XIV

O automóvel negro percorreu com prudente vagar as ruas desertas da cidade, abandonadas ao vento frio que descia das montanhas e ao manto opaco da noite silenciosa. Os candeeiros projetavam sobre os passeios uma luz amarelada, fantasmagórica, e o clarão luminoso do mar de estrelas disperso pelo céu límpido, como pó de diamante cintilando na escuridão, irradiava uma leve claridade sobre o vulto adormecido das Alborz; era uma luminosidade muito suave, infinitamente tênue, mas suficiente para deixar perceber a mancha ebúrnea de neve que cobria as montanhas distantes como um véu de seda branca.


Meia-noite em Teerã.

Sentado no banco traseiro do carro, o casaco abotoado para se proteger do frio, Tomás contemplava as lojas e prédios e casas e mesquitas que se sucediam para lá da janela, os olhos presos nas fachadas nuas e passeios desertos, a mente a vaguear pelos contornos daquela aventura louca para a qual era arrastado sem apelo.

Encolhido no seu canto, não via como travar o curso dos acontecimentos, sentia-se absolutamente impotente, um insignificante náufrago entregue às águas revoltas do mar bravo, puxado por uma poderosa corrente que não sabia nem podia combater.

Devo estar louco.

107


O pensamento martelava-o sem parar, obsessivo, quase mórbido, repetindo-se à medida que o automóvel palmilhava as avenidas e ruas e bairros da capital iraniana, avançando sempre, aproximando-se inexoravelmente do seu destino, chegando-se mais e mais ao instante temido, ao momento para lá do qual já não se podia voltar para trás. O ponto sem retorno.

Devo estar totalmente louco.

Babak seguia silencioso ao volante, os olhos irrequietos saltitando entre os cantos sombrios das ruas e o reflexo reluzente do retrovisor, sempre atento a qualquer movimento suspeito que obrigasse a abortar a operação. O vulto maciço de Bagheri plantava-se ao lado de Tomás, os olhos mergulhados na larga planta do Ministério da Ciência, estudando pela enésima vez o plano que gizara nos últimos dias, passando em revista os derradeiros pormenores. O homem da CIA viera vestido de preto e entregara a Tomás, ainda no hotel, um turbante negro iraniano, dizendo que o devia usar para se destacar menos. Além disso, obrigara-o a envergar as roupas mais escuras de que dispunha, alegando que só um louco fazia um assalto com trajos claros no corpo. Mas louco já Tomás se sentia, não havia louco mais louco do que aquele que, sem experiência nem treino, aceitava assaltar um edifício governamental com dois desconhecidos, num país de drásticas punições, para furtar um documento secreto que encerrava graves implicações militares.

"Nervoso?", perguntou Bagheri, rompendo o silêncio.

Tomás assentiu com a cabeça.

"Sim."

"É natural", sorriu o iraniano. "Mas fique descansado, vai correr tudo bem."

"Como pode você ter assim tanta certeza disso?"

Bagheri puxou a carteira do bolso e retirou uma nota verde de cem dólares, que exibiu ao historiador.

"Isto tem muita força."

O automóvel virou à esquerda, completou mais duas curvas e abrandou. Babak espreitou de novo pelo retrovisor, encostou ao passeio e estacionou entre duas camionetas. O motor calou-se e os faróis apagaram-se.

Chegamos?"

"Sim."

Tomás olhou em redor, tentando reconhecer o local.

"Mas o ministério não é aqui."

"É, sim", disse Bagheri, apontando para a esquina em frente. "Temos de ir a pé, é já ali à direita."

Apearam-se e sentiram a brisa gelada da rua penetrar-lhes na roupa. Tomás ajeitou melhor o casaco, enterrou o turbante negro na cabeça e caminharam os três pelo passeio até à esquina. Uma vez ali chegados, o historiador reconheceu enfim a rua e o edifício do outro lado, era de fato o Ministério da Ciência. Bagheri fez sinal para que ficassem ambos quietos e apenas Babak avançou, atravessando tranquilamente a rua e dirigindo-se ao ministério. O motorista mergulhou na sombra, junto ao posto da sentinela, e permaneceu invisível durante uns três minutos. O seu vulto magro e esguio reemergiu por fim da penumbra e fez um gesto para os dois avançarem.

108


"Vamos", ordenou Bagheri em voz baixa. "Esteja sempre calado, ouviu? Eles não podem perceber que você é estrangeiro."

Cruzaram a rua e aproximaram-se do portão gradeado da entrada. Tomás sentia as pernas fracas e o estômago apertado, o coração pulava-lhe no peito, as mãos tremiam-lhe e um suor frio nasceu-lhe no topo da testa; mas repetiu de si para si que os homens que o acompanhavam eram profissionais e sabiam o que faziam, e foi nesse pensamento que se refugiou para encontrar algum conforto.

O portão continuava fechado, mas Bagheri meteu por uma porta lateral, mesmo ao lado do posto

da sentinela, e entrou no perímetro do ministério. O historiador seguiu-lhe os passos. Babak esperava-os ao lado de um soldado iraniano, presumivelmente a sentinela, que fez continência a Bagheri. O homem da CIA devolveu a continência, trocou umas palavras baixinho com Babak e o motorista voltou para a rua.

Tomás e Bagheri ficaram entregues ao soldado, que os conduziu para uma porta escondida, possivelmente uma entrada de serviço. O soldado abriu a porta, voltou a fazer continência, deixou os dois estranhos entrarem no edifício e fechou a porta. Foi nesse instante que Tomás tomou consciência de que tinha acabado de cruzar a temível fronteira invisível.

O ponto sem retorno.

"E agora?", sussurrou ele tremulamente, a voz soprada ressoando na escuridão.

"Agora vamos para o terceiro andar", disse Bagheri. "Não é lá que guardam o manuscrito?"

"Sim, foi o que eu vi."

"Então vamos."

O iraniano acendeu uma lanterna, mas o historiador hesitou.

"E o motorista?"

"O Babak ficou na rua a fazer vigilância."

"Ah é? E o que acontece se aparecer alguém?"

"Se houver algum movimento suspeito, ele carrega no botão de um emissor especial. Eu tenho aqui um receptor que faz logo um zumbido." Virou a lanterna para a cintura e mostrou um aparelhinho metálico metido no cinto. "Está a ver?"

"Ah. É o alarme, é?"

"Sim."

"E se ele o acionar?"

Bagheri sorriu.

"Teremos de fugir, claro."


Os dois exploraram o local com cautelosa lentidão, Bagheri sempre com a lanterna voltada para a frente, lançando um clarão circular na profunda treva do edifício, a luz projectando sombras assustadoras nas paredes e no chão de mármore polido. Meteram por um corredor e foram dar ao hall central, dominado por uma imponente escadaria. Havia elevadores ao lado, mas Bagheri preferiu escalar os degraus, não queria provocar barulhos nem acender luzes que não pudesse controlar.

Chegaram ao terceiro andar e o iraniano espreitou para o corredor da direita.

109


"É por ali, não é?", perguntou.

"Sim."

Bagheri fez sinal a Tomás para passar à frente e o historiador assumiu o comando. As coisas às escuras eram bem diferentes das vistas à luz do dia, mas, apesar das estranhas circunstâncias, o português conseguiu reconhecer o local. A esquerda estava a porta para a sala de reuniões, onde lhe tinha sido mostrado o manuscrito. Abriu a porta e confirmou que assim era, ali se encontravam a mesa longa, as cadeiras, os vasos e os armários de parede, os locatários silenciosos daquele cubículo quieto e sombrio. Olhou então para a direita, para o local onde se situava o compartimento de onde vira Ariana sair com a velha caixa do documento nas mãos.

"É ali", disse, apontando para a porta dessa sala.

Bagheri aproximou-se da porta e tocou-a com a ponta dos dedos da mão espalmada.

"Aqui?"

"Sim."

O iraniano puxou a maçaneta, mas a porta não abriu. Como era previsível, encontrava-se trancada. Além do mais, a porta não era de madeira, como as outras, mas metálica, o que indiciava conter um dispositivo especial de segurança.

"E agora?", perguntou Tomás.

Bagheri não respondeu de imediato. Inclinou-se e analisou a fechadura com cuidado, a luz incidindo de perto no ferrolho metálico. Depois acocorou-se e abriu o saco escuro onde guardava as ferramentas.

"Não há problema", limitou-se a dizer.

Tirou um instrumento metálico e pontiagudo e inseriu-o devagar no ferrolho.

Colocou uma espécie de estetoscópio nos ouvidos, o fio conduzindo a um auscultador muito sensível, encostou o auscultador à fechadura e ficou a escutar os diques do instrumento dentro do ferrolho, a língua presa no canto dos lábios e os olhos vidrados numa expressão de grande concentração. O exercício prolongou-se por minutos sem fim. Ao cabo de algum tempo, Bagheri tirou o instrumento do ferrolho e procurou outro no saco. Tirou de lá o que parecia ser um fio metálico, muito flexível, e meteu-o pelo buraquinho da fechadura, repetindo o movimento anterior.

"Então?", soprou Tomás, ansioso por sair dali. "Não consegue?"

"Um momento."

O iraniano voltou a encostar o auscultador à fechadura, seguindo com infinita atenção o percurso do fio metálico. Ouviram-se mais uns cliques, talvez três, e um claque final.

A porta metálica abriu-se.

"Abre-te Sésamo", gracejou o historiador.

Bagheri piscou-lhe o olho.

"E eu sou Ali Babá."

Entraram no compartimento e o iraniano projectou o foco da lanterna em redor.

Era um gabinete pequeno, ricamente decorado com madeiras exóticas forradas nas paredes e no tecto. Encravado na parede do fundo, sobre uns vasos com plantas, encontrava-se um cofre cinzento, a fechadura protegida por um sistema circular de código.

110


"O manuscrito deve estar ali", observou Tomás. "Acha que vai conseguir abrir o cofre?"

Bagheri aproximou-se do cofre e analisou a fechadura com atenção.

"Não há problema", limitou-se a dizer.

Voltou a colocar o estetoscópio nos ouvidos e a auscultar o ferrolho do cofre, mas desta vez utilizou instrumentos diferentes, pareciam ser maquinetas muito complexas, de alta tecnologia; uma delas incorporava um computador, outra exibia mostradores num pequeno ecrã de plasma onde brilhavam algarismos âmbares.

Bagheri colou a broca de uma perfuradora elétrica ao segredo do cofre, activou a perfuradora e abriu um buraco minúsculo; ligou uns fios da máquina do ecrã ao buraquinho no segredo do cofre e estabeleceu outras ligações com o computador.

Digitou letras e algarismos num teclado minúsculo e tentou soluções diferentes, até que, ao fim de alguns minutos, uma luz encarnada apagou-se no ecrã de plasma, substituída por outra verde. O segredo do cofre girou como se tivesse ganho vida, emitindo o som dentado de uma rotação metálica. Seguiu-se um estalido seco.

A porta do cofre soltou-se.

Sem pronunciar palavra, Bagheri escancarou a porta solta e apontou a lanterna para o cofre, iluminando o interior. Tomás espreitou por cima do ombro do iraniano e reconheceu a caixa de aspecto gasto, envelhecida pelo tempo, que se encontrava pousada no centro do abrigo fortificado.

"É aquilo", disse.

"A caixa?"

"Sim."

Bagheri esticou os braços para dentro do cofre e retirou a caixa do interior. Pegou nela como se contivesse uma relíquia divina, um tesouro que se poderia desfazer ao mínimo gesto brusco, e pousou-a suavemente no chão.

"E agora?", perguntou o iraniano, hesitante, as mãos a repousar nas ancas.

"Vamos verificar", disse Tomás, inclinando-se para a caixa.

Tirou a tampa com cuidado e fez sinal a Bagheri para aproximar a lanterna. O

foco de luz inundou o interior da caixa, incidindo sobre as folhas amarelecidas do velho manuscrito. Tomás inclinou-se, focou os olhos e confirmou o título e o poema ostentados na primeira folha de papel quadriculado. As palavras emergiram tênues, estranhamente familiares, mas também singularmente misteriosas; estas, sabia-o com mal contida emoção, eram as folhas originais, as páginas datilografadas pelo próprio Einstein, o testemunho perdido de uma outra era. Mergulhados num fino véu de pó, os papéis gastos e carcomidos pelos anos exalavam um antigo perfume, o aroma arcano de um tempo há muito consumido.


DIE GOTTESFORMEl


Terra if fin

De terrors tight

111


Sabbath fore

Christ nite

A. Einstein


"É isto?", perguntou Bagheri.

"Sim, é isso."

"Tem a certeza?"

"Absoluta", devolveu Tomás. "Foi exatamente este o..."

Zzzzzzzzzzzzzz

Congelaram os dois, a respiração suspensa, os olhos muito abertos, a atenção alerta. A primeira reação foi de surpresa, tentaram freneticamente perceber o que era aquilo, que barulho era aquele, que significado tinha esse som inesperado, e voltaram ambos a cabeça na direção da fonte do ruído.

Era o cinto.

O zumbido vinha do cinto de Bagheri. Pior ainda, vinha do receptor guardado no cinto de Bagheri. O receptor. O mesmo receptor que estava sintonizado com o sinal do emissor de Babak. O mesmo receptor que lhes trazia notícias do mundo exterior. O

mesmo receptor que só zumbiria em caso de algo muito grave.

Arregalaram ainda mais os olhos, mas desta vez não foi de surpresa. Foi de algo muito mais assustador, muito mais pavoroso, infinitamente aterrador. Foi de compreensão.

Foi de horror.

"O alarme!"


Загрузка...