Capítulo 5
Voaram das altas torres brancas de Kryne Lamiya até as fogueiras desvanecidas de Larteyn em um silêncio solitário, sem se tocarem, ambos perdidos nos próprios pensamentos. Gwen deixou o aeromóvel no lugar costumeiro do telhado, e Dirk a seguiu escada abaixo até a porta do apartamento dela.
- Espere - Gwen disse em um rápido sussurro, quando ele achou que ela fosse dizer boa noite. Ela desapareceu lá dentro; Dirk esperou, intrigado. Havia barulho do outro lado da porta, vozes, então, abruptamente Gwen voltou, empurrando um grosso manuscrito nas mãos dele, uma massa de papel impressionantemente pesada, encapada à mão com couro negro. - Leia - sussurrou, inclinando-se porta afora. - Venha amanhã de manhã e conversaremos mais.
Beijou-o levemente no rosto e fechou a porta pesada com um pequeno estalo. Dirk ficou parado por um momento, inspecionando o manuscrito encadernado, então virou-se em direção aos elevadores.
Havia dado apenas alguns passos quando ouviu o primeiro grito. Então, de alguma maneira, não pôde continuar; os sons o levaram de volta, e ele ficou parado ouvindo através da porta de Gwen.
As paredes eram grossas, e muito pouco do que era dito passava por elas. Não entendia as palavras, nem o que significavam, mas o tom das vozes dizia bastante. A voz de Gwen predominava: alta, mordaz - às vezes ela gritava -, próxima da histeria. Em sua mente, Dirk podia vê-la caminhando pela sala de estar, diante das gárgulas, do jeito que sempre fazia quando estava zangada. Os dois kavalarianos deviam estar presentes, repreendendo-a, pois Dirk tinha certeza de ter ouvido mais duas vozes: uma calma e segura, sem raiva, questionando implacavelmente. Essa tinha que ser a voz de Jaan Vikary. Sua cadência o entregava, as marcações de seu discurso podiam ser distinguidas mesmo através da parede. A terceira voz, Garse Janacek, falava pouco no início, então mais e mais, com crescente volume e ira. Depois de um tempo, a primeira voz masculina calma estava praticamente em silêncio, enquanto Gwen e Garse gritavam um com o outro. Então ouviu-se alguma coisa, uma ordem forte. E Dirk ouviu um barulho, uma pancada surda. Um golpe. Alguém tinha batido em alguém, não podia ser outra coisa.
Finalmente Vikary começou a dar ordens, e, a seguir, o silêncio. A luz se apagou dentro do aposento.
Dirk ficou parado quieto, segurando o manuscrito de Vikary e se perguntando como agir. Não parecia ter nada que pudesse fazer, exceto conversar com Gwen na manhã seguinte e descobrir quem batera em quem, e por quê. Devia ser Janacek, pensou.
Ignorando os elevadores, decidiu descer as escadas até os aposentos de Ruark.
Uma vez na cama, Dirk descobriu que estava imensamente cansado e profundamente abalado pelos eventos do dia. Era muita coisa ao mesmo tempo, e ele mal conseguia lidar com isso. Os caçadores kavalarianos e seus quase-homens, a estranha e amarga vida que Gwen levava com Vikary e Janacek, a súbita e desconcertante possibilidade de ela voltar para ele. Incapaz de dormir, pensou em tudo isso por um longo tempo. Ruark já estava dormindo; não havia ninguém com quem conversar. Finalmente, Dirk pegou o grosso manuscrito que Gwen lhe dera e começou a folhear as primeiras páginas. Não havia nada melhor do que um sisudo trabalho acadêmico para colocar um homem para dormir, refletiu.
Quatro horas e meia dúzia de xícaras de café mais tarde, ele baixou o manuscrito, bocejando e esfregando os olhos. Então desligou a luz e encarou a escuridão.
A tese de Jaan Vikary - Mito e história: origens da sociedade dos grupos baseada na interpretação do ciclo de Canções do Demônio de Jamis-Leão Taal - era uma acusação contra seu povo pior do que qualquer coisa que Arkin Ruark pudesse dizer, Dirk pensou. Ele tinha colocado tudo para fora, com fontes e documentos dos bancos de dados dos computadores de Ávalon, longas citações da poesia de Jamis-Leão Taal e ainda mais longas dissertações sobre o que Jamis Taal queria dizer. Todas as coisas que Jaan e Gwen haviam contado para Dirk naquela manhã estavam ali, em detalhes. Vikary fornecia teorias sobre teorias, tentando explicar tudo. Explicara até mesmo os quase-homens, mais ou menos. Argumentava que, durante o Tempo do Fogo e dos Demônios, alguns sobreviventes das cidades haviam alcançado os acampamentos de mineração e buscaram abrigo. Uma vez lá dentro, no entanto, provaram-se perigosos. Alguns eram vítimas de doenças causadas pela radiação; morriam lentamente e de forma horrível, e possivelmente contaminavam aqueles que cuidavam deles. Outros, parecendo saudáveis, viveram e se tornaram parte dos protogrupos, até que se casaram e geraram crianças. Então os efeitos da radiação se mostraram. Eram tudo conjecturas da parte de Jaan, com nada além de uma linha ou duas de apoio de Jamis-Leão, mesmo assim parecia uma racionalização possível e plausível do mito dos quase-homens.
Vikary também dedicava várias páginas para o evento que os kavalarianos chamavam de Praga Dolorosa, e que ele cuidadosamente chamou de "a substituição dos padrões sexuais-familiares dos kavalarianos contemporâneos".
Segundo sua hipótese, os hranganos voltaram a Alto Kavalaan aproximadamente um século após a primeira incursão. As cidades que haviam bombardeado ainda eram entulhos; não havia sinais de novas construções por parte de humanos. Apesar disso, as três raças-escravas que haviam deixado para povoar o planeta não estavam em evidência em nenhum lugar: dizimados, extintos. Sem dúvida, a Mente Hrangana em comando concluiu que alguns dos humanos ainda viviam. Para efetuar a limpeza final, os hranganos jogaram bombas bacteriológicas. Esta era a teoria de Vikary.
Os poemas de Jamis-Leão não faziam menção aos hranganos, mas havia muitas referências às doenças. Todos os relatos dos kavalarianos sobreviventes concordavam com isso. Houve uma Praga Dolorosa, um longo período em que uma horrível epidemia após a outra arrasou com os grupos. Cada mudança de estação originava uma doença nova e mais devastadora. Era o maior demônio de todos, um que os kavalarianos não conseguiam combater ou matar.
Noventa homens morriam em cada cem. Noventa homens e noventa e nove mulheres.
Uma das muitas pragas, parecia, atacava seletivamente as mulheres. Os médicos-especialistas que Vikary consultou em Ávalon lhe disseram, baseados na pequena evidência que lhes fora dada - alguns poemas e canções antigos -, que parecia provável que os hormônios femininos agissem como catalisador da doença. Jamis-Leão Taal escrevera que jovens donzelas eram poupadas da perda de sangue por causa de sua inocência, enquanto as eyn-kethi no cio eram horrivelmente atingidas e morriam em convulsões espasmódicas. Vikary interpretou que as garotas na pré-puberdade não se contagiavam, enquanto as mulheres maduras sexualmente ativas eram devastadas. Uma geração inteira foi eliminada. Pior, a doença persistiu; nem bem as meninas chegavam à puberdade e a praga as atacava. Jamis-Leão fez disso uma verdade de vasto significado religioso.
Algumas mulheres, imunes por natureza, escaparam. Muito poucas no início. Depois mais; como viviam, produziam filhos e filhas, muitos dos quais também eram imunes, enquanto os que não compartilhavam da mesma resistência morriam na puberdade. Afinal, todos os kavalarianos se tornaram imunes, com raras exceções. E a Praga Dolorosa acabou.
Mas o dano já estava feito. Grupos inteiros haviam desaparecido; os sobreviventes viam suas populações declinarem muito abaixo do número necessário para manter uma sociedade viável. E a estrutura social e os papéis sexuais haviam se separado irremediavelmente do igualitarismo monogâmico dos primeiros colonos de Tara. Gerações chegavam à maturidade, nas quais os homens superavam as mulheres em um total de dez para uma; garotinhas viviam toda a infância sabendo que a puberdade significaria a morte. Eram tempos funestos. Disso, tanto Jaan Vikary quanto Jamis-Leão Taal falavam em uníssono.
Jamis-Leão escrevera que o pecado finalmente deixara Alto Kavalaan quando as eyn-kethi foram trancadas em segurança longe da luz do sol, de volta às cavernas de onde haviam saído, onde sua vergonha não podia ser vista. Vikary escrevera que os sobreviventes kavalarianos haviam resistido da melhor maneira possível. Não tinham mais as habilidades tecnológicas para construir câmaras herméticas esterilizadas; mas sem dúvida o rumor sobre a existência de tais lugares se difundira entre eles ao longo dos anos, e ainda tinham esperança de que tais lugares pudessem ser eficazes contra a enfermidade. Então as mulheres sobreviventes foram encarceradas em hospitais que pareciam prisões, nas profundezas do solo, no local mais seguro das fortalezas dos grupos, o mais afastado possível do vento contaminado, da chuva e da água. Homens que antes exploravam, caçavam e guerreavam com as esposas ao lado agora o faziam com outros homens, ambos lamentando as parceiras perdidas. Para aliviar as tensões sexuais - e manter o grupo genético o melhor possível, se é que entendiam dessas coisas -, os homens que sobreviveram à Praga Dolorosa transformaram suas mulheres em propriedade sexual de todos. Para garantir tantas crianças quanto fosse possível, eles as transformaram em parideiras perpétuas, que viviam suas vidas longe do perigo, em gravidez constante. Os grupos que não adotaram tais medidas não conseguiram sobreviver; os demais passaram adiante uma herança cultural.
Outras mudanças se enraizaram também. Tara havia sido um mundo religioso, lar da Igreja Católica Romana Reformada, e o desejo de monogamia era difícil de morrer. Os padrões se mantiveram em duas formas mutantes; os fortes laços emocionais que cresceram entre os parceiros de caça masculinos se tornaram a base da relação total e intensa de teyn-e-teyn, enquanto aqueles homens que desejavam um laço semiexclusivo com uma mulher criaram as betheyns, capturando fêmeas de outros grupos. Os líderes encorajavam tais incursões, Jaan Vikary afirmava; novas mulheres significavam sangue novo, mais crianças, uma população maior e, portanto, uma chance melhor de sobrevivência. Era impensável que qualquer homem tomasse posse exclusiva de uma das eyn-kethi; mas um homem que trazia uma mulher de fora era recompensado com honras, um assento no conselho de liderança e, talvez o mais importante, com a própria mulher.
Esses foram os prováveis eventos, Vikary argumentava, as verdades evidentes que produziram a moderna sociedade kavalariana. Jamis-Leão Taal, ao vagar pela face do mundo muitas gerações mais tarde, havia sido tão filho de sua cultura que era incapaz de conceber um mundo no qual as mulheres tivessem um status diferente daquele que ele via; e quando foi forçado a pensar de outra maneira pelo folclore que coletara, achou a idéia perversamente intolerável. Assim que reescreveu toda a literatura oral que reuniu em seu ciclo de Canções de Demônio, transformou Kay Ferro-Ferreiro em um gigante colérico, fez da Praga Dolorosa uma balada sobre a perversidade das eyn-kethi e criou a impressão generalizada de que o mundo sempre fora como ele o conhecia. Poetas posteriores edificaram sobre as fundações que ele deixou.
As forças que produziram a sociedade dos grupos em Alto Kavalaan desapareceram havia muito tempo. No presente, havia mulheres e homens em quantidades iguais, as epidemias eram apenas fábulas terríveis, e a maioria dos perigos da superfície do planeta já havia sido derrotada. Não obstante, os grupos-coalizões continuaram. Os homens lutavam em duelos, estudavam a nova tecnologia, trabalhavam em fazendas e em fábricas, viajavam em naves estelares kavalarianas, enquanto as eyn-kethi viviam em vastas barracas subterrâneas, como parceiras sexuais para todos os homens do grupo, trabalhando em qualquer que fosse a tarefa que o conselho dos altos-senhores julgasse segura e adequada, e dando à luz, embora agora com menos freqüência. A população kavalariana era estritamente controlada. Outras mulheres viviam uma vida um pouco mais livre, sob a proteção do jade-e-prata, mas não muitas. Uma betheyn tinha que vir de fora do grupo, o que, na prática, significava que todo jovem ambicioso tinha que desafiar e matar um alto-senhor de outra coalizão, ou mesmo reclamar uma das eyn-kethi em um grupo inimigo e encarar um defensor escolhido pelo conselho. Essa segunda opção raramente dava bons resultados; o conselho de altos-senhores invariavelmente escolhia o mais habilidoso duelista para defender a eyn-kethi. De fato, a designação era uma honra singular. Um homem que conseguisse ganhar uma betheyn imediatamente ganhava seus altos-nomes e seu lugar entre os governantes. Dizia-se que havia dado a seus kethi o presente de dois sangues - o sangue da morte, um inimigo morto, e o sangue da vida, uma nova mulher. A mulher desfrutava o status de jade-e-prata até que seu altos-senhor fosse morto. Se ele fosse assassinado por alguém do próprio grupo, ela se tornava uma eyn-kethi; se o assassino fosse de fora, ela passaria para ele.
Esse era o status que Gwen Delvano assumira quando colocara o bracelete de Jaan ao redor de seu punho.
Dirk ficou acordado por muito tempo, pensando em tudo o que lera e encarando o teto, ficando mais e mais zangado conforme pensava. Quando a primeira luz do amanhecer começou a ser suavemente filtrada pela janela sob sua cabeça, já havia decidido. Em certo sentido, não importava muito se Gwen voltaria ou não para ele, desde que deixasse Vikary, Janacek e toda a doentia sociedade de Alto Kavalaan. Mas, sozinha, ela não conseguiria romper com isso, por mais que desejasse. Muito bem, então Arkin Ruark estava certo; ele podia ajudá-la. Ele a ajudaria a ser livre. E, depois, teriam tempo para considerar sua própria relação.
Finalmente, com a resolução firme na mente, Dirk adormeceu.
Era quase meio-dia quando acordou repentinamente, com uma sensação de culpa. Sentou-se, pestanejou e se lembrou de que prometera a Gwen que passaria por lá naquela manhã, e a manhã já havia passado e ele perdera a hora. Apressadamente, levantou-se e vestiu-se, procurando rapidamente por Ruark - o kimdissiano se fora, sem nenhuma pista de onde havia ido, ou por quanto tempo - e, então, subiu ao apartamento de Gwen. A tese de Vikary estava firmemente embaixo de seu braço.
Garse Janacek atendeu a porta.
- Sim? - o kavalariano de barba ruiva disse, franzindo o cenho. Estava nu até a cintura, vestido apenas com calças negras folgadas e o eterno bracelete de ferro-e-pedrardente no braço direito. Dirk percebeu imediatamente por que Janacek não usava aquelas camisas de gola em V que Vikary parecia gostar tanto; do lado esquerdo de seu peito, da axila até o peito, havia uma longa cicatriz curva, lisa e dura.
Janacek sentiu-se observado.
- Um duelo que deu errado - retrucou. - Eu era muito jovem. Não acontecerá novamente. Agora, o que você quer?
Dirk corou.
- Quero ver Gwen - respondeu.
- Ela não está aqui - Janacek disse, seus olhos gelados, duros e pouco amistosos. Começou a fechar a porta.
- Espere. - Dirk segurou a porta com a mão.
- Que mais você quer?
- Gwen. Eu devia me encontrar com ela. Onde ela está?
- Nos bosques, t'Larien. Eu ficaria satisfeito se você se lembrasse que ela é uma ecologista, enviada para cá pelos altos-senhores de Jadeferro para fazer um trabalho importante. Ela negligenciou esse trabalho por dois dias inteiros para levar você para cima e para baixo. Agora, como é apropriado, ela voltou a trabalhar. Ela e Arkin Ruark pegaram seus instrumentos e partiram para as florestas.
- Ela não me disse nada noite passada. - Dirk insistiu.
- Ela não precisa informar você dos planos dela - Janacek respondeu. - Nem deve ter sua permissão para nada. Não há laços entre vocês.
Lembrando-se da discussão que ouvira na noite anterior, Dirk ficou repentinamente desconfiado.
- Posso entrar? - falou. - Quero devolver isso para Jaan, conversar com ele sobre algumas coisas que li - acrescentou, mostrando para Garse a tese encadernada em couro. Na verdade, esperava procurar por Gwen, descobrir se ela estava sendo mantida afastada dele. Mas dificilmente teria sido educado dizer isso; Janacek destilava hostilidade, e uma tentativa de empurrá-lo poderia ser muito imprudente.
- Jaan não está em casa agora. Não há ninguém além de mim. E estou prestes a sair - estendeu o braço e arrancou a tese das mãos de Dirk. - Ficarei com isto, no entanto. Gwen nunca deveria ter dado isto a você.
- Ei! - Dirk falou. E teve um impulso. - A história é muito interessante - disse, repentinamente. - Posso entrar e conversar com você sobre isso? Um segundo ou dois, não vou prendê-lo por muito tempo.
Abruptamente, Janacek pareceu mudar. Sorriu e abriu passagem, convidando Dirk para entrar no apartamento.
Dirk olhou ao redor rapidamente. A sala de estar estava deserta, a lareira, fria; nada parecia errado ou fora de lugar. A sala de jantar, visível através da arcada aberta, estava vazia também. O apartamento inteiro estava tranqüilo. Nenhum sinal de Gwen ou Jaan. Pelo que podia ver, parecia que Janacek estava falando a verdade.
Incerto, Dirk vagou pela sala, parando diante da cornija e suas gárgulas. Janacek o observava sem dizer uma palavra, então se virou e saiu, voltando logo depois. Havia colocado o cinto de malha de aço com o pesado coldre e estava abotoando a frente de uma camisa preta desbotada quando retornou.
- O que você está fazendo? - Dirk perguntou.
- Saindo - Janacek respondeu com um vago sorriso. Soltou o coldre e tirou a pistola laser, conferindo o indicador de carga na coronha, então colocou a arma de volta e sacou-a novamente com um suave movimento da mão direita... e olhou para Dirk. - Eu assusto você? - perguntou.
- Sim - Dirk respondeu, afastando-se da cornija.
Janacek sorriu novamente. Deslizou a pistola para dentro do coldre.
- Sou muito bom em um duelo com laser - disse -, embora, na verdade, meu teyn seja melhor. É claro, eu tenho que usar apenas o braço direito. O esquerdo ainda me dói. O tecido da cicatriz repuxa, então os músculos do peito deste lado não conseguem se mover com tanta facilidade quanto do lado direito. Mas isso não tem muita importância. Faço tudo com a mão direita. O braço direito sempre vale mais do que o esquerdo, você sabe. - Sua mão direita descansava sobre a pistola laser enquanto ele falava, e as pedrardentes no conjunto de ferro negro brilhavam como opacos olhos vermelhos ao longo de seu antebraço.
- E uma pena que o feriram.
- Eu cometi um erro, t'Larien. Era muito jovem, talvez, mas meu erro não foi menos sério por causa da minha idade. Tais erros podem ser coisas muito sérias, e de certo modo escapei com facilidade. - Estava olhando fixamente para Dirk. - Devemos ter cuidado para não cometer erros.
- Verdade. - Dirk fingiu um sorriso inocente.
Por um tempo, Janacek não respondeu. Então, finalmente disse:
- Acho que você sabe sobre o que estou falando.
-Sei?
- Sim. Você não é um homem sem inteligência, t'Larien. Nem eu. Suas artimanhas infantis não me divertem. Você não tem nada para conversar comigo, por exemplo. Simplesmente queria entrar nesta casa por algum outro motivo.
O sorriso de Dirk desapareceu. Ele assentiu.
- Está certo. Uma artimanha imbecil, sem dúvida, já que você a percebeu de imediato. Eu queria procurar por Gwen.
- Eu lhe disse que ela estava nos bosques, trabalhando.
- Não acreditei em você. - Dirk confessou. - Ela teria me dito algo ontem. Você a está mantendo afastada de mim. Por quê? O que está acontecendo?
- Nada que precise preocupar você - Janacek falou. - Me entenda, t'Larien, se puder. Talvez para você, assim como para Arkin Ruark, eu pareça um homem mau. Você pode pensar isso de mim. Não me importo nem um pouco. Mas não sou um homem mau. E por isso que o avisei a respeito dos erros. É por isso que deixei você entrar, mesmo sabendo que não tinha nada para me dizer. Pois eu tenho algumas coisas para dizer para você.
Dirk se reclinou contra o encosto do sofá e assentiu.
- Tudo bem, Janacek. Vá em frente.
Janacek franziu o cenho.
- Seu problema, t'Larien, é que você sabe pouco e entende menos ainda sobre Jaan, sobre mim e nosso mundo.
- Sei mais do que você pensa.
- Sabe? Você leu os escritos de Jaan sobre as Canções do Demônio, e, certamente, as pessoas falaram coisas para você. Mesmo assim, o que é isso? Você não é kavalariano. Você não entende os kavalarianos, eu diria, mas você está aqui, e vejo julgamento em seus olhos. Com que direito? Quem é você para nos julgar? Você mal nos conhece. Vou lhe dar um exemplo. Há um segundo você me chamou de Janacek.
- Esse é seu nome, não é?
- Essa é parte do meu nome, a última parte, a menos importante e a menor parte de quem sou. É meu nome-escolhido, o nome de um antigo herói do grupo Jadeferro que viveu uma longa e frutífera vida, por muitas vezes defendendo honradamente o grupo e seus kethi em altas-guerras. Sei porque você o usa, é claro. Em seu mundo, e de acordo com seu sistema de nomes, costuma-se interpelar a quem se trata com distância e hostilidade pelo último componente do nome... a alguém íntimo você chama pelo primeiro nome, não é?
Dirk assentiu.
- Mais ou menos. Não é tão simples assim, mas você está bem perto.
Janacek esboçou um sorriso; seus olhos azuis pareciam brilhar.
- Vê? Eu entendo seu povo muito bem. E lhe dou o benefício de seus próprios costumes. Eu o chamo de t'Larien porque sou hostil a você, e isso é correto. Você não é recíproco, no entanto. Você se dirige a mim como Janacek, sem um instante de consideração ou preocupação, me impondo quase deliberadamente seu próprio sistema de nomes.
- Como eu deveria chamá-lo? Garse?
Janacek fez um gesto brusco e impaciente.
- Garse é meu nome verdadeiro, mas não é adequado para você. Segundo o costume kavalariano, o uso do nome sozinho indica um relacionamento que não existe de fato entre nós. Garse é um nome para meu teyn, para minha cro-betheyn e para meus kethi, não para alguém de outro mundo. A rigor, você deveria me chamar de Garse Jadeferro, e meu teyn de Jaantony Alto-Jadeferro. Essas são as formas tradicionais e corretas de um igual, um kavalariano de outra casa com quem estou conversando. Eu lhe dou o benefício de muitas dúvidas. - Sorriu. - Agora entenda, t'Larien, que isso que lhe contei é apenas um exemplo. Eu me importo muito pouco se você me chama de Garse, de Garse Jadeferro, ou de Senhor Janecek. Me chame do que deixar seu coração mais feliz, e não tomarei isso como insulto. O kimdissiano Arkin Ruark sempre me chamou de Garsinho, mas eu resisti à vontade de furá-lo para ver se ele arrebenta. Quanto a essas questões de cortesia e etiqueta, não preciso que Jaan me diga que são coisas antigas, legados de dias mais elaborados e mais primitivos, moribundos nestes tempos modernos. Hoje os kavalarianos viajam em naves de uma estrela a outra, conversam e negociam com criaturas que antigamente teríamos exterminado como demônios, até mesmo moldam planetas, como moldamos Worlorn. O antigo kavalariano, a língua dos grupos por milhares de seus anos-padrão, mal é falada agora, embora alguns poucos termos permaneçam e continuarão a permanecer, desde que apontem realidades que podem ser nomeadas apenas desajeitadamente ou que não possam completamente ser nomeadas nas línguas dos viajantes estrelares... realidades que logo desaparecerão se desistirmos de seus nomes, dos termos em antigo kavalariano. Tudo mudou, mesmo nós de
Alto Kavalaan, e Jaan diz que deveremos mudar ainda mais se quisermos cumprir nosso destino na história dos homens. Assim, as velhas regras de nomes e de nomes de laço se quebram, e mesmo os altos-senhores ficam mais ambíguos em seus discursos, e Jaantony Alto-Jadeferro passa a se chamar Jaan Vikary.
- Se isso não importa - Dirk falou -, aonde quer chegar?
- Tudo isso era um exemplo, t'Larien, uma simples e elegante ilustração do quanto sua própria cultura tem erroneamente a pretensão de fazer parte da nossa, de como você coloca seus julgamentos e seus valores em nós a cada palavra e ato. Esse é o ponto. Há coisas mais importantes em jogo, mas o padrão é o mesmo; você comete o mesmo erro, um erro que não devia cometer. O preço pode ser maior do que você é capaz de pagar. Acha que não sei o que está tentando fazer?
- O que estou tentando fazer?
Janacek sorriu novamente, seus olhos apertados e duros, pequenas rugas formando-se nos cantos.
- Está tentando tirar Gwen Delvano do meu teyn. Verdade?
Dirk não disse nada.
- É verdade - Janacek falou. - E é errado. Entenda que isso nunca será permitido. Eu não permitirei. Sou ligado por ferro-e-fogo a Jaantony Alto-Jadeferro e não me esqueci disso. Somos teyn-e-teyn, nós dois. Nenhum laço que você já conheceu é mais forte.
Dirk pegou a si mesmo pensando em Gwen e em uma gota de lágrima profundamente vermelha, cheia de lembranças e promessas. Pensou que era uma pena que não pudesse dar a jóia-sussurrante para que Janacek a segurasse por um momento, para que o arrogante kavalariano pudesse experimentar o quão forte era o laço que Dirk tinha com sua Jenny. Mas tal gesto seria inútil. A mente de Janacek não teria ressonâncias com os padrões que o ésper havia talhado na pedra; seria apenas uma gema para ele.
- Eu amei Gwen - disse bruscamente. - Duvido que qualquer um de seus laços seja mais forte do que esse.
- Duvida? Bem, você não é kavalariano, não mais do que Gwen é, você não entende o ferro-e-fogo. Conheci Jaan quando ambos éramos muito jovens. Eu era mais jovem do que ele, na verdade. Ele gostava de brincar com crianças mais novas, em vez de ficar com os de sua idade, e vinha freqüentemente até nossa creche. Eu o tomei em grande estima logo de início, como apenas um garoto é capaz, porque ele era mais velho do que eu e, portanto, lhe faltava menos para ser um alto-senhor, e porque ele me levava em aventuras por estranhos corredores e cavernas, e porque ele me contava histórias fascinantes. Quando fiquei mais velho, me interei do motivo pelo qual Jaantony ficava com tanta freqüência entre as crianças mais novas e fiquei chocado e envergonhado. Ele tinha medo dos de sua idade, porque eles o insultavam e freqüentemente batiam nele. Mas, quando descobri isso, já havia um laço entre nós. Você poderia chamar isso de amizade, mas estaria errado; estaria impondo seus próprios conceitos em nossa vida mais uma vez. Era mais do que sua amizade de outros mundos, já havia ferro entre nós, embora ainda não fôssemos teyn-e-teyn. Da próxima vez que Jaan e eu fomos explorar juntos (estávamos bem longe da fortaleza do nosso grupo, em uma caverna que conhecíamos bem), eu o surpreendi e bati nele até que cada parte de seu corpo estivesse com hematomas e inchada. Ele não apareceu na barraca das crianças da minha idade durante todo o inverno, mesmo assim, um dia retornou. Não havia amargura entre nós. Começamos a explorar e a caçar juntos mais uma vez, e ele me contou mais histórias, mitos ou não. De minha parte, eu o atacava nos momentos mais inesperados, sempre pegando-o desprevenido e derrotando-o. Com o tempo, ele começou a revidar, e bem. Com o tempo, não consegui mais surpreendê-lo com meus punhos. Um dia escondi uma faca de Jadeferro sob minha camisa e cortei Jaan com ela. Então, ambos começamos a carregar facas. Quando ele chegou à adolescência, a idade que deveria adotar seus nomes-escolhidos e tornar-se sujeito ao código de honra, Jaantony já deixara de ser um sujeito facilmente insultável. Ele sempre foi impopular. Você deve entender que ele sempre foi um tipo questionador, que fazia perguntas incômodas e com opiniões pouco ortodoxas, um amante da história, mas com um desprezo aberto em relação à religião, com um interesse pouco saudável nos outros mundos que se moviam entre nós. Por isso, foi desafiado uma vez após outra naquele primeiro ano em que atingiu a idade para duelar. E sempre venceu. Quando eu cheguei à adolescência alguns anos depois, e nós nos tornamos teyn-e-teyn, eu dificilmente conseguia alguém com quem lutar. Jaantony pusera medo em todos eles, então não nos desafiavam. Fiquei muito desapontado. Desde essa época, duelamos juntos muitas vezes. Estamos ligados por toda a vida, e passamos por muitas coisas, e não me importo em ouvir você jorrar comparações com esse "amor" sem significado que encanta tanto vocês de outros mundos, esse laço quase-humano que vem e vai de acordo com o momento. O próprio Jaantony foi muito corrompido por esse conceito durante seus anos em Ávalon, e isso, de certa maneira, foi minha culpa, porque eu o deixei sozinho. Era verdade que em Ávalon eu não teria função ou lugar, mesmo assim, eu deveria ter ido para lá. Falhei com Jaan nisso. Nunca mais falharei de novo. Sou teyn dele e sempre serei seu teyn, e não permitirei que ninguém o mate, o machuque, deturpe sua mente ou manche seu nome. Essas coisas são parte de meu laço e de meu dever. Hoje em dia, Jaan permite com freqüência que o nome dele seja ameaçado por tipos como você e Ruark. De muitas maneiras, Jaan é um homem perverso e perigoso, e os equívocos da mente dele em geral nos colocam em perigo. Mesmo os heróis dele... Um dia me lembrei de algumas das histórias que ele havia me contado quando eu era criança, e me surpreendi com o fato de que todos os heróis favoritos de Jaan eram homens solitários que finalmente foram derrotados. Aryn Alto-Pedrardente, por exemplo, que dominou toda uma época da história. Ele governou, pela força de sua personalidade, o mais poderoso grupo que Alto Kavalaan já conheceu, a Montanha Pedrardente; e quando seus inimigos se uniram em uma alta-guerra e todas as mãos se ergueram contra ele, ele colocou espadas e escudos nos braços de suas eyn-kethi e mandou-as para a batalha, para engrossar as fileiras de seu exército. Seus inimigos foram desbaratados e humilhados, segundo a versão que Jaan me contou da história. Mais tarde, descobri que Aryn Alto-Pedrardente não conseguiu vitória alguma. Tantas eyn-kethi de seu grupo foram mortas naquele dia, que poucas sobraram para dar à luz novos guerreiros. O poder e a população de Montanha Pedrardente declinaram paulatinamente, e quarenta anos depois do ousado golpe de Aryn, os Pedrardentes caíram, e os altos-senhores de Taal, de Jadeferro e de Punho de Bronze tomaram suas mulheres e crianças, deixando a fortaleza do grupo abandonada. A verdade é que Aryn Alto-Pedrardente era um fracassado e um tolo, um dos párias da história. E tais tipos são os loucos heróis de Jaan.
- Aryn parece bem heroico para mim - Dirk comentou asperamente. - Em Ávalon, lhe daríamos crédito por libertar as escravas, mesmo se não tivesse vencido.
Janacek olhou para ele com raiva, seus olhos azuis brilhando no rosto anguloso. Puxou a barba ruiva, aborrecido.
- t'Larien, esse comentário é exatamente sobre o que lhe avisei. As eyn-kethi não são escravas, elas são eyn-kethi. Você julga erroneamente, e sua interpretação é falsa.
- Segundo você - Dirk respondeu. - Segundo Ruark...
- Ruark - o tom de Janacek era depreciativo. - O kimdissiano é a fonte de toda a sua informação sobre Alto Kavalaan? Vejo que desperdicei tempo e palavras com você, t'Larien. Você já está envenenado e não tem interesse em compreender. É um instrumento dos manipuladores de Kimdiss. Não explicarei mais nada a você.
- Tudo bem - Dirk falou. - Apenas me diga onde está Gwen.
- Já lhe disse.
- Então quando ela voltará?
- Mais tarde, e então estará cansada. Estou certo de que ela não vai querer ver você.
- Vocês a estão mantendo longe de mim!
Janacek ficou em silêncio por um momento.
- Sim - disse, finalmente, torcendo a boca. - É o melhor a fazer, t'Larien, para o seu bem e para o dela, embora não espere que acredite nisso.
- Você não tem o direito.
- Na sua cultura. Tenho todo o direito na minha. Você não ficará sozinho com ela novamente.
- Gwen não é parte da sua maldita cultura kavalariana doentia - Dirk falou.
- Ela não nasceu dentro dela, é verdade, mesmo assim aceitou o jade-e-prata e o nome de betheyn. Agora ela é kavalariana.
Dirk estava tremendo, descontrolado.
- O que ela diz sobre isso? - quis saber, aproximando-se de Janacek. - O que ela disse noite passada? Ameaçou partir? - apontou acusadoramente para o kavalariano. - Ela disse que iria embora comigo, foi isso? E você bateu nela e a arrastou?
Janacek franziu o cenho e empurrou a mão de Dirk com força.
- Então você nos espiona também. Não faz isso direito, t'Larien, mas é ofensivo da mesma maneira. Um segundo erro. O primeiro foi de Jaan, dizendo para você as coisas que ele disse, confiando em você e colocando você sob a proteção dele.
- Não preciso da proteção de ninguém!
- Assim você diz. Um orgulho inoportuno de um idiota. Apenas os fortes devem rejeitar a proteção dada aos fracos; os que são fracos realmente precisam dela. - Ele se virou. — Não perderei mais tempo com você - disse, andando em direção à sala de jantar. Sobre a mesa havia uma pequena maleta negra. Janacek a abriu, destravando as duas fechaduras ao mesmo tempo. Dentro, Dirk viu cinco fileiras do broche de ferro negro com o formato de banshee presos em feltro vermelho. Janacek pegou um. - Está seguro de que não quer um desses? Korariel?
- Ele sorriu.
Dirk cruzou os braços e não se dignou a responder.
Janacek esperou pela resposta por um momento. Quando nenhuma veio, colocou o broche de banshee no lugar e fechou a maleta.
- Os filhos da lesma não são tão exigentes quanto você - disse.
- Agora, preciso levar esses broches para Jaan. Saia daqui.
Era começo da tarde. O Cubo ardia fracamente no meio do céu, com as pequenas luzes esparsas dos quatro Sóis Troianos visíveis brilhando irregularmente ao seu redor. Um forte vento soprava do leste e parecia anunciar uma tormenta. O pó rodopiava pelos becos cinzentos e escarlates.
Dirk sentou-se no canto do telhado, com as pernas penduradas em direção à rua, meditando sobre suas possibilidades.
Seguira Garse Janacek até a pista de aterrissagem e o vira partir, levando a mala de banshees e voando em sua maciça relíquia quadrada com a armadura verde-oliva. Os outros dois aeromóveis, a arraia cinza e a brilhante lágrima amarela, haviam partido também. Ele estava encalhado ali em Larteyn, sem idéia de onde Gwen estava ou o que estavam fazendo com ela. Desejou brevemente que Ruark estivesse em algum lugar por ali.
Desejou ter seu próprio aeromóvel. Sem dúvida, poderia ter alugado um em Desafio, se tivesse pensado nisso, ou mesmo no porto espacial, na noite em que chegara. Em vez disso, estava sozinho e desamparado; até mesmo os aeropatinetes haviam desaparecido. O mundo era vermelho e cinza e monótono. Ele se perguntava o que fazer.
Enquanto pensava nos aeromóveis, abruptamente teve uma idéia. As cidades do Festival que vira eram todas muito diferentes, mas tinham uma coisa em comum: nenhuma tinha espaço de aterrissagem suficiente para acomodar uma população de aeromóveis igual à população humana. O que significava que as cidades deviam estar interligadas por algum outro tipo de rede de transporte. O que significava que talvez ele tivesse alguma liberdade de ação apesar de tudo.
Levantou-se, pegou o elevador e desceu até o apartamento de Ruark, na base da torre. Entre dois vasos com plantas negras da altura do teto, havia uma tela na parede, exatamente como se lembrava de ter visto, escura e desligada, como estivera desde que Dirk chegara; restavam poucas pessoas em Worlorn para chamar ou serem chamados. Mas, sem dúvida, havia um circuito de informações. Estudou as duas fileiras de botões no pé da tela, escolheu um e apertou. A escuridão deu lugar a uma suave luz azul, e Dirk recuperou um pouco o fôlego; a rede de comunicações ao menos ainda era operacional.
Um dos botões estava marcado com um ponto de interrogação. Experimentou-o e foi recompensado. A luz azul ficou mais clara, e de repente a tela estava cheia de pequenos caracteres, uma centena de números para uma centena de serviços básicos, tudo, desde ajuda médica e informações religiosas, até notícias de outros planetas.
Ele apertou a seqüência para "transporte de visitante". Figuras fluíam através da tela, e, uma por uma, as esperanças de Dirk murcharam. Havia serviços de aluguel de aeromóveis no porto espacial e em dez das catorze cidades. Todos fechados. Os veículos funcionais haviam partido de Worlorn com as multidões do Festival. Outras cidades ofereciam aluguéis de veículos movidos à hélice ou colchões de ar. Não mais. Em Musquel-Junto-ao-Mar, os visitantes podiam velejar pela costa em um genuíno veleiro da Colônia Esquecida. Serviço fora de operação. A linha de aerobus intercidades estava fechada, as estratonaves de propulsão nuclear de Tober e os dirigíveis de hélio de Eshellin haviam sido levados embora. A tela da parede mostrou para ele o mapa dos metrôs de alta velocidade que iam do porto espacial até cada uma das cidades, mas o mapa estava todo pintado de vermelho, e a legenda embaixo explicava que isso significava "fora de serviço".
Não havia outro meio de transporte para sair de Worlorn, exceto andando, pelo que parecia. Além disso, todos os outros visitantes tardios traziam os próprios veículos.
Dirk fez uma careta e fechou a imagem do mapa. Estava prestes a desligar a tela quando outra idéia lhe ocorreu. Teclou "Biblioteca" e conseguiu um ponto de interrogação e instruções. Então digitou "filhos da lesma" e "define". Esperou.
Foi uma espera curta, e dificilmente precisaria de toda a vasta informação que a biblioteca lhe forneceu, os detalhes da história, geografia e filosofia. Separou rapidamente a informação importante e descartou o resto. "Filhos da lesma", aparentemente, era um apelido comum para os seguidores de um culto pseudo-religioso baseado em drogas do Mundo do Oceano Vinhonegro. Eram chamados dessa maneira porque passavam anos vivendo no interior úmido e cavernoso de lesmas quilométricas que rastejavam com lentidão infinita no fundo dos mares. Os devotos chamavam as criaturas de Mães. As Mães alimentavam seus filhos com doces secreções alucinógenas, e acreditava-se que elas eram semi-sencientes. A crença, Dirk percebeu, não impedia os filhos da lesma de matarem as hospedeiras quando a qualidade de sua secreção de sonhos começava a declinar, o que invariavelmente ocorria quando as lesmas envelheciam. Livres de uma Mãe, os filhos da lesma iam atrás de outra.
Rapidamente Dirk limpou o tema dos dados e consultou a biblioteca novamente. O Mundo de Vinhonegro tinha uma cidade em Worlorn. Ficava sob um lago artificial de cinqüenta quilômetros de diâmetro, embaixo das mesmas águas escuras e férteis que cobriam a superfície do planeta natal dos vinhonegrinos. Era chamada de Cidade do Tanque sem Estrelas, e o lago ao redor era cheio de formas de vida trazidas para o Festival da Orla. Incluindo Mães, sem dúvida.
Por curiosidade, Dirk encontrou a cidade no mapa de Worlorn. Não tinha como ir até lá, é claro. Desligou a tela da parede e foi até a cozinha preparar uma bebida. Enquanto bebia - era um leite espesso e meio amarelado de algum animal kimdissiano, muito gelado, amargo mas refrescante -, tamborilava com os dedos impacientemente no balcão. A inquietude aumentava dentro dele, a urgência de fazer alguma coisa. Sentia-se preso ali, esperando que alguém retornasse, sem saber quem seria ou o que aconteceria em seguida. Tinha a impressão de que estivera se movendo para a frente e para trás ao capricho dos demais desde que descera do Tremor dos Inimigos Esquecidos. Nem sequer havia vindo por vontade própria; Gwen o chamara com a jóia- sussurrante, ainda que a recepção dela não tivesse sido muito calorosa quando ele chegou. Isso, ao menos, Dirk começara a entender. Ela estava presa em uma teia muito complexa, uma teia que era política e emocional ao mesmo tempo; e ele aparentemente tinha sido arrastado com ela, para observar impotente enquanto tempestades semi-compreendidas de tensão psicossocial e cultural giravam ao redor dele. Estava muito cansado de observar impotente.
Abruptamente lembrou-se de Kryne Lamiya. Na pista varrida pelos ventos, dois veículos estavam abandonados. Dirk colocou o copo no balcão pensativamente, secando os lábios com as costas da mão, e voltou para o painel da parede.
Era uma simples questão de encontrar a localização de todas as pistas de aterrissagem de Larteyn. Havia instalações no topo de todas as largas torres residenciais e uma grande garagem pública nas profundezas da rocha sob a cidade. A garagem, o diretório da cidade informava, podia ser acessada por qualquer um dos doze elevadores subterrâneos espalhados por Larteyn; as portas ocultas estavam no meio do penhasco escarpado que se erguia sobre a Comuna. Se os kavalarianos haviam deixado algum aeromóvel na cidade, era ali que poderia encontrá-lo.
Pegou o elevador, desceu até o térreo e foi para a rua. O Satã Gordo já ultrapassara o zênite e mergulhava em direção ao horizonte. As ruas de pedrardente estavam desbotadas e negras onde o brilho vermelho caía, mas quando atravessou as sombras entre as torres quadradas de ébano, Dirk pôde ver os fogos frios da cidade sob seus pés, o suave brilho vermelho da pedra, débil, mas ainda persistente. Nos espaços abertos, ele mesmo projetava sombras, espectros escuros e frágeis que se empilhavam desajeitadamente uns sobre os outros - quase mas não totalmente coincidentes - e afundavam rapidamente em seus calcanhares para despertar a pedrardente adormecida. Não viu ninguém durante o percurso, embora se perguntasse inquieto sobre os Braiths e, em determinado momento, tenha passado por algo que devia ser uma residência. Era uma construção quadrada com um telhado abobadado e pilares de ferro negro na porta. Acorrentado a um desses pilares estava um cão de caça que parecia mais alto do que Dirk, com brilhantes olhos vermelhos e um focinho comprido e sem pelos que o fazia lembrar um rato. A criatura estava roendo um osso, mas parou quando ele passou e rosnou profundamente. Quem quer que vivesse naquela construção claramente não apreciava a idéia de visitantes.
Os elevadores subterrâneos ainda funcionavam. Dirk entrou em um deles, a luz do dia desapareceu, e chegou às passagens inferiores, onde Larteyn tinha grande semelhança com as fortalezas dos grupos em Alto Kavalaan: salas de pedra ecoantes com cortinas de ferro forjado, portas de metal em todos os lugares, câmaras dentro de câmaras. Um forte de pedra, Ruark dissera certa vez. Um forte, sem nenhuma parte que pudesse ser facilmente tomada. Mas agora estava abandonado.
A garagem tinha dez níveis e era fracamente iluminada, com espaço suficiente para mil aeromóveis em cada andar. Dirk vagou pela poeira por meia hora antes de encontrar um veículo. Era inútil para ele. Outro carro com forma de animal, decorado com metal azul-marinho que lhe dava a aparência grotesca de um morcego gigante, mais realista e assustador do que a arraia-banshee estilizada do veículo de Jaan Vikary. Mas era um casco vazio. Uma das asas ornamentadas estava torcida e semi-derretida, e do próprio aeromóvel restava apenas o corpo. As instalações interiores, a fonte de alimentação e o armamento haviam desaparecido, e Dirk suspeitava que o controle de gravidade também estivesse faltando, embora não pudesse ver a parte inferior do veículo. Deu uma volta ao redor da carcaça e seguiu adiante.
O segundo aeromóvel que encontrou estava ainda em condições piores. Na verdade, aquilo dificilmente poderia ser chamado carro. Não restava nada além de uma armação de metal nu e quatro assentos apodrecidos recostados no esqueleto de tubulação completamente destruído. Dirk passou por esse também.
Os próximos dois destroços estavam intactos, mas eram fantasmas. Ele podia apenas supor que seus proprietários haviam morrido em Worlorn, e que os veículos ficaram aguardando nas profundezas da cidade muito tempo depois de terem sido esquecidos, até que sua fonte de energia se esgotasse. Experimentou ambos, mas nenhum respondeu ao seu toque e tentativas de conserto.
O quinto carro - encontrado ao fim de uma hora de buscas - respondeu imediatamente.
Tipicamente kavalariano, o atarracado carro de dois lugares tinha asas curtas e triangulares que pareciam ainda mais inúteis do que as asas dos outros aeromóveis produzidos em Alto Kavalaan. Era esmaltado de prata e branco, e a cabine metálica tinha um formato que lembrava a cabeça de um lobo. Canhões de laser haviam sido colocados nos dois lados da fuselagem. O veículo não estava trancado; Dirk empurrou a escotilha da cabine, que se abriu com facilidade. Entrou, fechou a cabine e olhou para fora dos grandes olhos do lobo com um sorriso irônico no rosto. Então experimentou os controles. O aeromóvel ainda tinha toda a energia.
Franzindo o cenho, desligou a força novamente e recostou-se no assento para pensar. Encontrara o meio de transporte que estava procurando, se ousasse pegá-lo. Mas não podia se enganar: este carro não era uma ruína como os outros que encontrara. Estava em condições muito boas. Sem dúvida, pertencia a um dos outros kavalarianos que ainda estavam em Larteyn. Se as cores significavam alguma coisa - ele não tinha certeza disso -, então o veículo provavelmente pertencia a Lorimaar ou um dos outros Braiths. Definitivamente, pegá-lo não era o caminho mais seguro a se escolher.
Dirk reconheceu o perigo e o considerou. A espera não tinha apelo algum para ele, mas nem a perspectiva do perigo. Com Jaan Vikary ou sem Jaan Vikary, roubar um aeromóvel poderia ser a desculpa para os Braiths entrarem em ação.
Relutante, saiu da cabine e desceu do veículo, mas nem bem fez isso e ouviu vozes. Baixou a escotilha da cabine e a fechou com um estalido baixo mas ainda assim audível. Dirk se agachou, buscando a segurança das sombras a alguns metros de distância do carro-lobo.
Pôde ouvir os kavalarianos conversando, e seus passos ecoando barulhentos, muito antes de vê-los; eram apenas dois, mas soavam como dez. Quando chegaram ao espaço iluminado próximo ao aeromóvel, Dirk estava se espremendo contra um nicho na parede da garagem, uma pequena cavidade cheia de ganchos que antigamente eram usados para pendurar ferramentas. Não tinha muita certeza do motivo de estar se escondendo, mas estava contente por passar despercebido. As coisas que Gwen e Jaan lhe contaram sobre os outros residentes de Larteyn não eram muito tranquilizadoras.
- Você tem certeza de tudo isso, Bretan? - um deles, o mais alto, estava dizendo quando chegaram à vista de Dirk. Não era Lorimaar, mas a semelhança era extraordinária: este homem tinha a mesma altura imponente, a mesma pele curtida e enrugada. Mas era mais gordo do que Lorimaar Alto-Braith, seu cabelo era completamente branco - ao contrário do outro, que era a maior parte grisalho - e tinha um bigode "escovinha". Tanto ele quanto seu companheiro usavam um casaco branco sobre calça e camisa de tecido-camaleão que estavam quase negros na pouca luz da garagem. E ambos carregavam lasers.
- Roseph não brincaria comigo - o segundo kavalariano disse em uma voz áspera e arenosa. Era muito mais baixo do que o outro homem, quase da altura de Dirk, e mais jovem e mais esbelto também. Seu casaco tinha as mangas cortadas para mostrar poderosos braços marrons e um grosso bracelete de ferro-e-pedrardente. Conforme se moveu na direção do aeromóvel, ficou totalmente sob a luz por um instante e pareceu encarar a escuridão onde Dirk estava escondido. Tinha apenas metade do rosto: o resto estava deformado por cicatrizes. Seu "olho" esquerdo se movia sem cessar quando seu rosto se virava, e Dirk não demorou para entender o motivo: uma pedrardente preenchia a órbita vazia.
- Como você sabe isso? - o homem mais velho disse quando os dois pararam por um tempo ao lado do carro-lobo. - Roseph gosta de brincadeiras.
- Eu não gosto - disse o outro, o que fora chamado de Bretan. - Roseph pode brincar com você, com Lorimaar ou mesmo com Pyr, mas não ousa brincar comigo. - A voz dele era horrivelmente desagradável; havia uma aspereza sibilante que ofendia o ouvido, mas com cicatrizes tão grossas cobrindo seu pescoço, Dirk achou surpreendente que o homem ainda conseguisse falar.
O kavalariano mais alto apertou o lado da cabeça do lobo, mas a cabine não se abriu.
- Bem, se isso é verdade, temos que nos apressar - disse, queixosamente. - A fechadura, Bretan, a fechadura!
O caolho Bretan fez um barulho estranho, algo entre um grunhido e um rosnado. Tentou abrir a cabine.
- Meu teyn - falou com a voz áspera. - Deixei a cabine entreaberta... eu... levei só um momento para subir e me encontrar com você.
Nas sombras, Dirk pressionou o corpo contra a parede, e os ganchos se cravaram dolorosamente em suas costas, entre as omoplatas. Bretan franziu o cenho e se ajoelhou, enquanto seu companheiro mais velho ficou parado e parecia intrigado.
Então, repentinamente, o Braith ficou em pé novamente, e sua pistola laser estava empunhada em sua mão direita, apontada para Dirk. Seu olho de pedrardente brilhava opacamente.
- Saia e mostre-nos quem você é - exclamou. - O rastro que deixou no pó é muito claro de se ver.
Dirk, em silêncio, ergueu as mãos sobre a cabeça e saiu de seu esconderijo.
- Um quase-homem - o kavalariano mais alto se surpreendeu. - Aqui embaixo!
- Não - Dirk respondeu cuidadosamente. - Dirk t'Larien.
O homem alto o ignorou.
- Isso é que é ter sorte - comentou para seu companheiro com o laser. - Aqueles filhos da lesma de Roseph não teriam sido presas interessantes. Esse aí parece adequado.
Seu jovem teyn fez o barulho estranho novamente, e o lado esquerdo de seu rosto teve um espasmo. Mas o laser em sua mão ainda estava apontado.
- Não - disse para o outro Braith. - Infelizmente, não acho que podemos caçá-lo. Esse só pode ser aquele sobre quem Lorimaar falou. - Deslizou a pistola laser para dentro do coldre e acenou com a cabeça para Dirk, um movimento tão suave que mais parecia um dar de ombros. - Você é grosseiramente negligente. A cabine se tranca automaticamente quando é totalmente fechada. Pode ser aberta pelo lado de dentro, mas...
- Percebo isso agora - Dirk respondeu. Abaixou as mãos. - Eu estava apenas procurando por um carro abandonado. Preciso de transporte.
- Então tentou roubar nosso aeromóvel.
-Não.
- Sim. - A voz do kavalariano transformava cada palavra em um esforço doloroso. - Você é korariel de Jadeferro?
Dirk hesitou, com a negativa presa na garganta. Qualquer resposta que desse podia deixá-lo em apuros.
- Não tem resposta para isso? - disse o homem coberto de cicatrizes.
- Bretan - o outro advertiu. - As palavras do quase-homem não importam para nós. Se Jaantony Alto-Jadeferro o declarou korariel, então é verdade. Tais animais não têm voz sobre seu status. Ainda que dissesse que não, não pode mudar seu nome, então a realidade é a mesma independentemente disso. Se o matarmos, teremos roubado propriedade de Jadeferro e eles certamente exigirão duelo.
- Peço que considere as possibilidades, Chell - Bretan disse. - Este aí, este Dirk t'Larien pode ser homem ou quase-homem, korariel de Jadeferro ou não. Verdade?
- Verdade. Mas ele não é homem de verdade. Ouça-me, meu teyn. Você é jovem, e eu sei dessas coisas de kethi mortos há muito tempo.
- Considere mesmo assim. Se ele é quase-homem e os Jade-ferros o declararam korariel, então ele é korariel quer admita, quer não. Mas, se isso é verdade, Chell, então você e eu devemos ir contra os Jadeferros em duelo. Ele estava tentando roubar de nós, lembre-se disso. Se ele é propriedade Jadeferro, então é um ladrão Jadeferro.
O grande homem de cabelos brancos assentiu lentamente, relutante.
- Se é quase-homem, mas não korariel, então não temos problema - Bretan continuou -, então pode ser caçado. E se ele é um homem de verdade, humano como os altos-senhores, e não um quase-homem?
Chell era muito mais lento do que seu teyn. O kavalariano mais velho franziu o cenho pensativamente e disse:
- Bem, ele não é fêmea, então não pode ser tomado. Mas se ele é humano, deve ter direitos de homem e um nome de homem.
- Verdade - Bretan concordou. - Mas ele não pode ser korariel, então o crime é responsabilidade exclusiva dele. Eu duelaria com ele, não com Jaantony Alto-Jadeferro. - O Braith deu o estranho grunhido-rosnado novamente.
Chell assentiu, e Dirk estava quase estarrecido. O mais jovem dos dois caçadores parecia ter acertado as coisas com uma desagradável precisão. Dirk dissera tanto a Vikary quanto a Janacek, em termos inequívocos, que rejeitava o escudo contaminado da proteção de Jadeferro. Naquele momento, havia sido uma coisa fácil de fazer. Em mundos sãos, como Ávalon, teria sido inquestionavelmente a coisa certa a se fazer. Em Worlorn, as coisas não eram tão claras.
- Aonde o levaremos? - Chell perguntou. Os dois Braiths falavam como se Dirk não tivesse mais vontade do que o aeromóvel.
- Devemos levá-lo para Jaantony Alto-Jadeferro e seu teyn - Bretan disse em sua voz áspera. - Conheço a torre deles de vista.
Por um breve instante, Dirk pensou em sair correndo. Não parecia viável. Eram dois deles, com armas e até mesmo um aeromóvel. Ele não iria longe.
- Eu irei - disse quando vieram em sua direção. - Posso mostrar o caminho. - Poderia ganhar algum tempo para pensar, em todo caso; os Braiths não pareciam saber que Vikary e Janacek já estavam na Cidade do Tanque sem Estrelas, sem dúvida tentando proteger os desvalidos filhos da lesma de outros caçadores.
- Mostre-nos, então - Chell falou. E Dirk, sem saber o que mais fazer, levou-os em direção aos elevadores subterrâneos. Durante a subida, refletiu amargamente que tudo aquilo acontecera porque estava cansado de esperar. E agora, parecia, teria que esperar de qualquer jeito.