorista virou outra vez o papel, com insolência, e olhou de novo para o endereço em inglês. Depois arrotou, engrenou o carro com um solavanco e se meteu no trânsito barulhento.

"Cachorrão grosseiro", pensou Grey, subitamente enraivecido.

O táxi mudava de marcha ruidosa e continuamente, ao entrar na cidade, andando por ruas de mão única e becos estreitos para voltar para a Connaught Road.

Finalmente, pararam diante de um prédio de apartamentos velho e sujo, numa rua suja. A calçada estava quebrada, era estreita e empoçada. Os veículos atrás deles buzinavam com impaciência para o carro parado. Grey não via número algum. Saltou, disse ao motorista para esperar e andou até o que parecia ser uma porta lateral. Havia um velho sentado numa cadeira surrada, fumando e lendo um jornal de corridas sob uma lâmpada nua.

— Aqui é a Kwan Yik Street, 68, Kennedy Town? — indagou Grey, educadamente.

O velho olhou para ele como se fosse um monstro do espaço, depois desandou a falar num cantonense rabugento.

— Kwan Yik Street, 68 — repetiu Grey, mais devagar e mais alto. — Ken-ned-dy Town?

Mais um fluxo de cantonense gutural e um aceno insolente na direção de uma portinha. O velho escarrou, cuspiu e voltou a ler o seu jornal com um bocejo.

— Filho da mãe cretino — murmurou Grey, com a raiva subindo à cabeça. Abriu a porta. Lá dentro viu um saguão pequenino e encardido, com a tinta descascando, uma fila des-conjuntada de caixas de correio com nomes. Com grande alívio, viu o nome que buscava.

Voltando para junto do táxi, abriu a carteira e olhou para o valor marcado no taxímetro cuidadosamente, duas vezes, antes de pagar ao homem.

O elevador era minúsculo, claustrofóbico, nojento, e rangia à medida que subia. No quarto andar ele saltou e apertou o botão do número 44. A porta se abriu.

— Sr. Grey, mas que honra! Molly, Sua Excelência chegou! — Sam Finn abriu um amplo sorriso ao vê-lo. Era natural de Yorkshire, grande, robusto, rosado, olhos azul-claros, ex-mineiro de carvão e representante sindical com amigos importantes no Partido Trabalhista e no Conselho dos Sindicatos. Tinha o rosto profundamente vincado e marcado, o pó de carvão entranhado nos poros. — Puxa vida, mas que prazer!

— Obrigado, sr. Finn. Para mim também é um prazer conhecê-lo. Ouvi muita coisa a seu respeito

Grey tirou a capa de chuva e aceitou agradecido uma cerveja.

— Sente-se.

O apartamento era pequeno, imaculadamente limpo, o mobiliário, barato. Cheirava a lingüiça frita, batata frita e pão frito. Molly Finn saiu da cozinha, as mãos e os braços vermelhos de anos de esfregar e lavar. Era baixinha e rotunda, da mesma cidade mineira, da mesma idade, sessenta e cinco anos, e forte como o marido.

— Ora essa — exclamou, calorosamente —, foi a maior surpresa que tivemos quando soubemos que o senhor viria nos visitar.

— Nossos amigos comuns queriam saber em primeira mão como vão indo vocês.

— Vamos indo muito bem. Muito bem mesmo — falou Finn. — Claro que não é como o nosso lar em Yorkshire, e sentimos falta dos nossos amigos e do sindicato, mas temos cama e um pouco de comida. — Ouviu-se o ruído de uma privada dando descarga. — Temos um amigo que achamos que gostaria de conhecer — disse Finn, sorrindo de novo.

— É?

— É — disse Finn.

A porta do banheiro se abriu. O barbudo grandão estendeu a mão, calorosamente.

— Sam já me falou muito do senhor, sr. Grey. Sou o comandante Grigóri Suslev, da marinha soviética. Meu navio é o Ivánov. Estamos fazendo pequenos reparos neste refúgio capitalista.

Grey apertou a mão dele, formalmente.

— Prazer em conhecê-lo.

— Temos alguns amigos comuns, sr. Grey.

— É?

— É, Zdenek Hanzolova, de Praga.

— Ah, mas claro! — Grey sorriu. — Conheci-o numa visita da Delegação Comercial Parlamentar à Tchecoslováquia, no ano passado.

— O que achou de Praga?

— Muito interessante. Muito. Mas não gostei da repressão... ou da presença soviética.

Suslev achou graça.

— Foram eles que nos convidaram. Gostamos de cuidar dos nossos amigos. Mas há muita coisa que eu também não aprovo. Lá, na Europa. Até mesmo na Mãe Rússia.

— Sentem-se, por favor. Sentem-se — disse Finn. Sentaram-se ao redor da mesa de jantar, na sala de estar que agora exibia uma toalha de mesa branca e limpa, sobre a qual havia um vaso de aspidistras.

— Naturalmente, o senhor sabe que não sou comunista, nem nunca fui — disse Grey. — Não aprovo um Estado policial. Estou totalmente convencido de que o nosso socialismo democrático britânico é o caminho do futuro. Parlamento, representantes eleitos, e tudo o que isso significa, embora muitas das idéias marxistas-leninistas tenham grande valor.

— Política! — exclamou Grigóri Suslev, reprovadora-mente. — Devemos deixar a política para os políticos.

— O sr. Grey é um dos nossos melhores porta-vozes no Parlamento, Grigóri. — Molly Finn virou-se para Grey. — Grigóri também é um bom sujeito, sr. Grey. Não é um desses safados. — Sorveu o seu chá. — Grigóri é um bom sujeito.

— É isso aí, garota — disse Finn.

— Não bom demais, espero — disse Grey, e todos acharam graça. — O que fez com que resolvesse residir aqui, Sam?

— Quando nos aposentamos, Molly e eu, queríamos ver um bocado do mundo. Tínhamos posto de lado um pouco de dinheiro. Descontamos uma apólice de seguros que tínhamos e arrumamos vaga num cargueiro...

— Puxa, mas nos divertimos muito — interrompeu Molly Finn. — Estivemos em tantos lugares estrangeiros. Foi mesmo uma beleza. Mas, quando viemos para cá, Sam não estava se sentindo muito bem. Portanto, desembarcamos e ficamos esperando a volta do cargueiro.

— É isso aí, garota — disse Sam. — Então, conheci um sujeito muito simpático, e ele me ofereceu um emprego. — Abriu um sorriso e esfregou as marcas pretas no rosto. — Eu ia ser consultor de algumas minas das quais ele era o superintendente, num lugar chamado Formosa. Estivemos lá uma vez, mas não havia necessidade de ficar, por isso voltamos para cá. É só isso, sr. Grey. Ganhamos um dinheirinho, a cerveja é boa, por isso Molly e eu achamos melhor ficar. Nossos filhos estão todos crescidos... — Abriu outro sorriso, mostrando os dentes obviamente falsos. — Agora somos cidadãos de Hong Kong.

Bateram papo, amigavelmente. Grey teria sido completamente convencido pela história criada pelos Finns como "cobertura" se não tivesse lido o dossiê particular dele antes de sair de Londres. Muito pouca gente sabia que durante anos Finn havia sido membro do pcb, o Partido Comunista Britânico. Ao se aposentar, fora enviado para Hong Kong por um de seus comitês internos secretos. Sua missão era servir como fonte de informação sobre qualquer coisa relacionada com a burocracia e legislação de Hong Kong.

Dali a alguns minutos, Molly Finn abafou um bocejo.

— Puxa vida, como estou cansada! Se me derem licença, acho que vou para a cama

Sam falou:

— Pode ir, garota.

Conversaram mais um pouco sobre assuntos corriqueiros, depois também bocejou.

— Se me derem licença, acho que também vou dormir. — E acrescentou, apressadamente: — Podem ficar, conversem à vontade. Nós nos veremos antes que deixe Hong Kong, sr. Grey... Grigóri.

Apertou a mão deles e fechou a porta atrás de si. Suslev foi até o aparelho de tv e ligou-o, com uma risada.

— Já assistiu à televisão de Hong Kong? Os comerciais são gozadíssimos.

Ajustou o som numa altura suficiente para que pudessem conversar sem serem ouvidos.

— Todo o cuidado é pouco, hem?

— Trago-lhe saudações fraternas de Londres — disse Grey, a voz igualmente suave. Desde 1947 era um comunista atuante, porém ainda mais secretamente que Finn, sua identidade conhecida apenas por uma meia dúzia de pessoas na Inglaterra.

— E eu as retribuo. — Suslev indicou com o polegar a porta fechada. — O que eles sabem?

— Apenas que sou esquerdista e material em potencial para o partido.

— Excelente. — Suslev descontraiu-se. O Centro fora muito astuto em providenciar aquele encontro particular tão habilmente. Roger Crosse, que nada sabia de sua ligação com Grey, lhe contara que não havia espias do sei atrás dos deputados. — Estamos seguros aqui. O Sam é muito bom. Também recebemos cópias dos relatórios dele. E ele não faz perguntas. Vocês, britânicos, são muito reservados e eficientes, sr. Grey. Dou-lhe os parabéns.

— Obrigado.

— Como foi sua reunião em Pequim? Grey pegou uma pilha de papéis.

— Eis uma cópia dos nossos relatórios públicos e particulares para o Parlamento. Leia-os antes que eu me vá... vocês receberão o relatório completo através dos canais competentes. Em resumo, acho que os chineses são totalmente hostis e revisionistas. O maluco do Mao e seu capanga Chu En-lai são inimigos implacáveis do comunismo internacional. A China é fraca em tudo, exceto na vontade de lutar, e lutará até o fim para proteger sua terra. Quanto mais vocês esperarem, mais difícil será contê-los. Mas, enquanto não obtiverem armas nucleares e sistemas de lançamento de longo alcance, jamais serão uma ameaça.

— Sei. E quanto ao comércio? O que queriam?

— Indústrias pesadas, aparelhagem para destilação de petróleo sob pressão, equipamentos para extração do petróleo, laboratórios químicos, usinas de aço.

— E como vão pagar?

— Dizem que suas operações cambiais no exterior são significativas. Hong Kong tem um papel importante nisso.

— Pediram armamentos?

— Não. Não diretamente. São espertos, e não era sempre que nos falávamos ou nos encontrávamos em grupo. Foram avisados sobre mim e Broadhurst, e não éramos apreciados... nem confiavam em nós. Pode ser que tenham conversado em particular com Pennyworth ou outro dos conservadores... embora isso de nada lhes adiantasse. Soube que ele morreu?

— Soube.

— Menos mal. Era um inimigo. — Grey sorveu sua cerveja. — A China Vermelha quer armas, estou certo disso. Uma turma reticente e nojenta.

— Que tal é Julian Broadhurst?

— Um intelectual que se julga socialista. É o fim da picada, mas é útil, no momento. Aristocrático, fiel às tradições do seu colégio — debochou Grey. — Por causa disso, vai ser um homem forte no próximo governo trabalhista.

— Os trabalhistas vão vencer as próximas eleições, sr. Grey?

— Não, não creio, embora estejamos dando duro para ajudar os trabalhistas e os liberais.

Suslev franziu o cenho.

— Por que apoiar os liberais? São capitalistas. Grey deu uma risada sardônica,

— Não compreende o nosso sistema britânico, comandante Suslev. Temos muita sorte. Uma eleição de três partidos num sistema bipartidário. Os liberais dividem os votos, a nosso favor. É preciso encorajá-los. — Alegremente, acabou sua cerveja e pegou mais duas da geladeira. — Se não fosse pelos liberais, o Partido Trabalhista nunca teria ganho, nunca! E nunca poderia ganhar outra vez.

— Não estou entendendo.

— Na melhor das hipóteses, os votos dos trabalhistas correspondem a apenas quarenta e cinco por cento da população, um pouco menos. Os dos tories, o Partido Conservador, atingem a mesma proporção, geralmente um pouquinho mais. A maior parte dos dez por cento restantes votam nos liberais. Se não houvesse candidatos do Partido Liberal, a maioria votaria nos conservadores. São todos uns idiotas — falou, com ar complacente. — Os britânicos são burros, camarada, o Partido Liberal é o passaporte permanente dos trabalhistas para o poder... e, portanto, o nosso. Em breve o pcb controlará o Conselho Sindical, e deste modo, o Partido Trabalhista... secretamente, é claro. — Bebeu a cerveja em longos goles. — A grande maioria dos pobres ingleses são burros, a classe média é burra, a classe alta é burra... quase já deixou de ser um desafio. São todos uns lemingues. Pouquíssimos acreditam no socialismo democrático. Mesmo assim — acrescentou com grande satisfação —, derrubamos o seu império podre e mijamos em cima deles com a Operação Leão. — A Operação Leão fora formulada tão logo os bolcheviques obtiveram o poder. Seu propósito era a destruição do Império Britânico. — Em apenas dezoito anos, desde 1945, o maior império que o mundo já conheceu deixou de existir.

— Exceto por Hong Kong.

— Em breve também ela não existirá mais.

— Tenho prazer em lhe dizer que meus superiores consideram muito importante o seu trabalho — disse Suslev, com uma admiração declarada e fingida. — Seu e de todos os nossos irmãos britânicos fraternos.

Recebera ordens de tratar aquele homem com deferência, para descobrir tudo o que ele vira em sua missão chinesa, e passar adiante instruções como pedidos. E de adulá-lo. Lera os dossiês de Grey e dos Finns. Robin Grey tinha uma classificação Béria-KGB 4/22/a: "Um importante traidor britânico fin-gidamente devotado aos ideais marxistas-leninistas. Deve ser usado, mas sem que se confie nele jamais, e, caso o Partido Comunista Britânico suba ao poder, está sujeito à liquidação imediata".

Suslev observava Grey. Nem Grey nem os Finns conheciam seu verdadeiro posto. Sabiam apenas que era um membro de pouca importância do Partido Comunista de Vladivostok — o que também constava do seu dossiê do sei.

— Tem alguma informação para mim? — indagou Grey.

— Tenho, továrich. E, com a sua permissão, também algumas perguntas. Pediram-me que lhe perguntasse acerca da implementação da Diretriz 72/Praga,

Essa diretriz altamente secreta dava prioridade máxima à infiltração de peritos dedicados e secretos na função de representantes sindicais em todas as fábricas de automóveis dos Estados Unidos e do Ocidente. A indústria automobilística, devido às suas inúmeras indústrias afins, era o âmago de qualquer sociedade capitalista.

— Estamos indo a todo o vapor — disse Grey, entusiasticamente. — As greves não autorizadas são o caminho do futuro. Com essas greves, podemos driblar as hierarquias sindicais sem desintegrar o sindicalismo existente. Nossos sindicatos estão fragmentados. Deliberadamente. Cinqüenta homens podem formar um sindicato independente, e esse sindicato pode dominar milhares... e enquanto não houver voto secreto, a minoria sempre dominará a maioria! — Ele riu. — Já estamos com a programação adiantada, e agora temos irmãos fraternos no Canadá, na Nova Zelândia, Rodésia, Austrália... especialmente na Austrália. Dentro de alguns anos teremos agitadores treinados em cada sindicato-chave metalúrgico do mundo de língua inglesa. Um britânico liderará os operários sempre que houver uma greve... em Sydney, Vancouver, Johannesburg, Wellington. Será sempre um britânico!

— E o senhor é um dos líderes, továrich! Que maravilha!

— Suslev deixou que ele continuasse, dando-lhe corda, enojado por ser tão fácil adulá-lo. "Como os traidores são nojentos!", pensou. — Logo o senhor terá o paraíso democrático que procura, e haverá paz na terra.

— Não vai demorar muito — disse Grey, fervorosamente.

— Fizemos cortes nas forças armadas, e faremos cortes ainda maiores no ano que vem. A guerra acabou para sempre. A bomba conseguiu isso. O único obstáculo são os nojentos americanos, e sua corrida armamentista, mas logo os forçaremos a depor as armas, e todos seremos iguais.

— Sabia que os americanos estão armando secretamente os japoneses?

— Hem? — exclamou Grey, fitando-o.

— Ah, não sabia? — Suslev sabia muito bem que Grey passara três anos e meio em campos de prisioneiros de guerra japoneses. — Não sabia que uma missão militar americana está no país, oferecendo-lhes armas nucleares?

— Não teriam coragem!

— Mas tiveram, sr. Grey — disse Suslev, mentindo com facilidade. — Claro que é totalmente secreto.

— Pode me dar detalhes para usar no Parlamento?

— Bem, é claro que pedirei a meus superiores para fornecê-los, se acha que terão valor.

— Por favor, o mais breve possível... Bombas nucleares... Santo Deus!

— Seu pessoal, seus peritos treinados, também estão infiltrados nas usinas nucleares britânicas?

— Como? — Grey concentrou-se com esforço, desviando o pensamento do Japão. — Usinas nucleares?

— É. Seu pessoal está sendo utilizado lá também?

— Bem... não. Há apenas uma ou duas usinas no Reino Unido, e não são importantes. Os ianques estão mesmo armando os japoneses?

— O Japão não é capitalista? O Japão não é um protegido dos Estados Unidos? Não estão construindo também usinas nucleares? Se não fosse pelos Estados Unidos...

— Aqueles calhordas americanos! Graças a Deus vocês também têm as bombas, ou todos teríamos que rastejar!

— Talvez devam concentrar algum esforço nas usinas nucleares — disse Suslev, suavemente, impressionado por Grey ser tão crédulo.

— Por quê?

— Existe um novo estudo, feito por um conterrâneo seu, Philby.

— Philby? — Grey lembrava-se de como ficara chocado e assustado com a descoberta e a fuga de Philby, e do alívio que sentira quando Philby e os outros conseguiram escapar sem fornecer as listas do círculo interno do pcb, que obviamente deviam ter. — Como vai ele?

— Ao que me consta, muito bem. Está trabalhando em Moscou. Conhecia-o?

— Não. Ele era do Ministério do Exterior, das altas esferas. Nenhum de nós sabia que ele era um dos nossos.

— Ele ressalta no seu estudo que uma usina nuclear é auto-suficiente, que uma usina pode gerar combustível para si mesma e para outras. Uma vez instalada, é quase perpétua. Necessita apenas de uns poucos técnicos altamente preparados e especializados para operá-la, nada de trabalhadores, ao contrário do petróleo ou do carvão. No momento, todas as indústrias do Ocidente dependem do carvão ou do petróleo. Ele sugere que seja nossa política encorajar o uso do petróleo, não do carvão, e desencorajar completamente a força nuclear. Entendeu?

— Ah, entendi! — A fisionomia de Grey ficou mais dura. — Vou fazer parte do comitê parlamentar para estudo da energia atômica.

— E isso será fácil?

— Fácil demais, camarada! Os ingleses são uma cambada de preguiçosos. Não querem problemas. Só querem trabalhar o mínimo possível, pelo máximo de dinheiro possível, ir aos bares e ao futebol aos sábados... e nada de trabalho voluntário, nada de comitês aborrecidos depois do expediente, nada de discussão. É fácil demais... quando se tem um plano, e eles não.

Suslev soltou um suspiro, muito satisfeito, seu trabalho quase encerrado.

— Outra cerveja? Não, deixe que eu pego. É uma honra para mim, sr. Grey. O senhor por acaso conhece um escritor que está aqui no momento, um cidadão americano, Peter Marlowe?

Grey levou um susto.

— Marlowe? Conheço-o muito bem, mas não sabia que era cidadão americano. Por quê?

Suslev disfarçou seu interesse e deu de ombros.

— Pediram-me que lhe perguntasse, já que o senhor é inglês, e ele era originariamente inglês.

— Ele é um calhorda nojento da classe alta, com a moralidade de um mascate. Há anos que não o vejo, desde 45, até que apareceu aqui. Também esteve em Changi. Só ontem fiquei sabendo que era escritor, ou um desses roteiristas de cinema. O que há de tão importante nele?

— É um escritor — disse Suslev, prontamente. — Faz filmes, Com a televisão, os escritores podem atingir milhões de pessoas. O Centro se mantém a par das atividades dos escritores ocidentais, por uma questão de orientação política. Ah, sim, sabemos como são importantes os escritores na Mãe Rússia. Nossos escritores sempre nos indicaram o caminho, sr. Grey. Formaram nossos pensamentos e sentimentos, Tolstói, Dos-toiévski, Tchékhov, Bunin... — Acrescentou, com orgulho: — Os escritores são nossos batedores. É por isso que, atualmente, precisamos orientá-los em sua formação e controlar o seu trabalho, ou enterrá-lo. — Olhou para Grey. — Vocês deveriam fazer o mesmo.

— Nós apoiamos os escritores simpatizantes, comandante, e infernizamos o outro tipo como podemos, seja pública ou particularmente. Quando chegar a casa, vou pôr Marlowe na nossa lista negra do pcb nos meios de comunicação. Será fácil causar-lhe algum prejuízo... temos muitos amigos nos meios de comunicação.

— Já leu o livro dele? — indagou Suslev, acendendo um cigarro.

— O tal sobre Changi? Não, não li. Nunca ouvira falar nele até chegar aqui. Provavelmente não foi publicado na Inglaterra. Além disso, não tenho muito tempo para ler ficção. E se foi ele quem o escreveu, deve ser uma merda de livro de "gente bem", e mal escrito, e... bem, Changi é Changi, e é melhor esquecê-la. — Um arrepio o percorreu, e ele nem o notou. — É, melhor esquecê-la.

"Mas não posso", tinha vontade de gritar. "Não posso esquecer, e ainda é um pesadelo sem fim, aqueles dias no campo, ano após ano, dezenas de milhares morrendo, tentando fazer cumprir a lei, tentando proteger os fracos contra os nojentos do mercado negro, que se aproveitavam dos fracos, todo mundo morrendo de fome, e sem esperança de jamais sair dali, meu corpo apodrecendo, e eu com apenas vinte e um anos, sem mulheres, risos, comida ou bebida, vinte e um anos quando fui preso em Cingapura, em 1942, e vinte e quatro, quase vinte e cinco, quando o milagre aconteceu e sobrevivi, voltando à Inglaterra... minha casa não existia mais, meus pais não existiam mais, o mundo não existia mais, e minha única irmã, vendida aos inimigos, agora falava como eles, comia como eles, vivia como eles, estava casada com um deles, envergonhada do nosso passado, querendo que o passado tivesse morrido, que eu tivesse morrido, ninguém se importava comigo, e... oh, Deus, a mudança. Voltar para a vida depois da ausência de vida de Changi, todos os pesadelos e a insônia à noite, morto de medo da vida, sem conseguir falar no assunto, chorando sem saber por quê, tentando me adaptar ao que os idiotas chamavam de normalidade. E finalmente me adaptando. Mas a que preço, ah, meu Deus, a que preço...

"Pare com isso!"

Com esforço, Grey desprendeu-se da espiral descendente de Changi.

"Chega de Changi! Changi está morta! Deixe que continue morta. Está morta... Changi tem que ficar enterrada. Mas Changi... "

— O que foi? — disse, trazido de volta ao presente.

— Estava dizendo que seu governo atual está completamente vulnerável.

— É? Por quê?

— Lembra-se do escândalo Profumo? Do seu ministro da Guerra?

— Claro. Por quê?

— Faz alguns meses, a MI-5 começou uma investigação secreta e minuciosa da pretensa ligação entre a call girl agora famosa, Christine Keeler, e o comandante Ievguêni Ivánov, nosso adido naval, e outras figuras sociais londrinas.

— Ela já acabou? — indagou Grey, subitamente muito atento.

— Já. Documenta conversas que a mulher teve com o comandante Ivánov. Ele lhe pedira para descobrir com Profumo quando armas nucleares seriam entregues à Alemanha. A investigação afirma — disse Suslev, agora mentindo deliberadamente para excitar Grey — que Profumo fora avisado pela MI-5 sobre Ivánov alguns meses antes de o escândalo estourar... que o comandante Ivánov era do KGB e também amante dela.

— Santo Deus! E o comandante Ivánov corroborará isso?

— Ah, não, de forma alguma. Isso não seria correto... nem necessário. Mas o relatório da MI-5 apresenta os fatos com exatidão — mentiu Suslev, habilmente. — O relatório é verdadeiro!

Grey soltou uma risada alta.

— Puxa vida, mas isso vai derrubar a supremacia do governo e promover uma eleição geral!

— E os trabalhistas vão ganhar o poder!

— É! Durante cinco anos maravilhosos! Ah, é, e uma vez tendo ganho... oh, meu Deus! — Grey soltou outra risada estrondosa. — Primeiro ele mentiu sobre a Keeler! E agora o senhor diz que ele sabia do Ivánov o tempo todo! Ah, puta que o pariu, isso vai causar a derrubada do governo! Isso vai valer todos os anos de comer merda daqueles cretinos da classe média. Tem certeza? — perguntou, com repentina ansiedade.

— É mesmo verdade?

— E eu lhe mentiria? — exclamou Suslev, rindo intimamente.

— Vou me utilizar disso. Por Deus, vou me utilizar disso.

— Grey estava doido de alegria. — Tem certeza absoluta? Mas, e o Ivánov? O que aconteceu com ele?

— Uma promoção, é claro, por uma manobra brilhantemente executada para desacreditar um governo inimigo. Se o trabalho dele ajudar a derrubá-lo, será condecorado. No momento, está em Moscou, esperando ser designado para nova missão. A propósito, em sua entrevista coletiva de amanhã, pretende mencionar o seu cunhado?

Grey fechou a guarda, prontamente.

— Como soube disso?

Suslev devolveu-lhe o olhar, calmamente.

— Meus superiores sabem de tudo. Pediram-me que lhe sugerisse mencionar seu parentesco na entrevista coletiva, sr. Grey.

— Por quê?

— Para realçar sua posição, sr. Grey. Uma associação tão íntima com o tai-pan da Casa Nobre daria muito maior peso às suas palavras aqui. Não é?

— Mas se sabem a respeito dele — disse Grey, a voz

dura —, sabem também a respeito de mim e de minha irmã, que temos um acordo de não tocar no parentesco. É um assunto de família.

— Assuntos de Estado têm precedência sobre assuntos de família, sr. Grey.

— Quem é o senhor? — Grey estava repentinamente desconfiado. — Quem é, na realidade?

— Só um mensageiro, sr. Grey, na realidade. — Suslev colocou as manoplas nos ombros de Grey, calorosamente. — Továrich, sabe que precisamos usar tudo em nosso poder para fortalecer a causa. Estou certo de que meus superiores estavam apenas pensando no seu futuro. Uma ligação familiar tão íntima com tal família capitalista ajudá-lo-ia muito no Parlamento. Não é? Quando o senhor e seu Partido Trabalhista vencerem no ano que vem, precisarão de homens e mulheres bem relacionados, hem? A nível ministerial, é preciso ter-se relações. O senhor mesmo disse isso. O senhor será o perito em Hong Kong, com ligações especiais. Poderá nos ajudar enormemente a conter a China, a conduzi-la de volta ao caminho certo, e a pôr Hong Kong e todo o povo de Hong Kong no seu lugar... no esgoto. Certo?

Grey pensou nisso, o coração disparado.

— Será possível aniquilar Hong Kong?

— Oh, sim — sorriu Suslev. O sorriso tornou-se mais amplo. — Não precisa se preocupar. Não partirá do senhor palavra alguma sobre o tai-pan, não faltará ao compromisso com sua irmã. Posso dar um jeito para que lhe façam uma pergunta. Que tal?


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