XXXVI

O cheiro característico dos hospitais, aquele leve aroma asséptico que se parece pegar às paredes brancas, fez Tomás remexer-se com desconforto no seu banco. Olhou para o lado e, num gesto carinhoso, afagou os cabelos encaracolados da mãe, cabelos de um loiro simultaneamente artificial e natural; artificial por serem pintados, natural porque era essa a sua cor da juventude. Dona Graça apertava um lenço na mão e trazia os olhos avermelhados, mas mostrava-se controlada; sabia que, quando voltasse a ver o marido, teria de se apresentar confiante, positiva, cheia de energia, e essa noção dava-lhe força para domar a angústia que a assolava.

Sentiram um movimento na porta. Um homem calvo, de bata branca e óculos graduados, entrou na salinha e veio ter com eles. Beijou dona Graça nas duas faces e estendeu a mão a Tomás.

"Ricardo Gouveia", apresentou-se. "Como está?"

Era o médico do pai.

“Olá, doutor. Sou o filho do professor Noronha."

"Ah, o aventureiro!", sorriu o médico. "Os seus pais falam muito de si, sabia?"

"Ah, sim? E o que lhe contam?"

Gouveia piscou o olho.

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"Nunca ouviu dizer que as conversas dos pacientes com os seus médicos são confidenciais?"

O médico fez-lhes sinal para o seguirem e levou-os para um pequeno gabinete, dominado por um boneco humano em tamanho natural com as entranhas à mostra.

Indicou-lhes que se sentassem diante da secretária e ele próprio acomodou-se no seu lugar. Folheou uns papéis, levando alguns minutos a encarar os olhares ansiosos que o perscrutavam. Parecia estar a tentar ganhar tempo, mas acabou por levantar a cabeça.

"Lamento dizer, mas não há grandes alterações no estado do seu marido", disse Gouveia, virando-se para dona Graça. "Ele continua como aqui entrou ontem. A única coisa que se pode acrescentar é que parece estabilizado."

"E isso é bom?", perguntou ela, muito nervosa.

"Bem... uh... pelo menos, não é mau."

"O Manei consegue respirar, doutor?"

"Com dificuldade", retorquiu o médico. "Estamos a administrar-lhe oxigênio e medicamentos que dilatam as vias respiratórias, de modo a aliviar o problema, mas as dificuldades persistem."

"Ai, Virgem Santíssima", afligiu-se dona Graça, angustiada. "Ele está a sofrer muito, é?"

"Não, isso não."

"Diga-me a verdade, por favor."

"Não está em sofrimento, asseguro-lhe. Ele entrou aqui ontem com dores, de modo que lhe demos um narcótico forte e isso aliviou-o bastante."


Dona Graça mordeu o lábio inferior.

"O senhor doutor acha mesmo que ele não se safa desta, não é?"

Gouveia suspirou.

"O seu marido tem uma doença muito grave, dona Graça. É preciso não esquecer isso. Eu, no seu caso, e como já lhe disse ontem, preparar-me-ia para o pior." Torceu a boca. "Em todo o caso, não é impossível que ele melhore. Há muitas histórias de situações dramáticas que, no último instante, se inverteram. Quem sabe se isso poderá também ocorrer agora? Mas, de qualquer modo, parece-me que é preciso encarar esta situação com realismo e com serenidade." Esboçou uma expressão resignada. "A vida é feita disto, não é? Às vezes temos de aceitar as coisas, mesmo quando isso nos é muito difícil."

Tomás, que até aí se mantivera calado, revolveu-se na cadeira, intranquilo.

"O doutor, será que me pode explicar o que se passa exatamente com o meu pai?"

"O seu pai tem um carcinoma de células escamosas, em fase quatro", devolveu o médico, visivelmente aliviado por poder entrar nas explicações técnicas, terreno onde se sentia mais à vontade.

"Isso é um cancro do pulmão, não é?"

"É um cancro do pulmão que já se alastrou por todo o corpo. Ele tem metástases no cérebro, nos ossos e, agora, também no fígado."

"Isso não tem cura?"

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O médico abanou a cabeça.

"Receio bem que não."

"E tratamento?"

"No estado em que o seu pai se encontra, não me parece haver tratamento.

Normalmente este tipo de cancro tem de ser lidado com uma cirurgia, mas não quando ele se encontra na fase quatro, em que já se espalhou por toda a parte.

Quando o caso se torna inoperável, voltamo-nos para a radioterapia, que é o que o seu pai tem feito nestes últimos tempos."


"E qual o objetivo da radioterapia? Curá-lo?"

"Não. Como já lhe disse, não vejo hipóteses de cura." Fez um gesto vago para cima. "A não ser que haja intervenção divina, claro. Por vezes acontecem milagres..."

"Então para que serve a radioterapia? Apenas para ganhar tempo?"

"Sim, ela apenas consegue retardar a evolução da doença. Além disso, serve igualmente para controlar a dor de ossos." Levantou-se e indicou dois pontos no boneco de plástico em tamanho natural que se encontrava ao lado da secretária. "Por outro lado, alivia aqui a síndroma da veia cava superior e a compressão da espinal medula." Voltou a sentar-se. "Claro que a radioterapia tem os seus inconvenientes, não é? Um deles é o de inflamar os pulmões, o que provoca tosse, febre e dispnéia."

"Dis... quê?"

"Dispnéia. Dificuldade em respirar."

"Ah, é? E como é que lidam com esses efeitos?"

"Administramos uns medicamentos chamados corticosteróides, como a prednisona, que aliviam os sintomas."

"E quanto tempo mais se consegue prolongar a vida de alguém nesta situação?"

O médico esboçou uma expressão indecisa.

"Bem... uh... isso depende dos casos, não é? Há quem dure mais, há quem resista menos. É difícil dizer..."

"Mas qual é a média?"

Gouveia estreitou os lábios, pensativo.

"Olhe, eu diria que a sobrevivência ao fim de cinco anos é inferior a uns dez por cento. Talvez ande mesmo na roda dos cinco por cento."

"Puxa", murmurou Tomás, atônito. "Tão pouco?"

"Sim." O médico esfregou o queixo. "E o pior é que o cancro do pulmão é uma neoplasia muito frequente, sabia? E a principal causa de morte por cancro. Uma em cada três pessoas que morre de cancro, morre por causa do cancro do pulmão."

"Ah, sim? Mas qual é a causa?"


Gouveia encolheu os ombros.

"Ora, o que havia de ser? O tabaco, claro."

"O meu pai fumava muito, de fato", assentiu Tomás, os olhos mergulhados nas memórias da infância. "Lembro-me de o ver no escritório, às voltas com as suas 283


equações e no meio de uma nuvem de fumo. Caramba, nem sei como é que ele conseguia respirar."

"Isso paga-se", observou o médico. "Pouca gente sabe, mas quase noventa por cento dos casos de cancro de pulmão são provocados pelo tabaco. Os fumadores têm um risco de contrair este cancro catorze vezes superior ao dos não fumadores. Catorze vezes."

Tomás suspirou.

"Sim, está bem", desabafou com um esgar levemente irritado. "A última coisa que precisamos agora é de uma lição de moral sobre os malefícios do tabaco, não acha? O

que está feito, está feito."

"Desculpe", disse o médico, preocupado com a possibilidade de ter ido longe de mais. "Estava só a responder às suas perguntas."

"Com certeza."

Dona Graça remexeu-se no seu lugar, agitada.

"Ó doutor Gouveia, não há hipóteses de vermos o meu marido?"

O médico ergueu-se do seu lugar, dando a reunião por concluída.

"Claro que sim, dona Graça", disse, solícito. "A enfermeira virá chamar-vos quando for a altura, está bem?"

"E quando será isso?"

"Quando ele acordar."


A enfermeira entrou de rompante na salinha de espera. Ostentava ao peito, sobre a bata branca, uma plaquinha a anunciar que se chamava Berta e tinha um aspecto despachado, todo ele profissional. Fez-lhes um sinal apressado.

"Façam favor", disse. "Ele já acordou."

"Podemos vê-lo?"

"Claro. Façam o favor de me seguir."

Caminharam pelo corredor, tentando acompanhar o passo rápido da enfermeira Berta. Tomás adiantou-se um pouco e conseguiu colocar-se ao lado dela.

"Como está ele?"

"Acabou de acordar. Está consciente."

"Sim, mas o que eu queria saber é como ele se sente..."

A enfermeira olhou-o de soslaio.

"Está... enfim... não está bem, não é? Mas não tem dores nem nada."

"Ao menos isso."

Berta deu mais uns passos apressados, sempre com ar muito profissional, mas acabou por voltar a mirar Tomás.

"Ouça, ele encontra-se muito fraco e muito cansado" disse, a voz mais distendida.

"Vocês não devem abusar muito, entendeu?"

"Sim."

"Ele parece-me ter entrado numa fase de aceitação."

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"Aceitação?"

"Sim, aceitação da morte. Em geral só os pacientes de mais idade atingem esta fase quando se encontram num estado terminal. Os mais novos têm muita dificuldade em aceitar a morte, é uma coisa terrível. Mas alguns dos mais velhos, quando são pessoas emocionalmente maduras e têm a sensação de que a sua vida teve um propósito, parecem aceitar melhor as coisas."

"Está-me a dizer que o meu pai já aceitou a morte, é?"

"Sim, embora continue agarrado à vida, claro. Não está na natureza humana a ideia de aceitar a morte assim sem mais nem menos. Ele mantém a esperança de que alguma coisa aconteça, alguma coisa que lhe melhore a condição e o faça viver. Mas, por outro lado, é uma pessoa que acha que cumpriu a sua missão, que a sua vida teve um sentido, e isso ajuda-o a enfrentar esta situação. Além disso, tem a noção de que as coisas têm o seu tempo e aceita o fato de que o seu está a expirar."

"Nada na vida é permanente, não é? Tudo é transitório."


"Exato", concordou a enfermeira. "Mas isso é mais fácil de dizer quando se está de saúde do que de sentir quando se está doente. Quando nos encontramos de saúde podemos dizer tudo, até as maiores barbaridades. Mas é preciso estar ali onde ele está, mesmo às portas da morte, para se perceber como as coisas são."

"Imagino."

"Não imagina, não", sorriu ela sem humor. "Mas um dia, quando também ali estiver, daqui a muitos anos, quando a morte deixar de ser uma abstracção para se tornar uma realidade mesmo ao virar da esquina, nesse dia o senhor vai perceber."


Um murmúrio baixo rumorejava pela enfermaria. Atravessaram o corredor em silêncio, procurando respeitar a privacidade dos pacientes, e chegaram à zona dos quartos individuais. Berta levou-os até uma porta e, sem mais palavras, abriu-a com cuidado e fez sinal para os dois visitantes entrarem. Tomás deixou a mãe passar primeiro e seguiu atrás, quase suspendendo a respiração.

Quando viu o pai teve vontade de chorar.

Manuel Noronha estava quase irreconhecível. Apresentava-se muito magro, a pele enrugada e chupada, imensamente pálida, quase sem carnes, apenas ossos; o cabelo branco encontrava-se desalinhado sobre a almofada e os olhos mostravam-se mortiços, embora tivessem faiscado momentaneamente quando reconheceram a mulher e o filho.

Dona Graça beijou-o e sorriu, sorriu com tal confiança que Tomás não pôde deixar de admirar a força interior da mãe; vira-a destroçada fora daquele quarto, mas ali dentro, diante do marido moribundo, respirava segurança e tranquilidade. A mulher fez-lhe algumas perguntas sobre o seu estado e as suas necessidades, às quais ele respondeu com uma voz muito sumida. Depois, com a arte de um Pai Natal de hospital, ela abriu um cestinho de vime, que trouxera discretamente debaixo do xale, e retirou do interior um queijo redondo, era um Rabaçal cujo aspecto fazia crescer água na boca, mais uma broa de trigo e amêndoas. Tomás reconheceu nestas pequenas delícias as perdições gastronômicas do pai. Dona Graça serviu-as à boca do marido, muito terna e protetora, turturilhando palavras meigas.

Quando ele acabou de comer, a mulher limpou-lhe a boca, ajeitou-lhe o cabelo e os cobertores e compôs-lhe o colarinho do pijama, sempre muito maternal, a sua 285


presença impondo uma plácida tranquilidade, era como a mãe a aconchegar o recém-nascido no berço. Olhando-os ali, o pai deitado e desprotegido, a mãe inclinada sobre ele a tratá-lo e a consolá-lo, Tomás comoveu-se com a invisível ligação que os unia.

Viveram cinquenta anos juntos, partilharam sabores e dissabores, dias soalheiros e noites

sombrias, e tornava-se dolorosamente evidente que desfrutavam agora dos derradeiros momentos a dois, o caminho iria em breve apartá-los como o horizonte separa o céu da terra. Envolvia-os um amor maduro, não já feito de paixão nem de arrebatamento, mas de afetos carinhosos, de sentimentos vividos, de uma ligação profunda. Ela era a árvore, ele a folha, ela o sol, ele a praia, ela a abelha, ele o pólen; eram a luz e a cor, a terra e o céu, o lago e o nenúfar, o mar e a areia, a gaivota e o ovo. O filho não os conseguia imaginar separados, e, no entanto, o inimaginável preparava-se para acontecer.

Ao senti-los enfim serenar, Tomás aproximou-se da cama, pegou na mão fraca e fria do pai e forçou um sorriso.

"Que grande chatice, hã?"

O velho esboçou um sorriso tênue.

"Pareço um bebê."

"Ah, sim? Um bebê? Porquê?"

O velho fez um gesto lento que abarcou toda a cama onde se encontrava deitado.

"Então não vês? Já não consigo fazer nada."

"Disparate."

"Dão-me de comer. Vestem-me. Até o rabo me limpam."

"É só agora. Depois, quando ficar melhor, já trata de si outra vez, vai ver."

O pai fez um gesto impotente.


"Quando ficar melhor? Eu não vou ficar melhor..."

"Disparate. Claro que vai."

"Pareço um bebê", repetiu, sempre com uma voz muito débil, quase apenas soprada. "Até já durmo como um bebê."

"É para recuperar forças."

"Durmo que me farto. É como se tivesse retornado à infância. É a infância ao contrário."

"Veja lá se é a hora de tomar o biberão", brincou Tomás.

O velho matemático sorriu levemente. Mas logo os olhos assumiram uma expressão interrogativa.

"Como será a morte?"

"Ó Manel, não fales nisso, credo", cortou de imediato a mulher, com ar reprovador. "Olha para o que lhe havia de dar!"

"A sério", insistiu o moribundo. "Interrogo-me sobre o que me espera."

"Cala-te lá com essa conversa. Quem te ouvir até parece que... que..."

286


"Ó Gracinha, deixa-me falar sobre isto, está bem? É importante para mim, não percebes?"

A mulher fez um ar resignado e Manuel Noronha encarou o filho.

"Nos últimos meses tive sempre dificuldade em adormecer", murmurou o velho professor, a voz reduzida quase a um fio. "Punha-me a dar voltas na cama, a pensar no que será a morte, no que será a não-existência. Uma coisa horrível, hem? E todos vamos enfrentar isso, não é?" Fez uma pausa, os olhos perdidos num ponto indefinido do teto. "Mais cedo ou mais tarde é esse o nosso destino."

"Lá isso é", observou Tomás.

“É por isso que eu penso: como será a morte?" Respirou fundo. "Será igual ao que era a não-existência antes do nascimento? Será que a vida começa com um Big Bang e acaba com um Big Crunch?" Torceu os lábios. "Nascemos, crescemos, atingimos o apogeu, definhamos e morremos." Fitou o filho com intensidade. "Será que é só isso?

Será que a vida se resume a isso?"

"O pai pensa muito na morte?"

O velho curvou a boca.


"Penso um pouco, sim. Quem, estando onde eu estou, não pensa? Mas, talvez, mais do que na morte, penso na vida."

"Em que sentido?"

"Umas vezes penso que a vida não tem valor, é uma coisa insignificante. Eu vou morrer e a humanidade não sentirá a minha falta. A humanidade vai morrer e o universo não sentirá a sua falta. O universo vai morrer e a eternidade não sentirá a sua falta. Não passamos de uma irrelevância, simples poeira que se perde no tempo."

Inclinou a cabeça. "Mas, outras vezes, penso que, afinal, todos nascemos com uma missão, todos desempenhamos um papel, todos fazemos parte de um grande esquema. Pode ser um papel minúsculo, pode parecer uma missão irrisória, talvez até a consideremos uma vida perdida, mas, feitas as contas, quem sabe se coisa tão minúscula se poderá revelar uma migalha crucial para a concepção do grande bolo cósmico." Arfou, cansado. "Somos minúsculas borboletas cujo frágil bater de asas tem talvez o estranho poder de gerar longínquas tempestades no universo."

Tomás ponderou estas palavras. Estendeu o braço e apertou a mão fria do pai.

"O pai acha que alguma vez poderemos desvendar o mistério de tudo?"

"De tudo, o quê?"

"Da vida, da existência, do universo, de Deus. De tudo."

Manuel suspirou, a fadiga tomando conta do rosto, os olhos a começarem a pesar-lhe.

"O Augusto tinha uma resposta para isso."

"Qual Augusto? O professor Siza?"

"Sim."

"E qual era a resposta dele?"

"Era um aforismo de Lao Tzu." Fez uma pausa, para recuperar o fôlego. "Foi um amigo tibetano que lhe ensinou, há muito tempo." Fez um esforço para se concentrar.

"Deixa cá ver se..."

287


A enfermeira Berta entrou no quarto.


"Pronto, já chega", disse ela, agitando os braços. "Parem lá com a conversa. Agora deixem o senhor professor descansar."

"Um momento", pediu Tomás. "Que aforismo era esse?"

O pai pigarreou, estreitou os olhos e lembrou-se.

"No fim do silêncio está a resposta", recitou. "No fim dos nossos dias está a morte.

No fim da nossa vida, um novo início."

O telemóvel tocou quando saíam do hospital, a mãe enxugando as lágrimas que teimavam em marejar-lhe os olhos.

"Hi, Tomás", saudou a voz do outro lado.

Era Greg.

"Então?", disse Tomás, evitando cumprimentar o americano. "Já espancaram a Ariana? Ela disse-vos o que vocês queriam saber?"

"Come on, Tomás. Não seja assim."

"Foi à bofetada ou foi com choques elétricos?"

"Tomás, não foi nada disso. Nós não somos uns selvagens."

"Ah, não? Então o que andaram vocês a fazer nas cadeias iraquianas?"

"Uh... isso é diferente."

"E em Guantánamo?"

"Isso é diferente."

"Diferente em quê?" perguntou, um ressentimento gelado na voz. "Uns são iraquianos, outros são afegãos, ela é iraniana. Não é tudo igual para vocês?"

"Come on, pai. Não seja assim..."

"Eu não sou assim. Vocês é que são."

"Você está a ser injusto."

"Ah, estou? Então o que está a Ariana a fazer na vossa embaixada?"

"Ouça, nós tivemos de a interrogar", justificou-se Greg. "Não vê como isso é importante para nós? Ela está ligada ao projeto nuclear iraniano e, quer queiramos quer não, tem conhecimentos muito valiosos. Não podíamos deixar passar esta oportunidade. Afinal de contas, está em causa a segurança nacional, que diabo! Como é evidente, tínhamos de a interrogar."


"O interrogatório deixou-lhe marcas físicas?"

"O interrogatório foi civilizado, fique descansado."

"Civilizado? Depende do seu padrão..."

"Não acredita? Pois, olhe, posso-lhe dizer que não arrancamos nada que não soubéssemos."

"Bem feito."

"O pessoal de Langley está muito irritado com ela."

288


"Ainda bem, fico contente em saber isso."

Greg fez com a língua um estalido agastado.

"Ouça, Tomás, o caso não é para brincadeiras, ouviu? Recebi agora ordens de Langley em relação a ela e é por isso que lhe estou a telefonar."

"Ordens? Que ordens?"

"Eles mandaram repatriá-la."

"O quê?"

"Langley disse que, uma vez que ela não coopera, o melhor é mandá-la de volta para os iranianos."

"Vocês estão loucos?"

"Hmm?"

"Vocês não podem fazer isso, ouviu?"

"Ah, não? Porquê?"

"Porque... porque eles matam-na."

"Os iranianos matam-na?"

"Claro. Não vê que ela me ajudou?"

"E o que temos nós a ver com isso?"

"Eles pensam agora que ela se passou para a CIA. Aquela gente é paranóica, o que julga você?"

"Vou repetir a minha pergunta", disse Greg. "O que temos nós a ver com isso?"

"Bem... se vocês a mandam de volta, estão a enviá-la para a morte."

"E depois? Que eu saiba, não temos nada a agradecer-lhe, pois não? Afinal de contas, ela não nos ajudou. Por que razão haveríamos nós de estar preocupados com o que se passa entre ela e o regime que ela tenta estupidamente proteger?"

"Ela não tenta proteger regime nenhum. Ela tenta é não trair o seu país, só isso.

Nada mais natural, não acha?"

"Muito bem. Então também é natural que nós a repatriemos se ela não nos ajuda.

Não acha isso igualmente natural?"

"Não, não acho", vociferou Tomás, elevando o nível de voz pela primeira vez. "Acho um crime. Se vocês fizerem isso, não passam de uns bandidos. Uns gangsters da pior espécie."

"Come on, Tomás. Não seja exagerado."

"Eu? Exagerado? Então vocês comprometem-se a protegê-la dos iranianos e depois fazem-me um número destes? Não só a sequestraram quando chegamos a Lisboa como agora a querem entregar aos mesmos iranianos de quem se comprometeram a protegê-la. Que nome dão vocês a uma sujeira destas?"

"Ouça, Tomás. Nós assumimos o compromisso de a proteger em troca da revelação do segredo encerrado no manuscrito de Einstein. Que eu saiba você ainda não nos revelou esse segredo, pois não?"

"Já vos revelei o essencial."

"Então qual é a fórmula de Deus?"

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"Essa é a única coisa que não desvendei ainda. Mas já lhe disse que estou à beira de o fazer."

"Isso é conversa. O fato é que ainda não nos revelou nada e o tempo está a esgotar-se."

"Dêem-me mais alguns dias."

Fez-se um curto e embaraçado silêncio.

"Não pode ser", disse Greg por fim. "Um avião da CIA vai partir esta noite da base aérea de Kelly, no Texas, em direção a Lisboa. Chega cá amanhã de madrugada. Pouco depois das oito da manhã, o aparelho seguirá para Islamabad, no Paquistão, onde a sua amiga será entregue aos iranianos."

"Vocês não podem fazer isso!", rugiu Tomás, quase descontrolado.

"Tomás, esta não foi uma decisão minha. É uma decisão de Langley e começou já a ser executada. Tenho aqui uma mensagem que diz que as ordens já foram emitidas para o Joint Command and Control Warfare Center, em Kelly AFB."

"Isso é um crime."

"Isto é política", retorquiu Greg num tom sereno. "Preste atenção, Tomás, porque ainda há uma maneira de parar isto. Você tem até amanhã às oito da manhã para me entregar o segredo do manuscrito, ouviu? Se não me der o segredo dentro desse prazo, não conseguirei travar o repatriamento da sua amiga. Entendeu isso?"

"Amanhã, às oito da manhã? Mas como quer você que eu desvende tudo em tão pouco tempo? Isso é impossível!"

"Você é que é o profissional."

"Ouça, Greg, vocês têm de me dar mais tempo."

"Você ainda não entendeu, Tomás. Esta decisão não é minha. Foi tomada em Langley e é irreversível. Eu estou apenas a dizer-lhe qual a maneira de travar este processo, mais nada. Se você nos revelar o segredo, então ficamos automaticamente obrigados a cumprir os termos do acordo que fizemos ao telefone quando você estava em Lhasa. Enquanto não cumprir integralmente a sua parte, nós entendemos que não somos obrigados a cumprir integralmente a nossa parte. Percebe?"

"Vocês não podem fazer isso."

"Tomás, não vale a pena estar a discutir comigo. Isso não vai alterar nada porque não sou eu quem tem o poder de decisão."

"Mas você tem de convencer os tipos lá em Langley a darem-me mais tempo."

"Tomás..."

"Já são cinco da tarde e só tenho quinze horas."

"Tomás..."

"É muito pouco para eu desvendar tudo."

"Damn it, Tomás!", gritou Greg, já para lá do limite da paciência. "Você é burro ou quê?"

Tomás congelou ao telefone, espantado com a fúria repentina do americano.

"Estou-lhe a dizer que está tudo fora do meu controle", berrou o americano, exaltando-se pela primeira vez. "As decisões não foram tomadas por mim. Nada depende de mim. Nada. Existe apenas uma coisa que pode travar o repatriamento da sua amiga. Uma e uma só. Desvende o fucking segredo."

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O português manteve-se silencioso em linha.

"Tem até às oito da manhã de amanhã."

E desligou.


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