XXXV

A fila dos visitantes extracomunitários era enorme e lenta, mas Tomás tinha a esperança de contornar o problema. Deixou Ariana na fila e aproximou-se dos guichets da polícia fronteiriça, procurando perceber se os contactos feitos antes de partirem de Lhasa tinham produzido os resultados combinados. Não detectou a presença que esperava encontrar e, irritado, pegou no telemóvel e ligou-o; teve ainda de aguardar que o aparelho captasse rede e só quando ia finalmente digitar o número viu o rosto familiar emergir por detrás dos guichets.

"Hi, Tomás", saudou Greg Sullivan, sempre com aquele ar penteadinho e limpinho que o fazia confundir-se com um mórmon. "Estou aqui."

O recém-chegado quase suspirou de alívio.

"Olá, Greg", exclamou, com um grande sorriso. "Está tudo tratado?""

O adido americano fez sinal a um homem baixo, de bigode escuro e barriguinha redonda, e ambos cruzaram a barreira alfandegária e vieram ter com Tomás.

"Este é mister Moreira, diretor dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras aqui no aeroporto", disse Greg, apresentando o desconhecido.

Cumprimentaram-se e Moreira foi direito ao assunto.

"Onde está a senhora em questão?", inquiriu o responsável do SEF, perscrutando a fila dos passageiros extracomunitários.

Tomás fez um movimento com a cabeça e Ariana abandonou a fila, juntando-se aos três homens. Feitas as apresentações, Moreira conduziu-os para lá da zona alfandegária e seguiu para um pequeno gabinete, deixando a iraniana entrar primeiro.

Tomás deu um passo para seguir atrás dela, mas o pequeno homem colocou-se-lhe no caminho.

"Vou só resolver a burocracia com a senhora", disse, cortês mas firme. "Os senhores podem aguardar aqui."

Tomás deixou-se ficar à porta, um pouco contrariado, vendo pelo vidro Ariana sentar-se dentro do gabinete a preencher sucessivas resmas de papéis que Moreira lhe ia entregando.

"Está tudo controlado", disse Greg.

O americano ajeitou a sua gravata vermelha.

"Ouça, Tomás, explique-me um pouco melhor o que está a acontecer", pediu.

"Quando você telefonou de Lhasa, confesso que não percebi muito bem os pormenores."

"Não percebeu porque não lhos contei. Ao telefone não dava, não é?

"Claro. Mas então o que se passa?"

"O que se passa é que temos andado todos à procura de uma coisa que não existe."

"Ah, sim? O quê?"

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"A fórmula para a construção fácil de uma bomba atômica barata. Essa fórmula não existe."

"Não existe? Como assim?"

"Não existe, estou-lhe a dizer."

"Então o que é aquele manuscrito que tanto preocupa mister Bellamy?"

"É um documento científico encriptado onde Einstein provou que a Bíblia registrou a história do universo e onde incluiu uma fórmula que supostamente prova a existência de Deus."

Greg esboçou uma careta incrédula.

"Mas do que é que você está para aí a falar?"

"Estou a falar d'A Fórmula de Deus. O manuscrito de Einstein que os iranianos têm na sua posse não é um documento sobre armas nucleares, como se pensava, mas antes um texto relativo a Deus e à prova feita pela Bíblia sobre a Sua existência."

O americano abanou a cabeça, como se a mente estivesse ainda demasiado preguiçosa e a tentasse despertar.

"Sorry, Tomás, mas isso não faz sentido nenhum. Então Einstein fez um documento a dizer que a Bíblia prova a existência de Deus? Mas isso qualquer criança da quarta classe lhe pode dizer..."

"Greg, você não está a perceber", insistiu Tomás, impaciente e cansado. "Einstein descobriu que a Bíblia expõe a criação do universo com informações que só agora a ciência, recorrendo à física mais avançada, descobriu serem verdadeiras. Por exemplo, a Bíblia estabelece que o Big Bang ocorreu há quinze mil milhões de anos, coisa que os satélites que analisam a radiação cósmica de fundo estão a agora a confirmar. A questão é: como podiam os autores do Antigo Testamento saber isso há milhares de anos?"

Greg manteve o ar cético.

"A Bíblia diz que o Big Bang ocorreu há quinze mil milhões de anos?", admirou-se. "Nunca ouvi falar em tal coisa." Fez um trejeito com a boca. "Só me lembro dos seis dias da Criação..."

Tomas suspirou, exasperado.

"Esqueça. Eu depois explico tudo ao pormenor, está bem?"

O americano permaneceu um longo momento a observá-lo.

"Hmm", murmurou. "O que me interessa aqui é a questão da bomba atômica.

Você tem a certeza de que o manuscrito de Einstein não contém a fórmula de uma bomba atômica de fabrico fácil?"

"Tenho."


"Mas você viu o manuscrito?"

"Claro que vi. Foi em Teerã."

"Isso já eu sei. O que eu quero saber é se você já o leu."

"Não, isso não li."

"Então como pode ter a certeza do que está a dizer?"

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"Porque falei com um antigo físico tibetano que trabalhou com Einstein e o professor Siza em Princeton."

"E ele disse-lhe que o manuscrito não é sobre a bomba atômica?"

"Disse."

"E você confirmou essa informação?"

"Confirmei."

"Como?"

Tomás indicou com a cabeça o gabinete do director do SEF.

"A Ariana leu o manuscrito original e confirmou que bate tudo certo."

Greg virou a cara e mirou a iraniana no outro lado do vidro a preencher os documentos da imigração.

"Ela leu o manuscrito, é?"

"Sim."

O adido permaneceu um longo momento com os olhos cravados em Ariana, sempre meditativo, até tomar uma decisão.

"Desculpe", disse para Tomás. "Preciso de ir ali tratar de uns detalhes."

Tirou o telemóvel do bolso e afastou-se, desaparecendo por um dos corredores do aeroporto de Lisboa.

A burocracia levou uma eternidade a ser despachada, com papéis para lá e para cá, telefonemas a multiplicarem-se e carimbos a serem batidos sobre os documentos.

Greg regressou entretanto e, pouco depois, foi chamado ao gabinete do director do SEF. Tomás viu-os pelo vidro a conversarem, até que ele e a iraniana despediram-se de Moreira e dirigiram-se à porta.

"Ela agora fica à nossa guarda", anunciou Greg ao abandonar o gabinete.

"Como assim, à nossa guarda?", admirou-se Tomás.


"Quero dizer, à guarda da embaixada americana."

O historiador fitou o adido com ar intrigado.

"Não estou a perceber", exclamou. "Os papéis não estão regularizados?"

"Estão, claro que estão. Mas ela fica à nossa guarda. Vai agora para a embaixada."

Tomás olhou para Ariana, que lhe parecia assustada, e depois para Greg de novo, sem entender bem a idéia.

"Vai para a embaixada? Ela? A que propósito?"

O adido encolheu os ombros.

"Temos de a interrogar."

"Interrogar? Mas... o que há para interrogar?"

Greg pousou-lhe a mão sobre o ombro, quase paternal.

"Ouça, Tomás. A doutora Ariana Pakravan é uma figura com responsabilidades dentro do programa nuclear iraniano. Temos de a interrogar, não é?"

"Mas o que é isso de interrogar? Vão falar com ela durante uma hora?"

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"Não", disse o americano. "Vamos falar com ela durante vários dias."

Tomás abriu a boca, perplexo.

"Vários dias a interrogá-la? Nem pensar!" Estendeu o braço e pegou na mão de Ariana. "Anda, vamos embora."

Puxou-a, fazendo tenções de prosseguir o caminho, mas Greg travou-o.

"Tomás, não torne isto difícil, por favor."

O historiador olhou-o com ar irritado.

"Desculpe, Greg, há aqui um engano qualquer. Vocês é que estão a tornar difícil o que não tem dificuldade nenhuma."

"Ouça-me, Tomás..."

"Não, você é que tem de me ouvir." Colou-lhe o indicador ao peito. "Nós combinámos ao telefone que a Ariana poderia vir para Portugal e que vocês tratariam de tudo. Combinamos que ela seria uma pessoa livre e que vocês apenas nos dariam protecção em caso de ameaça dos iranianos.

Façam o favor de cumprir o prometido."

"Tomás", disse Greg, cheio de paciência. "Toda essa combinação foi feita no pressuposto de que vocês nos entregariam o segredo do manuscrito de Einstein."

"E já entregamos."

"Então qual é a fórmula de Deus?"

Tomás estacou, buscando uma resposta na sua mente e não encontrando nenhuma.

"Uh... isso ainda estou a desvendar."

O rosto de Greg abriu-se num sorriso triunfal.

"Está a ver? Você não cumpriu a sua parte."

"Mas vou cumprir."

"Acredito, acredito. O problema é que ainda não cumpriu. E, enquanto não cumprir a sua parte do acordo, não nos pode exigir nada, não é verdade?"

Tomás não largou a mão de Ariana, que lhe implorava ajuda com os olhos.

"Ouça, Greg. Por causa desta história passei uns dias numa cadeia de Teerã e fui sequestrado por uns gorilas em Lhasa. Além do mais, tenho ainda esses energúmenos à perna, pelo que não há ninguém mais motivado nem mais interessado do que eu em deslindar todo este mistério e pôr fim a esta situação de doidos. Depois de ter passado por tudo isto, a única coisa que eu peço é que deixem a Ariana vir comigo para Coimbra. Não é pedir muito, pois não?"

Dois homens corpulentos apareceram nesse instante e cumprimentaram Greg com uma saudação militar. Era evidente que se tratava de dois seguranças americanos, provavelmente soldados à paisana da embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, chamados ao aeroporto para escoltarem Ariana.

Tomás abraçou de imediato a iraniana, como se assim assumisse o compromisso solene de a proteger, contra tudo e contra o que mais viesse. O adido cultural mirou o casal e abanou a cabeça.

"Eu compreendo tudo, a sério que compreendo", disse. "Mas tenho as minhas ordens e não posso deixar de as cumprir. Informei Langley de tudo o que você me 278


disse há pouco e Langley contactou as autoridades portuguesas e deu-me novas instruções. A doutora Pakravan é nossa convidada e terá de nos acompanhar até à embaixada."

"Nem pensar."

"Ela virá conosco", sentenciou Greg. "De preferência a bem."

Tomás apertou Ariana ainda com mais força.

"Não."

O americano respirou fundo.

"Tomás, não torne as coisas difíceis."

"Vocês é que estão a tornar tudo difícil."

Greg fez um gesto com a cabeça e os dois seguranças deitaram a mão a Tomás, torcendo-lhe o braço e puxando-o como se ele fosse tão pesado quanto uma almofada.

O historiador contorceu o corpo, num esforço desesperado para libertar o braço, mas sentiu uma pancada na nuca e tombou no chão. Ouviu Ariana gritar e, apesar de se encontrar atordoado, tentou erguer-se, mas um braço firme como o aço manteve-o imobilizado.

“Deixa estar, Tomás", ouviu-a dizer, a voz estranhamente calma, quase maternal.

"Eu vou ficar bem, não te preocupes." Mudou de tom, tornando-se ríspida. "Vocês deixem-no, ouviram? Nem se

atrevam a tocar-lhe."

"Não se preocupe, doutora. Ele vai ficar bem. Venha comigo."

"Tire a mão, seu porco. Eu sei caminhar sozinha."

As vozes foram-se afastando até deixarem de se ouvir. Só nessa altura o segurança que o mantinha pregado ao chão, o rosto colado ao piso frio de granito polido, o libertou, deixando-o enfim erguer a cabeça e olhar em redor. Sentiu uma tontura e tentou orientar-se. Viu passageiros com carrinhos e malas de mão, mirando-o com uma expressão reprovadora, e vislumbrou o segurança americano a afastar-se calmamente pelo corredor, rumo à zona do levantamento de bagagens. Olhou em todas as direcções, em busca da silhueta familiar da iraniana, mas, por mais que se esforçasse, nada detectou. Levantou-se a custo e, já de pé, vencendo uma nova tontura, passou os olhos pelo terminal, a atenção prendendo-se aqui e ali, até que se viu forçado a render-se à evidência.

Ariana desaparecera.


A hora seguinte foi passada em contatos frenéticos. Tomás voltou a conversar com o diretor do SEF no aeroporto e ligou para a embaixada dos Estados Unidos.

Procurou mover influências através da administração da Fundação Gulbenkian e da reitoria da Universidade Nova de Lisboa e chegou ao ponto de telefonar para Langley e tentar falar com Frank Bellamy.

Tudo falhou.

A verdade é que Ariana lhe tinha sido levada e encontrava-se agora muito para além do seu alcance. Era como se uma muralha opaca se tivesse erguido em torno da mulher que amava, isolando-a do mundo e de si, fechando-a algures por detrás dos muros reforçados que escondiam a embaixada americana em Lisboa.

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Sentou-se num banco da zona das chegadas e esfregou a cara com as palmas das mãos. Sentia-se desesperado e impotente. O que poderia fazer agora? Como quebrar aquela inesperada barreira que o separava de Ariana? Como se sentiria ela? Traída?

Por mais que considerasse as alternativas, só vislumbrava um curso de ação. Tinha de desvendar por completo o mistério do manuscrito de Einstein. Não dispunha de mais nenhuma opção.

Mas o que lhe faltava fazer? Bem, por um lado, precisava de conhecer a segunda via descoberta pelo professor Siza. Por outro, havia a questão ainda não resolvida da mensagem cifrada do documento, aquela que supostamente ocultava a fórmula de Deus. Como é que Tenzing lhe chamara? Ah, sim. Era a fórmula na qual tudo assentava. A fórmula que gera o universo, que explica a existência, que faz de Deus o que Ele é.

Meteu a mão ao bolso e retirou o papelinho rabiscado em Teerã com a mensagem cifrada. Por cima encontrava-se ainda o poema já decifrado. E por baixo, como se se risse de si, irritantemente divertida por manter ainda escondido o seu estranho segredo, espreitava a derradeira cifra.


See sign

!ya ovqo


Como diabo decifrar esta charada?, interrogou-se. Fez um esforço para se recordar das referências do bodhisattva à forma usada por Einstein para ocultar esta mensagem. Se bem se lembrava, Tenzing falara num sistema de dupla cifração e ainda no recurso a...

O telemóvel tocou.

Seriam os seus esforços enfim a produzir frutos? Será que alguém lhe trazia a solução para o colete-de-forças em que os americanos tinham colocado Ariana?

Quase tremendo de ansiedade, tirou o telemóvel do bolso e premiu a tecla verde.

"Está sim?"

"Está? Tomás?"

Era a mãe.

"Sim, mãe", murmurou, escondendo com dificuldade a decepção. "Sou eu."

"Ai, filho. Ainda bem que te encontro! Tenho andado numa aflição que não imaginas..."

"Sim, estou aqui. O que é?"

"Tenho andado aflita para falar contigo. Já estou farta de te ligar e tu não atendes nem dizes nada. Parece incrível!"

"Ó mãe, a mãe sabia perfeitamente que eu estava no Tibete."

"Mas podias dizer alguma coisa, não?"

"E eu disse."

"Só no dia em que lá chegaste. Depois não disseste mais nada."

"Ó mãe, o que quer? Aquilo foi para lá uma trapalhada que nem queira saber e o fato é que não tive tempo de lhe ligar. Pronto, paciência. Mas já cá estou, não estou?"

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"Graças a Deus, meu filho. Graças a Deus."

Dona Graça começou a soluçar do outro lado da linha e Tomás mudou de semblante, de enfadado tornou-se de imediato preocupado.

"Então, mãe? O que se passa?"

"É o teu pai..."

"O que se passa com o pai?"

"O teu pai..."

"Sim?"

"O teu pai foi internado."

"O pai foi internado?"

"Sim. Ontem."

"Onde?"

"Nos hospitais da universidade."

A mãe chorava agora abertamente do outro lado da linha.

"Mãe, tenha calma."

"Eles disseram para eu me preparar."

"O quê?"

"Eles disseram que ele vai morrer."


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