Capítulo 11


Dirk atravessou o quarto.

O rifle laser estava apoiado contra a parede. Ele o pegou, sentiu novamente a textura oleosa do plástico negro e liso. Passou o polegar pela cabeça de lobo. Apoiou a arma no ombro, apontou e disparou.

O feixe de luz ficou pelo menos por um segundo no ar. Dirk moveu o rifle ligeiramente, e o raio também se moveu. Quando a luz sumiu, assim como a imagem residual de suas retinas, viu que havia feito um buraco irregular na janela. O vento passava por ali ruidosamente, em dissonância com a música de Lamiya-Bailis.

Gwen saiu meio bamba da cama.

- O quê? Dirk?

Ele deu de ombros e baixou o rifle.

- O quê? - ela repetiu. - O que está fazendo?

- Quero ter certeza de que sei como isso funciona - ele explicou. - Eu... eu vou partir.

Ela franziu o cenho.

- Espere - disse. - Vou pegar minhas botas.

Ele meneou a cabeça.

- Você também? - O rosto dela estava duro, desagradável. - Não preciso que me protejam, malditos sejam...

- Não é isso - ele a interrompeu.

- Se isso é alguma idiotice para se fazer de herói diante dos meus olhos, não está funcionando. - Ela falou, colocando as mãos nos quadris.

Ele sorriu.

- Isso, Gwen, é alguma idiotice para me fazer de herói diante dos meus olhos. Seu olhos... seus olhos não têm mais importância.

- Por quê, então?

Ele ergueu o rifle, incerto.

- Não sei - admitiu. - Talvez porque goste de Jaan e deva isso a ele. Porque quero reparar o que fiz traindo a confiança dele, depois que me fez keth.

- Dirk... - ela começou.

Ele a interrompeu com um gesto.

- Eu sei... mas isso não é tudo. Talvez eu queira encarar Ruark. Talvez porque em Kryne Lamiya tenha havido mais suicidas do que em todas as outras cidades do Festival, e eu seja um deles. Você pode escolher um motivo, Gwen. Entre todos esses. - Um leve sorriso cruzou seu rosto. - Talvez porque haja apenas doze estrelas, você sabia? Então não faz diferença, faz?

- O que você acha que vai poder fazer de útil?

- Quem sabe? E por que isso importa? Você se importa, Gwen? Realmente? - Meneou a cabeça, e o movimento fez o cabelo cair em sua testa novamente, então o empurrou para trás. - Eu não me importo se você se importa - disse, com voz forçada. - Você disse, ou insinuou, que eu estava sendo egoísta quando estávamos em Desafio. Bem, talvez eu estivesse. E talvez esteja sendo agora. Vou lhe dizer uma coisa, no entanto. O que quer que eu vá fazer, não estou esperando nada de você, Gwen. Entende o que quero dizer?

Era um bom discurso de despedida, mas, a meio caminho da porta, ele se acalmou, hesitou e virou.

- Fique aqui, Gwen - disse. - Apenas fique. Ainda está ferida. Se tiver que fugir, Jaan disse algo sobre uma caverna. Sabe sobre o que ele estava falando? - Ela assentiu. - Bem, vá para lá se precisar. Caso contrário, fique aqui. - Fez um estranho sinal de despedida com o rifle, girou sobre os calcanhares e saiu apertando o passo.

Na pista de pouso, as paredes eram apenas paredes - sem fantasmas, sem murais, sem luzes. Dirk tropeçou no aeromóvel que procurava na escuridão, então esperou um pouco para que seus olhos se acostumassem. Seu carro abandonado não era produzido em Alto Kavalaan; era um pequeno artefato de dois lugares, uma lágrima negra e prateada de plástico e metal leve. Sem blindagem, é claro, e a única arma que carregava era o rifle laser que acomodou no colo.

O veículo estava apenas um pouco menos morto do que o resto de Worlorn, mas pouco era o suficiente. Quando ligou a energia, o carro despertou, e os instrumentos iluminaram a cabine com um fulgor pálido. Dirk comeu uma barra de proteína rapidamente e estudou as leituras do painel. O suprimento de energia estava baixo, mas devia conseguir chegar até seu destino. Não usaria os faróis; podia voar com as luzes das estrelas. A calefação podia ser dispensada também, enquanto a jaqueta de couro o mantivesse afastado do frio.

Dirk fechou a portinhola, trancando-se na cabine, e ligou o controle de gravidade. O aeromóvel se elevou, balançando um pouco instável, mas se elevou. Empurrou os controles para frente, e então estava no ar.

Teve apenas um relampejo de terror. Se a gravidade artificial não respondesse bem, sabia, não seria capaz de voar, apenas se chocaria contra o solo recoberto de musgo abaixo. O aeromóvel sacudiu e desceu de forma alarmante quando se afastou da pista, mas apenas por um instante; logo recuperou força e subiu no vento uivante, e a única coisa que continuou revirando foi o estômago de Dirk.

Subiu continuamente, tentando colocar o carrinho o mais alto possível. A cadeia de montanhas estava logo à frente, e tinha que ultrapassá-la. Além disso, não estava nem um pouco a fim de encontrar outros viajantes noturnos. Bem no alto, com as luzes apagadas, podia ver outros aeromóveis que passassem mais embaixo, e as chances dele próprio passar despercebido eram boas.

Não olhou novamente para Kryne Lamiya, mas sentia a cidade atrás de si, impulsionando-o, livrando-o de todos os seus temores. O temor era uma tolice; nada importava, a morte menos ainda. Mesmo quando a Cidade Sereia e suas luzes brancas e cinza desapareceram de vista, a música permaneceu de forma constante mas cada vez mais fraca, sempre com ele, sempre intensa. Uma nota, um silvo trêmulo e agudo se sobressaía ao resto. Dirk estava a trinta quilômetros da cidade, mas ainda ouvia, misturada com o profundo assobio do vento. Finalmente percebeu que o barulho vinha de seus lábios.

Parou de assobiar e tentou se concentrar no vôo.

Depois de quase uma hora, a cadeia de montanhas se ergueu diante dele, ou melhor, abaixo dele, pois Dirk voava bem alto, e se sentia mais perto das estrelas e das minúsculas galáxias que vislumbrava no céu do que das florestas lá embaixo. O vento ficara mais estridente e furioso ao forçar seu caminho pelas fendas da portinhola, mas Dirk ignorou o som.

Onde as montanhas encontravam os bosques, ele viu uma luz.

Diminuiu a velocidade do aeromóvel, fez um círculo e começou a descer. Nenhuma luz devia iluminar esse lado das montanhas, ele sabia; o que quer que fosse, devia ser investigado.

Fez uma espiral descendente até ficar diretamente sobre a luz, então parou o aeromóvel no ar, manteve-o suspenso por um tempo, e desligou o controle de gravidade. Com lentidão infinita, desceu silenciosamente, balançando para frente e para trás com o vento.

Havia várias luzes sob ele. A principal fonte de iluminação era uma fogueira. Dirk podia afirmar agora, podia vê-la agitando-se e tremeluzindo conforme os ventos jogavam as chamas para um lado e para o outro. Mas havia luzes menores, também, fixas e artificiais, um círculo delas na escuridão, não muito distante da fogueira. Talvez a um quilômetro, calculou, talvez menos.

A temperatura na pequena cabine começou a subir, e Dirk sentia o suor em sua pele, encharcando as roupas sob a pesada jaqueta. A fumaça chegara até ele também; nuvens negras e sujas erguiam-se da fogueira e obscureciam sua visão. Franzindo o cenho, moveu o aeromóvel até sair do caminho da fumaça e continuou a descer.

As chamas se ergueram para saudá-lo, longas línguas laranja, muito brilhantes contra as nuvens de fumaça. Dirk viu fagulhas também, ou cinzas, ou algo do tipo; brotavam da fogueira como estrelas cadentes, brincando na noite e desaparecendo. Quando estava ainda mais baixo, presenciou outro espetáculo, um crepitar furioso de chamas branco-azuladas com um cheiro forte de ozônio, que logo se extinguiram.

Dirk parou o motor do aeromóvel quando o fogo ainda estava a uma distância prudente embaixo dele. Havia outras pessoas ao redor - no círculo de luzes artificiais - e não queria ser visto. Seu aeromóvel negro e prata, imóvel contra o céu negro, não seria facilmente notado, mas seria uma história diferente se ele se deixasse atingir pelo brilho das chamas. Embora tivesse uma visão clara de onde estava, não podia identificar o que estava queimando; no centro do fogo havia uma forma imprecisa e escura que soltava faíscas de vez em quando. Ao redor, podia ver um denso emaranhado de estranguladores, seus membros de cera brilhando amarelos sob a luz refletida. Vários galhos haviam caído no centro da fogueira e contribuíam para grande parte da fumaça enquanto murchavam e se transformavam em cinzas. Mas o resto, a cerca sinuosa que rodeava o fogo, recusava-se a arder. Em vez de se espalhar, as chamas obviamente se extinguiriam.

Dirk esperou e observou a fogueira se apagar. Tinha quase certeza de estar olhando para um aeromóvel caído; as fagulhas e o cheiro de ozônio lhe diziam isso. Queria saber que carro era.

Depois que as chamas se aplacaram e as faíscas pararam de voar, mas antes ainda que o fogo se extinguisse por completo e se transformasse em uma fumaça gordurenta, Dirk viu um formato. Uma visão sucinta; uma asa que lembrava a de um morcego, retorcida em um ângulo grotesco e apontada para o céu, recortada contra uma lâmina de fogo. Era o suficiente; não era um aeromóvel conhecido, embora fosse claramente um produto kavalariano.

Como um fantasma escuro sobre a floresta, ele se afastou da fogueira moribunda, em direção ao círculo de luzes artificiais. Dessa vez, manteve uma distância maior. Não precisava se aproximar. As luzes eram bem brilhantes, e a cena podia ser vista em detalhes.

Viu uma clareira ampla, cercada por lanternas elétricas, à margem de algum lago extenso; o mesmo trio que estivera sob a árvore emereliana em Desafio quando Myrik Braith atacou Gwen. Um deles, o grande carro abobadado com blindagem vermelha, pertencia a Lorimaar Alto-Braith. Os outros dois eram menores, quase idênticos, exceto que um estava muito avariado, mesmo visto a essa distância. Estava tombado, meio submerso na água, e parte deformado e brilhante. A porta blindada estava aberta.

Figuras delgadas se moviam ao redor do veículo destroçado. Dirk mal podia vê-las, exceto pelo movimento, tão bem se camuflavam com a paisagem. Perto, alguém estava tirando cães de caça Braiths do aeromóvel de Lorimaar.

Franzindo o cenho, Dirk tocou seu controle de gravidade, e elevou o carro, até perder os homens e os aeromóveis de vista e nada restar abaixo além de um ponto de luz na floresta. Dois pontos, na verdade, mas o fogo era uma brasa tênue e alaranjada agora, e logo se apagaria.

Seguro no ventre negro do céu, parou para pensar.

O carro destroçado era de Roseph, o mesmo que haviam roubado em Desafio, o carro que Jaan Vikary usara para voar até Larteyn naquela manhã. Tinha certeza disso. Os Braiths o encontraram, certamente, e o perseguiram até a floresta, derrubando-o. Mas parecia improvável que Jaan estivesse morto; senão, para que os cães? Lorimaar não estava apenas levando a matilha para um passeio. Era mais provável que Jaan tivesse sobrevivido à queda na floresta, e que os Braiths o estivessem caçando.

Dirk considerou a possibilidade de resgatá-lo, mas as perspectivas pareciam sombrias. Não tinha idéia de como encontrar Jaan na floresta tenebrosa. Os Braiths estavam mais bem equipados para isso do que ele.

Retomou seu curso em direção à cadeia de montanhas, e para Larteyn, além dela. Na floresta, armado e sozinho como estava, não podia ajudar Jaan Vikary. Na fortaleza de fogo kavalariana, no entanto, podia ao menos saldar a dívida de Arkin Ruark com Jadeferro.

As montanhas deslizavam sob ele, e Dirk relaxou mais uma vez, embora uma mão estivesse apoiada no rifle laser que ainda estava em seu colo.

O vôo levou cerca de uma hora mais; então Larteyn, vermelha e fumegante, surgiu para fora da montanha. Parecia muito morta, muito vazia, mas Dirk sabia que era mentira. Desceu e não perdeu tempo, sobrevoando pelos baixos telhados quadrados e pelas praças de pedrardente até o prédio que certa vez partilhara com Gwen Delvano, os dois Jadeferros e o mentiroso kimdissiano.

Apenas um aeromóvel esperava no telhado varrido pelo vento - a relíquia militar verde-oliva. Não havia sinal do veículo amarelo de Ruark, e a arraia cinza estava perdida também. Dirk se perguntou brevemente o que teria acontecido com ela, abandonada em Desafio, mas logo deixou o pensamento de lado e aterrissou.

Empunhou o laser com firmeza e saiu. O mundo estava tranqüilo e carmesim. Dirk andou rapidamente até os elevadores e desceu aos aposentos de Ruark. Estavam vazios.

Revistou-os meticulosamente, derrubando coisas aqui e ali, sem se preocupar com o que bagunçava ou destruía. Todos os pertences do kimdissiano ainda estavam no lugar, mas Ruark não estava ali, e não havia sinal de onde havia ido.

Os pertences de Dirk também estavam ali, as poucas coisas que deixara para trás quando ele e Gwen fugiram, nada além de uma pequena pilha de roupas leves que trouxera de Braque. Inúteis no frio de Worlorn.

Dirk baixou o laser, ajoelhou-se e começou a revirar os bolsos das calças sujas. Só quando a encontrou - ainda enrolada em prata e veludo - soube realmente o que procurava e por que voltara a Larteyn.

No quarto de Ruark encontrou um pequeno cofre com jóias pessoais: anéis, pingentes, intrincados braceletes e coroas, brincos de pedras semipreciosas. Remexeu o conteúdo da caixa até encontrar uma corrente fina com uma coruja prateada incrustada em âmbar e presa por um broche. O broche parecia ter o tamanho adequado. Dirk arrancou o âmbar e a coruja e os substituiu pela jóia-sussurrante.

Então abriu a jaqueta e a pesada camisa e pendurou a corrente no pescoço, e a fria lágrima vermelha ficou próxima de sua pele nua, sussurrando seus sussurros, prometendo suas mentiras. A pequena punhalada de gelo era dolorida contra seu peito, mas estava tudo bem; era Jenny. Em pouco tempo se acostumou, e a joia não o incomodou mais. Lágrimas salgadas corriam por seu rosto. Não notou. Subiu as escadas.

A sala de trabalho que Ruark partilhara com Gwen estava tão desarrumada quanto Dirk se lembrava, mas o kimdissiano não estava ali. Nem foi encontrado no apartamento deserto no andar de cima, para o qual Dirk ligara quando estavam em Desafio. Havia apenas mais um lugar para procurar.

Rapidamente subiu até o topo da torre. A porta estava aberta. Hesitou, e então entrou, segurando o laser, pronto para atirar.

A grande sala de estar era caos e destruição.

A tela de parede havia sido esmagada ou explodida; havia pedaços afiados de vidro por todos os lados. As paredes estavam marcadas por tiros de laser. O sofá havia sido virado e rasgado em uma dúzia de partes, o enchimento arrancado em grandes punhados e espalhado. Alguns punhados haviam sido jogados na lareira, contribuindo para a bagunça encharcada e esfumaçada que sufocou o fogo. Uma das gárgulas, sem cabeça e de pernas para o ar, estava apoiada contra a base da cornija. Sua cabeça, com olhos de pedrardente e tudo mais, havia sido atirada nas cinzas molhadas da lareira. O ar fedia a vinho e vômito.

Garse Janacek dormia no chão, o torso nu, a barba ruiva ainda mais vermelha pelo vinho que escorrera nela, a boca aberta. Tinha o mesmo cheiro do aposento. Roncava alto, e sua pistola laser ainda estava em sua mão. Dirk viu a camisa mergulhada em um charco de vômito que Janacek tentara secar sem muito entusiasmo.

Dirk se aproximou cuidadosamente e tirou o laser dos dedos frouxos de Janacek. O teyn de Vikary não era o ferro kavalariano que Jaan imaginara.

O braço direito de Janacek ainda estava envolto em ferro-e- pedrardente. Algumas das jóias negro-avermelhadas haviam sido arrancadas e os buracos vazios pareciam obscenos. Mas a maior parte do bracelete estava intacta, exceto onde se notavam alguns arranhões. O antebraço de Janacek, logo acima do bracelete, também estava arranhado. Os talhos era fundos e, em geral, eram continuação dos sulcos no ferro negro. Tanto braço quanto bracelete tinham crostas de sangue seco.

Perto da bota de Janacek, Dirk viu uma longa faca manchada de sangue. Pode imaginar o resto. Bêbado, sem dúvida, com a mão esquerda desajeitada pelo antigo ferimento, Janacek tentara arrancar as pedrardentes, perdendo a paciência e esfaqueando selvagemente, derrubando a lâmina pela dor e pela cólera.

Dirk retrocedeu rapidamente, desviando da camisa empapada de Janacek. Parou no vão da porta, levantou o rifle e gritou:

- Garse!

Janacek não se moveu. Dirk repetiu o grito. Dessa vez, o volume dos roncos diminuiu notavelmente. Encorajado, Dirk parou, pegou o objeto mais próximo - uma pedrardente - e o jogou no kavalariano. Acertou Janacek no rosto.

Ele se sentou lentamente, piscando. Viu Dirk e fez uma careta de desprezo.

- Levante-se. - Dirk mandou, gesticulando com o laser.

Janacek ficou em pé com esforço, olhando ao redor em busca da própria arma.

- Você não vai achá-la. - Dirk avisou. - Está comigo.

Os olhos de Janacek estavam turvos e cansados, mas o sono fizera passar grande parte da bebedeira.

- Por que está aqui, t'Larien? - perguntou, lentamente, em uma voz marcada tanto pela exaustão quanto pelo vinho. - Veio zombar de mim?

Dirk negou com a cabeça.

- Não. Sinto por você.

Janacek o encarou com raiva.

- Sente por mim?

- Não acha que merece pena? Olhe ao seu redor!

- Cuidado. - Janacek lhe avisou. - Brinque muito comigo, t'Larien, e descobrirei se você tem aço suficiente para disparar esse laser que segura tão desajeitadamente.

- Não, Garse - Dirk falou. - Por favor. Preciso da sua ajuda.

Janacek gargalhou, jogando a cabeça para trás e rugindo.

Quando parou, Dirk lhe contou tudo o que acontecera desde que Vikary matou Myrik Braith em Desafio. Janacek permaneceu muito tenso enquanto ouvia, os braços cruzados apertados contra o peito nu e marcado por cicatrizes. Riu uma única vez - quando Dirk lhe contou suas conclusões sobre Ruark.

- Os manipuladores de Kimdiss. - Janacek resmungou. Dirk o deixou resmungar, e então terminou a história. - E eu com isso? - quis saber, quando Dirk concluiu o relato. - Por que acha que alguma coisa disso tem alguma importância para mim?

- Achei que você não deixaria os Braiths caçarem Jaan como a um animal. - Dirk respondeu.

- Ele mesmo se fez um animal.

- Aos olhos dos Braiths, imagino - Dirk falou. - Você é um Braith?

- Sou um kavalariano.

- Todos os kavalarianos são iguais agora? - Gesticulou em direção da cabeça de pedra da gárgula, jogada na lareira. - Vejo que você também tem troféus, exatamente como Lorimaar.

Janacek não falou nada. Seus olhos estavam muito duros.

- Talvez eu estivesse errado - Dirk prosseguiu. - Mas quando vim até aqui e vi tudo isso, comecei a pensar. Comecei a pensar que talvez você tivesse algum sentimento humano pelo homem que costumava ser seu teyn. Me lembrei que uma vez você me disse que você e Jaan tinham um laço mais forte do que eu jamais seria capaz de entender. Acho que era uma mentira, no entanto.

- Era verdade. Jaan Vikary rompeu esse laço.

- Gwen rompeu todos os laços entre nós há anos - Dirk falou. - Mas eu vim quando ela precisou de mim. Oh, acontece que ela não precisava realmente de mim, e eu vim por várias razões egoístas. Mas eu vim. Não pode tirar isso de mim, Garse. Cumpri minha promessa. - Fez uma pausa. - E eu não deixaria ninguém caçá-la, se pudesse impedir. Parece que éramos ligados por algo bem mais forte que seu ferro-e-fogo kavalariano.

- Diga o que quiser, t'Larien. Suas palavras não mudam nada. A idéia de você cumprindo promessas é ridícula. E as promessas que fez para Jaan e para mim?

- Eu as traí - Dirk respondeu rapidamente. - Sei disso. Então você e eu estamos quites, Garse.

- Não traí ninguém.

- Está abandonando aqueles que eram mais próximos a você. Gwen, que era sua cro-betheyn, que dormia com você, que o amava e o odiava ao mesmo tempo. E Jaan. Seu precioso teyn.

- Nunca traí nenhum deles. - Janacek garantiu com veemência. - Gwen traiu a mim e ao jade-e-prata que usava no dia em que se juntou a você. Jaan renunciou a tudo o que era decente matando Myrik daquela maneira. Ele me ignorou, ignorou os deveres de ferro-e-fogo. Não devo nada a nenhum deles.

- Não deve, não é? - Sob a camisa, Dirk podia sentir a jóia-sussurrante dura contra a pele, inundando-o com palavras e memórias, com uma evocação do homem que fora um dia. Estava muito zangado. - E isso é tudo, certo? Não deve nada para eles, então quem se importa? Todos os seus malditos laços kavalarianos, no final das contas, são dívidas e obrigações. Tradições, a antiga sabedoria dos grupos, como o código de honra e a caça aos quase-homens. Não pense nelas, apenas siga-as. Ruark estava certo sobre uma coisa... não há amor em nenhum de vocês, exceto, talvez, em Jaan, e não estou tão seguro disso. Que diabos teria feito se Gwen não estivesse usando o bracelete?

- A mesma coisa!

- Verdade? E você? Você teria desafiado Myrik porque ele machucou Gwen? Ou foi só porque ele danificou seu jade-e-prata? - Dirk bufou. - Talvez Jaan tivesse feito a mesma coisa, mas você não, Janacek. Você é tão kavalariano quanto o próprio Lorimaar, tão insensível quanto Chell ou Bretan. Jaan queria melhorar seu povo, mas acho que você simplesmente estava junto no passeio e não acreditou em nada disso nem por um minuto. - Tirou o laser de Janacek do cinturão e o jogou no ar com a mão livre. - Tome - gritou, abaixando o rifle. - Vá caçar quase-homens!

Janacek, perplexo, apanhou a arma no ar quase por reflexo. Ficou parado, segurando-a e franziu o cenho.

- Eu podia matá-lo agora, t'Larien - disse.

- Faça isso ou não faça nada - Dirk respondeu. - Dá no mesmo. Se você realmente tivesse amado Jaan...

- Eu não amo Jaan. - Janacek rebateu, com o rosto corado. - Ele é meu teyn!

Dirk deixou as palavras do kavalariano penderem no ar por um longo minuto. Coçou o queixo pensativamente.

- E? - perguntou. - Você quer dizer que Jaan era seu teyn, não é isso?

Janacek empalideceu tão repentinamente quanto corara. Debaixo da barba, um canto de sua boca se contorceu de uma maneira que fez Dirk se lembrar de Bretan. Voltou os olhos, quase furtivamente, meio envergonhado, para o pesado bracelete de ferro que ainda estava em seu antebraço ensangüentado.

- Não conseguiu arrancar todas as pedrardentes, não é mesmo? - Dirk falou gentilmente.

- Não - Janacek respondeu. Sua voz estava estranhamente serena. - Não, não consegui. Mas isso não significa muito, é claro. O ferro físico não é nada quando o outro ferro já desapareceu.

- Mas não desapareceu, Garse - Dirk disse. - Jaan falou sobre você quando estávamos juntos em Kryne Lamiya. Eu sei. Talvez ele se sinta ligado a Gwen por ferro também, e talvez isso seja errado. Não me pergunte. Tudo o que sei é que para Jaan o outro ferro ainda existe. Ele estava com seu bracelete de ferro-e-fogo em Kryne Lamiya. Vai estar com ele quando os cães Braiths o pegarem, imagino.

Janacek sacudiu a cabeça.

- t'Larien - falou -, sua mãe deve ser kimdissiana, posso garantir. Mesmo assim, não posso me opor. Você manipula bem demais - sorriu; era o velho sorriso, aquele que brilhara na manhã em que apontara o laser para Dirk e perguntara se o assustara. - Jaan Vikary é meu teyn - garantiu. - O que quer que eu faça?

A conversão de Janacek, apesar de relutante, foi mais que suficiente. O kavalariano assumiu o controle da situação imediatamente. Dirk pensou que deviam partir logo e discutir os planos no caminho, mas Janacek insistiu que deviam tomar um banho e se vestir antes.

- Se Jaan ainda está vivo, estará seguro até o amanhecer. Os cães têm péssima visão à noite, e os Braiths não vão querer entrar em um bosque de estranguladores sem a luz do dia. Não, t'Larien, eles vão acampar e esperar. Um homem sozinho e a pé não consegue ir muito longe. Então, temos tempo suficiente para ir ao encontro deles como Jadeferros.

Quando ficaram prontos para partir, Janacek já tinha perdido quase todos os sinais de sua bebedeira irada. Estava elegante e imaculado em um traje de tecido-camaleão forrado com pele, a barba limpa e aparada, o escuro cabelo vermelho bem penteado para trás. Apenas seu braço direito - limpo e cuidadosamente enfaixado, mas ainda visível - dava provas contra ele. Mas as feridas não pareciam inibi-lo muito; com movimentos graciosos e fluidos, carregou e checou o laser e o colocou no cinturão. Além da pistola, Janacek também levava uma faca longa de fio duplo e um rifle como o de Dirk. Sorriu jovialmente ao empunhá-lo.

Dirk havia se lavado e se barbeado enquanto esperava, e também teve a oportunidade de comer sua primeira refeição completa em dias. Estava se sentindo quase carregado de energia quando foram para o telhado.

O interior do imenso aeromóvel quadrado de Janacek era tão incômodo quanto o pequeno carro abandonado com que Dirk voara de Kryne Lamiya, embora a máquina de Janacek tivesse quatro pequenos assentos no lugar de dois.

- A blindagem. - Garse explicou quando Dirk reparou no limitado espaço interior. Prendeu Dirk com um apertado cinto de segurança de batalha, em um desconfortável assento rígido, fez o mesmo consigo, e depois levantaram voo.

A cabine era mal iluminada e completamente fechada, com indicadores e instrumentos por todos os lados, mesmo sob as portas. Não tinha janelas; um painel de oito pequenas telas davam ao piloto oito visões do lado de fora. Por dentro, o carro não era pintado, não tinha enfeites e era sintético.

- Este veículo é mais velho do que nós dois. - Janacek comentou enquanto subiam. Parecia ansioso por falar, e amistoso, apesar de sua mordacidade habitual. - E já viu mais mundos até do que você. A história dele é fascinante. Este modelo em particular data de uns quatrocentos anos atrás. Foi construído pelos Saberes de Dam Tullian, no Véu do Tentador, e usado na guerra contra Erikan e Esperança do Trapaceiro. Depois de um século, mais ou menos, foi avariado e abandonado. Os erikanos o confiscaram durante a paz e o venderam para os Anjos de Aço de Bastião. Eles o usaram em várias campanhas, até que finalmente o veículo foi capturado pelos prometenses. Um mercador kimdissiano o comprou em Prometeus e o vendeu para mim, e eu o adaptei do código de honra. Ninguém nunca mais me desafiou para um combate aéreo. Veja. - Estendeu a mão e apertou um botão luminoso, e repentinamente o veículo se acelerou de uma tal maneira que Dirk foi pressionado contra o assento. - Tubos de pulso auxiliares para velocidade de emergência. - Janacek explicou com um sorriso. - Estaremos lá na metade do tempo que você levou, t'Larien.

- Ótimo - Dirk falou. Algo o intrigava, no entanto. - Você disse que conseguiu o veículo com um mercador kimdissiano?

- Sim, é verdade - Janacek falou. - Os pacíficos kimdissianos são grandes mercadores de armas. Tenho pouca consideração por esses manipuladores, como você sabe, mas não vou deixar de aproveitar uma barganha quando ela me é oferecida.

- Arkin fez um grande estardalhaço sobre ser não violento - Dirk comentou. - Suponho que seja outra farsa.

- Não - Janacek respondeu. Olhou de relance para Dirk e sorriu. - Surpreso, t'Larien? A verdade é talvez mais bizarra. Não chamamos os kimdissianos de manipuladores sem um motivo. Você estudou história em Ávalon, imagino...

- Um pouco - Dirk falou. - História da Antiga Terra, do Império Federal, a Guerra Dupla, a Expansão.

- Mas nada da história dos mundos exteriores. - Janacek riu. - Já era de se esperar. Há tantos mundos e culturas no reino humano, tantas histórias. Mesmo os nomes são muitos para se aprender. Escute, e eu lhe explicarei. Quando você chegou a Worlorn, notou o círculo de bandeiras?

Dirk olhou para ele com certa perplexidade.

-Não.

- Talvez não estejam mais lá. Antigamente, no entanto, durante o Festival, a praça do lado de fora do porto espacial tinha catorze bandeiras. Era uma absurda presunção toberiana, mas foi feita, embora dez das catorze bandeira planetárias não representassem nada. Mundos como Eshellin e a Colônia Esquecida nem sabiam o que era uma bandeira, enquanto, no outro extremo, os emerelianos tinham um estandarte diferente para cada uma das cem torres urbanas. Os escuralbinos riram de todos e hastearam um tecido totalmente negro. - Janacek parecia divertir-se muito com tudo isso. - Em Alto Kavalaan, não tínhamos uma bandeira para nosso mundo. Encontramos uma, no entanto. Foi tirada da nossa história. Um retângulo dividido em quatro qua- drantes de cores distintas: um banshee verde sobre um fundo negro para Jadeferro, um morcego caçador prateado em fundo amarelo para Shanagate, espadas cruzadas sobre carmesim para Açorrubro, e um lobo branco em fundo púrpura para Braith. Era o velho estandarte da Liga dos Altos-Senhores. A Liga foi criada na época em que as primeiras naves espaciais voltaram para Alto Kavalaan. Havia um homem, um grande líder, chamado Vikor Alto-Açorrubro Corben. Ele dominava o conselho de altos-senhores de Açorrubro havia gerações, e, quando as pessoas de outros mundos chegaram, ele estava convencido de que todos os kavalarianos deveriam se unir para partilhar conhecimento e riqueza igualmente. Dessa forma, criou a Liga de Altos-Senhores, cuja bandeira descrevi para você. A união, infelizmente, teve vida curta. Mercadores kimdissianos, temerosos do poder de um Alto Kavalaan unificado, se comprometeram a prover apenas os Braiths com modernos armamentos. Os altos-senhores Braiths haviam se juntado à Liga apenas por medo; na verdade, desejavam evitar as estrelas, que, segundo eles, estavam cheias de quase-homens. Mesmo assim, não se esquivaram de aceitar os lasers dos quase-homens. Então tivemos a última alta-guerra. Jadeferro, Açorrubro e Shanagate, juntos, subjugaram Braith, apesar das armas kimdissianas, mas Vikor Alto-Açorrubro foi morto e o custo de vidas foi imenso. A Liga de Altos-Senhores sobreviveu ao seu fundador, apenas por mais alguns anos. Os Braiths, seriamente derrotados, se aterraram à crença de terem sido enganados e usados por quase-homens kimdissianos, e se apegaram às velhas tradições com mais firmeza do que antes. Para selar a paz e fazê-la durar, a Liga (então dominada por altos-senhores de Shaganate) capturou todos os mercadores kimdissianos em Alto Kavalaan, além de uma nave de toberianos, declarou todos eles criminosos de guerra (um termo que aprendemos dos estrangeiros, a propósito), e soltou-os nas planícies, para que fossem caçados como quase-homens. Os banshees mataram muitos deles, outros morreram de fome, mas os caçadores apanharam a maioria e trouxeram suas cabeças para casa como troféus. Dizem que os altos-senhores de Braith tinham uma alegria especial em esfolar os homens que os tinham armado e aconselhado. Não temos orgulho dessa caçada hoje, mas podemos entendê-la. A guerra fora mais longa e mais sangrenta do que qualquer outra em nossa história desde o Tempo do Fogo e dos Demônios. Foi um tempo de grandes pesares e ódios poderosos, e destruiu a Liga dos Altos-Senhores. O grupo Jadeferro se retirou, em vez de tolerar a caçada, declarando que os kimdissianos eram humanos. Açorrubro logo o seguiu. Os matadores de quase-homens eram todos Braiths e Shanagates, mas o grupo Shanagate também já estava fora da liga. A bandeira de Vikor foi abandonada e esquecida, até que o Festival nos fez recordar dela. - Janacek fez uma pausa e olhou de relance para Dirk. - Entende agora, t'Larien?

- Entendo por que kavalarianos e kimdissianos não gostam muito uns dos outros. - Dirk admitiu.

Janacek deu uma gargalhada.

- Isso vai além da nossa própria história - disse. - Kimdiss não participou de nenhuma guerra, mas o planeta tem as mãos ensangüentadas. Quando Tober-no-Véu atacou Tocadolobo, os manipuladores supriram os dois lados. Quando a guerra civil explodiu em di-Emerel, entre os urbanitas, cujo universo é uma única construção, e os descontentes observadores de estrelas, que queriam um horizonte mais amplo, Kimdiss esteve profundamente envolvido, dando aos urbanitas os meios para uma vitória decisiva. - Sorriu. - Na verdade, t'Larien, até existem histórias de complôs kimdissianos dentro do Véu do Tentador.

Dizem que foram agentes kimdissianos que colocaram os Anjos de Aço e os Homens Alterados de Prometeus uns contra os outros, que depuseram o Quarto Cuchulainn de Tara porque ele se negou a negociar com eles, que interferiram em Braque para que os sacerdotes impedissem o desenvolvimento tecnológico. Você conhece a antiga religião de Kimdiss?

- Não.

- Você a aprovaria. - Janacek comentou. - É um credo pacífico e civilizado, extremamente complexo. Você pode usá-lo para justificar qualquer coisa, exceto violência pessoal. Mas o grande profeta deles, o Filho do Sonhador, aceito como uma figura mítica, mas que ainda assim é reverenciado, disse certa vez: "Lembre-se: seu inimigo tem um inimigo". Realmente, tem. Esse é o coração da sabedoria kimdissiana.

Dirk se mexeu inquieto no assento.

- Está me dizendo que Ruark...

- Não estou dizendo nada. - Janacek o interrompeu. - Tire suas próprias conclusões. Não precisa aceitar as minhas. Uma vez contei tudo isso para Gwen Delvano, porque ela era minha cro-betheyn e eu me preocupava. Ela pareceu divertir-se muito. A história não queria dizer nada, ela me afirmou. Arkin Ruark era apenas ele mesmo, não algum arquétipo da história dos mundos exteriores. Assim ela me disse. Ele também era amigo dela, ela me falou, e esse laço, essa amizade - a voz dele estava corrosiva ao dizer a palavra - de algum modo transcendia o fato de ele ser um mentiroso e um kimdissiano. Gwen me disse para olhar minha própria história. Se Arkin Ruark era um ma- nipulador pelo simples fato de ter nascido em Kimdiss, então eu era um tomador de cabeças de quase-homens, simplesmente por ser kavalariano.

Dirk considerou aquilo.

- Ela estava certa, você sabe - disse tranqüilamente.

- Oh, estava?

- O argumento dela era correto. - Dirk explicou. - Parece, no entanto, que ela estava errada a respeito de Ruark, mas em geral...

- Em geral, é melhor desconfiar de todos os kimdissianos. - Janacek completou com firmeza. - Você foi enganado e usado, t'Larien, e mesmo assim não aprendeu. Você é muito parecido com Gwen. Chega disso. - Deu uma batidinha em uma das telas com o nó dos dedos. - Estamos perto das montanhas. Não falta muito.

Dirk agarrava o rifle com força. Secou o suor das palmas das mãos nas calças.

- Você tem um plano?

- Sim - disse Janacek, sorrindo. Inclinou-se na direção de Dirk e retirou suavemente o rifle do colo. - Um plano muito simples, na verdade - continuou, colocando a arma cuidadosamente fora de alcance. - Vou entregá-lo para Lorimaar.

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