XXXIII

Abandonaram a salinha escura à entrada do templo de Maitreya, no alto do mosteiro de Tashilhunpo, desceram as escadas de pedra escura e viraram à esquerda; Tomás pegava no bodhisattva pelo braço, ajudando-o a caminhar, enquanto Ariana os seguia com as três almofadas apertadas no peito. Percorreram o estreito corredor do sector das capelas e entraram na primeira porta, desembocando num discreto pátio arborizado, à sombra do grande palácio do Panchen Lama.

Vários monges cumprimentaram Tenzing com reverência e o velho parou para lhes responder com um gesto. Depois retomou a marcha, fez sinal em direcção a uma árvore plantada num canteiro e encaminharam-se para lá.

"Yun Men disse", recitou o bodbisattva quando se aproximava do local, fazendo um esforço para se concentrar nos seus passos de ancião. "Ao caminhar, caminha apenas. Ao sentares-te, senta-te apenas. Acima de tudo, não vaciles."

Ariana depositou a grande almofada ao lado do tronco, num local escolhido pelo seu anfitrião, e Tomás ajudou-o a sentar-se. Olharam em redor e verificaram que o sítio tinha sido bem selecionado. Encontrava-se à sombra, mas as folhas deixavam passar muito sol, o que fazia com que aquele local não fosse demasiado frio nem demasiado quente, estava no ponto certo.

O tibetano fez um gesto na direção dos dois visitantes, que o observavam de pé.


"O Buda disse: senta-te, descansa, trabalha", declamou de novo. "Só contigo mesmo. Na orla da floresta vive feliz, sem desejo."

Os dois perceberam o convite. Ajeitaram as almofadas no chão, diante do bodhisattva, e sentaram-se.

Fez-se silêncio.

Escutavam-se, ao longe, os cânticos dos monges na recitação em coro dos mantras, os textos sagrados, o gutural om sempre presente; era aquele o som criador, a sílaba sagrada que precedeu o universo, a vibração cósmica que tudo criou e que tudo une. Pequenos pássaros estridulavam amorosamente pelos ramos, irrequietos e despreocupados, alheios ao timbre primordial que ecoava pelo mosteiro como um murmúrio de fundo, parecia o rumorejar plácido do mar ao abraçar a praia. Tudo ali era aprazível, sereno, eterno, um lugar perfeito para a contemplação; o pátio tranquilo convidava à meditação e à ascensão do espírito na incessante busca pela essência da verdade.

"O senhor mencionou há pouco o projecto de A Fórmula de Deus", começou Tomás. "Será que me pode explicar o que era isso?"

244


"O que querem que eu explique?"

"Bem... tudo."

Tenzing abanou a cabeça.

"Os chineses têm um provérbio", disse. "Os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

Tomás e Ariana entreolharam-se.

"Então abra-nos a porta."

O velho tibetano respirou fundo.

"Quando comecei a estudar física e matemática, em Darjeeling, achava tudo aquilo divertido porque me parecia um grande e belo jogo. Até que, quando cheguei a Colúmbia, tive um professor que me levou mais longe. Levou-me tão longe que o estudo deixou de ser um jogo para se transformar numa grande descoberta."

"O que descobriu?"


"Descobri que a ciência ocidental se aproximava estranhamente do pensamento oriental."

"O que quer dizer com isso?"

Tenzing fitou Tomás e depois Ariana.

"O que sabem vocês sobre as experiências místicas do Oriente?"

"O meu conhecimento limita-se ao Islã", disse a iraniana.

"Eu conheço o judaísmo e o cristianismo", indicou Tomás. "E aprendi agora umas coisas sobre budismo. Gostaria de saber mais, claro, mas nunca tive um mestre que me ensinasse."

O bodhisattva suspirou.

"Nós, os budistas, temos um provérbio", proclamou. "Quando o estudante está preparado, o mestre aparece." Deixou o pipilar insistente de um pássaro encher o pátio de musicalidade. "Para que possam entender a essência do derradeiro projeto de Einstein, é preciso que vocês percebam duas ou três coisas sobre o pensamento oriental." Pousou a palma da mão no tronco da árvore e deixou-a aí ficar por um momento. Depois retirou-a e encaixou-a na outra, ambas entrelaçadas agora no regaço numa pose contemplativa. "O budismo tem as suas origens remotas no hinduísmo, cuja filosofia assenta numa colecção de velhas escrituras anônimas redigidas em sânscrito antigo, os Vedas, os textos sagrados dos Arianos. A última parte dos Vedas chama-se Upanisbads. A idéia básica por detrás do hinduísmo é que a variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta não passa de diferentes manifestações da mesma realidade. A realidade chama-se Brahman e está para o hinduísmo como a Dharmakaya está para o budismo. Brahman significa crescimento e é a realidade em si, a essência interior de todas as coisas. Nós somos Brahman, embora possamos não o perceber devido ao poder mágico criativo de maya, que cria a ilusão da diversidade. Mas a diversidade, sublinho, não passa de uma ilusão. Só há um real e o real é Brahman."

"Desculpe, mas não estou a entender", interrompeu Tomás. "Sempre tive a idéia de que o hinduísmo estava cheio de deuses diferentes."


245


"Isso é parcialmente verdade. Os hindus têm muitos deuses, de facto, mas as sagradas escrituras tornam claro que todos esses deuses não passam de reflexos de um único deus, de uma única realidade. É como se Deus tivesse mil nomes e cada nome fosse de um deus, mas todos eles remetessem para o mesmo, diferentes nomes e diferentes rostos para uma única essência." Abriu os braços e uniu-os. "Brahman é todos e um. É ele o real e o único que é real."

"Entendi."

"A mitologia hindu assenta na história da criação do mundo através da dança de Shiva, o Senhor da Dança. Conta a lenda que a matéria se encontrava inerte até que, na noite do Brahman, Shiva iniciou a sua dança num anel de fogo. Nesse instante também a matéria começou a pulsar ao ritmo de Shiva, cujo bailar transformou a vida num grande processo cíclico de criação e destruição, de nascimento e morte. A dança de Shiva é o símbolo da unidade e da existência e é através dela que decorrem os cinco actos da divindade: a criação do universo, a sua sustentação no espaço, a sua dissolução, a ocultação da natureza da divindade e a concessão do verdadeiro conhecimento. Dizem as sagradas escrituras que, primeiro, a dança provocou uma expansão, em que se criou o material de construção da matéria e das energias. O

primeiro estágio do universo foi preenchido por espaço, para onde tudo se expandiu com a energia de Shiva. Prevêem os textos sagrados que a expansão irá acelerar-se, tudo se misturará e, no fim, Shiva executará a terrível dança da destruição." O

bodhisat-tva inclinou a cabeça. "Não lhe parece tudo isto familiar?"

"Incrível", murmurou Tomás. "O Big Bang e a expansão do universo. A equivalência entre massa e energia. O Big Crunch."

"Notável, sim", concordou o tibetano. "O universo existe devido à dança de Shiva e também ao auto-sacrifício do ser supremo."

"Auto-sacrifício? Como no cristianismo?"

"Não", disse Tenzing, abanando a cabeça. "A expressão sacrifício é usada aqui no seu termo original, no sentido de fazer com que algo se torne sagrado, e não no sentido de sofrimento. A história hindu da criação do mundo é a do ato divino de criar o sagrado, um acto pelo qual Deus se torna no mundo, o qual se torna Deus. O

universo é um gigantesco palco de uma peça divina, na qual Brabman desempenha o papel do grande mágico que se transforma no mundo através do poder criativo da maya e da acção do karma. O karma é a força da criação, é o princípio ativo da peça divina, é o universo em acção. A essência do hinduísmo radica na nossa libertação em relação às ilusões da maya e à força do karma, levando-nos a perceber, através da meditação e do ioga, que todos os diferentes fenômenos captados pelos nossos sentidos fazem parte da mesma realidade, que tudo é Brabman." O bodhisattva pousou a mão no peito. "Tudo é Brabman", repetiu. "Tudo. Incluindo nós próprios."

"Não é isso o que defende também o budismo?"

"Exatamente", assentiu o velho tibetano. "Em vez de Brabman, preferimos usar a palavra Dharmakaya para descrever essa realidade una, essa essência que se encontra nos diferentes objetos e fenômenos do universo. Tudo é Dharmakaya, tudo está relacionado por fios invisíveis, as coisas não passam de diferentes rostos da mesma realidade. Mas esta não é uma realidade imutável, é antes uma realidade marcada pela samsara, o conceito de que as coisas são impermanentes, de que tudo muda sem cessar, de que o movimento e a transformação são inerentes à natureza."

"Mas, então, qual é a diferença entre hinduísmo e budismo?"

"Há diferenças na forma, há diferenças nos métodos, há diferenças nas histórias.

Buda aceitava os deuses hindus, mas não lhes atribuía grande importância. Há 246


imensas diferenças entre as duas religiões, embora a essência seja a mesma. O real é uno, apesar de parecer múltiplo. As coisas diferentes não passam de diferentes máscaras da mesma coisa, essa realidade última que é também impermanente. Ambos os pensamentos ensinam a ver para além das máscaras, ensinam a perceber que a diferença esconde a unidade, ensinam a caminhar para a revelação do uno. Mas recorrem a métodos diversos para chegar ao mesmo objetivo. Os hindus atingem a iluminação através do vedanta e do ioga, os budistas através do óctuplo caminho sagrado do Buda."

"Portanto, a essência do pensamento oriental radica na noção de que o real, embora assuma diferentes formas, é, na sua essência, a mesma coisa."

"Sim", disse Tenzing. "Apesar de as idéias fundamentais estarem já incorporadas no hinduísmo e no budismo, os taoístas vieram depois sublinhar alguns elementos essenciais já existentes no pensamento dominante."

"Ah, sim? O quê?"

O tibetano aspirou o ar puro que deslizava num sopro pelo pátio.

"Alguma vez leu o Tao Te Ching?"

"Uh... não."

"É o texto fundamental do Tao."

"E o que é o Tao?"

"Disse Chuang Tzu: se alguém perguntar o que é o Tao e outro responder, nenhum dos dois sabe o que é o Tao."

Tomás riu-se.

"Bem, então já vi que não nos pode explicar o que é o Tao..."

"O Tao é outro nome para Brahman e para Dharmakaya", enunciou o tibetano. "O

Tao é o real, é a essência do universo, é o uno do qual deriva o múltiplo. O caminho taoísta foi enunciado por Lao Tzu, que resumiu o pensamento num conceito essencial."

"Qual?"

"O Tao Te Ching começa com palavras reveladoras", disse Tenzing. "O Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao. O Nome que pode ser nomeado não é o verdadeiro Nome."

O budista deixou as palavras ressoarem pelo pátio como folhas largadas à aragem do vento.

"O que quer isso dizer?"

"O Tao sublinhou o papel do movimento na definição da essência das coisas. O

universo balança entre o yin e o yang, as duas faces que pautam o ritmo dos padrões cíclicos do movimento e através das quais o Tao se manifesta. A vida, disse Chuang Tzu, é a harmonia do yin e do yang. Tal como o ioga é o caminho hindu para a iluminação de que tudo é Brabman, tal como o óctuplo caminho sagrado do Buda é o caminho budista para a iluminação de que tudo é Dharmakaya, o taoísmo é o caminho taoísta para a iluminação de que tudo é Tao. O taoísmo é um método que usa a contradição, os paradoxos e a sutileza para chegar ao Tao." Ergueu a mão.

"Disse Lao Tzu: para contrair uma coisa, é preciso expandi-la." Inclinou a cabeça. "É

essa a sabedoria subtil. Através da relação dinâmica entre o yin e o yang, os taoístas explicam as mudanças da natureza. O yin e o yang são dois pólos antagônicos, dois extremos ligados um ao outro por um cordão invisível, duas diferentes faces do Tao, a 247


unidade de todos os opostos. O real está em permanente mudança, mas as mudanças são cíclicas, ora tendem para o yin, ora voltam para o yang." Ergueu de novo a mão.

"Mas, atenção, os extremos são ilusões do uno e tanto assim é que o Buda falou em não dualidade. O Buda disse: luz e sombra, longo e curto, preto e branco só podem ser conhecidos um em relação

ao outro. A luz não é independente da sombra nem o negro do branco. Não há opostos, apenas relações."

"Não percebo", disse Tomás. "Quais são então as principais novidades do taoísmo?"

"O taoísmo não é bem uma religião, mas um sistema filosófico nascido na China.

Algumas das suas ideias essenciais, porém, coincidem com o budismo, como a noção de que o Tao é dinâmico e de que o Tao é inacessível."

"Inacessível, em que sentido?"

"Lembre-se de Lao Tzu: o Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao. Lembre-se de Chuang Tzu: se alguém perguntar o que é o Tao e outro responder, nenhum dos dois sabe o que é o Tao. O Tao está para além do nosso entendimento. É inexprimível."

"Engraçado", sorriu Tomás. "É justamente o que diz a Cabala judaica. Deus é inexprimível."

"O real é inexprimível", proclamou Tenzing. "Já os Upanishads dos hindus se referiam à intangibilidade da realidade última em termos inequívocos: lá onde o olho não chega, a palavra não chega, a mente não chega, não sabemos, não compreendemos, não podemos ensinar. O próprio Buda, questionado por um discípulo que lhe pediu para definir a iluminação, respondeu com silêncio e limitou-se a levantar uma flor. O que Buda queria expressar com este gesto, que ficou conhecido por Sermão das Flores, é que as palavras só servem para objetos e ideias que nos são familiares. O Buda disse: um nome é imposto no que se pensa ser uma coisa ou um estado e isso separa-o de outras coisas e outros estados, mas, quando se vai ver o que está por detrás do nome, encontra-se uma maior e maior subtileza que não tem divisões." Suspirou. "A iluminação da realidade última, da Dharmakaya, está para além das palavras e das definições. Chamemos-lhe Brahman, Dharmakaya, Tao ou Deus, essa verdade mantém-se imutável. Podemos sentir o real numa epifania, podemos quebrar as ilusões de maya e o ciclo do karma de modo a atingirmos a iluminação e chegarmos ao real." Fez um gesto lento com a mão. "Porém, façamos o que fizermos, digamos o que dissermos, nunca o poderemos descrever. O real é inexprimível. Está para lá das palavras."

Tomás remexeu-se na almofada e olhou para Ariana, que permanecia calada.

"Desculpe, mestre", disse ele, uma ponta de impaciência a colorir-lhe o tom da voz. "Tudo isto é fascinante, sem dúvida, mas não responde às nossas dúvidas."

"Não responde deveras?"

"Não", insistiu Tomás. "Gostaria que nos explicasse em pormenor o projeto em que Einstein o envolveu."

O bodhisattva suspirou.

"Fez Yang disse: quando te sentes iludido e cheio de dúvidas, nem mil livros bastarão. Quando tiveres alcançado o entendimento, uma palavra já é de mais." Olhou para Tomás. "Entende?"

"Uh... mais ou menos."

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"Essas suas palavras hesitantes parecem gotas de chuva, o que me lembra um ditado Zen", insistiu Tenzing. "As gotas de chuva batem na folha de basbo, mas não são lágrimas de pesar, é apenas a angústia de quem as escuta."


"Acha que estou angustiado?"

"Acho que você não me está a ouvir, português. Escuta-me, é verdade, mas não me ouve.

Quando ouvir, entenderá. Quando entender, uma palavra já será de mais.

Enquanto não o fizer, contudo, nem mil livros lhe bastarão."

"Está-me a dizer que tudo isto tem relação com o projeto de Einstein?"

"Estou-lhe a dizer o que lhe estou a dizer", disse o tibetano, a voz muito tranquila, apontando-lhe o dedo como se o interpelasse. "Lembre-se do provérbio chinês: os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

"Muito bem", assentiu Tomás. "Já sei que me abriu a porta. É este o momento de eu entrar?"

"Não", murmurou Tenzing. "É este o momento de me escutar. Disse Lao Tzu: age sem fazer, trabalha sem esforço."

"Sim, mestre."

O bodhisattva cerrou as pálpebras por instantes. Parecia ter mergulhado na meditação, mas logo reabriu os olhos.

"Tudo isto que vos contei tinha eu já relatado em Princeton a Einstein, que se mostrou muito interessado na visão oriental do universo. O principal motivo desse interesse radicava na proximidade existente entre o nosso pensamento e pormenores cruciais das novas descobertas nos campos da física e da matemática, algo que eu tinha constatado na Universidade de Colúmbia e que fiz questão de explicar ao meu novo mentor."

"Desculpe, não estou a perceber", interrompeu Ariana, a sua mente de cientista reagindo com surpresa. "Proximidades entre o pensamento oriental e a física? Do que está o senhor a falar concretamente?"

Tenzing riu-se.

"A menina está a reagir exatamente como Einstein reagiu de início, quando eu lhe falei nisso."

"Desculpe, mas parece-me uma reacção natural para qualquer cientista", disse a iraniana. "Misturar ciência com misticismo é... enfim... é uma coisa um pouco estranha, não lhe parece?"


"Não, se ambos disserem a mesma coisa", replicou o tibetano. "Revelam os Upanishads: tal como o corpo humano, assim é o corpo cósmico. Tal como a mente humana, assim é a mente cósmica. Tal como o microcosmos, assim é o macrocosmos.

Tal como o átomo, assim é o universo."

"Isso está onde?"

"Está nos Upanisbads, o último dos Vedas, os textos sagrados do hinduísmo."

Tenzing ergueu o sobrolho branco. "Mas poderia encontrar-se num qualquer texto científico, não acha?"

"Bem... uh... de certo modo."

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O bodhisattva ajeitou a sua posição sobre a grande almofada e respirou fundo.

"Lembram-se de Lao Tzu dizer que o Tao que pode ser dito não é o verdadeiro Tao e que o Nome que pode ser nomeado não é o verdadeiro Nome? Lembram-se dos Upanishads se referirem à realidade última como sendo algo onde o olho não chega, a palavra não chega, a mente não chega, não sabemos, não compreendemos, não podemos ensinar? Lembram-se do Buda usar o Sermão das Flores para explicar que a iluminação da Dbarmakaya é inexprimível?"

"Sim..."

"E eu pergunto-vos: o que diz o Princípio da Incerteza? Diz-nos que não podemos prever com precisão o comportamento de uma micropartícula, apesar de sabermos que esse comportamento já está determinado. E eu pergunto-vos: o que dizem os teoremas da Incompletude? Dizem-nos que não podemos provar a coerência de um sistema matemático, apesar de as suas afirmações não demonstráveis serem verdadeiras. E eu pergunto-vos: o que diz a Teoria do Caos? Diz-nos que a complexidade do real é de tal grandeza que não é possível prever a evolução futura do universo, apesar de sabermos que essa evolução já está determinada. O real esconde-se por detrás da ilusão de tnaya. O Princípio da Incerteza, os teoremas da Incompletude e a Teoria do Caos provaram que o real é inacessível na sua essência.

Podemos tentar aproximar-nos dele, podemos tentar descrevê-lo, mas nunca chegaremos verdadeiramente a ele. Haverá sempre mistério no fim do universo. Em última instância, o universo é inexprimível na sua plenitude, devido à subtileza da sua concepção." Abriu as mãos. "Regressamos, por isso, à questão essencial. O que é a matéria imprevisível a que o Princípio da Incerteza se refere senão Brahman? O que é a verdade que os teoremas da Incompletude mostram não poder ser provada senão Dhamarkaya? Eo que é o real infinitamente complexo e inatingível descrito pela Teoria do Caos senão Tao? O que é afinal o universo senão um gigantesco e inexprimível enigma?"

As perguntas feitas por Tenzing em tom tranquilo reverberaram com fragor nos ouvidos dos dois visitantes. Tomás e Ariana fitaram o velho tibetano sentado diante de si e digeriram devagar os estranhos paralelismos entre a ciência ocidental e o misticismo oriental.

"Depois há o problema da dualidade", retomou Tenzing. "Como devem estar recordados, o pensamento oriental estabelece o dinamismo do universo através da dinâmica das coisas. O Brahman dos hindus significa crescimento. A samsara dos budistas quer dizer movimento incessante. O Tao dos taoístas remete para a dinâmica dos opostos representada pelo yin e pelo yang. Tudo são opostos e os opostos são a mesma coisa, os dois extremos unidos por um fio invisível. Yin e yang. Lembram-se de eu vos ter dito isso?"

"Sim, claro."

"Então lembrem-se agora das teorias da Relatividade: a energia e a massa são a mesma coisa em estados diferentes. Então lembrem-se agora da física quântica: a matéria é, ao mesmo tempo, onda e partícula. Então lembrem-se agora das teorias da Relatividade: o espaço e o tempo estão ligados. Tudo é yin e yang. O universo move-se pelo dinamismo dos opostos. Os extremos revelam-se, afinal, diferentes expressões de uma mesma unidade. Yin e yang. Energia e massa. Ondas e partículas. Espaço e tempo. Yin e yang."

"O universo movimenta-se pela dialéctica dos opostos", comentou Tomás.

"O universo é uno, mas não é estático, é dinâmico", enunciou Tenzing.

"Lembram-se de eu vos falar na criação do universo pela dança de Sbiva, através da 250


qual a matéria começou a pulsar e a bailar ao ritmo dessa dança, transformando a vida num grande processo cíclico?"

"Sim."

"Então vejam o ritmo dos electrões em torno dos núcleos, vejam o ritmo das oscilações dos átomos, vejam o ritmo do movimento das moléculas, vejam o ritmo do movimento dos planetas, vejam o ritmo a que pulsa o cosmos. Em tudo há ritmo, em tudo há sincronismo, em tudo há simetria. A ordem emerge do caos como um bailarino rodopia na pista. Já repararam onde está o ritmo do cosmos?"

"Uh... o ritmo do cosmos?"

"Todas as noites, ao longo dos rios da Malásia, milhares de pirilampos juntam-se no ar e emitem luz em uníssono, obedecendo a um sincronismo secreto. Todos os instantes, ao longo do nosso corpo, os fluxos eléctricos bailam em cada órgão ao ritmo de sinfonias silenciosas, cujo compasso é coordenado por milhares de células invisíveis. Todas as horas, ao longo dos nossos intestinos, os restos dos alimentos são empurrados pela ondulação ritmada das paredes do tubo intestinal, obedecendo a uma estranha cadência ondulada. Todos os dias, quando o homem penetra a mulher e o seu fluido vital corre na direção do óvulo, os espermatozóides abanam as caudas ao mesmo tempo e na mesma direção, respeitando uma coreografia misteriosa. Todos os meses, sempre que algumas mulheres passam muito tempo juntas, os seus ciclos menstruais sincronizam-se de forma inexplicável. O que é isto senão o ritmo enigmático da música universal a que dança o cósmico Skiva?"

"Mas na vida é natural que haja sincronia", argumentou Tomás. "Há sincronia na respiração, há sincronia no coração, há sincronia na circulação do sangue..."

"Claro que a sincronia é natural", assentiu Tenzing. "É natural justamente porque a vida flui ao ritmo das batidas da dança de Shiva. Mas não é só a vida, sabe?

Também a matéria que não é viva dança ao som da mesma música."

"A matéria que não é viva?"


"Isso foi descoberto no século XVII, quando Christiaan Huygens observou acidentalmente que os pêndulos de dois relógios de sala colocados lado a lado oscilavam em simultâneo sem variação. Por mais que os tentasse dessincronizar, alterando as oscilações dos pêndulos, Huygens constatou que, ao fim de apenas meia hora, os relógios voltavam a acertar as suas batidas, como se os pêndulos obedecessem a um maestro invisível. Huygens descobriu que a sincronia não é um ritmo exclusivo das coisas vivas. A matéria inerte dança ao mesmo ritmo."

"Bem... uh... é estranho, sem dúvida", reconheceu Tomás. "Mas não se pode generalizar a partir de um único caso descoberto entre a matéria inerte, não é? Por mais que esse caso pareça bizarro, é apenas um caso."

"Está enganado", atalhou o tibetano. "A dança sincronizada dos pêndulos de relógios colocados lado a lado foi apenas a primeira de muitas descobertas semelhantes. Descobriu-se que os geradores colocados em paralelo, mesmo que comecem a funcionar dessincronizados, sincronizam automaticamente o seu ritmo de rotação e é essa estranha batida da natureza que possibilita o funcionamento das redes elétricas. Descobriu-se que o átomo do césio oscila como um pêndulo entre dois níveis de energia e essa oscilação é ritmada com tal precisão que permitiu recorrer ao césio para criar os relógios atômicos, que só erram menos de um segundo em vinte milhões de anos. Descobriu-se que a Lua roda no seu eixo exatamente ao mesmo ritmo com que orbita a Terra e é esse bizarro sincronismo que permite que a Lua tenha sempre a mesma face voltada para nós. Descobriu-se que as moléculas da água, 251


que se movem livremente, quando a temperatura desce aos zero graus juntam-se num movimento sincronizado, e é esse movimento que permite a formação do gelo.

Descobriu-se que alguns átomos, quando colocados a temperaturas próximas do zero absoluto, começam a comportar-se como se fossem um único, são trilhões de átomos envolvidos num gigantesco bailado sincronizado. Essa descoberta permitiu que os seus autores ganhassem o Prémio Nobel da Física em 2001. O Comitê Nobel disse que eles tinham conseguido fazer com que os átomos cantassem em uníssono. Essa foi a expressão usada pelo Comitê no seu comunicado. Que os átomos cantassem em uníssono. Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?"

Tomás e Ariana permaneceram calados. A pergunta era retórica, presumiram, e o facto é que o bodhisattva os surpreendera com a revelação da existência deste ritmo, desta batida a que a matéria pulsa.

"Ao ritmo de que música, pergunto-vos eu?", repetiu Tenzing. "Ao ritmo da música cósmica, a mesma música que inspira Shiva na sua dança, a mesma música que faz com que dois pêndulos oscilem em sincronia, a mesma música que faz com que os geradores coordenem o seu movimento de rotação, a mesma música que faz com que a Lua organize o seu bailado de modo a ter sempre a mesma face voltada para a Terra, a mesma música que faz com que os átomos cantem em uníssono. O

universo baila a um ritmo misterioso. O ritmo da dança de Shiva."

"E de onde vem esse ritmo?", perguntou Tomás.

O tibetano fez um gesto vago com as mãos, abarcando todo o pátio do templo.

"Vem da Dharmakaya, vem da essência do universo", disse. "Nunca ouviram falar das ligações entre a música e a matemática?"

Os dois visitantes assentiram com a cabeça.

"Pois a música do universo oscila ao ritmo das leis da física", afirmou Tenzing.

"Em 1996 descobriu-se que os sistemas vivos e a matéria inerte se sincronizam em obediência a uma mesma formulação matemática. Quero com isto dizer que a batida da música cósmica que provoca os movimentos nos intestinos é a mesma que faz com que os átomos cantem em uníssono, a batida que põe os espermatozóides a abanarem a cauda em sincronia é a mesma que orquestra o gigantesco bailado da Lua em torno da Terra. E a formulação matemática que organiza este ritmo cósmico emerge dos sistemas matemáticos sobre os quais assenta a organização do universo: a Teoria do Caos. Descobriu-se que o caos é síncrono. O caos parece caótico, mas tem, na verdade, um comportamento determinista, obedece a padrões e é regido por regras muito bem definidas. Apesar

de ser síncrono, o seu comportamento nunca se repete, pelo que podemos dizer que o caos é determinista mas indeterminável. É previsível a curto prazo, devido às leis determinísticas, e imprevisível a longo prazo, devido à complexidade do real."

Abriu as mãos. "Haverá sempre mistério no fim do universo."

Tomás remexeu-se no seu assento.

"Admito que tudo isso é misterioso", disse. "Mas acha que os sábios anónimos que descreveram a dança de Shiva sabiam da existência desse... desse ritmo cósmico?"

Tenzing sorriu.

"A propósito de como devemos pensar o mundo, disse o Buda: uma estrela ao anoitecer, uma bolha na corrente, um rasgo de luz numa nuvem de Verão, uma candeia tremulante, um fantasma e um sonho."

Os visitantes hesitaram, desconcertados com a resposta.

252


"O que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que o ritmo cósmico não é perceptível para quem não está iluminado. É preciso ser Buda para observar esse ritmo emergir das coisas. Como podiam os autores das sagradas escrituras saber da existência do ritmo cósmico se ele não é audível para quem não está preparado para o escutar?"

"Pode ser coincidência", argumentou Tomás. "Inventaram a história da dança de Shiva, um belo mito primordial, e depois, por coincidência, descobriu-se que existe um ritmo no universo."

O bodhisattva permaneceu um instante calado, como se estivesse a ponderar o argumento.

"Lembram-se de eu ter dito que os hindus defendem que a realidade última se chama Brahman e que a variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta não passa de diferentes manifestações da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que nós, os budistas, defendemos que a realidade última se chama Dharmakaya e que tudo está relacionado por fios invisíveis, sendo que todas as coisas não passam de diferentes rostos da mesma realidade? Lembram-se de eu ter dito que os taoístas defendem que o Tao é o real, é a essência do universo, é o uno do qual deriva o múltiplo?"

"Sim."

"Será coincidência que, agora, a ciência ocidental venha dizer o mesmo que os nossos sábios orientais já diziam há dois mil anos ou mais?"

"Não estou a entender", indicou Tomás.

O bodhisattva respirou fundo.

"Como sabe, o pensamento oriental defende que o real é uno e as diferentes coisas não passam de manifestações da mesma coisa. Tudo está relacionado."

"Sim, já disse isso."

"A Teoria do Caos veio confirmar que assim é. O bater de asas de uma borboleta influencia o estado do tempo num outro ponto do planeta."

"É verdade."

"Mas a ligação da matéria entre si não se limita a um simples efeito dominó entre as coisas, em que cada uma influencia a outra. A verdade é que a matéria está ligada organicamente entre si. Cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa."

"Isso é o que diz o pensamento oriental", insistiu Tomás.

"É o que diz a ciência ocidental também", argumentou Tenzing.

O historiador fez um ar incrédulo.

"A ciência ocidental?"

"Sim."

"Onde é que está dito que a matéria tem ligação orgânica? Onde é que está dito que cada objeto é uma diferente representação da mesma coisa? É a primeira vez que ouço tal coisa..."

O bodhisattva sorriu.

"Os senhores já ouviram falar na experiência Aspect?"

Tomás fez uma careta de ignorância, mas, ao mirar Ariana, percebeu que a referência lhe era familiar.

253


"O que é isso?", perguntou, dirigindo-se indistintamente ao tibetano e à iraniana.

"Já vi que a menina está a par desta experiência", observou Tenzing, o olhar perscrutador.

"Sim", confirmou ela. "Qualquer físico conhece essa experiência".

Ariana parecia um pouco abalada. Era notório que o seu espírito científico ocupava-se nesse instante com a avaliação das implicações da observação do velho budista, em particular as inesperadas relações entre a experiência que Tenzing mencionara e o conceito de Dharmakaya que acabara de conhecer.

"Alguém se importa de me explicar o que é isso?", insistiu Tomás.

Tenzing voltou a ajeitar o pano púrpura que lhe cobria o corpo. Observou Tomás fixamente.

"Alain Aspect é um físico francês que liderou uma equipa da Universidade de Paris-Sul numa experiência de grande importância, efectuada em 1982. É verdade que ninguém falou dela na televisão ou nos jornais. Em bom rigor, apenas os físicos e alguns outros cientistas a conhecem, mas não se esqueça do que lhe vou dizer."

Ergueu um dedo. "É possível que, no futuro, a experiência Aspect venha a ser recordada como uma das experiências mais extraordinárias da ciência no século XX."

Olhou para Ariana. "Concorda comigo, menina?"

Ariana assentiu com a cabeça.

"Sim."

O bodhisattva manteve o olhar preso na iraniana.

"Um ditado Zen diz: se encontrares no caminho um homem que sabe, não digas nada, não fiques em silêncio." Fez uma pausa. "Não fiques em silêncio", repetiu. Olhou para Ariana e apontou para Tomás. "Abre-lhe a porta."

"Quer que eu lhe descreva a experiência Aspect?"

Tenzing sorriu.

"Outro ditado Zen diz: quando um homem comum acede ao conhecimento, é um sábio. Quando um sábio acede ao conhecimento, é um homem comum." Voltou a indicar Tomás. "Faz dele um homem comum."

Ariana dançou com os olhos entre os dois homens, tentando ordenar o raciocínio.

"A experiência Aspect... uh... quer dizer....", gaguejou. Mirou o tibetano como se pedisse instruções. "Não se pode relatar a experiência Aspect sem falar no Paradoxo EPR, não é?"

"Nagarjuna disse: a sabedoria é como um lago límpido e fresco, pode-se entrar por um lado qualquer."

"Então tenho de entrar pelo lado do Paradoxo EPR", decidiu Ariana. Voltou-se para Tomás.

"Lembras-te de eu te ter contado que a física quântica previa um universo indeterminista, em que o observador faz parte da observação, enquanto a Relatividade preconizava um universo determinista, em que o papel do observador é irrelevante para o comportamento da matéria. Lembras-te disso, não é?"

"Claro."

254


"Ora bem, quando essa inconsistência se tornou clara, começaram os esforços para conciliar os dois campos. Presumia-se, e ainda se presume, que não pode haver leis discrepantes em função da dimensão da matéria, umas para o macrocosmos e outras diferentes para o microcosmos. Tem de haver leis únicas. Mas como explicar as divergências entre as duas teorias? O problema suscitou uma série de debates entre o pai da relatividade, Albert Einstein, e o principal teórico da física quântica, Niels Bohr.

Para demonstrar que a interpretação quântica era absurda, Einstein focou um pormenor muito bizarro da teoria quântica: o de que uma partícula só decide a sua posição quando é observada. Einstein, Podolski e Rosen, cujas iniciais formam EPR, formularam então o seu paradoxo, baseado na ideia de medir dois sistemas separados, mas que tinham estado previamente unidos, para ver se eles tinham comportamentos semelhantes quando observados. Os três propuseram o seguinte: coloquem-se os dois sistemas em caixas, posicionadas em pontos diferentes de uma sala ou até a muitos quilômetros de distância, abram-se as caixas em simultâneo e meçam-se os seus estados internos. Se o seu comportamento for automaticamente idêntico, então isso significa que os dois sistemas conseguiram comunicar um com o outro instantaneamente. Ora, isto é um paradoxo. Einstein e os seus apoiantes observaram que não pode haver transferência instantânea de informação uma vez que nada anda mais depressa do que a luz." "E o que é que o físico quântico respondeu?"

"Bohr? Bohr respondeu que, se se pudesse fazer essa experiência, verificar-se-ia que havia, de fato, comunicação instantânea. Se as partículas subatômicas não existem até serem observadas, argumentou, então não poderão ser encaradas como coisas independentes. A matéria, disse, faz parte de um sistema indivisível."

"Um sistema indivisível", ecoou Tenzing. "Indivisível como a realidade última de Brahman. Indivisível como o real unificado por fios invisíveis da Dharmakaya.

Indivisível como a unidade do Tao do qual deriva o múltiplo. Indivisível como a essência derradeira da matéria, o uno de que todas as coisas e todos os acontecimentos não são senão manifestações do mesmo, a realidade única com diferentes máscaras."

"Calma", contrapôs Tomás. "Isso é o que dizia a física quântica. Mas Einstein pensava de maneira diferente, não é?"

"Sem dúvida", assentiu Ariana. "Einstein achava que esta interpretação era absurda e considerava que o Paradoxo EPR, se pudesse ser testado, o demonstraria."

"O problema é que esse paradoxo não pode ser testado..."

"No tempo de Einstein, não podia", disse a iraniana. "Mas, logo em 1952, um físico da Universidade de Londres chamado David Bohm indicou que havia uma maneira de testar o paradoxo. Em 1964 coube a outro físico, John Bell, do CERN de Genebra, a tarefa de demonstrar

esquematicamente como levar a cabo a experiência. Bell não fez o teste, que só viria a ser concretizado em 1982 por Alain Aspect e uma equipa de Paris. É uma experiência complicada e difícil de explicar a um leigo, mas foi de fato efetuada."

"Os franceses testaram o paradoxo?"

"Sim."


"E então?"

Ariana olhou furtivamente para Tenzing antes de responder à pergunta de Tomás.

"Bohr tinha razão."

255


"Não percebo", disse o historiador. "Tinha razão, como? O que revelou a experiência?"

Ariana respirou fundo.

"Aspect descobriu que, sob determinadas condições, as partículas comunicam automaticamente entre si. Essas partículas sub-atómicas podem até estar em pontos diferentes do universo, umas numa ponta do cosmos e outras noutra, mas a comunicação é instantânea."

O historiador fez um ar incrédulo.

"Isso não é possível", disse. "Nada viaja mais depressa do que a luz."

"É o que diz Einstein e a Teoria da Relatividade Restrita", devolveu a iraniana.

"Mas Aspect provou que as micropartículas comunicam instantaneamente entre si."

"Não haverá qualquer engano nesses testes?"

"Nenhum engano", assegurou a iraniana. "Novas experiências efectuadas em 1998, em Zurique e Innsbruck, usando técnicas mais sofisticadas, confirmaram tudo."

Tomás coçou a cabeça.

"Isso quer dizer que as teorias da Relatividade estão erradas?"

"Não, não, elas estão certas."

"Então como se explica esse fenômeno?"

"Só há uma explicação", disse Ariana. "Aspect confirmou uma propriedade do universo. Ele verificou experimentalmente que o universo tem ligações invisíveis, que as coisas estão relacionadas entre si de um modo que não se suspeitava, que a matéria possui uma organização intrínseca que ninguém imaginava. Se as micropartículas comunicam entre si à distância, isso não se deve a nenhum sinal que estejam a enviar umas às outras. Isso deve-se simplesmente ao fato de que elas constituem uma entidade única. A sua separação é uma ilusão."


"As micropartículas são uma entidade única? A sua separação é uma ilusão? Não estou a perceber..."

Ariana olhou em redor, tentando imaginar a melhor maneira de explicar o sentido das suas palavras.

"Olha, Tomás", disse, agarrando-se a uma idéia. "Já viste alguma vez uma transmissão televisiva de um jogo de futebol?"

"Já, claro."

"Numa transmissão televisiva há, por vezes, várias câmaras apontadas ao mesmo tempo ao mesmo jogador, não é? Quem estiver a ver as imagens de cada câmara e não souber a forma como a coisa funciona, poderá pensar que cada câmara capta um jogador diferente. Numa vê-se o jogador a olhar para a esquerda, na outra vê-se o mesmo jogador a olhar para a direita. Se a pessoa não conhecer esse jogador, seria capaz de jurar que se tratava de jogadores diferentes. Mas, olhando com mais atenção, percebe-se que sempre que o jogador faz um movimento para um lado, o jogador que está na outra imagem faz instantaneamente o movimento correspondente, embora para o outro lado. Isso resulta, claro, de uma ilusão. Na verdade, as duas câmaras mostram sempre o mesmo jogador, só que de ângulos diferentes. Percebeste?"

"Sim. Tudo isso é evidente."

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"Pois foi uma coisa parecida que a experiência Aspect mostrou em relação à matéria. Duas micropartículas podem estar separadas pelo universo inteiro, mas quando uma se mexe, a outra mexe-se instantaneamente. Penso que isso acontece porque, na verdade, não se trata de duas micropartículas diferentes, mas da mesma micropartícula. A existência de duas é uma ilusão, da mesma maneira que a existência de dois jogadores em câmaras posicionadas em ângulos diferentes é uma ilusão. Nós estamos sempre a ver o mesmo jogador, nós estamos sempre a ver a mesma micropartícula. A um nível profundo da realidade, a matéria não é individual, mas uma mera

representação de uma unidade fundamental."

Fez-se silêncio.


Tenzing pigarreou.

"A variedade de coisas e acontecimentos que vemos e sentimos à nossa volta são diferentes manifestações da mesma realidade", murmurou o budista em tom contemplativo. "Tudo está relacionado por fios invisíveis. Todas as coisas e todos os acontecimentos não passam de diferentes rostos da mesma essência. O real é o uno do qual deriva o múltiplo. É isso Brabman, é isso Dharmakaya, é isso Tao. Os textos sagrados explicam o universo." Fechou os olhos e inspirou o ar, numa postura meditativa. "Está escrito na Prajnaparamita, o poema de Buda sobre a essência de tudo."

Começou a recitar, como se entoasse um mantra sagrado:


"Vazia e calma e livre de si

É a natureza das coisas.

Nenhum ser individual

Na realidade existe.


Não há fim nem princípio,

Nem meio.

Tudo é ilusão,

Como numa visão ou num sonho.


Todos os seres do mundo

Estão para além do mundo das palavras.

A sua natureza última, pura e verdadeira,

É como a infinidade do espaço."


Tomás observou-o de olhos arregalados, ainda algo incrédulo.

"Foi assim que Buda descreveu a essência das coisas?", admirou-se. "É

inacreditável."

O bodhisattva encarou-o com serenidade.

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"Chou Chou disse: o Caminho não é difícil, basta que não haja querer ou não querer." Fez um gesto na direção do seu visitante. "Os professores abrem a porta, mas tens de entrar sozinho."

Tomás ergueu a sobrancelha.

"É este o momento de eu entrar?"

"Sim."

Fez-se novo silêncio.

"O que devo então fazer?"

"Entrar."

O historiador olhou para o budista com uma expressão desconcertada.

"Entrar?"

"Um ditado Zen diz: apanha o cavalo vigoroso do teu espírito", declamou Tenzing.

Sorriu. "Para a sua viagem, porém, tenho uma merenda que lhe confortará o estômago do espírito."

"Uma merenda?"

"Sim, mas primeiro vamos ao chá. Tenho sede."

"Espere", exclamou Tomás. "Que merenda é essa?"

"É A Fórmula de Deus."

"Ah!", exclamou o historiador. "Ainda não me explicou o que isso é."

"Não tenho feito outra coisa senão explicar-lhe. Você ouviu-me, mas não me entendeu."

Tomás corou.

"Uh..."

"Um dia, Einstein veio ter comigo e com o jesuíta e disse-nos: falei com o primeiro-ministro de Israel e ele fez-me um pedido. Tive muita relutância em aceitar o pedido, mas aceito agora e quero que vocês me ajudem neste projeto."

"Ele disse-lhe isso? Ele pediu-vos para colaborarem na... na construção de uma bomba atômica simples?"

O bodhisattva contraiu o rosto, surpreendido.

"Bomba atômica? Qual bomba atômica?"

"O projeto A Fórmula de Deus não é sobre a bomba atômica?"

Tenzing mirou Tomás com perplexidade.

"Claro que não."

Tomás olhou de imediato para Ariana e constatou que ela partilhava o seu alívio.


"Vês?", sorriu ele. "O que te dizia eu?"

A iraniana inclinou-se para a frente, como se assim pudesse apreender melhor tudo o que era dito. Já tinha lido o manuscrito e movia-a uma imensa curiosidade em percebê-lo finalmente. Além disso, dispunha de uma motivação adicional; ela sabia que aquela informação era crucial para travar a perseguição que o VEVAK

inevitavelmente lhe iria fazer, a si e a Tomás. Mas não lhe bastava saber a verdade; 258


tinha também de a provar. Foi por isso que encarou o tibetano com a ansiedade desenhada no rosto.

"Mas, então, explique-me", quase implorou. "O que é afinal o projeto A Fórmula de Deus?"

"Shunryu Suzuki disse: quando compreenderes totalmente uma única coisa, compreendes tudo."

"Compreender o que é A Fórmula de Deus significa compreender tudo?"

"Sim."

"Mas qual é o tema de A Fórmula de Deus?"

Tenzing Thubten ergueu a mão, deslizou-a lentamente pelo ar, esboçando num gracioso movimento de ginástica chinesa, e voltou a imobilizar-se. Respirou a brisa que pairava sobre o pátio do templo e sentiu o calor aprazível dos raios de sol filtrados pelas folhas das árvores. Fez sinal a um monge que passava e pediu-lhe chá. Depois recolheu-se ao seu espaço e encarou os visitantes.

"É a maior busca jamais empreendida pela mente humana, a demanda do mais importante enigma do universo, a revelação do desígnio da existência."

Tomás e Ariana observavam-no, expectantes, incapazes quase de reprimirem a ansiedade. O bodhisattva percebeu a angústia que os sufocava e sorriu, disposto enfim a deslindar o segredo.

"A prova científica da existência de Deus."


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