XXII

Ao ver Coimbra emergir à esquerda da auto-estrada, como um castelo erguido sobre uma montanha de cal, Tomás Noronha sentiu-se à beira de gritar de alívio. A velha cidade resplandecia ao lado do Mondego, cortejada por um sol alegre e pela aragem amena que deslizava pelo rio; as fachadas brancas e os telhados cor de tijolo do casario emprestavam-lhe um certo toque familiar, acolhedor, quase como se o burgo fosse a sua casa. Na verdade, percebeu, em nenhum sítio se sentia tão bem como ali, era aquele o seu lar, era como se aquela terra e aquelas casas lhe abrissem os braços para o acolherem num aconchego protector de mãe.

O recém-chegado tinha passado os últimos dias em viagem. Primeiro atravessou o mar Cáspio em direção a norte, até aportar em Baku. Na capital do Azerbaijão, Mohammed tratou de lhe arranjar um lugar no primeiro Tupolev que voava com destino a Moscovo, para onde seguiu de imediato. Pernoitou num belo hotel do centro da cidade, junto ao Kremlin, e abandonou a capital russa na manhã seguinte.

Atravessou toda a Europa até aterrar em Lisboa, ao princípio da tarde desse dia. Em circunstâncias normais teria ido direito para casa, já tinha tido a sua conta, vinha exausto e com os nervos no limite, mas havia o problema do estado de saúde do pai e estava fora de questão não o ir ver imediatamente.

Ainda no aeroporto de Lisboa comprou um postal e remeteu-o a Ariana com uma mensagem simples. Anunciou-lhe que tinha chegado em segurança, mandou-lhe saudades e assinou Samot, o seu nome ao contrário, um pequeno truque de criptanalista para o caso de aquele correio vir a ser interceptado pela VEVAK ou por qualquer outro dos vários poderes vigentes no Irã.

Em bom rigor, sabia que teria em breve de se dedicar ao problema de Ariana. A iraniana permanecia presente no seu espírito, sobretudo depois daquilo que fizera para o libertar, um ato que, percebeu Tomás, só podia ter um significado. Era uma prova de amor. Desde que a deixara para trás que as suas feições perfeitas lhe 157


enchiam os sonhos, a memória assaltada por aqueles magnéticos olhos cor de caramelo, os lábios sensuais entreabrindo-se melancolicamente como pétalas carmesim iluminadas pelo sol; a ternura brotada do seu rosto fino invadia-lhe os sentidos, as formas esguias do corpo alto e esbelto enchiam-no de voluptuoso desejo, mas do que mais sentia falta era das conversas embaladas ao ritmo melódico da sua voz tranquila. A verdade, constatou sem surpresa, a verdade é que tinha saudades de Ariana, habituara-se à sua doce companhia, cultivara o gosto de lhe cheirar o perfume e sentir a presença serena, aquela era uma mulher com a qual seria capaz de falar até perder a noção do tempo, até os minutos se fazerem horas, até as palavras se tornarem beijos.

Mas ainda era cedo para decidir o que fazer com os seus sentimentos por Ariana.

A prioridade, para já, era ver o pai. Depois teria ainda de resolver um outro problema, o da CIA. Tomás sabia que precisava de arranjar maneira de cortar com a sua indesejada ligação à agência americana, encontrava-se farto de joguinhos e de se ver reduzido a um mero instrumento nas mãos de gente sem escrúpulos.

Era hora de se tornar de novo senhor de si mesmo.


Graça Noronha soltou um guincho quando abriu a porta e viu o filho sorrir-lhe.

"Tomás!", gritou, abrindo os braços. "Já voltaste!"

Abraçaram-se.

"Está tudo bem, mãe?"

"Vai-se andando", disse ela. "Entra, filho, entra."

Tomás invadiu a sala.

"O pai?"

"O teu pai foi ao hospital para o tratamento. Daqui a bocado devem estar a trazê-

lo."

Acomodaram-se ambos no sofá.

"Como é que ele anda?"

"Menos revoltado, coitadinho. Houve uma altura em que andava impossível.

Isolava-se um pouco e, quando abria a boca, era para protestar contra tudo e contra todos. Dizia que o doutor Gouveia não prestava para nada, que os enfermeiros eram uns brutos, que o Chico da Pinga é que devia ter apanhado a doença... enfim, um martírio!"

"Já não está assim?"

"Não, felizmente não. Mostra-se mais conformado, dá-me a impressão de que ele começou a aceitar melhor as coisas."

"E o tratamento? Está a resultar?"

Graça encolheu os ombros.

"Oh, sei lá!", exclamou. "Já nem digo nada."

"Então?"

"O filho, o que queres que eu te diga? A radioterapia é uma coisa chata, percebes?

E o pior é que não o vai curar."

"E ele sabe disso?"

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"Sabe."

"E como está a reagir?"

"Tem esperança. Tem a esperança que qualquer paciente e qualquer familiar de um paciente tem nestas circunstâncias, não é?"

"A esperança de quê? De se curar?"

"Sim, a esperança de que apareça uma coisa nova que resolva o problema. A história da medicina está cheia de casos desses, não está?"

"É", assentiu Tomás, sentindo-se igualmente impotente. "Vamos esperar que aconteça alguma coisa."

A mãe pegou-lhe nas mãos.

"E tu? Estás bem?"

"Sim, estou."

"Não mandaste notícias nenhumas! Nós aqui todos ralados e o menino sem dizer nada, nem água vai, nem água vem."

"Ora, sabe como é, o trabalho..."

Dona Graça afastou-se um passo e analisou Tomás da cabeça aos pés.

"Além disso, estás muito magro, filho. Que porcarias andaste tu a comer no deserto?"

"No Irã, mãe."


"Ora, é a mesma coisa! Isso não é lá no deserto, onde andam os camelos?"

"Não, não é", explicou ele, enchendo-se de paciência para lidar com as confusões geográficas da mãe. "O Irã é para aqueles lados, de facto, mas não é no deserto."

"Não interessa", disse ela. "A verdade é que vens escanzelado que nem um carapau, valha-me Deus! Os beduínos não te deram nada de jeito para comer?"

"Uh... sim, comi bem."

A mãe mirou-o com ar incrédulo.

"Então como é que vens assim tão magro, hã? Credo, parece que vieste do Biafra!"

"Quer dizer, houve dias em que comi muito mal..."

Graça ergueu a mão direita.

"Ah! Bem me queria parecer! Bem me queria parecer! Tens a mania de te meter nas bibliotecas e nos museus dias a fio, esqueces-te de almoçar... e depois... depois... "

Fez um gesto na direção de Tomás, como se exibisse uma prova em tribunal. "Depois é isto!"

"Pois, se calhar foi isso, foi." Deu-lhe vontade de rir. "Esqueci-me de almoçar."

A senhora levantou-se, decidida.

"Espera aí! Vou-te pôr mais gordinho que um leitão da Bairrada em dia de matança, ou eu não me chame Maria da Graça Rosendo Noronha!", exclamou, virando-se para sair da sala. "Tenho ali um ensopado de borrego que está um mimo, ouviste? Um mimo! É de chorar por mais, vais ver." Fez-lhe sinal para a seguir. "Ora anda daí, vem aqui à cozinha, vem."


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O borrego ia a meio, regado por um frutado tinto do Douro, quando o telemóvel tocou.

"Mister Norona?"

Tomás rolou os olhos. O sotaque era inconfundivelmente americano, o que só podia significar que a CIA não o largava.


"Sim, sou eu."

"Daqui fala do gabinete do Directorate of Science and Technology da Central Intelligence Agency, em Langley, USA. Um momento, por favor. Esta é uma linha segura e o senhor diretor quer falar consigo."

"Está bem."

Uma música encheu o telemóvel enquanto a chamada era transferida.

"Hello Tomás. Daqui Frank Bellamy."

Com a sua característica voz rouca e arrastada, a apresentação era redundante, Bellamy não precisava de se anunciar para ser logo identificado.

"Hi, mister Bellamy."

"Os rapazes da agência trataram bem de si?"

"Só a partir do mar Cáspio, mister Bellamy. Só a partir do mar Cáspio."

"Ah, é? Tem alguma queixa antes do mar Cáspio?"

"Nada de especial", ironizou o português. "Apenas o fato do vosso gorila em Teerã ter tentado injetar-me com veneno."

Bellamy riu-se.

"Considerando o que se passou a seguir, ainda bem que você não o deixou", disse. "Já viu? Se ele o tivesse neutralizado, jamais poderíamos saber as coisas que você nos contou. A nossa busca teria entrado num beco sem saída."

"Obrigado por se preocupar com o meu bem-estar", devolveu Tomás com acidez.

"Fico tocado, sim senhor."

"É, eu sou um sentimental. Só penso na sua saúde."

"Já tinha reparado."

O americano pigarreou.

"Ouça, Tomás, a razão pela qual lhe estou a ligar tem a ver com aquela pista que você me passou."

"Qual pista?"

"A do Hotel Orchard."

"Ah, sim."

"Bem, estivemos a fazer uma pesquisa e descobrimos que existem centenas de hotéis com o nome Orchard em todo o mundo. Eles estão em Singapura, em São Francisco, em Londres... uh, em toda a parte, na verdade. Isto assim é como procurar uma agulha no palheiro."

"Estou a entender."

"Não tem nenhum dado adicional que nos possa ajudar?"

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"Não", disse Tomás. "Tudo o que sei é que existe uma ligação entre o Hotel Orchard e o professor Siza. Não sei mais nada."

"Bem... isso assim é muito vago", considerou o americano. "Vamos continuar a procurar, claro. O problema é que, deste modo, iremos levar anos, não é?"

"Compreendo, mas não posso fazer nada."

"Quem é que lhe deu essa informação?"

"Ariana Pakravan."

"Hmm", murmurou Bellamy, considerando o caso. "E podemos confiar nela?"

"Em que sentido?"

"No sentido de que falou a verdade."

"Bem, foi ela que me salvou, não é? Se não fosse ela, eu não estava aqui a falar consigo. Presumo que tenha dito a verdade..."

"I see. E acha que dá para nós a contactarmos?"

"A quem? À Ariana?"

"Sim."

"Nem pense nisso!"

"Porquê? Se o ajudou a si é porque não está necessariamente do lado deles."

"Ela ajudou-me porque me quis ajudar. Não foi um ato político. Foi um ato... uh...

pessoal."

Bellamy calou-se uma fração de segundo.

"Já vi que você foi mesmo para a cama com ela."

"Não me venha outra vez com essa conversa."

O americano riu-se.

"Ela é assim tão boa como dizem?"

Tomás rolou os olhos, impaciente.

"Ouça, foi para me dizer isso que me ligou?"


"Liguei-lhe porque preciso de mais do que você me deu."

"Não tenho mais."

"Mas ela tem."

"Ela é iraniana e está do lado do seu país. Se vocês forem ter com ela, ela vai relatar tudo aos seus superiores."

"Você acha?"

"Tenho a certeza."

"O que o leva a dizer isso?"

"O fato de ela se ter recusado a revelar-me pormenores sobre o programa nuclear iraniano. Ela nem sequer me disse qual o conteúdo do manuscrito de Einstein..."

Bellamy hesitou e Tomás quase suspendeu a respiração, à espera da decisão no outro lado da linha. O historiador acreditava agora que este era o único argumento 161


que poderia travar os americanos. Ou os convencia de que Ariana permanecia leal ao regime de Teerã, ou então a CIA iria incomodá-la, colocando-a em perigo.

"Hmm... está bem", aceitou Bellamy. "Parece-me que só nos resta então vasculhar os hotéis, uh?"

"Sim, é melhor."

"E você? Já fez progressos com a segunda cifra?"

"Uh... justamente, eu... eu quero ver se me desligo deste caso. Sabe, já tive a minha dose e não quero..."

"Isso é que era bom!"

"Perdão?"

"Ninguém sai deste caso até ele estar resolvido, entendeu?", vociferou Bellamy, num tom que não admitia discussão. "Você vai cumprir tudo até ao fim."

"Mas, ouça, eu já não..."

"Aqui não há mas nem meio mas! Você está envolvido numa missão de elevada importância e irá levá-la a bom termo, custe o que custar, doa a quem doer. Estou a ser claro?"

"Desculpe, mas eu..."

"Estou a ser claro?"

"Sim... uh... só que eu..."

"Você ouça-me e ouça-me bem", rugiu o americano, muito agreste, quase soletrando as palavras. "Você vai desempenhar o seu papel até à perfeição. Nem lhe vou explicar o que lhe irá acontecer se hesitar mais um momento que seja. Mas que fique bem claro que o quero a trabalhar neste caso a cem por cento, ouviu?"

"Bem... uh...."

"Ouviu?"

Tomás sentiu-se derrotado, o tom agressivo do homem da CIA não lhe deixava qualquer margem de manobra.

"Sim."

"E outra coisa", acrescentou, sempre feroz. "Nós estamos numa corrida contra-relógio. Precisamos de saber exatamente o que diz o manuscrito, para podermos atuar. Se você demorar muito tempo a deslindar a chave do documento, não teremos outra alternativa que não seja avançar e contactar a sua amiga. O fato é que ela sabe coisas que nós precisamos de saber. A segurança nacional do meu país está em causa e não olharei a meios para a salvaguardar, entendeu? Utilizaremos todos os métodos que forem necessários para lhe extrair a informação de que necessitamos. E quando eu digo todos os métodos, quero mesmo dizer todos, incluindo aqueles que você está a pensar." Fez uma pausa, como quem não tem mais nada para dizer. "Portanto, eu aconselhá-lo-ia a despachar-se."

Desligou sem mais.

Tomás ficou um longo instante a olhar para o telemóvel mudo nas mãos, reconstituindo a conversa, avaliando as suas opções. Depressa concluiu que não as tinha e só lhe ecoava na mente uma única expressão para caracterizar Frank Bellamy.

"Filho da puta."


162


Um enfermeiro trouxe Manuel Noronha a casa. O pai de Tomás veio cansado, após mais uma sessão de radioterapia, e foi deitar-se. A mulher levou-lhe uma sopa ao quarto e, enquanto comia, viu o filho abeirar-se da cama.


Para preencher o silêncio, apenas interrompido pelo som do pai a comer a sopa, Tomás relatou-lhe parte do que vira em Teerão, omitindo, como era natural, a sua verdadeira missão na capital iraniana e os acontecimentos dos últimos dias. Quando acabou, a conversa divagou inevitavelmente para a doença. O matemático terminou a sopa e, na altura em que a mulher saiu do quarto, pediu ao filho para se aproximar e fez-lhe uma confissão.

"Fiz um pacto", murmurou, quase conspirativo.

"Um pacto? Que pacto?"

Manuel espreitou a porta e pôs o indicador diante dos lábios.

"Chiu", soprou. "A tua mãe não sabe de nada. Nem ela, nem ninguém."

"Está bem, eu não digo nada."

"Fiz um pacto com Deus."

"Com Deus? Mas o pai nunca acreditou em Deus..."

"E não acredito", confirmou o matemático. "Mas fiz na mesma um pacto com Ele, não se vá dar o caso de Ele existir mesmo, não é?"

Tomás sorriu.

"Bem pensado."

"Então é assim. Prometi fazer tudo o que os médicos me mandarem fazer. Tudo.

Em troca, só lhe peço que me deixe viver até eu ter um novo neto."

"Oh, pai."

"Ouviste? Portanto, toca a pôr os pés ao caminho, arranjar uma miúda jeitosa e, pimba, fazeres-lhe um filho. Não quero morrer sem ver o meu neto."

Tomás controlou a careta aborrecida que lhe apeteceu fazer nesse momento. O

facto é que o pai estava doente e não o podia contrariar por causa de uma coisa daquelas.

"Pronto, está bem, eu vou ver se trato do assunto."

"Prometes?"

"Prometo."

Manuel respirou fundo e deixou cair a cabeça para trás, como se o tivessem libertado de um fardo.

"Ainda bem."

Fez-se silêncio.

"O pai como está?"

"Como é que haveria de estar?", murmurou o paciente, a cabeça enterrada na almofada. "Tenho uma doença a consumir-me as entranhas e não sei se vou viver uma semana, um mês, um ano ou dez anos. Isto é horrível!"

"Tem razão, é horrível."

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"Às vezes acordo com a esperança de que tudo isto não tenha passado de um pesadelo, de que, ao acordar, descubra que afinal está tudo bem. Mas, ao fim de alguns segundos, percebo que não foi

nenhum pesadelo, é a realidade." Abanou a cabeça. "Não sabes como isso custa, acordar com esperança e perdê-la logo a seguir, como se alguém estivesse a brincar connosco, dando-nos o futuro num momento e tirando-o logo a seguir, como se a vida fosse um brinquedo e eu uma criança. Há manhãs que dou comigo a chorar..."

"Não fique triste..."

"Como, não fico triste? Então estou no processo de perder tudo, de perder toda a gente de quem gosto, e não posso ficar triste?"

"Mas o pai está sempre a pensar nisso, é?"

"Não, só às vezes. Há algumas manhãs em que penso na morte, mas esses instantes são mais excepcionais. A verdade é que, na maior parte do tempo, procuro sobretudo concentrar-me na vida. Enquanto viver, tenho sempre a esperança de viver, percebes?"

"Há que pensar positivo, não é?"

"É isso. Da mesma maneira que não conseguimos estar sempre a olhar para o sol, também não conseguimos estar sempre a pensar na morte."

"Além do mais, pode ser que se arranje uma solução."

O pai olhou-o com um brilho singular.

"É isso, pode ser que aconteça alguma coisa", exclamou. "Nos momentos de maior desespero, agarro-me sempre a esse pensamento." Fez uma pausa. "Sabes qual é o meu sonho?"

"Hmm."

"Eu estou nos Hospitais da Universidade de Coimbra e o doutor Gouveia senta-se ao meu lado e diz: professor Noronha, tenho aqui um novo medicamento que acabou de chegar da América e que parece estar a dar um resultadão por lá. Quer experimentar?" Calou-se, os olhos vidrados no infinito, como se vivesse esse sonho nesse mesmo instante. "Ele dá-me o medicamento e, dias depois, vamos fazer um TAC

e ele aparece à minha frente aos gritos: desapareceu! A doençadesapareceu! As metástases sumiram-se!" Sorriu. "É esse o meu sonho."

"Pode acontecer."

"Pois pode. Pode acontecer. Aliás, o doutor Gouveia contou-me que há muitas histórias assim, relativas a doenças que antes não tinham cura. Pessoas à beira do fim experimentaram um medicamento novo e, tumba, ficaram boas enquanto o diabo esfrega um olho." Bocejou. "Já aconteceu."

Fez-se silêncio.

"O pai há pouco falou em Deus."

"Sim."

"Mas o pai é um homem de ciência, um matemático, e nunca acreditou que Deus existisse.

Agora, no entanto, já faz pactos com Ele..."

"Bem... uh... em bom rigor, é preciso dizer que eu não posso assegurar que Deus existe ou que não existe. Digamos que sou agnóstico, não tenho certezas sobre a Sua existência ou inexistência."

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"Porquê?"

"Porque não conheço provas da existência de Deus, mas, sabendo o que sei sobre o universo, também não tenho a certeza de que Ele não exista." Tossiu. "Sabes, há uma parte de mim que é atéia. Sempre me pareceu que Deus não passa de uma criação humana, de uma maravilhosa invenção que nos conforta e que preenche convenientemente lacunas do nosso conhecimento. Por exemplo, uma pessoa vai a passar numa ponte e a ponte cai. Como ninguém sabe por que razão a ponte caiu, todos atribuem esse fato à vontade divina." Encolheu os ombros, imitando um ar resignado. "Foi Deus que fez isso." Tossiu. "Mas hoje, com os nossos conhecimentos científicos, já sabemos que a ponte caiu, não devido a um acto de Deus, mas porque houve erosão nos materiais, ou erosão no solo, ou peso a mais para aquela estrutura, enfim, há uma explicação verdadeira que não tem origem divina. Percebes? É isto o que se chama o Deus-das-lacunas. Quando ignoramos algo, invocamos Deus e a coisa fica explicada, quando, na verdade, existem outras explicações mais verdadeiras, embora possamos não as conhecer."

"Acha que não é possível uma intervenção do sobrenatural?"

"O sobrenatural é aquilo que nós invocamos quando desconhecemos uma coisa natural. Antigamente, uma pessoa adoecia e dizia-se: está possuído pelos maus espíritos. Hoje, a pessoa adoece e nós dizemos: está possuído por bactérias ou por vírus ou por outra coisa qualquer. A doença é a mesma, o nosso conhecimento sobre as suas causas é que mudou, percebes? Quando desconhecíamos as causas, invocávamos o sobrenatural. Agora que as conhecemos, invocamos o natural. O

sobrenatural não é mais do que uma fantasia alimentada em torno do nosso desconhecimento sobre o natural."

"Então não há sobrenatural."

"Não, há apenas o natural que nós desconhecemos. O ateu que há em mim aceita que não foi Deus que criou o homem, mas o homem que criou Deus." Fez um gesto que abarcou todo o quarto. "Tudo o que nos rodeia tem uma explicação. Acredito que as coisas se regem por leis universais, absolutas e eternas, onipotentes, onipresentes e oniscientes."

"Um pouco como Deus..."

O pai riu-se baixinho.

"Sim, se quiseres. É verdade que as leis do universo têm os atributos que nós geralmente relacionamos com Deus, mas isso acontece por razões naturais, não por razões sobrenaturais."

"Como assim?"

"As leis do universo têm esses atributos porque é essa a sua natureza. Por exemplo, elas são absolutas porque não dependem de nada, afectam os estados físicos mas não são afetadas por eles. São eternas porque não mudam com o tempo, eram as mesmas no passado e continuarão certamente a ser as mesmas no futuro. São omnipotentes porque nada lhes escapa, exercem a sua força em tudo o que existe. São onipresentes porque se encontram em qualquer parte do universo, não há umas leis que se aplicam aqui e outras diferentes que se aplicam ali. E são oniscientes porque exercem automaticamente a sua força, não precisam que os sistemas as informem da sua existência."

"E de onde é que vêm essas leis?"

O matemático esboçou um sorriso de garoto.

"Agora é que me apanhaste."

165


"Então?"

"A origem das leis do universo constitui um grande mistério. É verdade que essas leis têm todos os atributos que normalmente nós conferimos a Deus." Tossiu. "Mas, atenção, o fato de não conhecermos a sua origem não implica necessariamente que elas provenham do sobrenatural." Ergueu um dedo. "Lembra-te que usamos o sobrenatural para explicar o que ainda não sabemos, mas que tem uma explicação natural. Se usarmos o sobrenatural de cada vez que não sabemos algo, estamos a recorrer ao Deus-das-lacunas. Daqui a algum tempo descobrir-se-á a verdadeira causa e nós fazemos figura de parvos. A Igreja, por exemplo, fartou-se de usar o Deus-das-lacunas para explicar coisas que antigamente não tinham explicação, e depois sofreu o enorme embaraço de ter de se desdizer quando foram feitas descobertas que desmentiam a explicação divina. Copérnico, Galileu, Newton e Darwin são os casos mais conhecidos." Tossiu. "De qualquer modo, Tomás, a questão da origem das leis do universo constitui algo que não conseguimos explicar. Aliás, existe um determinado número de propriedades do universo que me impedem de afirmar liminarmente que Deus não existe. A questão da origem das leis fundamentais é uma delas. A sua existência serve para nos lembrar que se esconde um grande mistério por detrás do universo."


Tomás passou os dedos pelo queixo, pensativo. Depois fez um gesto na direção do bolso do casaco.

"Olhe, pai", disse, dando uma palmadinha no bolso. "Eu tenho aqui duas frases enigmáticas que gostaria que me explicasse, se pudesse."

"Diz lá."

Tomás meteu a mão dentro do bolso e retirou uma folha, que desdobrou. Passou os olhos pelo texto e voltou-se para o pai.

"Posso?"

"Força."

"Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", leu. "A Natureza esconde o seu segredo devido a sua essência majestosa, nunca por ardil."

Manuel Noronha, a cabeça enterrada na vasta almofada, sorriu.

"Quem disse isso?"

"Einstein."

O matemático balançou afirmativamente a cabeça.

"É bem-visto."

"Mas o que significa isto?"

O pai bocejou mais uma vez.

"Estou cansado", disse simplesmente. "Amanhã eu explico-te."


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