XXXIX

Percorreram o longo tapete vermelho e atravessaram toda a biblioteca. Luís Rocha parecia um cicerone, guiando Tomás até junto de um enorme retrato emoldurado na parede do fundo, por entre as estantes de livros. Era uma soberba pintura de D. João V, o monarca ao qual a Biblioteca Joanina devia o seu nome. O

físico pousou as suas coisas sobre um elegante piano negro de cauda que se encontrava instalado diante do retrato e fez sinal a Tomás para o seguir.

"Venha daí", disse.

Dirigiu-se a uma coluna do arco de acesso à última sala e, inesperadamente, abriu uma porta disfarçada na parede e mergulhou na sombra. Apesar de apanhado de surpresa, Tomás seguiu no encalço. Escalaram uma escadaria estreita envolta em escuridão e emergiram no primeiro andar, num apertado varandim de madeira, que percorreram até chegarem junto da parte alta do grande retrato. O anfitrião examinou a terceira estante da esquerda, tirou um volume branco, meteu a mão pelo buraco aberto entre os livros, extraiu da sombra uma pasta de cartolina azul-bebê, voltou a guardar o volume no lugar e fez sinal ao seu convidado para regressarem pelo mesmo caminho.

"O que é isso?", perguntou Tomás, intrigado, quando voltaram ao piso térreo.

"Esta é a segunda via", revelou Luís Rocha, sentando-se pesadamente na cadeira ao pé do piano, diante do olhar eternizado em tela de D. João V. "A prova científica da existência de Deus feita pelo professor Siza."

Tomás pousou os olhos na pasta. A cartolina apresentava um aspecto algo gasto e exibia o logótipo da Universidade de Coimbra, com um elástico em volta a fechá-la.

"Mas o que está um manuscrito desta importância aqui a fazer?", admirou-se o historiador. "O professor Siza guardava as suas coisas na Biblioteca Joanina?"

"Não, claro que não. O que se passou foi que, logo após o assalto em que o professor desapareceu, fiquei um pouco... enfim, assustado. Ao inventariar o que tinha sido tirado da casa, verifiquei que o velho manuscrito de Einstein não se encontrava em parte alguma e isso fez-me considerar a possibilidade de toda a investigação estar em perigo. De modo que decidi tirar da casa tudo o que havia relacionado com esta pesquisa. Ainda guardei as coisas no meu apartamento por alguns dias, mas isso pôs-me muito nervoso e acabei por achar que aquele não era igualmente um local seguro. Se assaltaram a casa do professor, poderiam também assaltar a minha, não é verdade? De modo que optei por distribuir algumas coisas pequenas entre os colegas do professor, incluindo o seu pai, por exemplo." Acariciou a cartolina azul. "O problema, no entanto, era o que estava nesta pasta, a segunda via, de longe o documento mais importante. Não lhes queria entregar a pasta para guardarem, mas também não a podia manter em casa, não é? O que fazer?" Fez um gesto na direção da estante de onde a retirara. "Foi então que tive a idéia de esconder a pasta num buraco que eu sabia existir aqui na biblioteca, ali em cima, mesmo ao lado do retrato do rei, detrás de uma fileira de livros."

"Você ficou realmente assustado, hã?"

"Então não havia de ficar? Se, além de raptarem o professor, tinham também levado A Fórmula de Deus, tornou-se evidente para mim que poderia haver uma relação entre o sequestro e a investigação. Como eu estava envolvido na investigação, comecei a sentir-me muito nervoso. Sabia lá se também me viriam bater à porta..."

305


"Pois claro."

Luís Rocha calou-se e olhou em redor. Ergueu os braços e fez um gesto largo com as mãos, abarcando toda a Biblioteca Joanina.

"Sabe, o professor Siza costumava dizer que esta biblioteca é a metáfora da assinatura divina no universo."

"A assinatura divina no universo? Não entendo..."

"É uma imagem inspirada nas conversas que ele teve com Einstein." Apontou para as estantes preenchidas por livros. "Imagine que uma criança entra nesta biblioteca e vê estes livros, todos eles redigidos em línguas desconhecidas, a maior parte em latim. A criança sabe que alguém escreveu os livros e sabe que os livros revelam coisas, claro, embora não saiba quem os escreveu nem o que eles contam. Na verdade, a criança nem sequer compreende latim. Suspeita que toda esta biblioteca está organizada segundo uma ordem, mas essa ordem parece-lhe misteriosa." Pousou a palma das mãos no peito. "Nós estamos como essa criança e o universo é como esta biblioteca. O universo contém leis e forças e constantes criadas por alguém, com objetivos misteriosos e segundo uma ordem incompreensível para nós.

Compreendemos vagamente as leis, captamos as linhas gerais da ordem que tudo organiza, percebemos superficialmente que as constelações e os átomos se movem de determinada forma. Tal como a criança, desconhecemos os pormenores, apenas formamos uma pálida idéia do propósito de tudo isto. Mas há uma coisa de que temos a certeza: toda esta biblioteca foi organizada com uma intenção. Mesmo que não consigamos ler os livros nem jamais venhamos a conhecer os seus autores, o fato é que estas obras contêm mensagens e a biblioteca está organizada em obediência a uma ordem inteligente. Assim é o universo."

"Essa foi a pista dada por Einstein ao professor Siza para se encontrar a segunda via?"

"Não. Essa foi a metáfora que o professor Siza usava para explicar a inteligência intencional do universo, uma metáfora inspirada nas conversas que ele teve com Einstein."

Tomás esboçou uma expressão interrogativa.

"Então qual foi a pista dada por Einstein?"

Luís Rocha retirou o elástico que prendia a pasta e abriu-a, revelando uma resma de documentos e anotações, a maior parte cheia de equações estranhas, incompreensíveis para um leigo. O físico folheou as anotações até detectar uma página em particular.

"Cá está", disse. "Foi esta."

Tomás inclinou-se sobre a anotação.

"O que é isso?"

"É uma frase muito conhecida de Einstein", explicou Luís Rocha. "Disse ele: «o que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente, ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade»."

"Isso é uma pista?"

"Sim. O professor Siza sempre encarou esta frase como a pista para a segunda via e, se formos a ver bem, é fácil perceber porquê. O que Einstein está aqui a colocar é a questão da inevitabilidade de o universo ser como é e a questão do determinismo.

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Ou seja, e esta é a pergunta essencial: se as condições de partida fossem diferentes, quão diferente seria o universo?"

"Hmm."

"Claro que, naquele tempo, esta era uma questão incrivelmente difícil de responder. Faltavam ainda os modelos matemáticos para lidar com ela, por exemplo.

Mas, uma década depois, com o aparecimento da Teoria do Caos, tudo mudou. A Teoria do Caos veio fornecer instrumentos matemáticos muito precisos para lidar com o problema da alteração das condições iniciais de um sistema."

"Não estou a perceber", disse Tomás. "O que entende por condições iniciais?"

"A expressão condições iniciais refere-se ao que aconteceu nos primeiros instantes de criação do universo com a distribuição da energia e da matéria. Mas é preciso também considerar as leis do universo, a organização das diversas forças, os valores das constantes da natureza, tudo, tudo. Olhe, por exemplo, veja o caso das constantes da natureza. Não lhe parece que elas são um elemento crucial neste cálculo?"

"As constantes da natureza?"

"Sim." Franziu o sobrolho, estranhando a pergunta. "Presumo que saiba do que se trata, não?"

"Uh... não."

"Ah, perdão, por vezes esqueço-me de que estou a falar com um leigo", exclamou o físico, levantando a mão a pedir desculpa. "Bem, as constantes da natureza são quantidades que desempenham um papel fundamental no comportamento da matéria e que, em princípio, apresentam o mesmo valor em qualquer parte do universo e em qualquer momento da sua história. Por exemplo, um átomo de hidrogênio é igual na Terra ou numa longínqua galáxia. Mas, mais do que isso, as constantes da natureza são uma série de valores misteriosos que se encontram na raiz do universo e que lhe conferem muitas das suas atuais características, constituindo uma espécie de código que encerra os segredos da existência."

Tomás contraiu o rosto num esgar intrigado.

"Ah, sim? Nunca tinha ouvido falar nisso..."

"Acredito", assentiu Luís Rocha. "Há muita coisa que os cientistas descobriram e que as pessoas comuns pura e simplesmente não conhecem. E, no entanto, estas constantes são algo de fundamental, elas constituem uma misteriosa propriedade do universo e condicionam tudo o que nos rodeia. Descobriu-se que o tamanho e a estrutura dos átomos, das moléculas, das pessoas, dos planetas e das estrelas não resultam de um acaso nem de um processo de seleção, mas dos valores destas constantes. Assim sendo, a questão que o professor Siza colocou foi muito simples: e se os valores das constantes da natureza fossem ligeiramente diferentes?"

"Como assim, diferentes?"

"Olhe, a força da gravidade ser ligeiramente mais fraca ou mais forte do que é, a luz apresentar uma velocidade no vácuo um pouco maior ou um pouco menor do que a que tem, a constante de Planck que determina a mais pequena unidade de energia possuir um valor marginalmente diferente... enfim, esse tipo de coisas. O que aconteceria se ocorressem pequenas alterações nestes valores?"

Fez-se silêncio.

"O que descobriu ele?", perguntou Tomás, mal contendo a curiosidade.

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Luís Rocha inclinou a cabeça.

"Não sei se se lembra, mas quando o senhor esteve na minha primeira aula, aqui há algumas semanas, eu falei no problema do Ômega. Recorda-se disso?"

"Claro."

"O que reteve do que eu disse?"

"Bem... uh... disse que havia dois fins possíveis para o universo. Ou o universo parava a expansão e se retraía, acabando esmagado..."

"O Big Crunch..."

"... ou se expandia infinitamente até se acabar toda a sua energia e transformar-se num cemitério gelado."

"O Big Freeze. E o que provocava isso, lembra-se?"

"Acho que... acho que era a gravidade, não era?"

"Exato", exclamou o físico, fazendo sinal de aprovação. "Vejo que percebeu o que eu disse na aula. Se a velocidade de expansão conseguir vencer a força da gravidade, o universo expandir-se-á eternamente. Se não conseguir, regressará ao ponto de partida, um pouco como uma moeda que se atira para o ar e que acaba por voltar para baixo. Enquanto sobe, a moeda está a vencer a gravidade. Mas, depois, a gravidade acaba por vencê-la."

"É isso, lembro-me desse exemplo."

Luís Rocha ergueu um dedo.

"Só que eu não disse tudo. Existe uma terceira hipótese, que é a da força da expansão ser exatamente igual à força da gravidade de toda a matéria existente. A hipótese de isso acontecer é ínfima, claro, pois seria uma extraordinária coincidência que, considerando os enormes valores que estão em causa, a expansão do universo fosse exatamente contrariada pela gravidade exercida por toda a matéria, não acha?"

"Bem... sim, acho que sim."

"E, no entanto, é isso o que nos diz a observação. O universo está a expandir-se a uma velocidade incrivelmente próxima da linha crítica que separa o universo do Big Freeze do universo do Big Crunch. Já se descobriu que a expansão está em aceleração, o que sugere um futuro de Big Freeze, mas isso não é, nem por sombras, certo. A verdade é que, por incrível que pareça, encontramo-nos na linha divisória entre as duas possibilidades."

"Ah é?"

"É estranho, não lhe parece? E o fato é que isso, meu caro, significa que nos saiu a sorte grande."

"Como assim?"

"É muito simples. Imagine só a descomunal energia libertada no momento da criação do universo. Acha que é possível controlar toda essa gigantesca erupção?"

"Claro que não."

"É evidente que não. Considerando a força bruta do Big Bang, é muito natural que a expansão não possa ser controlada, não é? Essa expansão deveria ou não levar de vencida a força de gravidade de toda a matéria. É infinitamente improvável que a expansão e a gravidade estejam equilibradas. E, no entanto, ambas parecem estar muito próximas de se encontrarem equilibradas, se é que não estão mesmo equilibradas. Isto, meu caro, é o jackpot da lotaria. Repare, sendo o Big Bang um 308


acontecimento acidental e descontrolado, a probabilidade de o universo permanecer para sempre num estado caótico, de máxima entropia, seria colossalmente esmagadora. O fato de haver estruturas de baixa entropia é um mistério muito grande, tão grande que alguns físicos dizem tratar-se de um incrível acaso. Se toda a energia libertada pelo Big Bang fosse uma pequeníssima fração mais fraca, a matéria voltaria para trás e esmagar-se-ia num gigantesco buraco negro. Se fosse marginalmente mais forte, a matéria dispersar-se-ia tão depressa que as galáxias nem sequer se chegariam a formar."

"Quando fala numa fração mais fraca ou mais forte, está a falar em quê? Numa diferença de cinco por cento? De dez por cento?"

Luís Rocha riu-se.

"Não", disse. "Estou a falar em frações inacreditavelmente pequenas, trilionesimais." Luís Rocha pegou numa caneta de feltro. "Olhe, o professor Siza fez as contas e descobriu que, para que o universo pudesse expandir-se de modo ordeiro, essa energia teria de ter uma precisão na ordem de um para 10120. Ou seja..."

Colocou a língua no canto da boca e redigiu o valor.


1000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000

00000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000000

0


O físico mordiscou caneta, mirando este vasto número.

"Quer isto dizer que bastava a afinação ter falhado um bocadinho de nada e o universo não teria a possibilidade de albergar vida. Recuaria para um monumental buraco negro ou dispersar-se-ia sem formar galáxias."

Tomás contemplou aquela enorme extensão de zeros, tentando digerir o seu significado.

"Incrível!" Os olhos voltaram a desfilar por aquela sucessão de algarismos redondos. "Isto equivale a quê? À hipótese de eu ganhar hoje a lotaria?"

Luís Rocha voltou a rir-se.

"Muito menos do que isso", disse. "Olhe, isto equivale à hipótese que você tem de atirar uma seta ao acaso para o espaço e ela atravessar todo o cosmos e ir atingir um alvo com um milímetro de diâmetro localizado na galáxia mais próxima."

"Caramba!", exclamou Tomás, pondo a mão diante da boca. "Isso seria uma sorte inacreditável..."

"Pois seria", concordou o físico. "E, no entanto, a energia do Big Bang tinha este valor tão incrivelmente preciso, situado neste intervalo tão espantosamente estreito. O

mais extraordinário é que foi, de fato, libertada a energia rigorosamente necessária para que o universo se pudesse organizar. Isto é, nem mais nem menos a energia estritamente imprescindível para tal." Folheou mais umas páginas. "Esta surpreendente descoberta levou o professor Siza a embrenhar-se no estudo das condições iniciais do universo."

"O Big Bang?"

"Sim, o Big Bang e o que se lhe seguiu." Pegou nas anotações e folheou-as, até parar numa página. "Por exemplo, a questão da criação da matéria. Quando ocorreu a grande expansão criadora, não havia matéria. A temperatura era imensamente 309


elevada, tão elevada que nem os átomos se conseguiam formar. O universo era então uma sopa escaldante de partículas e antipartículas, criadas a partir da energia e sempre a aniquilarem-se umas às outras. Essas partículas, os quarks e os antiquarks, são idênticas umas às outras, mas com cargas opostas, e, quando se tocam, explodem e voltam a ser energia. À medida que o universo se ia expandindo, a temperatura ia baixando e os quarks e antiquarks foram formando partículas maiores, chamadas hadrões, mas sempre a aniquilarem-se umas às outras. Criou-se assim a matéria e a antimatéria. Como as quantidades de matéria e de antimatéria eram iguais e ambas se aniquilavam mutuamente, o universo apresentava-se constituído por energia e partículas de existência efêmera e não havia hipóteses de se formar matéria duradoura. Está a perceber?"

"Sim."

"O que se passou, no entanto, foi que, por uma razão muito misteriosa, a matéria começou a ser produzida numa quantidade minusculamente maior do que a antimatéria. Para cada dez mil milhões de antipartículas, produziam-se dez mil milhões e uma partículas."

Rabiscou a comparação com a caneta de feltro.


10 000 000 000 Antipartículas

10 000 000 001 Partículas


"Está a ver?", disse, exibindo a anotação. "Uma diferença mínima, quase insignificante, não é? Mas, olhe, foi suficiente para produzir a matéria. Isto é, dez mil milhões de partículas eram destruídas por dez mil milhões de antipartículas, mas sobrava sempre uma que não era destruída. Foi justamente essa partícula sobrevivente que, juntando-se a outras sobreviventes nas mesmas circunstâncias, formou a matéria." Bateu repetidamente com o dedo na anotação. "Ou seja, o professor Siza percebeu que, para a criação do universo, tinha ocorrido mais um acaso extraordinário. Se o número de partículas e antipartículas permanecesse exatamente igual, como parece natural, não haveria matéria." Sorriu. "Sem matéria, nós não estávamos aqui."

"Estou a perceber", murmurou Tomás, assombrado. "Isto é... é espantoso."

"Tudo graças a uma partícula extra." Localizou nova página. "Outra questão onde o universo requer uma incrível afinação é a sua homogeneidade. A distribuição da densidade da matéria é muito homogênea, mas não é totalmente homogênea. Quando ocorreu o Big Bang, as diferenças de densidade eram incrivelmente pequenas e foram sendo amplificadas ao longo do tempo pela instabilidade gravitacional da matéria. O

que o professor Siza descobriu é que esta afinação foi outro inacreditável golpe de sorte. O grau de não uniformidade é extraordinariamente pequeno, na ordem de um para cem mil, exactamente o valor necessário para permitir a estruturação do universo. Nem mais, nem menos. Se fosse marginalmente maior, as galáxias depressa se transformariam em densos aglomerados e formavam-se buracos negros antes de estarem reunidas as condições para a vida. Por outro lado, se o grau de não uniformidade fosse marginalmente mais pequeno, a densidade da matéria seria demasiado fraca e as estrelas não se formariam." Abriu as mãos. "Ou seja, era preciso que a homogeneidade fosse exactamente esta para que a vida fosse possível. As possibilidades de assim ser eram minúsculas, mas ocorreram."

"Estou a ver."

310


"A própria existência das estrelas com uma estrutura semelhante à do Sol, adequada à vida, resulta de um novo golpe de sorte." Desenhou uma estrela numa folha limpa. "Repare, a estrutura de uma estrela depende de um equilíbrio delicado no seu interior. Se a irradiação de calor for demasiado forte, a estrela transforma-se numa gigante azul e se for demasiado fraca a estrela torna-se uma anã vermelha. Uma é excessivamente quente e outra excessivamente fria e ambas provavelmente não têm planetas. Mas a maior parte das estrelas, incluindo o Sol, situa-se entre estes dois extremos, e o que é extraordinário é que os valores para além desses extremos são altamente prováveis, mas não ocorreram. Em vez disso, a relação das forças e a relação das massas das partículas dispõem de um valor tal que parecem ter conspirado para que a generalidade das estrelas se situe no estreito espaço entre os dois extremos, assim possibilitando a existência e predominância de estrelas como o Sol. Altere-se marginalmente o valor da gravidade, da força eletromagnética ou da relação de massas entre o electrão e o protão e nada do que vemos no universo se torna possível."

"Incrível", comentou Tomás, abanando a cabeça. "Não fazia a mínima idéia disto."

Luís Rocha folheou de novo as anotações.

"Depois de analisar as condições iniciais do universo, o professor Siza dedicou a sua atenção às micropartículas." Parou noutra página cheia de equações. "Por exemplo, pôs-se a estudar duas importantes constantes da natureza, justamente esta proporção das massas dos electrões e protões, designada constante Beta, e a força de interacção electromagnética, designada constante da estrutura fina, ou Alfa, e alterou-lhes os valores, calculando as consequências de tal alteração. Sabe o que ele descobriu?"

"Diga."

"Faça-se um pequeno aumento de Beta e as estruturas moleculares ordenadas deixam de ser possíveis, uma vez que é o actual valor de Beta que determina as posições bem definidas e estáveis dos núcleos dos átomos e que obriga os electrões a moverem-se em posições bem precisas em torno desses núcleos. Se o valor de Beta for marginalmente diferente, os electrões começam a agitar-se de mais e impossibilitam a realização de processos muito precisos, como a reprodução do ADN. Por outro lado, é o actual valor de Beta que, em ligação com Alfa, torna o centro das estrelas suficientemente quentes para gerarem reacções nucleares. Se Beta exceder em 0,005 o valor do quadrado de Alfa, não haverá estrelas. Sem estrelas, não há Sol. Sem Sol, não há Terra nem vida."

"Mas as margens são assim tão estreitas?"

"Estreitíssimas. E isto não é tudo."

"Então?"

"Olhe, se Alfa aumentar em apenas quatro por cento, o carbono não poderá ser produzido nas estrelas. E se aumentar apenas 0,1, não haverá fusão nas estrelas.

Sem carbono nem fusão estelar, não haverá vida. Ou seja, para que o universo possa gerar vida, é necessário que o valor da constante da estrutura fina seja exatamente o que é. Nem mais, nem menos."

O físico localizou uma nova folha dos apontamentos.

"Outra coisa que o professor Siza analisou foi a força nuclear forte, aquela que provoca as fusões nucleares nas estrelas e nas bombas de hidrogênio. Ele fez os cálculos e descobriu que, se se aumentar a força forte em apenas quatro por cento, isso faria com que, nas fases iniciais após o Big Bang, todo o hidrogénio do universo se queimasse rápido de mais, convertendo-se em hélio 2. Isso seria um desastre, 311


porque significaria que as estrelas esgotariam depressa o seu combustível e algumas se transformariam em buracos negros antes de existirem condições para a criação de vida. Por outro lado, se se reduzisse a força forte em dez por cento, isso afetaria o núcleo dos átomos de um modo tal que impediria a formação de elementos mais pesados do que o hidrogênio. Ora, sem elementos mais pesados, um dos quais é o carbono, não há vida." Bateu com o indicador naquelas contas. "Ou seja, o professor Siza descobriu que o valor da força forte dispõe de apenas um pequeno intervalo para criar as condições para a vida e, veja só, como que por providencial milagre é justamente nesse estreitíssimo intervalo que a força forte se situa."

"E inacreditável", murmurou Tomás, acariciando distraidamente o queixo.

"Inacreditável."


Mais páginas repletas de insondáveis equações.

"Aliás, a conversão do hidrogênio em hélio, crucial para a vida, é um processo que requer absoluta afinação. A transformação tem de obedecer a uma taxa exacta de sete milésimos da sua massa para energia. Se se baixar uma fracção, a transformação não ocorre e o universo só tem hidrogênio. Se se aumentar uma fração, o hidrogênio esgota-se rapidamente em todo o universo."

Escreveu os valores.


0,006% - só hidrogênio

0,008% - hidrogênio esgotado


"Ou seja, para que exista a vida é necessário que a taxa de conversão do hidrogênio em hélio se situe exatamente neste intervalo. E, olhe a coincidência: situa-se mesmo!"

"Puxa! Mais uma sorte grande..."

"Sorte grande?", riu-se o físico. "Isto não é sorte grande. Isto é o jackpot dos jackpots!" Folheou as anotações. "Agora repare no carbono. Por diversas razões, o carbono é o elemento no qual assenta a vida. Sem carbono, a vida complexa espontânea não é possível, uma vez que só este elemento dispõe de flexibilidade para formar as longas e complexas cadeias necessárias para os processos vitais. Nenhum outro elemento é capaz de o fazer. O problema é que a formação do carbono só é possível devido a um conjunto de circunstâncias extraordinárias." Esfregou o queixo, concentrado na forma como iria explicar o processo. "Para formar o carbono, é preciso que o berílio radioativo absorva um núcleo de hélio. Parece simples, não é? O

problema é que o tempo de vida do berílio radioactivo se limita a uma insignificante fracção de segundo." Gatafunhou o valor.

"Está a ver? O berílio radioativo só dura este instante." Tomás tentou avaliar quanto tempo seria aquele micronésimo de segundo.

"Mas isto não é nada", observou. "Nada de nada."

"Pois é", concordou o físico. "E, no entanto, é justamente neste período incrivelmente curto que o núcleo do berílio radioativo tem de localizar, colidir e absorver um núcleo de hélio, criando assim o carbono. A única forma de isto ser possível num instante tão efêmero é o das energias destes núcleos serem exatamente 312


iguais no momento em que colidem. E, nova surpresa, são mesmo iguais!" Piscou o olho. "Hã? Grande sorte! Se houvesse uma discrepância ligeiríssima, mínima que fosse, não se poderia formar carbono. Mas, por extraordinário que pareça, não existe qualquer discrepância. Graças a um brutal golpe de sorte, a energia dos constituintes nucleares das estrelas situa-se exatamente no ponto adequado, permitindo a fusão."

"É incrível", comentou Tomás.

"Mas olhe que houve ainda outro espantoso golpe de sorte", adiantou Luís Rocha.

"É que o tempo de colisão do hélio é ainda mais efémero do que o curtíssimo tempo de vida do berílio radioactivo, e isso permite a reacção nuclear que produz o carbono.

Para além do mais, há o problema do carbono sobreviver à subsequente actividade nuclear dentro da estrela, o que só é possível em condições muito especiais. E, veja só!, graças a uma nova e extraordinária coincidência, essas condições reuniram-se e o carbono não se transforma em oxigênio." Sorriu. "Admito que, para um leigo, isto pareça chinês. Mas garanto-lhe que um físico achará que tudo isto é uma sorte absolutamente inacreditável. São quatro jackpots numa única chave!"

"Caramba", riu-se Tomás. "Vamos ficar milionários!"

Luís Rocha pegou na resma de folhas repletas de anotações e contas e exibiu-as ao seu interlocutor.

"Está a ver isto? Está tudo cheio de descobertas do gênero. Eu e o professor Siza passamos os últimos anos a detectar e a coleccionar coincidências improváveis que são absolutamente imprescindíveis para que haja vida. A incrível afinação requerida nas diversas forças, na temperatura do universo primordial, na sua taxa de expansão, mas também as extraordinárias coincidências necessárias no nosso próprio planeta.

Por exemplo, o problema da inclinação do eixo de um planeta. Devido às ressonâncias entre a rotação dos planetas e o conjunto dos corpos do sistema solar, a Terra deveria ter uma evolução caótica na inclinação do seu eixo de rotação, o que, como é óbvio, impediria a existência de vida. Um hemisfério poderia passar seis meses a tostar ao Sol, sem nenhuma noite, e outros seis meses a gelar à luz das estrelas. Mas o nosso planeta teve uma sorte inacreditável. Sabe qual foi?"

"Não."

"O aparecimento da Lua. A Lua é um objeto tão grande que os seus efeitos gravitacionais moderaram o ângulo de inclinação do nosso planeta, assim viabilizando a vida."

"Caramba, até a Lua!"

"É verdade", concordou o físico. "Sabe, todos os pormenores parecem conspirar para viabilizar a vida na Terra. Olhe, o fato de a Terra possuir níquel e ferro líquido em quantidade suficiente no núcleo para gerar um campo magnético imprescindível para defender a atmosfera das letais partículas emitidas pelo Sol. Isso é uma sorte. Outra extraordinária coincidência é o fato de o carbono ser o elemento sólido mais abundante no espaço térmico em que a água é líquida. A própria órbita da Terra é crucial. Cinco por cento mais próxima do Sol ou quinze por cento mais afastada bastaria para impossibilitar o desenvolvimento de formas complexas de vida." Voltou a colocar a resma dentro da pasta. "Enfim, a lista de coincidências e improbabilidades é aparentemente infindável."

Tomás remexeu-se na sua cadeira.

"Estou a perceber", disse, ainda tentando extrair um significado de toda aquela informação. "Mas o que quer dizer tudo isto?"

"Não é óbvio?", admirou-se o físico. "Isto quer dizer que não foi apenas a vida que se adaptou ao universo. O próprio universo preparou-se para a vida. De certo modo, é 313


como se o universo sempre soubesse que nós vínhamos aí. A nossa mera existência parece depender de uma extraordinária e misteriosa cadeia de coincidências e improbabilidades. As propriedades do universo, tal como estão configuradas, são requisitos imprescindíveis para a existência de vida.

Essas propriedades poderiam ser infinitamente diferentes. Todas as alternativas conduziriam a um universo sem vida. Para haver vida, um grande número de parâmetros teria de estar afinado para um valor muito específico e rigoroso. E o que descobrimos nós? Essa afinação existe." Fechou a pasta. "Chama-se a isto Princípio Antrópico."

"Como?"

"Princípio Antrópico", repetiu o físico. "O Princípio Antrópico significa que o universo está concebido de propósito para criar vida."

Tomás abriu a boca.

"Estou a entender."

"Essa é a única explicação para o inacreditável rol de coincidências e improbabilidades que nos permitem estar aqui."

O historiador coçou a cara, pensativo.

"Isto é realmente esmagador", admitiu. "Mas pode ser tudo fruto do acaso, não pode? Quer dizer, é altamente improvável que eu ganhe a loteria, claro. Mas, afinal de contas, a loteria tem de sair a alguém, não tem? A lei das probabilidades diz que sim.

É evidente que, na perspectiva da pessoa a quem sai a loteria, tudo isto parece altamente improvável. O fato, porém, é que alguém tinha de ganhar a loteria."

"É verdade", concordou Luís Rocha. "Só que, neste caso, estamos a falar em múltiplas loterias. Repare, saiu-nos a sorte grande quanto à afinação da expansão do universo, quanto à afinação da temperatura primordial, quanto à afinação da homogeneidade da matéria, quanto à ligeiríssima vantagem da matéria sobre a antimatéria, quanto à afinação da constante da estrutura fina, quanto à afinação dos valores das forças forte, electrofraca e da gravidade, quanto à afinação da taxa de conversão do hidrogênio em hélio, quanto ao delicado processo de formação do carbono, quanto à existência no núcleo da Terra dos metais que criam o campo magnético, quanto à órbita do planeta... enfim, quanto a tudo. Bastava os valores serem marginalmente diferentes num único destes fatores e, puf!, não havia vida. Mas não, eles coincidem todos. É extraordinário, não acha?" Fez um gesto vago com a mão.

"Olhe, é um pouco como se eu fosse dar uma volta ao mundo e comprasse um bilhete da lotaria em cada país por onde passasse. Quando mais tarde chegasse a casa, descobria que me tinha saído a sorte grande em todos os bilhetes que comprei. Todos!"

Riu-se. "É evidente que poderia ter uma sorte fantástica e sair-me a loteria num desses países. Já seria absolutamente extraordinário, no entanto, se me saísse a lotaria em dois países. Mas, se me saísse a loteria em todos os países, alto lá! Logo se desconfiava, não é? Não é preciso ser-se um grande gênio para perceber que teria de haver algo de anormal a acontecer... uma marosca, sei lá. Com toda a certeza estava aqui montado um esquema qualquer, não acha? Pois foi isso justamente o que aconteceu à vida. Saiu-lhe a sorte grande em todos os parâmetros. Todos!" Ergueu um dedo. "Portanto, só há uma conclusão a tirar: está aqui montado um esquema qualquer. Há marosca no ar."

"Pois, realmente... uh... parece de fato um pouco inexplicável toda esta sorte.

Quando a esmola é grande, o pobre desconfia, não é?"

Luís Rocha inclinou-se na cadeira.

314


"O que eu lhe quero dizer, professor Noronha, é que, quanto mais observamos e analisamos o universo, mais concluímos que ele revela as duas características fundamentais inerentes à ação de uma força inteligente e consciente." Ergueu o polegar esquerdo. "Uma é a inteligência com que tudo está concebido." Acrescentou o indicador esquerdo. "Outra é a intenção de planear as coisas para criar vida. O

Princípio Antrópico revela-nos que há intenção na concepção da vida. A vida não é um acidente, não é fruto do acaso, não é o produto fortuito de circunstâncias anormais. É

o resultado inevitável da mera aplicação das leis da física e dos misteriosos valores das suas constantes." Fez uma pausa, aumentando o efeito dramático das suas palavras.

"O universo está concebido para criar vida."

As palavras ressoaram pela Biblioteca Joanina, desfazendo-se no silêncio como uma nuvem no céu.

"Estou a ver", murmurou Tomás. "É espantoso. O que esta segunda via revela é...

é assombroso, no mínimo."

"Sim", concordou Luís Rocha. "A descoberta do Princípio Antrópico constitui a segunda via da confirmação da existência de Deus." Voltou atrás na resma, localizando uma folha que já consultara. "Lembra-se da pista lançada por Einstein?"

"Sim."

O físico leu as anotações nessa folha.

"Einstein disse, e passo a citar: «o que realmente me interessa é saber se Deus poderia ter feito o mundo de uma maneira diferente, ou seja, se a necessidade de simplicidade lógica deixa alguma liberdade»." Fitou Tomás. "Sabe qual é a resposta a esta questão?"

"A luz do que me disse, só pode ser não."

"Nem mais. A resposta é não." Luís Rocha abanou a cabeça. "Não, Deus não poderia ter feito o mundo de maneira diferente." Franziu o sobrolho e esboçou um sorriso leve, quase malicioso. "Mas há mais uma coisa que ainda não lhe disse."

"Mais uma? O quê?"

"Como é evidente, o Princípio Antrópico constitui um poderosíssimo indício da existência de Deus. Quer dizer, se tudo está assim tão inacreditavelmente afinado para possibilitar a existência de vida, então é porque o universo foi, de facto, concebido para a criar, não é? Mas mantém-se uma dúvida residual. Ela é muito pequena, absolutamente ínfima, mas permanece lá, como um espinho cravado no pé, um incômodo escolho que nos impede de ter a certeza absoluta." Baixou a voz, quase falando num sussurro. "E se tudo não passar de um monumental acaso? E se estas circunstâncias todas resultarem de um extraordinário jogo fortuito de espantosas coincidências? Ganhamos múltiplas loterias cósmicas, é certo e incontestável, mas, por muito improvável que isso nos pareça, há sempre a minúscula possibilidade de ter sido tudo um gigantesco acidente, não há?"

"Sim, claro", concordou Tomás. "Essa possibilidade existe."

"E, enquanto essa vaga possibilidade existir, não se pode dizer com toda a segurança que o Princípio Antrópico seja a prova final, pois não? É um poderoso indício, é verdade, mas não é ainda a prova."

"Pois. De fato, não é ainda a prova, não."

"Esta remota possibilidade de ser tudo um monumental acidente andou muito tempo a perturbar o professor Siza. Ele achava que esta desconfortável situação, esta maçadora incerteza marginal, fazia parte das habituais sutilezas de Deus, já descritas 315


por Einstein. Isto é, tal como os teoremas da Incompletude mostram que não se pode provar a coerência de um sistema matemático, embora as suas afirmações não demonstráveis sejam verdadeiras, esta longínqua possibilidade impedia que ficasse provada, para além de qualquer dúvida, a existência de uma força inteligente e consciente por detrás da arquitectura do universo. Parecia ao professor Siza que Deus se voltava a esconder por entre o jogo de espelhos de uma derradeira subtileza, subtraindo a prova justamente quando estávamos prestes a tocá-la."

"Compreendo."

"Até que, no início deste ano, o professor Siza teve uma epifania."

"Perdão?"

"Fez-se-lhe luz."

"Como assim, fez-se-lhe luz?"

"O professor Siza estava um dia no seu gabinete a calcular o comportamento caótico dos electrões num campo magnético quando, de repente, teve a idéia que, de uma assentada, resolvia a derradeira incerteza e transformava o Princípio Antrópico, não apenas num poderoso indício da existência de Deus, mas na prova final."

Tomás voltou a remexer-se na cadeira. Inclinou-se um tudo-nada para a frente e estreitou os olhos.

"A prova final? Ele conseguiu a prova final?"

Luís Rocha manteve o sorriso suave.

"A prova final radica no problema do determinismo."

"Não entendo."

"Como já lhe disse, Kant escreveu certa vez que há três questões que nunca serão resolvidas: a existência de Deus, a imortalidade e a livre vontade. O professor Siza, no entanto, acreditava que estas questões, para além de serem resolúveis, estavam ligadas entre si." Pigarreou. "O problema da livre vontade é o de saber até que ponto nós somos livres nas nossas decisões. Durante muito tempo pensou-se que éramos, mas as descobertas científicas foram gradualmente limitando o campo da nossa liberdade. Foi-se descobrindo que as nossas decisões, embora pareçam livres, são na verdade condicionadas por um sem-número de fatores. Por exemplo, se eu decido comer, essa decisão foi realmente tomada pela minha consciência ou por uma necessidade biológica do meu corpo? A pouco e pouco começou a perceber-se que as nossas decisões não são verdadeiramente nossas. Tudo o que fazemos corresponde ao que nos impõem as nossas características intrínsecas, como o ADN, a biologia e a química do nosso corpo, para além de outros factores, em interacção dinâmica e complexa com fatores exteriores, como a cultura, a ideologia e todos os múltiplos acontecimentos que ocorrem na nossa vida. Por exemplo, descobriu-se que há pessoas que são tristes, não porque a sua vida seja triste, mas pela simples razão de que o seu corpo não produz seretonina, uma substância que regula o humor. Assim sendo, muitas das ações dessas pessoas deprimidas têm origem nessa sua insuficiência química e não no livre-arbítrio. Está a perceber?"

"Estar, estou", disse Tomás, hesitante. "O meu pai já me tinha falado nisso e confesso que continua a parecer-me um pouco chocante."

"O quê?"

"Essa idéia de que não dispomos de livre vontade, de que o livre-arbítrio não passa de uma

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ilusão. Parece que não passamos de uns meros robôs..."

"Talvez, admito que sim", concordou Luís Rocha. "Mas olhe que é o que a ciência de certo modo concluiu. Repare, a matemática é determinista. Dois e dois são sempre quatro. A física é a aplicação da matemática no universo, com a matéria e a energia a obedecerem a leis e forças universais. Quando um planeta gira à volta do Sol ou um electrão à volta do núcleo do átomo, isso não acontece porque lhes apetece, mas porque a isso as leis da física os obrigam. Está claro?"

"Sim, tudo isso é evidente."

"Agora repare. A matéria tende a organizar-se espontaneamente, em obediência às leis do universo. Essa organização implica uma complexificação, não é? Ora, a partir de um determinado limiar em que os átomos se organizam em elementos, o seu estudo deixa de pertencer ao campo da física e transfere-se para a química. Ou seja, a química é a física complexificada. Quando os químicos se começam a complexificar ainda mais, nascem os seres vivos, que se caracterizam pela sua capacidade de se reproduzirem e pelo seu comportamento teleológico, isto é, por agirem em função de um objetivo: a sobrevivência. O que eu quero dizer com isto é que a biologia é a química complexificada. Quando a biologia se torna muito complexa, emerge a inteligência e a consciência, cujos comportamentos, por vezes, parecem bizarros, não obedecendo aparentemente a nenhuma lei. Mas os psicólogos e os psiquiatras já demonstraram que todos os comportamentos têm uma razão de ser, não ocorrem espontaneamente nem por obra e graça do Espírito Santo. Podemos não nos aperceber das suas causas, mas elas existem. Há até experiências documentadas que mostram que o cérebro toma uma decisão de actuar antes de a consciência se aperceber disso.

O cérebro toma a decisão e depois informa a consciência dessa decisão, mas isso é feito com tal sutileza que a consciência passa a acreditar que foi ela que tomou a decisão. Isto significa que a psicologia é a biologia complexificada. Está a seguir o meu raciocínio?"

"Sim."

"Muito bem. O que eu estou a tentar dizer com isto tudo é que, quando se procura a raiz mais simples das coisas, verifica-se que a consciência tem por base a biologia, que tem por base a química, que tem por base a física, que tem por base a matemática. Ora, lembro-lhe mais uma vez que um electrão não vira para a direita ou para a esquerda porque lhe apetece, porque exibe livre vontade, mas porque a isso as leis da física o compelem. O comportamento do electrão pode ser indeterminável, devido à sua extrema complexidade caótica, mas está determinado." Pôs a mão no peito. "Como nós somos todos feitos de átomos, organizados de uma forma extraordinariamente complexa pelas leis da física, o nosso comportamento é também determinista. Mas, tal como o electrão, o nosso comportamento é igualmente indeterminável, uma vez que resulta de uma inerente complexidade caótica. Um pouco como o estado do tempo. A meteorologia está determinada mas é indeterminável, devido à complexidade dos factores e ao problema do infinito, e pequenas alterações nas condições iniciais provocam resultados imprevisíveis a prazo. É a velha história do bater de asas de uma borboleta que pode provocar uma tempestade no outro lado do planeta daqui a um tempo. Também os psiquiatras dizem que um acontecimento na infância pode condicionar o comportamento de um indivíduo na idade adulta, não é?

E o que é isso senão o efeito borboleta aplicado à escala humana?"

"Estou a perceber."

"O que eu quero com isto dizer é que, embora as nossas decisões pareçam livres, na verdade não são. Muito pelo contrário, todas elas são condicionadas por fatores de cuja influência não temos, na maior parte das vezes, a mínima noção."

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"Mas isso é terrível", observou Tomás. "Significa que não somos donos de nós mesmos. Se já está tudo determinado, para que é que nos vamos preocupar em... uh, sei lá, em olhar para os dois lados quando atravessamos uma rua?"

"Você está a confundir determinismo com fatalismo."

"Mas, se formos a ver bem, não são os dois a mesma coisa?"

"Não, não são. De um ponto de vista macrocósmico, tudo está determinado. Mas, do ponto de vista do microcosmos de cada pessoa, nada parece determinado porque ninguém sabe o que vai acontecer a seguir. Há muitos fatores externos que nos obrigam a tomar decisões. Por exemplo, se começa a chover, decidimos abrir o guarda-chuva. Essa decisão foi nossa, embora já estivesse determinada porque, ainda que não o soubéssemos, as leis da física conspiraram para que fosse chover naquele instante e o software incorporado na nossa mente determinou que o guarda-chuva era a resposta adequada àquela situação exterior. Está a perceber? A livre vontade é um conceito do presente. Mas o fato é que não temos possibilidade de alterar o que fizemos no passado, pois não? Está feito. Isso significa que o passado se encontra determinado.

Ora, se passado e futuro existem ambos, embora em planos diferentes, o futuro também está determinado."


"O problema mantém-se", insistiu Tomás. "Não passamos de marionetes."

"Não pense assim", disse o físico. "Pense num jogo de futebol."

"Num jogo de futebol?"

"Imagine que você tem gravado o Itália-França da Final do Mundial 2006.

Quando o jogo decorre, os jogadores estão a tomar decisões livres, não estão? Pegam na bola e atiram-na para um lado ou para o outro. Só que, ao ver a gravação, sabemos que tudo está determinado. O jogo vai acabar 1-1 e a Itália vai ganhar nos penaltis.

Façam os jogadores o que fizerem naquela gravação, o resultado está determinado, nunca o conseguirão alterar. No final do DVD, a Itália ganha. Mais do que isso, todas as ações dos jogadores, que são livres naquele momento, estão já determinadas. Até a cabeçada do Zidane no Materazzi." Sorriu. "Pois a vida é como um jogo gravado.

Tomamos decisões livres, mas elas já estão determinadas."

"Estou a perceber, mas isso não me consola", insistiu Tomás. "Feitas as contas, tal significa na mesma que não somos donos de nós próprios."

Luís Rocha manteve os olhos cravados no seu interlocutor.

"Tal significa algo de muito mais importante do que isso, meu caro", sentenciou.

"Muito mais."

"Muito mais importante?", admirou-se o historiador. "Em que sentido?"

O físico deixou passar um instante enquanto considerava a melhor maneira de prosseguir a sua explicação.

"Lembra-se do Demônio de Laplace?"

"Uh... mais ou menos."

"Como sabe, a ciência descobriu que todos os acontecimentos têm causas e efeitos, sendo que as causas já são efeitos de um acontecimento anterior e os efeitos se tornam causas de acontecimentos seguintes. Tem isto presente, não tem?"

"Claro."

"Levando às últimas consequências o incessante processo das causas e efeitos, o marquês de Laplace determinou, no século XVIII, que o atual estado do universo é 318


efeito do seu estado anterior e causa daquele que se lhe seguirá. Se conhecermos todo o estado presente de toda a matéria, energia e leis, até ao mais ínfimo pormenor, conseguiremos calcular todo o passado e todo o futuro. Para recorrer à expressão utilizada pelo próprio Laplace, o futuro e o passado estariam nesse caso presentes aos nossos olhos." Apontou para Tomás. "E agora pergunto eu: qual a consequência desta constatação?"

O historiador suspirou.

"Está tudo determinado."

"Bingo!", exclamou Luís Rocha. "Está tudo determinado. De um certo modo, o passado e o futuro existem. Ora, da mesma maneira que não podemos alterar o passado, também não podemos alterar o futuro, uma vez que ambos são a mesma coisa em tempos diferentes. Isto quer dizer que, se o passado está determinado, então o futuro também está determinado. Percebe? Aliás, esta descoberta foi confirmada pelas teorias da Relatividade, cujas equações são deterministas e estabelecem implicitamente que tudo o que aconteceu e acontecerá se encontra inscrito em toda a informação inicial do universo. Lembre-se que espaço e tempo são diferentes manifestações de uma mesma unidade, um pouco como o yin eo yang, de tal modo que Einstein concebeu o conceito de espaço-tempo. Assim, do mesmo modo que Lisboa e Nova Iorque existem, mas não no mesmo espaço, o passado e o futuro existem, mas não no mesmo tempo. De Lisboa não consigo ver Nova Iorque, da mesma maneira que do passado não consigo ver o futuro, embora ambos existam."

"Hmm-hmm."

"As teorias da Relatividade mostraram, por outro lado, que o tempo decorre de modo diferente em diversos sítios do universo, condicionado pela velocidade da matéria e pela força da gravidade. Os acontecimentos A e B ocorrem em simultâneo num ponto do universo e decorrem desfasadamente noutros lugares, num ponto primeiro o A e depois o B, enquanto num terceiro ponto ocorre primeiro o B e depois o A. Isto quer dizer que, num ponto do universo, o B ainda não ocorreu, mas vai ocorrer.

Aconteça o que acontecer, vai ocorrer porque isso está determinado." Inclinou a cabeça, sempre de olhos fixos em Tomás. "E, pergunto-lhe eu agora, quando é que tudo foi determinado?"

"Quando?"

"Sim, quando?"

"Uh... sei lá! No início, suponho eu."

"Nem mais", exclamou Luís Rocha. "Tudo foi determinado no início, no instante em que o universo se formou. A energia e a matéria foram distribuídas de determinada forma e as leis e os valores das constantes foram concebidos de determinada maneira, e isso determinou logo ali a história que toda aquela matéria e energia teriam daí para a frente. Está a perceber?"

"Sim..."

"E não está a ver a relação que tudo isso tem com o Princípio Antrópico?"

Tomás hesitou, procurando a ligação entre as duas coisas. Mas a hesitação durou apenas um breve instante, o momento de inspirar e expirar, porque logo arregalou os olhos e, afogueado, estarrecido, viu enfim a prova completar-se.

"Uh... caramba", balbuciou, na atrapalhação embasbacada de quem vê a verdade emergir como uma luz que encadeia. "Isto... uh... isto é... é incrível."

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"O que eu quero dizer é que o fato de estar tudo determinado significa que tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá está previsto desde o nascer do tempo. Mesmo esta nossa conversa já estava prevista. É como se nós fôssemos actores num palco colossal, cada um a interpretar o seu papel, em obediência a um monumental guião escrito por um argumentista invisível quando o universo começou." Deixou a ideia assentar. "Está tudo determinado."

"Meu Deus..."

"E é este o argumento que faltava e que, aos olhos do professor Siza, veio transformar o Princípio Antrópico em prova da existência de Deus. O universo foi concebido com um engenho tal que denuncia inteligência e com uma afinação tal que denuncia um propósito. A nossa existência não tem a mínima hipótese de ser acidental pelo simples facto de que tudo está determinado desde o início."


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