XXVII
A manhã ia adiantada e, talvez pela vigésima vez em apenas uma hora, Tomás contemplou a folha de papel e imaginou uma nova estratégia para quebrar a charada.
Mas o enigma permanecia firme, teve até a impressão de que aquelas treze letras e aquele ponto de exclamação se riam dos seus esforços.
See sign
!ya ovqo
Meneou a cabeça, imerso no problema. Afigurava-se-lhe evidente que cada uma das linhas remetia para uma cifra diferente e não tinha sequer a certeza de que a primeira fosse mesmo uma cifra. See sign era inglês para veja o sinal. Tratava-se provavelmente de uma indicação dada por Einstein em relação a um qualquer sinal que fizera no manuscrito. O problema é que, como não pudera ler o documento, 201
Tomás não tinha modo de verificar se assim era. Haveria algum sinal misterioso escondido algures no texto original?
O criptanalista abanou a cabeça.
Talvez fosse impossível determinar tal coisa sem aceder ao manuscrito. Por mais voltas que desse ao problema, concluía sempre que precisava mesmo de ler o documento, procurar aí pistas ocultas, cavar o texto em busca do sinal que Einstein mandava ver. See sign. Veja o sinal. Mas qual sinal?
Encostou-se à cadeira da cozinha e pousou o lápis. Com um suspiro resignado, Tomás desistiu nesse instante de perceber esta primeira linha; o fato é que não podia aceder ao manuscrito e tudo o que fizesse para interpretar o teor dessas duas palavras sem ter o documento à frente estaria condenado ao fracasso. Ergueu-se, irrequieto, foi ao frigorífico buscar um sumo de laranja e voltou a sentar-se na mesa da copa. Sentia uma impaciência miudinha a consumir-lhe as entranhas.
Pousou de novo os olhos na folha e concentrou-se na segunda linha. Pelo seu aspecto, esta mensagem fora certamente cifrada por um sistema de substituição.
Parecia-lhe evidente que as letras originais tinham sido substituídas por outras letras, segundo uma ordem predeterminada por uma chave. Se descobrisse a chave, quebraria a cifra. O problema era perceber que chave tinha Einstein usado para cifrar esta linha.
Leu várias vezes as letras da segunda linha, até que, convencido de que se tratava de fato de um sistema de substituição, se pôs a considerar diversas hipóteses.
Poderia estar perante uma substituição monoalfabética, que seria relativamente simples de quebrar. Mas se fosse uma substituição polialfabética, com recurso a dois ou mais alfabetos de cifra, a operação complicar-seia gravemente. Podia também ser uma substituição poligrâmica, segundo um esquema em que grupos de letras são integralmente substituídos por outros grupos. Ou então, pesadelo dos pesadelos, seria uma substituição fraccional, em que o próprio alfabeto de cifra é também ele cifrado.
Pressentia que iria ser muito difícil. A opção mais natural, no entanto, parecia-lhe ser a substituição monoalfabética e foi com esse pressuposto que decidiu avançar. A ser um sistema destes, tinha perfeita consciência de que a chave da substituição não podia ter sido escolhida ao acaso. Seria, por exemplo, um alfabeto de César, um dos mais antigos alfabetos de cifra de que se tinha conhecimento, utilizado por Júlio César nas suas intrigas palacianas e campanhas militares. Bastar-lhe-ia alterar o ponto de início do alfabeto normal e encontraria a solução.
A campainha da entrada tocou nesse instante.
Dona Graça saiu da sala, onde arrumava as coisas, e dirigiu-se apressadamente à porta.
"Isto agora é um corrupio", resmungou entre dentes. Pegou no auscultador.
"Quem é?" Pausa.
"Quem?" Pausa. "Ah, um momento." Olhou para o filho. "É o professor Rocha para ti. Está lá em baixo à tua espera."
"Ah", exclamou Tomás. "Diga-lhe que já desço."
Sentindo-se quase satisfeito por interromper o esgotante trabalho que se arrastava por toda a manhã sem produzir frutos, Tomás dobrou a folha com a charada e foi ao quarto buscar um casaco.
202
Estacionaram à sombra de um carvalho. Ao sair do carro, Tomás contemplou a pequena vivenda que se escondia por detrás do muro e dos arbustos, a meio da tranquila Avenida Dias da Silva, a artéria onde residia a maior parte dos professores da universidade. A casa tinha um ar acolhedor, embora fosse notório que lhe faltava mão de jardineiro, a verdura crescera demasiado e invadia as zonas de passagem e até o pátio frente à porta.
"Então é aqui que vivia o professor Siza?", perguntou Tomás, passando os olhos pela fachada da moradia.
"Sim, é aqui."
O historiador mirou o seu colega.
"É duro voltar cá?"
Luís Rocha olhou para a vivenda e respirou fundo.
"Então não é?"
"Desculpe lá ter-lhe pedido este favor", disse Tomás. "Mas parece-me importante que eu veja o local onde tudo aconteceu."
Cruzaram a cancela de entrada e dirigiram-se à porta. O físico tirou uma chave do bolso e inseriu-a na fechadura, rodando-a até a porta se abrir com um estalido. Fez um sinal para Tomás entrar e depois seguiu-o.
Um silêncio quase absoluto acolheu-os dentro da vivenda. O pequeno hall de entrada tinha o piso em tijoleira, com uma porta à esquerda aberta para a sala e outra à direita para a cozinha, de onde vinha o murmúrio suave de um frigorífico ainda ligado.
"Mas isto está tudo com aspecto muito arranjado."
"É porque você não viu o escritório", observou Luís Rocha, passando à frente e metendo pelo curto corredor diante do hall. "Quer ver? Venha daí."
Ao fundo do corredor havia três portas. O físico abriu a da esquerda, mostrando a entrada protegida por uma fita da polícia, e fez sinal a Tomás para espreitar.
"Caramba", exclamou o historiador.
Um mar de livros e papéis e pastas espalhava-se pelo chão num caos indescritível, enquanto as prateleiras dos móveis de madeira se apresentavam quase vazias, ornadas apenas por um ou outro volume que resistira ao vendaval.
"Já viu isto?", perguntou o físico.
Tomás não conseguia despregar os olhos daquele amontoado de obras e documentos.
"Foi você que deu com esta confusão?"
"Fui", assentiu Luís. "Eu tinha combinado com o professor Siza vir cá para verificar uns cálculos que ele tinha feito sobre as consequências de uma hipotética alteração de massa dos electrões. O professor tinha faltado a uma aula dias antes, mas não liguei muito a isso, sabendo, como sei, que ele é um bocado distraído. Mas quando cheguei ao portão apercebi-me de que a porta de entrada se encontrava escancarada. Achei isso estranho e entrei. Chamei pelo professor e ninguém respondeu. Vim ver ao escritório e deparei-me com... com isto", disse, exibindo aquele caos. "Percebi logo que tinha ocorrido um assalto e chamei a polícia."
"Hmm", murmurou Tomás. "E o que fizeram eles?"
203
"Primeiro, nada de especial. Selaram a área e andaram a tirar umas amostras.
Depois veio cá a Judiciária várias vezes e fez muitas perguntas, sobretudo sobre o que o professor guardava aqui. Queriam saber se havia coisas de valor. Mas depois as perguntas evoluíram e algumas delas tornaram-se bem estranhas, confesso."
"Como por exemplo?"
"Eles queriam saber se o professor viajava muito e se conhecia gente do Médio Oriente."
"E você? O que respondeu?"
"Bem... uh... é evidente que o professor viajava. Ia a conferências e a seminários, contactava outros cientistas... enfim, o normal para quem dedica a vida à investigação, suponho."
"E ele conhecia pessoas do Médio Oriente?"
Luís Rocha esboçou uma careta.
"Devia conhecer, sei lá. Ele falava com muita gente, não é?"
Tomás virou a cara e observou de novo toda a confusão de livros espalhados pelo chão, parecia que tinha para ali sido despejado um monte de entulho. Era evidente que alguém chegara ao local e atirara tudo para o chão, em busca não se sabe bem do quê. Ou melhor, Tomás sabia. Sabia Tomás Noronha, sabia Frank Bellamy e sabiam poucas mais pessoas. Os assaltantes eram os homens do Hezbollah e procuravam Die Gottesformel, o velho manuscrito que acabaram por encontrar algures naquele escritório.
Remexendo-se atrás de Tomás, Luís pôs a mão na maçaneta da porta do meio e abriu-a.
"Vou aqui ao quarto de banho", disse, entrando no pequeno compartimento decorado a azulejos brancos e azuis. "Fique à vontade, sim?"
Trancou a porta.
Momentaneamente só, Tomás passou os olhos uma derradeira vez pelo escritório vandalizado e deu meia-volta. A sua atenção reteve-se na terceira porta do corredor; esticou o braço e abriu-a. Uma grande cama revelava tratar-se do quarto do professor Siza.
Movido pela curiosidade, Tomás entrou na penumbra do quarto e observou-o com atenção. Pairava um certo cheiro a mofo no ar, era evidente que o compartimento se encontrava fechado havia várias semanas, como se estivesse suspenso no tempo, à espera que o resgatassem para a vida. As persianas apresentavam-se corridas, criando uma atmosfera tranquila naquele aposento silencioso, um lugar sereno recolhido à meia-luz. Em flagrante contraste com o que acontecia na porta ao lado, tudo se apresentava aqui arrumado, cada objecto no seu lugar, cada lugar com uma função.
Uma fina camada de pó assentara sobre os móveis, dando a impressão de que a passagem do tempo se media pela poeira acumulada. O historiador abriu uma gaveta e deparou com molhos de
cartas e postais. Pegou no molho de cima e analisou datas; eram dos últimos meses. Presumiu que por cima estivesse a correspondência mais recente e por baixo a mais antiga. Olhou para as cartas e procurou identificá-las. A maior parte parecia ser informações da faculdade, com notícias sobre colóquios, novidades editoriais, pedidos de informação bibliográfica e outras referências de caráter puramente acadêmico.
Encontrou, por entre os envelopes, três postais e analisou-os distraidamente. Dois 204
eram de família e tinham letra escrita com mão feminina, mas o terceiro despertou-lhe a atenção. Olhou para a face e para o verso e sentiu a curiosidade aumentar.
Trakatrakatraka.
O ruído metálico de uma chave a rodar numa fechadura fê-lo virar a cara para o corredor. Luís terminara o que tinha a fazer no quarto de banho e destrancava a porta para sair.
Com um gesto rápido e dissimulado, Tomás escondeu este terceiro postal no bolso do casaco e adotou uma pose distraída.
A primeira coisa que Tomás fez quando chegou a casa foi procurar o número na memória do telemóvel e efetuar a chamada.
"Greg Sullivan here", anunciou a voz anasalada do outro lado da linha.
"Olá, Greg. Daqui Tomás Noronha. Tudo bem?"
"Ah! Olá, Tomás. Tudo bem?"
"Tudo ótimo."
"Ouvi dizer que você teve uma vida difícil lá em Teerã."
"Sim, foi complicado."
"Mas saiu-se bem, uh? Como um profissional!"
"Não exageremos..."
"A sério! Qualquer dia você chega ao pé de mim com um sotaque todo british e diz: o meu nome é Noronha. Tomás Noronha!" Soltou uma gargalhada. "Uh? Um verdadeiro James Bond!"
"Não goze, vá lá."
"Ouça, estou orgulhoso de si, sabia? Atta boy!"
"Pronto, chega." Tomás pigarreou, tentando ir diretamente ao assunto que o levara a fazer aquele telefonema. "Greg, preciso de um favor seu."
"You name it, you got it."
"Preciso que ligue lá para Langley e peça para o Frank Bellamy me telefonar com urgência."
"Uh?"
"O Frank Bellamy que me ligue com urgência."
Fez-se um curto silêncio do outro lado da linha.
"Ouça, Tomás, o mister Bellamy não é um tipo qualquer", disse Greg, a voz a assumir subitamente um tom respeitoso. "Ele é o diretor de um dos quatro directorates da CIA, com acesso direto ao gabinete oval da Casa Branca. Não são as pessoas que querem falar com ele, percebe? É ele que quer falar com as pessoas."
"Sim, já entendi", assentiu Tomás. "Mas também entendi que, sendo ele assim tão importante, se viajou uma vez até Lisboa para falar comigo e se falou mais duas vezes ao telefone comigo é porque considera que eu estou envolvido num projeto crucial para a agência. Se assim é, ele certamente terá interesse em ligar-me logo que saiba que eu tenho algo para lhe dizer."
205
Novo silêncio no outro lado da linha.
"E tem?"
"Tenho."
Greg suspirou.
"Okay, Tomás. É melhor que você saiba o que está a fazer. Mister Bellamy não é pessoa com quem se deva brincar." Hesitou, como se estivesse a dar uma derradeira oportunidade a um condenado para se redimir. "Quer mesmo que eu telefone para Langley?"
"Telefone."
"Okay."
Tirou do bolso do casaco o postal que furtara do quarto do professor Siza e estudou-o com atenção. O lugar do remetente encontrava-se em branco, como se tal informação fosse redundante para o destinatário. O postal apenas continha uma curta mensagem em letra cuidada, as linhas desenhadas com devoção, como se a estética fosse tão importante quanto o conteúdo.
Meu querido amigo,
Foi bom receber novidades suas.
Estou cheio de curiosidade em relação a essa sua descoberta.
Terá chegado enfim o grande dia?
Procure-me no mosteiro.
Tenzing Thubten
Leu várias vezes as curtas linhas escritas no postal. Não precisava de ser muito intuitivo para perceber que esta mensagem levantava uma ponta do véu, mas deixava o essencial permanecer misteriosamente oculto por baixo de sutis subentendidos.
Quem era este Tenzing Thubten? Se chamava "querido amigo" ao professor Siza é porque certamente o conhecia bem. Mas de onde? Se Thubten dizia ter sido "bom receber novidades suas" é porque o professor Siza tomara a iniciativa de o contactar.
Se o remetente se manifestava "cheio de curiosidade em relação à sua grande descoberta" é porque o professor Siza lhe comunicara esse fato. E se Thubten se questionava sobre se "terá chegado enfim o grande dia?" é porque essa descoberta, qualquer que ela fosse, iria provavelmente despoletar um acontecimento aguardado por ambos havia muito tempo.
Mas que raio de charada é esta?, interrogou-se Tomás a cada leitura da mensagem garatujada no postal.
O telemóvel tocou.
"Hello, Tomás", murmurou a inconfundível voz rouca. "Ouvi dizer que queria falar comigo."
"Olá, mister Bellamy. Como está o tempo em Langley?"
206
"Não estou em Langley", devolveu a voz. "Encontro-me num avião a sobrevoar um território cujas coordenadas não lhe posso dar. Estou a falar de uma linha não segura, o que significa que você terá de ter cuidado com o que diz. Entendeu?"
"Sim."
"Então diga lá por que razão precisa assim tanto de falar comigo."
Quase sem dar conta disso, Tomás endireitou-se na cadeira, parecia uma sentinela a colocar-se em sentido diante de um oficial.
"Mister Bellamy, julgo ter percebido finalmente do que trata o documento que nos tem estado a apoquentar e que me levou a fazer aquela viagem."
Fez-se um silêncio curto, a chamada carregada de estalidos de estática.
"Really?"
"Com base no que descobri, parece-me seguro dizer que o tema do documento não deve ser preocupante. Trata-se, aliás, de um assunto inteiramente diferente daquele que nós pensávamos que era."
"Tem a certeza?"
"Bem... uh, quer dizer, tenho uma certeza relativa, não é? É a certeza que posso ter em função do que descobri, mais nada. A certeza absoluta só a poderei ter se ler o próprio manuscrito, o que neste momento não me parece possível pelos motivos que o senhor conhece."
"Mas você acha mesmo que o tema do documento não é aquele que nos preocupa?"
"Acho."
"Então como explica que o nosso fucking geniozinho tenha comentado em privado que aquilo que tinha descoberto iria provocar uma explosão de uma violência nunca vista?"
Tomás hesitou.
"Pois... uh... ele disse mesmo isso?"
"Disse, pois. Disse-o a um físico que era nosso informador. Não se lembra de eu já lhe ter contado essa história quando fui aí a Lisboa?"
"Pois foi."
"Então em que ficamos?"
O historiador respirou fundo.
"Só há uma maneira de eu deslindar isto", disse.
"Qual é?"
"Preciso de fazer uma nova viagem."
"Para onde?"
"Estamos numa linha que não é segura, não é? Quer mesmo que eu lhe diga aqui qual o destino?"
Frank Bellamy praguejou.
"Tem razão", assentiu de imediato. "Ouça, eu vou contactar a nossa embaixada em Lisboa e dar instruções para que lhe sejam disponibilizados todos os fundos de que necessitar, está bem?"
207
"Muito bem."
"So long, Tomás. Você é um fucking gênio."
Frank Bellamy desligou e Tomás ficou um instante a mirar o telemóvel. O diabo do homem tinha o condão de o enervar. Pensando bem, considerou, esse parecia ser um dom que Bellamy manifestava em relação a toda a gente, bastava ver a postura de quase vassalagem que Greg Sullivan e Don Snyder lhe prestaram durante aquele memorável encontro em Lisboa. Tomás imaginou o homem da CIA numa reunião no gabinete oval da Casa Branca e um sorriso aflorou-lhe aos lábios. Será que também o presidente dos Estados Unidos tinha um ataque de diarreia só por falar com esta figura sinistra?
Talvez para compensar os calafrios que Bellamy lhe provocava, Tomás sentiu naquele instante saudades de Ariana. Tinha sido apenas alguns dias antes que se despedira dela e contorcia-se já de nostalgia. Todas as noites sonhava com ela, via-a ao longe e chamava-a, mas Ariana afastava-se, arrastada por uma força desconhecida, como se alguém a sugasse para além do horizonte. Tomás acordava nesses instantes muito angustiado, o coração apertado, um nó na garganta.
Suspirou.
Procurando abstrair-se da presença feminina que o assombrava, baixou os olhos e estudou novamente o postal que mantinha na mão. O espaço do remetente permanecia em branco, mas Tomás sabia que não precisava de mais informações do que aquelas de que já dispunha. Possuía o nome do remetente, esse tal de Tenzing Thubten, e, apesar da morada não ser referenciada, o essencial estava proclamado na outra face do postal, não estava?
Virou o postal e contemplou o belo mosteiro branco e castanho que se erguia por entre a neblina, no topo do promontório, dominando o casario baixo espraiado em redor. Sorriu. Sim, pensou. De fato, não havia quem não conhecesse aquele palácio tibetano.
O Potala.