Capítulo 10
Era noite fechada sobre a Comuna. O ar era cristal negro, limpo e frio. Os ventos estavam fortes. Dirk estava grato pelo aeromóvel blindado dos Braiths, com a cabine quente, completamente fechada.
Voavam a uns duzentos metros acima das planícies e das suaves colinas, acelerando o máximo possível. Uma vez, antes que Desafio desaparecesse atrás deles, Dirk olhou para trás para ver se havia sinais de perseguição. Não viu nada, mas a cidade emereliana chamou sua atenção novamente. Aquela alta lança negra, que logo estaria perdida contra o céu mais negro ainda, o fazia se lembrar de uma árvore presa em um incêndio florestal, sem galhos e folhas, nem nada para evocar sua glória passada, além de um tronco carbonizado e escuro. Lembrou-se de Desafio como Gwen lhe mostrara pela primeira vez, quando ele pedira para ver uma cidade com vida: brilhante contra o entardecer, impossivelmente alta e prateada, coroada pelas rajadas ascendentes de luz. Uma casca morta, agora, assim como estavam mortos os sonhos de seus construtores. Os caçadores de Braith matavam mais do que homens e animais.
- Logo estarão atrás de nós, t'Larien - Jaan Vikary falou. - Você não precisa procurar por eles.
Dirk voltou a atenção aos instrumentos.
- Para onde vamos? Não podemos apenas voar sobre a Comuna a noite toda, sem rumo. Larteyn?
- Não podemos voltar para Larteyn agora - Vikary respondeu. Havia embainhado o laser, mas estava com a mesma expressão sombria desde Desafio, quando derrubara Myrik. - Você é tão tolo que não percebe o que eu fiz? Eu rompi o código, t'Larien. Sou um renegado, um criminoso, um rompe-duelos. Eles virão atrás de mim e me matarão como a um quase-homem. - Entrelaçou as mãos pensativamente sob o queixo. - Nossa única esperança... não sei. Talvez não haja esperança.
- Fale por você. Tenho um pouco mais de esperança agora do que há um minuto, quando estava lál
Vikary olhou para ele e sorriu, apesar de si mesmo.
- E verdade. Embora esse seja um ponto de vista bem egoísta. Não foi por você que fiz o que fiz.
- Por Gwen?
Vikary assentiu.
- Ele... ele nem sequer lhe concedeu a honra de recusar. Como se ela fosse um animal. E mesmo assim... bem, pelo código, ele estava certo. O código pelo qual tenho vivido. Eu poderia tê- -lo matado por isso. Garse tentou, como você testemunhou. Ele estava zangado, porque Myrik tinha... tinha danificado sua propriedade e manchado nossa honra. Ele teria vingado essa falta, se eu tivesse permitido. - Suspirou. - Você entende por que não permiti, t'Larien? Entende? Vivi em Ávalon, e amei Gwen Delvano. Ela jazia ali, e continuava viva apenas por um capricho da sorte. Myrik Braith não se importaria se ela morresse, nem os outros. Mas Garse teria garantido ao homem que fez isso uma morte limpa e decente, e teria lhe dado o beijo compartilhado antes de tirar sua vida insignificante. Eu... eu me importo com Garse. Mesmo assim, não podia deixá-lo fazer isso, t'Larien, não vendo Gwen tão... tão desvalida e imóvel. Não pude permitir isso.
Vikary ficou quieto, meditando. Do lado de fora, durante este momento de silêncio, Dirk pôde ouvir o vento feroz de Worlorn sibilando.
- Jaan - Dirk falou depois de um instante -, precisamos decidir para onde ir. Temos de levar Gwen para um abrigo. Algum lugar onde ela possa ficar confortável, onde não seja incomodada. Talvez conseguir um médico para vê-la.
- Não conheço médicos em Worlorn - Vikary respondeu. - Mesmo assim, devemos levar Gwen para uma cidade. - Pensou no assunto. - Esvoch é a mais próxima, mas está em ruínas. Kryne
Lamiya é então nossa melhor opção, acho, já que é a segunda mais perto de Desafio. Vire para o sul.
Dirk virou o aeromóvel em um arco amplo, deslizando para cima e apontando para a distante linha da cadeia de montanhas. Lembrava-se vagamente do caminho que Gwen fizera da torre brilhante de di-Emerel até a cidade desolada de Escuralba, com sua música lúgubre.
Enquanto voavam em direção às montanhas, Vikary ficou pensativo novamente, encarando cegamente a escuridão da noite de Worlorn. Dirk, que compreendia até que ponto o kavalariano estava sofrendo, não tentou interromper sua melancolia, mas mergulhou nos próprios pensamentos em silêncio. Sentia-se muito cansado; a dor na cabeça voltara a incomodá-lo, e de repente ficou ciente de uma secura na garganta e na boca. Tentou se lembrar da última vez que havia comido ou bebido, mas não conseguiu; de algum modo perdera toda a noção de tempo.
Os grandes picos negros de Worlorn se aproximavam deles, e Dirk levou o aeromóvel mais para cima, para sobrevoá-los, e nem assim ele ou Jaan Vikary disseram uma palavra. Foi só quando as montanhas ficaram para trás e os bosques, adiante, que o kavalariano falou novamente, mas foi apenas para dar instruções sobre o percurso correto. Depois voltou a se calar, e foi em silêncio que voaram os solitários quilômetros até seu destino.
Dessa vez Dirk sabia o que esperar, e escutou. A música de Lamiya-Bailis chegou aos seus ouvidos, um tênue gemido do vento, muito antes que a própria cidade se erguesse em meio à floresta. Fora da blindagem em que estavam, não havia nada além de desolação: os intrincados bosques às escuras embaixo deles, o céu quase sem estrelas acima. Mesmo assim, as notas de desespero sombrio vieram, tilintando, e o tocaram onde estava.
Vikary ouviu a música também. Olhou de relance para Dirk.
- Esta é uma cidade adequada para nós agora, t'Larien.
- Não - Dirk respondeu, alto demais, sem querer acreditar naquilo.
- Para mim, então. Todos os meus esforços foram em vão. Os povos que lutei para salvar não permanecerão a salvo por muito tempo. Os Braiths poderão caçá-los agora, korariel de Jadeferro ou não. Não posso impedi-los. Talvez Garse possa, mas o que um homem sozinho pode fazer? Talvez nem tente. Era minha obsessão, não a dele. Garse está perdido também. Voltará para Alto Kavalaan sozinho, acho, e descerá sozinho até a fortaleza Jadeferro, e o conselho de altos-senhores tirará meus nomes. Ele terá que encontrar uma faca para arrancar as pedrardentes de seu bracelete, e usar ferro vazio sobre o braço. Seu teyn está morto.
- Em Alto Kavalaan, talvez. - Dirk concordou. - Mas você viveu em Ávalon também, lembra?
- Sim - Vikary respondeu. - Infelizmente. Infelizmente.
A música crescia e retumbava ao redor deles, e a Cidade Sereia tomava forma embaixo: o círculo exterior de torres, como mãos esqueléticas em gélida agonia, as pontes claras sobre canais escuros, os campos de musgo de brilho opaco, os pináculos que assobiavam ao serem atingidos pelo vento. Uma cidade branca, uma cidade morta, uma floresta de ossos disformes.
Dirk circundou até encontrar o mesmo prédio em que havia pousado com Gwen, e começou a aterrissar. Na pista de pouso, os dois carros abandonados ainda descansavam sem ser perturbados, cobertos de pó. Pareciam, para Dirk, fragmentos de um sonho havia muito esquecido. Em algum momento, por alguma razão, pareceram importantes; mas ele, Gwen e o mundo estavam diferentes agora, e como era difícil lembrar que eventual relevância esses fantasmas metálicos tiveram.
- Vocês estiveram aqui antes - Vikary disse, e Dirk olhou para ele e assentiu. - Mostre o caminho, então - o kavalariano ordenou.
- Eu não...
Mas Vikary já tinha se levantado. Pegou Gwen gentilmente, tomando-a nos braços, e ficou esperando.
- Mostre o caminho - disse novamente.
Então Dirk saiu da pista de aterrissagem e caminhou até os salões onde os murais cinza e brancos dançavam ao som da sinfonia escuralbina, e tentou porta após porta, até encontrar um cômodo ainda mobiliado. Era uma suíte de quatro cômodos, na verdade, todos desertos, de pé-direito alto e longe de estarem limpos. As camas - dois dos aposentos eram quartos - eram buracos circulares no chão; os colchões estavam cobertos com um couro liso e brilhante que exalava um certo odor desagradável, como leite azedo. Mas eram camas, macias o suficiente, e um lugar para descansar, e Vikary colocou Gwen cuidadosamente em uma delas. Quando ela estava acomodada - parecia quase serena - Jaan deixou Dirk sentado ao seu lado, de pernas cruzadas, e saiu para revistar o aeromóvel que haviam roubado. Voltou pouco tempo depois com uma manta para Gwen e um cantil.
- Beba apenas um gole - disse, dando a água para Dirk.
Dirk pegou o cantil, abriu a tampa, tomou um gole e o devolveu. O líquido estava morno e era ligeiramente amargo, mas aliviou a sequidão da garganta.
Vikary molhou uma faixa de tecido cinza e começou a limpar o sangue seco da parte de trás da cabeça de Gwen. Esfregou gentilmente a crosta marrom, molhando o trapo novamente e ainda mais uma vez, trabalhando até que o fino cabelo dela estivesse limpo e solto como um reluzente leque no colchão, brilhando sob as luzes vacilantes dos murais. Quando terminou, enfaixou sua cabeça e olhou para Dirk.
- Ficarei de guarda - disse. - Vá para o outro aposento e durma.
- Precisamos conversar - Dirk falou, hesitante.
- Mais tarde. Agora não. Vá dormir.
Dirk não tinha condições de discutir; seu corpo estava exausto e sua cabeça ainda latejava. Foi para o outro quarto e jogou-se desajeitadamente no colchão cheirando a azedo.
Mas, apesar das dores, o sono não veio imediatamente. Talvez fosse a dor de cabeça, ou o movimento inquieto da luz que percorria as paredes e o assombrava mesmo com os olhos fechados. O pior, no entanto, era a música. Não o abandonava, e parecia ecoar mais alto quando seus olhos se fechavam, como se cada acorde estivesse preso dentro de seu crânio: sopros finos, gemidos e assobios, e o incessante bater do tambor solitário.
Sonhos febris povoaram aquela noite interminável - visões intensas, surreais e quentes, cheias de ansiedade. Três vezes Dirk despertou de seu sono inquieto, para sentar-se na cama, tremendo e transpirando, e encarar a canção de Lamiya-Bailis mais uma vez, sem nunca se lembrar do que o acordara. Uma vez pensou ter ouvido vozes no quarto ao lado. Outra vez teve quase certeza de ter visto Jaan Vikary com as costas apoiadas contra uma parede distante, observando-o. Nenhum deles falou, e Dirk levou quase uma hora para dormir novamente. Apenas para acordar de novo, em um quarto vazio e com luzes inquietas. Perguntou-se se eles o haviam deixado ali sozinho para viver ou morrer; quanto mais pensava nisso, mais o medo crescia, e pior seu tremor ficava. Mas, de algum modo, foi incapaz de se levantar e ir até o quarto adjacente para conferir por si mesmo. Em vez disso, fechou os olhos e tentou afastar qualquer pensamento.
E então amanheceu. O Satã Gordo estava a meio caminho no céu, e sua luz febril, vermelha e fria como os pesadelos de Dirk, atravessava o vitral de uma janela alta (predominantemente claro no centro, mas cercado com um padrão intrincado de arabescos vermelho-acastanhados e cinza-fumo) e acertava seu rosto. Dirk virou de lado e lutou para se sentar, enquanto Jaan Vikary aparecia para lhe oferecer o cantil.
Dirk tomou vários longos goles, quase engasgando com a água fria e deixando um pouco para molhar os lábios rachados e secos e escorrer pelo queixo.
- Você encontrou água - disse.
Vikary fechou o cantil novamente e assentiu.
- As estações de bombeamento estão fechadas por anos, então não há água potável nas torres de Kryne Lamiya. Mesmo assim, os canais ainda estão cheios. Fui até lá noite passada, enquanto você e Gwen dormiam.
Dirk ficou em pé com dificuldade, e Vikary estendeu uma mão para ajudá-lo a sair da cama funda.
- Gwen está...?
- Ela recuperou a consciência no início da noite, t'Larien. Conversamos e contei para ela o que fiz. Acho que se recuperará em breve.
- Posso falar com ela?
- Ela está descansando agora, dormindo normalmente. Mais tarde tenho certeza de que desejará falar com você, mas neste momento não acho que deva acordá-la. Ela tentou se sentar noite passada e se sentiu muito mal e nauseada.
Dirk assentiu.
- Entendo. E quanto a você? Conseguiu dormir? - Enquanto falava, deu uma olhada no quarto. A música escuralbina havia diminuído de algum modo. Ainda tocava, ainda gemia, reclamava e permeava todo o ar de Kryne Lamiya; mas, aos seus ouvidos, parecia mais fraca e mais distante, então talvez estivesse finalmente se acostumando a ela, aprendendo a desligá-la de sua percepção consciente. Os murais iluminados, como as pedrardentes de Larteyn, se desvaneciam e morriam sob a luz solar; as paredes estavam cinzentas e vazias. Os poucos móveis que havia (umas poucas cadeiras de aspecto desconfortável) sobressaíam das paredes e do chão: extrusões retorcidas que combinavam com a cor e o tom do aposento tão bem que eram quase invisíveis.
- Eu dormi o suficiente - Vikary disse. - Isso não é importante. Estive considerando nossa posição. - Fez um gesto. - Venha.
Atravessaram outro aposento, uma sala de jantar vazia, e saíram até um dos muitos balcões que davam para a cidade de Escuralba. De dia, Kryne Lamiya era diferente, menos deses- peradora; mesmo o pálido sol de Worlorn era o suficiente para fazer cintilar as águas velozes dos canais, e no dia crepuscular as claras torres pareciam menos sepulcrais.
Dirk estava fraco e muito faminto, mas a dor de cabeça se fora e a sensação do vento frio em seu rosto era agradável. Afastou o cabelo - totalmente emaranhado e imundo - dos olhos e esperou que Jaan começasse a falar.
- Observei daqui durante a noite - Vikary falou, com os cotovelos apoiados nos anteparos frios e os olhos perscrutando o horizonte. - Estão procurando por nós, t'Larien. Duas vezes vislumbrei aeromóveis sobre a cidade. Na primeira vez foi apenas uma luz distante, então talvez estivesse enganado. Mesmo assim, a segunda não era engano. O carro com cabeça de lobo de Chell voava perto do nível do solo sobre os canais, com uma espécie de holofote. Passou bem perto. Levava um cão de caça também. Eu o ouvi uivar, inquieto com a música escuralbina.
- Não nos encontraram. - Dirk comentou.
- É verdade - Vikary respondeu. - Acho que ficaremos seguros aqui por algum tempo. A menos... não sei bem como encontraram vocês em Desafio, e isso me dá um certo temor. Se nos rastrearem até Kryne Lamiya e vasculharem a cidade com cães de caça Braiths, correremos sério perigo. Não temos o anulador de odores agora. - Olhou para Dirk. - Como souberam que vocês estavam ali? Tem alguma idéia?
Não - Dirk respondeu. - Ninguém sabia. Ninguém nos seguiu. Talvez tenham deduzido. Era a escolha mais lógica, no final das contas. A vida era mais confortável em Desafio do que em qualquer outra cidade. Mais fácil. Você sabe.
- Sim, eu sei. Não aceito sua teoria, contudo. Lembre-se, t'Larien, Garse e eu consideramos este problema também, quando você nos deixou envergonhados e sozinhos no quadrado da morte. Desafio era a escolha mais óbvia e, por isso, a menos lógica, achamos. Parecia mais provável que vocês tivessem ido para Musquel e viver do peixe que conseguissem pescar, ou que Gwen caçasse para vocês dois nos bosques que conhece tão bem. Garse chegou até a sugerir que vocês simplesmente tivessem escondido o aeromóvel e permanecido em outro lado de Larteyn, então poderiam rir de nós enquanto estivéssemos procurando por vocês planeta afora.
Dirk se inquietou.
- Sim. Bem, suponho que nossa escolha tenha sido estúpida.
- Não, t'Larien. Eu não disse isso. A única escolha estúpida, imagino, teria sido voar para a Cidade do Tanque Sem Estrelas, onde os Braiths eram numerosos. Desafio foi uma escolha sutil, talvez involuntariamente sutil. Parecia uma escolha tão errada que era realmente a certa. Entende? Não vejo como os Braiths descobriram vocês, por nenhum processo de dedução.
- Talvez - Dirk falou. Pensou um pouco. - Lembro que soubemos que estavam ali quando Bretan falou conosco. Ele... bem, não estava testando uma teoria. Ele sabia que estávamos ali, em algum lugar.
- Tem alguma idéia de como isso foi possível?
- Não. Nenhuma idéia.
- Teremos que viver com o temor de que nos encontrem aqui, então. Do contrário, a menos que os Braiths possam repetir esse milagre, estamos seguros. Entenda, no entanto, que nossa posição não é menos difícil. Temos abrigo e água à vontade, mas nenhuma comida. Concluí que devemos ir para o porto espacial e deixar Worlorn o mais rápido possível. Nossa fuga definitiva será muito difícil. Os Braiths nos anteciparão. Tenho minha pistola laser, e dois lasers de caça que encontrei no aeromóvel. Além do próprio veículo, blindado e bem armado, provavelmente pertencente a Roseph Alto-Braith Kelcek...
- Um dos carros abandonados na pista de pouso ainda pode funcionar - Dirk assinalou.
- Então temos dois aeromóveis, se precisarmos deles - Vikary falou. - Contra nós, pelo menos oito caçadores Braiths ainda vivos, provavelmente nove. Não sei o quão seriamente feri Lorimaar Arkellor. É possível que eu o tenha matado, mas estou inclinado a duvidar disso. Os Braiths podem provavelmente colocar oito aeromóveis no céu de uma só vez, se quiserem, embora seja mais tradicional voarem juntos, teyn-e-teyn. Cada carro estará armado. Eles têm suprimentos, energia e comida. Estão em número maior do que nós. Possivelmente, já que sou um renegado rompe-duelos, conseguirão persuadir Kirak Açorrubro Cavis e os dois caçadores do grupo Shanagate a se juntarem a eles na perseguição. Além disso, há Garse Janacek.
- Garse?
- Espero que ele tenha tirado as pedrardentes do braço e voltado para Alto Kavalaan. Ele estará envergonhado, sozinho, vestindo ferro morto. Não é um destino fácil, t'Larien. Eu o desgracei e a Jadeferro. Sinto pela dor dele, mas espero que parta. E rezo por isso. Pois há outra possibilidade, veja bem.
-Outra...?
- Ele pode vir atrás de nós. Não poderá deixar Worlorn até que a nave chegue. Isso levará um tempo. Não sei o que fará.
- Certamente não se juntará aos Braiths. São inimigos, e você é seu teyn e Gwen é sua cro-betheyn. Ele pode querer me matar, não duvido, mas...
- Garse é mais kavalariano do que eu, t'Larien. Sempre foi. E agora mais do que nunca, desde que eu não sou mais kavalariano depois de tudo o que fiz. O antigo costume requer que o teyn de um homem, não menos do que qualquer outro, mate um rompe-duelos. É um costume que apenas os muito fortes conseguem seguir. O laço de ferro-e-fogo é próximo demais para a maioria, então eles são deixados sozinhos para lamentar. Mas Garse Janacek é um homem muito forte, mais forte do que eu mesmo de muitas maneiras. Não sei. Não sei.
- E se ele vier atrás de nós?
Vikary falou calmamente.
- Não levantarei uma arma contra Garse. Ele é meu teyn, mesmo que eu não seja mais o dele, e já o magoei o bastante, falhei com ele, o envergonhei. Ele convive com uma dolorosa cicatriz a maior parte de sua vida adulta por minha causa. Uma vez, quando éramos jovens, um homem mais velho ficou ofendido com uma de suas brincadeiras e o desafiou. O modo era um disparo, e lutamos teyn-e-teyn. Em minha infinita sabedoria, convenci Garse de que nossa honra estaria satisfeita se atirássemos para o ar. Ele fez isso, lamentavelmente. Os outros decidiram ensinar Garse uma lição sobre humor. Para minha vergonha, permaneci intocado, enquanto ele foi desfigurado por causa da minha tolice. Mesmo assim, nunca me reprovou. Da primeira vez que estive com ele depois do duelo, quando ainda estava se recuperando dos ferimentos, me disse: "Você estava certo, Jaantony, ele atiraram para o ar. Pena que erraram". - Vikary riu, mas Dirk olhou para ele e viu que seus olhos estavam cheios de lágrimas, sua boca apertada de consternação. Não chorou, no entanto; por um supremo esforço de vontade, impediu que as lágrimas caíssem.
Abruptamente, Jaan se virou e entrou no edifício, deixando Dirk sozinho no balcão com o vento, a branca cidade crepuscular e a música de Lamiya-Bailis. Ao longe, as brancas mãos ossudas se erguiam, refreando os bosques invasores. Dirk as estudou, pensativamente, refletindo sobre as palavras de Vikary.
Minutos depois, o kavalariano voltou, de olhos secos e rosto inexpressivo.
- Sinto muito - começou.
- Não precisa...
- Devemos chegar ao cerne, t'Larien. Independentemente se Garse vai nos procurar ou não, enfrentamos riscos formidáveis. Temos armas, se precisarmos lutar, mas ninguém para usá-las. Gwen é uma boa atiradora, e bastante audaz, mas está machucada e instável. E você... posso confiar em você? Coloco isso sem meias-palavras. Confiei em você uma vez, e você me traiu.
- Como posso responder a essa pergunta? - Dirk falou. - Você não tem que acreditar em nenhuma promessa que eu lhe faça. Mas os Braiths querem me matar também, lembra? E Gwen também. Ou você acha que eu a trairia tão facilmente quanto... - Interrompeu-se, horrorizado com as próprias palavras.
- ... tão facilmente quanto me traiu. - Vikary completou, com um sorriso duro. - Você é bastante franco. Não, t'Larien, não acho que trairia Gwen. Mesmo assim, não achei que nos abandonaria quando o nomeamos keth e você aceitou o nome. Não teríamos que duelar se não fosse por você.
Dirk assentiu.
- Sei disso. Talvez eu tenha cometido um erro. Não sei. Eu teria morrido, no entanto, se tivesse sido leal a vocês.
- Morrido como um keth de Jadeferro, com honra.
Dirk sorriu.
- Gwen me atraía mais do que a morte. Espero que entenda isso.
- Entendo. Em última instância, ela ainda está entre nós. Encare isso, aceite a verdade. Cedo ou tarde, ela escolherá.
- Ela escolheu, Jaan, quando partiu comigo. Você tem que encarar isso - Dirk falou rápida e teimosamente; e se perguntava se ele mesmo acreditava nisso.
- Ela não tirou o jade-e-prata - Vikary respondeu e gesticulou impacientemente. - Isso não importa. Acreditarei em você, por enquanto.
- Bem. O que quer que eu faça?
- Alguém precisa ir a Larteyn.
Dirk franziu o cenho.
- Por que está sempre querendo que eu me suicide, Jaan?
- Não disse que você deve fazer esse voo, t'Larien - Vikary respondeu. - Eu mesmo o farei. Será perigoso, mas deve ser feito.
- Por que?
- O kimdissiano.
- Ruark? - Dirk quase se esquecera de seu ex-anfitrião e cúmplice.
Vikary assentiu.
- Ele tem sido amigo de Gwen desde a época de Ávalon. Embora nunca tenha gostado de mim, ou eu dele, não posso abandoná-lo completamente. Os Braiths...
- Entendo. Mas como chegará até ele?
- Se eu conseguir chegar a Larteyn em segurança, posso chamá-lo pelo painel. É minha esperança, ao menos. - Deu de ombros resignado.
- E eu?
- Fique aqui com Gwen. Cuide dela, proteja-a. Eu deixarei um dos rifles laser de Roseph com você. Se ela se recuperar o suficiente, deixe Gwen usá-lo. Ela provavelmente é mais habilidosa do que você. De acordo?
- De acordo. Não parece muito difícil.
- Não - concordou Vikary. - Espero que vocês permaneçam escondidos em segurança e que, ao regressar com o kimdissiano, eu os encontre como os deixei. Se for necessário fugir, vocês têm o outro aeromóvel; nas proximidades há uma caverna que Gwen conhece. Ela pode lhe mostrar o caminho. Devem ir para essa caverna se tiverem que deixar Kryne Lamiya.
- E se você não voltar? Existe essa possibilidade, você sabe!
- Neste caso, estarão por conta própria novamente, como da primeira vez que fugiram de Larteyn. Vocês tinham planos. Sigam esses planos, se puderem. - Ele sorriu duramente. - Espero retornar, no entanto. Lembre-se disso, t'Larien. Lembre- -se disso.
Havia uma crispação férrea na voz de Vikary, um eco que fazia Dirk se lembrar de outra conversa no mesmo vento gelado. Com assombrosa nitidez, as antigas palavras de Jaan voltaram até Dirk: Mas eu existo. Lembre-se disso... Aqui não é Avalon, t'Larien, e hoje não é ontem. Este é um mundo agonizante, um mundo sem códigos, então cada um de nós deve se aferrar a qualquer código que tenha trazido consigo. Mas Jaan Vikary, Dirk pensou irritado, trouxera dois códigos consigo quando veio para Worlorn.
Enquanto Dirk não trouxera nenhum; só seu amor por Gwen Delvano.
Gwen ainda estava dormindo quando os dois homens saíram do balcão. Sem despertá-la, foram juntos até a pista de pouso. Vikary havia esvaziado o aeromóvel Braith totalmente. Roseph e seu teyn tinham obviamente planejado uma breve excursão de caça nos bosques quando surgiram as novidades. Dirk lamentou que não tivessem planejado uma viagem mais longa.
Dessa maneira, Vikary encontrara apenas quatro barras de proteína, além de dois lasers de caça e algumas roupas que deixara penduradas sobre os assentos. Dirk comeu uma das barras imediatamente - estava faminto - e guardou as outras três no bolso da pesada jaqueta que escolheu. Ficava um pouco folgada, mas não estava de todo mal; o teyn de Roseph tinha quase o mesmo tamanho de Dirk. E era de couro grosso e quente, tingido de púrpura, com a gola, o punho e os acabamentos de pele branca encardida. As duas mangas da jaqueta estavam pintadas com desenhos intrincados e sinuosos; a manga direita era vermelha e negra, a esquerda, prata e verde. Também encontraram uma jaqueta menor (de Roseph, sem dúvida), e Dirk a pegou para Gwen.
Vikary pegou os dois rifles laser, longos tubos de plástico negro com lobos entalhados nas coronhas brancas. Pendurou um no ombro e deu o segundo para Dirk, com instruções resumidas de como utilizá-lo. A arma era muito leve e ligeiramente oleosa ao tato. Dirk a segurou desajeitadamente com uma mão.
As despedidas foram breves e muito formais. Então Vikary se fechou no grande aeromóvel Braith, ergueu-o do chão e disparou pelo ar. Grandes nuvens de poeira se levantaram com sua partida, e Dirk retrocedeu, quase asfixiado, com uma mão sobre a boca e outra no rifle.
Quando voltou à suíte, Gwen acabara de despertar.
- Jaan? - perguntou, levantando a cabeça do colchão de couro para ver quem acabava de entrar. Gemeu e deitou-se rapidamente, e começou a massagear as têmporas com as duas mãos. - Minha cabeça - disse em um choramingo.
Dirk apoiou o laser contra a parede, junto à porta, e sentou-se ao lado da cama.
- Jaan acabou de partir - disse. - Está voando para Larteyn para buscar Ruark.
A única resposta de Gwen foi outro gemido.
- Quer alguma coisa? - Dirk perguntou. - Água? Comida? Temos isso aqui. - Tirou as barras de proteína do bolso da jaqueta e mostrou para ela.
Gwen deu uma olhada de relance e fez uma careta de desgosto.
- Não - disse. - Tire isso daqui. Não estou com fome.
- Você devia comer alguma coisa.
- Eu comi - ela respondeu. - Noite passada. Jaan esmagou umas barras dessas na água e fez um tipo de pasta. - Tirou as mãos das têmporas e se virou para Dirk. - Não consegui mantê-las no estômago - comentou. - Não me sinto muito bem.
- Imagino que sim - Dirk disse. - Não pode esperar se sentir bem depois do que aconteceu. Provavelmente está com uma concussão, e tem sorte de não estar morta.
- Jaan me contou - ela disse, um pouco irritada. - Sobre o que aconteceu depois também... o que ele fez com Myrik. - Franziu o cenho. - Acho que dei um bom golpe nele quando caímos. Você viu, não viu? Senti como se tivesse quebrado a mandíbula dele, ou pelo menos meus dedos. Mas ele nem notou.
- Não - concordou Dirk.
- Conte-me o que aconteceu depois. Jaan foi muito esquemático. Quero saber. - A voz dela estava cansada e cheia de dor, mas falava sério.
Então Dirk lhe contou.
- Ele apontou a arma para Garse? - ela disse em determinado momento. Dirk assentiu, e ela continuou a escutar o relato.
Quando ele terminou, Gwen estava muito silenciosa. Seus olhos se fecharam por um breve momento, abriram novamente, então fecharam e não reabriram. Ficou deitada de lado, imóvel, em posição fetal, as mãos fechadas sob o queixo. Observando-a, os olhos de Dirk foram atraídos para o antebraço esquerdo dela, para o frio lembrete de jade-e-prata que Gwen ainda usava.
- Gwen - ele disse, suavemente. Os olhos dela se abriram novamente, por um breve momento, e ela sacudiu a cabeça violentamente, em um silencioso grito de não! - Ei - ele insistiu, mas ela fechou os olhos com força e perdeu-se em si mesma. Dirk ficou sozinho com o bracelete dela e os próprios medos.
O quarto estava inundado pela luz do sol, ou pelo que chamavam de luz de sol em Worlorn; os fulgores crepusculares do meio-dia eram filtrados pela janela, e nuvens de poeira vagavam preguiçosamente nos amplos feixes de luz. A luz iluminava metade do colchão; Gwen estava deitada metade na sombra, metade fora dela. Dirk, que não falou novamente com Gwen, nem olhou para ela, ficou observando os desenhos que a luz fazia no chão.
No centro do quarto, tudo estava cálido e vermelho, e a poeira dançava, saindo da escuridão e tingindo-se de carmesim, depois dourado, lançando sombras minúsculas até sair da luz novamente e desaparecer. Dirk levantou a mão e a manteve estendida. Por minutos? Horas? Por um tempo. Sua mão ficava cada vez mais quente; a poeira girava em torno dela; as sombras caíam feito água quando ele retorcia e virava os dedos; o sol era amigável e familiar. Mas, repentinamente, ficou ciente de que os movimentos de sua mão, assim como a infinita dança da poeira, não tinham propósito, nem padrão, nem significado. Era a música que lhe dizia isso; a música de Lamiya-Bailis. Abaixou o braço e franziu o cenho.
Ao redor do grande centro de luz e vida, havia um contorno fino e sinuoso onde o sol brilhava através do batente negro e vermelho da janela. Ou lutava para abrir caminho. Era apenas uma borda pequena, mas colocava um limite preciso no pó que se mexia por todos os lados.
Mais além havia cantos escuros, partes do quarto que o Cubo e os Sóis Troianos nunca alcançavam, onde gordos demônios e as encarnações dos medos de Dirk se debruçavam obscuramente, sempre a salvo de qualquer escrutínio.
Sorrindo e coçando a barba rala que lhe cobria as faces até o queixo (ele as sentia pinicar), Dirk estudou esses cantos e deixou que a música escuralbina entrasse em sua alma. Não sabia como fizera para deixá-la de lado, mas agora ela estava de volta e o cercava completamente.
A torre em que estavam emitiu uma longa nota baixa. A anos ou séculos de distância, um coro respondeu com vibrantes gemidos de viúva. Ouviu soluços trêmulos, o choro de bebês abandonados, e o som escorregadio de facas deslizando e cortando carne fresca. E o tambor. Como o vento podia bater um tambor?, pensou. Não sabia. Talvez fosse outra coisa. Mas soava como um tambor. Tão terrivelmente longe, pensou, e tão sozinho.
Tão horrível e incessantemente sozinho.
As névoas e as sombras se reuniam no canto mais afastado e mais escuro do quarto, e então começaram a clarear. Dirk viu uma mesa e uma cadeira baixa brotando das paredes e do chão como estranhos vegetais de plástico. Perguntou-se brevemente como os via; o sol se movera um pouco, e apenas um fino feixe de luz penetrava pela janela agora, e finalmente também se dissipou, e o mundo ficou cinza.
Quando o mundo ficava cinza, ele percebeu, a poeira não dançava. Não. Nem um pouco. Sentiu o ar para ter certeza; não havia poeira, nem calor, nem luz do sol. Assentiu sabiamente. Parecia que tinha descoberto alguma grande verdade.
Luzes fracas se moviam pelas paredes, fantasmas despertando para mais uma noite. Fantasmas e vestígios de sonhos antigos. Todos eles eram cinza e branco; a cor era apenas para os vivos, não tinha lugar ali.
Os fantasmas começaram a se mexer. Estavam presos nas paredes, cada um deles; de tempos em tempos, Dirk imaginava ver um deles irromper em dança frenética e bater com impotência e desespero contra as paredes de vidro que o mantinha fora do quarto. Mãos espectrais batiam, batiam, mas o quarto não estremecia. A quietude era parte dessas coisas; os fantasmas eram insubstanciais e, por mais que batessem, só podiam seguir dançando.
A dança - uma dança macabra - de sombras amorfas... Oh, mas era lindo! Movendo-se, afundando, se contorcendo. Paredes de chama cinzenta. Muito melhores do que as nuvens de poeira, aquelas dançarinas; essas seguiam um padrão e acompanhavam a canção da Cidade Sereia.
Desolação. Vazio. Decadência. Um único tambor, batendo devagar. Sozinho. Sozinho. Sozinho. Nada tem sentido.
- Dirk!
Era a voz de Gwen. Ele sacudiu a cabeça, desviou o olhar das paredes, até onde ela estava deitada na escuridão. Era noite. De alguma forma, o dia se fora.
Gwen, que não havia dormido, olhava para ele.
- Sinto muito - ela disse. Estava lhe dizendo algo. Mas ele já sabia, sabia pelo silêncio dela, sabia... pelo tambor, talvez. Por Kryne Lamiya.
Ele sorriu.
- Você nunca esqueceu, não é? Não era uma questão de esquecimento. Havia uma razão para você nunca tirar o... - apontou.
- Sim - ela disse. Sentou-se na cama, a coberta caindo ao redor de sua cintura. Jaan havia desabotoado a frente do traje dela, que agora pendia solto, e as suaves curvas de seus seios eram visíveis. Na luz tremulante, sua carne era pálida e cinzenta. Dirk não sentiu nenhuma excitação. A mão dela foi até o jade-e-prata. Tocou, acariciou, suspirou. - Nunca pensei... não sei... disse o que tinha que dizer, Dirk. Bretan Braith teria matado você.
- Talvez tivesse sido melhor - ele respondeu. Não amargamente, mas em um tom divertido, vagamente distante. - Então você nunca pretendeu deixá-lo?
- Não sei. Como vou saber o que pretendia? Eu ia tentar, Dirk, de verdade que ia. Mas na verdade nunca acreditei. Disse isso para você. Fui honesta. Aqui não é Ávalon, e nós mudamos. Não sou sua Jenny. Nunca fui, e agora menos do que nunca.
- Sim - ele disse, assentindo. - Lembro de você dirigindo. Do jeito que segurava os controles. Seu rosto. Seus olhos. Você tem olhos de jade, Gwen. Olhos de jade e um sorriso de prata. Você me assusta. - Afastou os olhos dela, de volta à parede. Os murais luminosos moviam-se em desenhos caóticos, em compasso com a música selvagem. De alguma forma, os fantasmas haviam partido. Deixara de olhá-los apenas por um instante, mesmo assim haviam evaporado e partido. Como seus antigos sonhos, pensou.
- Olhos de jade? - Gwen estava dizendo.
- Como Garse.
- Garse tem olhos azuis - ela o recordou.
- Mesmo assim. Como Garse.
Ela riu e, em seguida, gemeu.
- Dói quando rio - disse. - Mas é engraçado. Eu, como Garse. Não é de estranhar que Jaan...
- Você vai voltar para ele?
- Talvez. Não sei. Seria muito difícil deixá-lo agora. Você entende? Ele finalmente escolheu. Quando apontou o laser para Garse. Depois disso, depois que ele se virou contra seu teyn, contra o grupo e contra o mundo, não posso simplesmente... Você sabe. Mas não voltarei a ser betheyn dele, nunca mais. Terá que ser mais do que jade-e-prata.
Dirk sentia-se vazio. Deu de ombros.
- E eu?
- Você sabe que não estava dando certo. Sem dúvida. Você tem que ter percebido. Nunca parou de me chamar de Jenny.
Ele sorriu.
- Não parei? Talvez não. Talvez não.
- Nunca - ela disse. Esfregou a cabeça. - Estou me sentindo um pouco melhor agora - disse. - Ainda tem uma daquelas barras de proteína?
Dirk pegou uma do bolso e jogou para ela. Ela a apanhou no ar com a mão esquerda, sorriu para ele, abriu a embalagem e começou a comer.
Ele se levantou abruptamente, enterrando as mãos nos bolsos da jaqueta, e andou até a janela. Os cumes das torres brancas ainda irradiavam um fulgor vago e destingido - talvez o Olho do Inferno e seus assistentes não tivessem sumido totalmente no céu ocidental. Mas, embaixo, nas ruas, a cidade de Escuralba bebia da noite. Os canais eram faixas negras, e a paisagem pingava com o brilho ofuscante púrpura do musgo fosforescente. Através dessa melancolia suave, Dirk vislumbrou o solitário barqueiro, como o vislumbrara antes, sobre essas mesmas águas escuras. Estava apoiado em seu remo, como sempre, deixando que a correnteza o levasse, aproximando-se inexoravelmente. Dirk sorriu.
- Bem-vindo - murmurou. - Bem-vindo.
- Dirk? - Gwen havia terminado de comer. Ajustava seu traje novamente, envolta na luz turva. Atrás dela, as paredes estavam vivas com os dançarinos cinza e brancos. Dirk ouvia tambores, sussurros e promessas. E agora sabia que essas últimas eram mentiras.
- Uma pergunta, Gwen - ele disse, desalentado.
Ela o encarou.
- Por que me chamou? - ele questionou. - Por quê? Se achava que não havia nada entre nós, entre você e mim, por que não me deixou em paz?
O rosto dela estava pálido e perplexo.
- Chamar você?
- Você sabe - ele disse. - A jóia-sussurrante.
- Sim - ela falou, insegura. - Está em Larteyn.
- É claro que está - ele concordou. - Na minha bagagem. Você a mandou para mim.
- Não - ela disse. - Não.
- Você foi ao meu encontro!
- Você anunciou sua chegada da nave. Eu nunca... acredite em mim, foi a primeira vez que soube que estava vindo. Não sabia o que pensar. Achei que fosse me dizer em algum momento, por isso não perguntei.
Dirk falou alguma coisa, mas a torre lançou sua nota baixa e arrebatou suas palavras. Ele meneou a cabeça.
- Você não me chamou?
-Não.
- Mas eu recebi a jóia-sussurrante. Em Braque. A mesma, preparada pelo ésper. Não dá para falsificar. - Ele lembrou de mais alguma coisa. - E Arkin disse...
- Sim - ela falou e mordeu o lábio. - Não entendo. Ele deve ter enviado para você. Mas ele era meu amigo. Alguém com quem falar. Não entendo. - Deu um gemido.
- Sua cabeça? - Dirk perguntou rapidamente.
- Não - ela disse. - Não.
Dirk observou o rosto dela.
- Arkin a enviou?
- Sim. Só pode ser ele. Tem que ser. Nos conhecemos em Áva- lon, bem depois que você e eu... você sabe. Arkin me ajudou. Foi uma época difícil. Ele também estava comigo quando você mandou a jóia para Jenny. Comecei a chorar. Contei tudo para ele, e conversamos. Mesmo depois, depois que eu conheci Jaan, Arkin e eu continuamos próximos. Ele era como um irmão!
- Um irmão - Dirk repetiu. - Por que ele...
- Não sei!
Dirk ficou pensativo.
- Quando nos encontramos no porto espacial, Arkin estava com você. Você pediu que ele a acompanhasse? Eu esperava que estivesse sozinha, lembro disso.
- Foi idéia dele - ela falou. - Bem, eu havia dito que estava nervosa. Em encontrá-lo novamente. Ele... ele se ofereceu para ir junto e me dar apoio moral. E disse que queria conhecê-lo também. Você sabe. Depois de tudo o que eu havia contado para ele em Avalon.
- E no dia em que você e ele foram para o bosque? Você sabe, quando tive problemas com Garse e depois com Bretan... o que aconteceu?
- Arkin falou... uma migração de escaravelhos-blindados. Na verdade não era isso, mas tínhamos que checar. Saímos apressadamente.
- Por que não me disse para onde estava indo? Pensei que Jaan e Garse tinham batido em você, que a estavam mantendo afastada de mim. Na noite anterior, você disse que...
- Eu sei, mas Arkin disse que avisaria você.
- E ele me convenceu a fugir - Dirk falou. - E você, suponho que tenha lhe dito que, para me convencer, você devia...
Ela assentiu.
Dirk se virou na direção da janela. A última luz partira do cume das torres. Acima, um punhado de estrelas brilhava.
Dirk as contou. Doze. Exatamente uma dúzia. Ele se perguntava se algumas delas eram galáxias de verdade, nas profundezas do Grande Mar Negro.
- Gwen - falou. - Jaan partiu nesta manhã. Daqui até Larteyn e de volta, de aeromóvel... quanto tempo leva?
Quando ela não respondeu, ele se virou para olhá-la novamente.
As paredes estavam cheia de fantasmas, e Gwen tremia sob as luzes.
- Ele já devia estar de volta, não devia? - Ela assentiu e deitou-se novamente no colchão claro.
A Cidade Sereia cantava sua canção de ninar, seu hino ao sono final.