XI
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A grande arena tinha as bancadas repletas de gente, sobretudo mulheres cobertas com chador negros, mas todos se comportavam como se fosse dia de espectáculo. Alguém empurrou Tomás e obrigou-o a ajoelhar-se no centro, a cabeça pendendo para a frente, expondo a nuca e o pescoço. Pelo canto dos olhos, o historiador conseguiu aperceber-se da presença de homens vestidos com longas túnicas brancas islâmicas; eles aproximaram-se e fecharam um círculo em torno de si, como se o cercassem, cortando-lhe a derradeira esperança de escapar daquele lugar de morte. De entre eles emergiu Ariana, o olhar triste, sem se atrever sequer a aproximar do condenado, soprando-lhe um tímido beijo de despedida. Logo a bela iraniana desapareceu e, no seu lugar, surgiu Rahim, os olhos ressentidos faiscando em fúria, uma enorme espada curvada cintilando no cinto. Rahim tirou a espada do cinto num movimento brusco, segurou-a com as duas mãos, pôs-se em posição e ergueu-a para os céus, suspendendo-a por um instante, um medonho segundo, apenas um breve e longo momento antes da lâmina rasgar o ar com toda a força e decapitar Tomás.
Acordou.
Sentiu o suor frio banhar-lhe o topo da testa, a transpiração colando-lhe o pijama ao peito e às costas. Arfava. Tentou perceber se aquilo era a morte, mas não; com alívio, com terror, compreendeu enfim que vivia, o quarto escuro respondia-lhe com silêncio, o sossego revelava-lhe que tudo não passara afinal de um pesadelo, mas que o outro pesadelo, aquele em que o iraniano do bazar o havia envolvido na véspera, era bem real, palpável, iminente.
Empurrou os lençóis, sentou-se na cama e esfregou os olhos.
"Mas onde é que eu me fui meter?", murmurou.
Cambaleou para o quarto de banho e foi-se lavar. No espelho viu um homem com profundas olheiras, o previsível resultado de uma angustiada insónia que só acabou madrugada dentro. Sentia-se atirado a toda a velocidade pelos trilhos ondulantes de uma montanha-russa de emoções, ora deprimido pela perspectiva de cometer um ato terrível num país de horríveis castigos, ora esperançado por um súbito volte-face, uma mudança repentina, um qualquer acontecimento providencial que, quase por magia, resolvesse o problema e o libertasse daquele fardo pavoroso que lhe tinham inesperadamente colocado sobre os ombros.
Nesses momentos de esperança agarrava-se com todas as forças à conversa da véspera com Ariana. Com certeza que o ministro da Ciência perceberia a razoabilidade do seu pedido, considerou diante do espelho, numa pausa entre o acto de espalhar a espuma e o de passar a lâmina pelo rosto. O argumento de que a chave da mensagem cifrada se encontrava algures escondida no texto do manuscrito fazia perfeito sentido e era uma evidência tal que o ministro certamente não deixaria de a reconhecer. Sim, pensou, enquanto lavava agora os dentes. É inevitável que o autorizem a consultar o texto. E quando o consultasse podia ser que encontrasse todas as respostas de que a CIA precisava, podia ser que descobrisse coisas que tornassem desnecessário o furto do manuscrito, livrando-o assim de uma trapalhada para a qual não se sentia talhado.
Cerrou os olhos e murmurou uma promessa.
"Se me safar desta, prometo rezar todos os dias deste ano." Abriu um olho, avaliando a dureza da promessa. "Bem, todos os dias do ano também é de mais.
Rezarei todos os dias do próximo mês.
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Respirando uma inesperada confiança, insuflada pela promessa, abriu o chuveiro, sentiu a temperatura da água e, quando se deu por satisfeito, pôs o pé e meteu-se lá dentro.
O vulto gracioso de Ariana apareceu no lobby um pouco depois da hora combinada, já Tomás tinha comido o pequeno-almoço e a aguardava impacientemente no sofá do bar. Cumprimentaram-se e a iraniana acomodou-se no lugar que ocupara na véspera, encomendando um sumo de laranja ao empregado. Mal conseguindo conter a ansiedade, o historiador foi direito ao assunto.
"Então? O ministro?"
"O que tem o ministro?"
"Ele autorizou?"
Ariana fez cara de quem só agora percebera a pergunta.
"Ah, sim", exclamou. "A autorização."
"Autorizou?"
"Bem... uh... não."
Tomás ficou especado a olhá-la, ouvindo e não acreditando que a ouvira.
"Não?", balbuciou.
"Não, não autorizou", disse Ariana. "Eu expliquei-lhe que você acha que o poema é uma mensagem codificada e que a chave do código se encontra no texto. Ele disseme que lamenta muito mas que, por razões de segurança nacional, você não pode ter acesso ao conteúdo do documento e que, se isso implicar um atraso na descodificação do poema, paciência."
"Mas... mas isso pode implicar até que não se decifre o poema de todo", insistiu o português.
"Você explicou-lhe isso?"
"Expliquei, claro que expliquei. Mas ele não quer saber disso. Diz que a segurança nacional está acima de tudo e que, quanto ao problema da descodificação, esse não é só um problema do Irã." Apontou para o seu interlocutor. "É também um problema seu."
"Meu?"
"Sim, seu. Não se lembra do agba Jalili dizer que você não será autorizado a sair do Irã enquanto não decifrar as charadas? O ministro confirmou-me que é mesmo assim. Aliás, parece que o caso foi até ao presidente." Ariana fez um gesto de resignação. "De modo que, Tomás, lamento muito mas você está condenado a deslindar aquelas mensagens ocultas."
O historiador respirou fundo e deixou cair os olhos para o mármore polido que brilhava no chão; sentia-se desanimado e encurralado.
"Estou tramado", comentou em tom de desabafo.
Ariana tocou-lhe no braço.
"Calma, não fique assim. Eu já vi que você é um excelente criptanalista. Vai conseguir deslindar estes enigmas, estou certa."
O português parecia quebrado de desalento, uma expressão tristonha desenhada no rosto. Na verdade, não tinha dúvidas de que seria capaz de descobrir as mensagens ocultas nas charadas; o pedido para consultar o texto do manuscrito devia-se, afinal, 90
mais à vontade de conhecer melhor o documento do que à convicção de que ele ocultava a chave do código. O verdadeiro problema é que a revelação de que o ministro não autorizava a consulta significava o desmoronar das suas derradeiras esperanças de resolver o problema sem o assalto que o homem do bazar lhe anunciara na véspera.
"Estou tramado", repetiu, o olhar sombrio.
"Ouça", disse Ariana, sempre tentando consolá-lo. "Não é caso para desanimar, você vai solucionar o problema. Além do mais, esta é até uma oportunidade para trabalharmos juntos durante algum tempo. Isso... isso não lhe agrada?"
Tomás pareceu despertar de um torpor.
"Hã?"
"Não lhe agrada trabalhar comigo durante todo este tempo?"
O historiador contemplou o rosto perfeito da iraniana.
"Isso é mesmo a única coisa que me impede de cometer suicídio agora mesmo", disse ele, quase mecanicamente.
Ariana riu-se.
"Você é engraçado, não há dúvida." Inclinou a cabeça. "Então do que está à espera? Vamos a isto!"
"A isto, o quê?"
"Vamos trabalhar."
Tomás pegou na folha com as mensagens, desdobrou-a e pousou-a sobre a mesinha.
"É isso, tem razão", exclamou, tirando a caneta do bolso. "Vamos trabalhar."
Passaram três horas a analisar os múltiplos significados simbólicos das diversas palavras-chave do poema, em particular Terra, terrors, Sabbath e Christ, mas nada encontraram para além do que já haviam concluído na véspera. Foi um trabalho frustrante, com todas as hipóteses rabiscadas num rascunho e logo riscadas, por se revelarem absurdas e inconsistentes.
Já perto da hora do almoço, Tomás pediu licença e dirigiu-se ao quarto de banho.
Ao contrário da maior parte dos quartos de banho iranianos, onde o local onde se fazem as necessidades é constituído por um imundo buraco aberto no chão, este dispunha de retrete, urinóis e até um cheirinho perfumado a flutuar no ar, ou não se tratasse aquele de um dos melhores hotéis do país.
Quando se encontrava diante do urinol, concentrado na tarefa imediata, o historiador sentiu uma mão pousar-lhe no ombro e estremeceu de susto.
"Então professor?"
Era Bagheri.
"Mossa!" Bufou. "Que susto que você me pregou!"
"O senhor anda nervoso."
"E não tenho razões para isso? Já viu em que embrulhada você me quer meter?"
"Termine lá o que está a fazer", disse Bagheri, afastando-se e encostando-se ao lavatório.
Tomás ainda permaneceu mais um instante voltado para o urinol; quando concluiu, fechou a braguilha e veio lavar as mãos ao lavatório.
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"Oiça", disse, olhando Bagheri pelo espelho. "Eu não fui talhado para estas coisas. Estive a pensar e... e decidi não ir."
"São ordens de Langley."
"Quero lá saber! Eles nunca me falaram em meter-me em operações de assalto."
"As circunstâncias mudaram. O fato de o senhor não ter conseguido ler o manuscrito obrigou-nos a alterar os planos. Além do mais, há decisões novas que ultrapassam Langley."
"Decisões novas?"
"Sim. Decisões tomadas em Washington. Repare, professor, esta é uma matéria que envolve a segurança do Ocidente. Se um país como o Irã tem acesso à fórmula de fabrico simples de uma arma nuclear, pode ter a certeza de que isso assusta toda a gente, em particular num mundo pós-11 de Setembro." Esboçou um gesto conformado. "Portanto, perante o que está em jogo, pode crer que a derradeira das preocupações de Washington é saber se o senhor ou eu gostamos ou não da missão para que fomos recrutados."
"Mas eu não sou nenhum comando, percebe? Nem sequer fiz a tropa. Eu vou ser um empecilho."
"Professor, já lhe disse ontem que o seu envolvimento é crucial para o sucesso da operação."
Bagheri ergueu o polegar. "Só o senhor é que viu o manuscrito." Agora o indicador. "E só o senhor é que viu em que sala ele é guardado." Apontou para Tomás.
"Como é lógico, precisamos de si para nos guiar na localização e identificação do documento. Sem a sua ajuda, como é que faremos as coisas? Olhe, andaríamos a passear pelo ministério como baratas tontas, a vasculhar tudo sem encontrar nada."
Abanou a cabeça. "Não pode ser."
"Mas, ouça, qualquer pessoa pode perfeitamente..."
"Chega", cortou Bagheri, elevando um tudo-nada o tom de voz. "A decisão está tomada e não há nada que o senhor ou eu possamos fazer. Estão em jogo coisas demasiado importantes para que o senhor esteja agora com dúvidas." Olhou de relance para a porta. "Além do mais, diga-me uma coisa."
"Sim?"
"O senhor acredita mesmo que esta gente o vai deixar regressar ao seu país depois de o trabalho estar concluído?"
"Foi o que eles disseram."
"E o senhor acredita nisso? Repare bem. O senhor viu o manuscrito de Einstein e o senhor em princípio irá descodificar os segredos que Einstein colocou na sua fórmula nuclear. Não acha estranho que, tendo a intenção de manter tudo secreto, o regime o deixe voltar tranquilamente para a sua terra, sabendo o senhor o que sabe?
Não acha que isso constitui um grave risco para a confidencialidade do projecto nuclear iraniano? Não acha que, depois de concluído o trabalho, e estando o senhor na posse de parte do segredo, o regime o vai considerar uma grave ameaça para a segurança do Irã?"
Tomás arregalou os olhos, digerindo as implicações das perguntas disparadas pelo iraniano.
"Uh... pois, realmente... uh...", gaguejou. "Acha... acha mesmo que eles me vão manter aqui para... para sempre?"
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"Farão uma de duas coisas. Ou o matam quando já não precisarem de si, ou mantêm-no preso numa jaula dourada." Bagheri olhou de relance mais uma vez para a porta, certificando-se de que continuavam sós. "Admito como mais provável que o retenham para sempre aqui no Irã. O regime é constituído por fanáticos fundamentalistas, o que tem, apesar de tudo, o seu lado positivo. Embora sejam implacáveis na aplicação da sharia, a lei islâmica, eles partilham uma profunda crença no comportamento moral e é provável que, não dispondo de um motivo moralmente razoável para o matar, o mantenham retido. Mas, por outro lado, é preciso não esquecer que estão em causa segredos fundamentais para o regime, não é? E os motivos morais também se inventam.
Assim sendo, não é de negligenciar a possibilidade de eles escolherem um método mais radical e seguro para o calar." Passou o dedo pelo pescoço. "Entendeu?"
O historiador fechou os olhos, massajou as têmperas e suspirou.
"Estou mesmo tramado."
Bagheri voltou a espreitar a porta do quarto de banho.
"Ouça, não temos muito tempo", disse. "Vim aqui apenas para lhe dizer que está tudo pronto."
"O que é que está pronto?"
"Os preparativos para a missão encontram-se praticamente concluídos. Depois do assalto, vamos levá-lo para uma terriola no mar Cáspio, chamada Bandar-e Torkaman, localizada perto dos restos do muro de Alexandre, o Grande."
"Bandar e quê?"
"Bandar-e Torkaman. É uma pequena povoação portuária turca, não muito longe da fronteira com o Turcomenistão. No porto de Bandar-e Torkaman estará um barco de pesca com o nome da capital do Azerbaijão, Baku. É um barco alugado por nós e que o levará justamente para Baku. Percebeu?"
"Uh... mais ou menos." Fez um ar intrigado. "Você virá comigo?"
Bagheri abanou a cabeça.
"Não, eu vou ter de permanecer aqui em Teerã para baralhar as pistas. Mas o Babak leva-o até lá, fique descansado. É importante, no entanto, que decore uma coisa."
Tomás tirou um papel e uma caneta do bolso.
"Diga."
"Não, não pode escrever isso em parte alguma. Tem de decorar, percebeu?"
O historiador fez uma expressão contrariada.
"Decorar?"
"Sim, tem de ser. Por motivos de segurança."
"Então diga lá."
"Quando chegar ao Baku, que se encontra atracado no porto de Bandar-e Torkaman, mande chamar pelo Mohammed." Ergueu o dedo. "Lembre-se, Mohammed."
"Como o profeta."
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"Isso. Pergunte-lhe se este ano ele tenciona ir a Meca. Ele responderá inch'Allah.
São essas a senha e contra-senha."
"Tenciona ir este ano a Meca?", perguntou Tomás, memorizando a pergunta. "É
isto, não é?"
"Sim, isso mesmo."
"Se ele disser inch'Allab, é porque está tudo bem."
"Exato."
"Parece fácil."
"Claro que é fácil." Bagheri consultou o relógio. "Bem, tenho de ir. Venho buscá-lo à meia-noite."
"À meia-noite? Para ir onde?"
O iraniano mirou-o, surpreendido.
"Ainda não lhe disse?"
"Disse o quê?"
"A operação, professor."
"O que tem a operação?"
"É esta noite."