Capítulo 12


Dirk não ficou surpreso. Sob sua roupa, a jóia-sussurrante ainda estava fria contra a pele, recordando-o de promessas e traições passadas. Quase não se importava mais. Cruzou os braços e esperou.

Janacek pareceu desapontado.

- Você não parece preocupado - disse.

- Não importa, Garse. - Dirk respondeu. - Quando deixei Kryne Lamiya, esperava morrer. - Suspirou. - Como tudo isso vai ser de alguma utilidade para Jaan?

Janacek não respondeu imediatamente; seus olhos azuis estudaram Dirk cuidadosamente.

- Está mudado, t'Larien - disse finalmente, sem sorrir. - Você realmente se importa mais com o destino de Jaan Vikary do que com o seu próprio?

- Como vou saber? - Dirk falou. - Vamos em frente com seu plano!

Janacek franziu o cenho.

- Tinha imaginado pousar no acampamento Braith e tentar um confronto direto. Mas rejeitei a idéia. Meu desejo de morte não aumentou tanto quanto o seu. Ainda que pudesse desafiar um ou vários caçadores para duelar, seria obviamente em auxílio a um criminoso. Eles nunca aceitariam. Até mesmo minha situação é delicada neste momento; por causa de minhas palavras e ações em Desafio, os Braiths ainda me consideram humano, ainda que em desgraça. Se eu me propuser abertamente a ajudar Jaan, contudo, ficaria manchado aos olhos deles. As cortesias do código não valeriam para mim. Eu me tornaria um criminoso, um provável quase-homem. Uma segunda alternativa seria atacá-los repentinamente, sem aviso, e matar o máximo possível. Mas não sou ainda tão depravado para considerar essa idéia. Mesmo o ato de Jaan contra Myrik seria limpo se comparado a tal crime. Seria melhor, é claro, se pudéssemos voar e localizar Jaan e resgatá-lo com segurança e em segredo. Mas a chance disso acontecer é mínima. Os Braiths têm cães de caça. Nós, não. Eles têm caçadores e rastreadores experientes, especialmente Pyr Braith Oryan e o próprio Lorimaar Alto-Braith. Sou menos habilidoso, e você é inútil. As chances deles encontrarem Jaan antes de nós são excelentes.

- Sim. - Dirk concordou. - E então?

- Estou sendo um falso kavalariano ao ajudar Jaan nisso tudo - Janacek falou em um voz levemente perturbada. - Então, serei um pouco mais falso. É nossa melhor alternativa. Voaremos abertamente, e eu o entregarei, como disse. Esse ato garantirá a confiança deles até certo ponto. Aí, vou me juntar à caçada e fazer tudo o que puder, exceto cometer assassinato. Talvez possa provocar uma briga e desafiar alguém para um duelo, de modo que não pareça que estou protegendo Jaan Vikary.

- Você pode perder. - Dirk apontou.

Janacek assentiu.

- Verdade, posso perder. Mas não acho que isso vá acontecer. Em um duelo singular, apenas Bretan Braith Lantry é um antagonista realmente perigoso, e ele e seu teyn não estão entre os caçadores, se os aeromóveis que você viu são os únicos. Lorimaar tem suas habilidades, mas Jaan o feriu em Desafio. Pyr é rápido e talentoso com seu bastãozinho, mas não com uma lâmina ou uma pistola. Os outros são velhos e fracotes. Eu não perderia.

- E se não conseguir provocar um duelo?

- Então posso estar por perto quando encontrarem Jaan.

- E aí?

- Não sei. Mas não o capturarão. Prometo isso, t'Larien. Eles não o capturarão.

- E, enquanto isso, o que será de mim?

Janacek olhou sobre o ombro mais uma vez, e novamente seus olhos azuis encararam Dirk pensativamente.

- Você correrá grande perigo - o kavalariano admitiu mas não acho que o matarão imediatamente, e certamente não quando eu o entregar, amarrado e impotente. Vão querer caçar você. Pyr provavelmente vai reivindicá-lo. Espero que o libertem, tirem sua roupa e façam-no correr pela floresta. Se alguns deles resolverem caçar você, menos estarão atrás de Jaan. Há outra possibilidade também. Em Desafio, Pyr e Bretan estavam prestes a brigar por você. Se Bretan se juntar aos caçadores, é provável que retomem a disputa. Isso só nos beneficiaria.

Dirk sorriu.

- Seu inimigo tem um inimigo - disse, sarcástico.

Janacek fez uma careta.

- Não sou Arkin Ruark - disse. - Eu o ajudarei se puder. Antes de entrarmos no acampamento dos Braiths, vamos aterrissar secretamente, perto do aeromóvel abatido que você viu pegando fogo. Deixaremos um laser nos destroços. Então, depois que o libertarem e o soltarem nu na floresta, você pode buscar a arma e surpreender seus perseguidores. - Deu de ombros. - Sua vida pode depender do quão rápido e direto você pode correr, e quão boa é sua pontaria com um rifle.

- E quanto estou disposto a matar. - Dirk acrescentou.

- E quanto está disposto a matar. - Janacek reconheceu. - Não posso lhe oferecer mais vantagens, t'Larien.

- Aceito essas que me oferece - Dirk falou. Então voaram em silêncio por um longo tempo. Mas quando as lâminas negras da cadeia de montanhas finalmente apareceram diante deles, e Janacek apagou todas as luzes do aeromóvel e começou sua lenta e cuidadosa descida, Dirk virou-se para falar com ele novamente. - O que você teria feito - perguntou - se eu tivesse me recusado a participar do seu plano?

Janacek se virou no assento e colocou a mão direita no braço de Dirk. As pedrardentes intactas brilhavam debilmente no ferro do bracelete.

- O laço de fogo-e-ferro é mais forte do que qualquer laço que você possa imaginar - o kavalariano disse com voz grave -, e muito mais forte do que qualquer laço de gratidão passageira. Se tivesse se recusado, t'Larien, eu teria arrancado sua língua para que não pudesse contar meus planos aos Braiths e teria seguido adiante. Querendo ou não, você teria desempenhado seu papel. Entenda, t'Larien, eu não o odeio, embora você tenha merecido isso muitas vezes. Algumas vezes me peguei gostando de você, tanto quanto um Jadeferro pode gostar de alguém de fora do grupo. Não machucaria você por mal. Mesmo assim, tenho que machucar você. Pois considerei cuidadosamente, e meu plano é a melhor chance que Jaan Vikary tem.

Enquanto falava, Janacek não esboçou nem o mais leve traço de sorriso. Pela primeira vez, não estava brincando.

Dirk não teve muito tempo para refletir sobre as palavras de Janacek. O veículo começou a descer noite adentro como uma pedra incrivelmente leve, deslizando no ar como um espectro sobre as copas dos estranguladores. O aeromóvel abatido ainda ardia em um escuro tom alaranjado, vindo do núcleo de uma árvore caída e carbonizada, com uma fina camada de fumaça escura ao seu redor. Janacek se aproximou dos destroços, abriu uma das grandes portas blindadas e jogou o rifle no solo da floresta, alguns metros abaixo. Por insistência de Dirk, também jogou a jaqueta dos Braiths que Dirk estava vestindo, pois a pele e o couro grosso seriam uma bênção para um homem que estivesse correndo nu pela floresta.

Depois, voltaram a ganhar altitude, e Garse amarrou Dirk pelas mãos e pelos pés, com cordas apertadas e doloridas que ameaçavam cortar a circulação, e, por isso mesmo, muito autênticas. Então, acendendo os faróis e as luzes laterais, Janacek os levou até o círculo iluminado.

Os cães estavam presos e dormindo ao lado da água, mas acordaram quando o aeromóvel desconhecido desceu, e Janacek aterrissou no meio de ferozes latidos. Apenas um dos Braiths estava à vista, o caçador pele-e-osso cujos cabelos negros despenteados pareciam um novelo de arame queimado. Era teyn de Pyr, Dirk reconheceu, embora não soubesse seu nome. O homem estava sentado ao lado de uma fogueira, perto dos cães, com um rifle laser ao lado. Mas, quando os avistou, ficou em pé rapidamente antes mesmo do veículo descer.

Janacek abriu a pesada porta novamente, empurrando-a para cima e deixando o frio da noite penetrar no calor da cabine. Colocou Dirk em pé com um puxão e o tirou do aeromóvel com violência, forçando-o a ficar de joelhos na areia fria.

- Jadeferro - o homem de guarda disse duramente. Seus kethi já começavam a se reunir, saindo dos sacos de dormir e dos aeromóveis.

- Tenho um presente para vocês - Janacek falou, com as mãos no quadril. - Uma oferta de Jadeferro para Braith.

Eram seis caçadores, Dirk viu quando, ainda ajoelhado, olhou para cima; todos eles tinham estado em Desafio. O careca e corpulento Pyr, que estava dormindo perto de seu teyn, foi o primeiro a aparecer. Logo depois Roseph Alto-Braith e seu silencioso e musculoso companheiro se juntaram a eles. Também dormiam ao ar livre, perto de seu aeromóvel. Por fim, Lorimaar Alto-Braith Arkellor, com o lado esquerdo do peito enfaixado, veio lentamente do aeromóvel abobadado vermelho, apoiado no braço do gordo que estivera com ele antes. Todos os seis apareceram como estavam dormindo: completamente vestidos e armados.

- O presente - disse Pyr - é apreciado, Jadeferro. - Usava uma pistola em um cinturão metálico preto, mas seu bastão não estava à vista, e era como se estivesse faltando alguma coisa.

- Sua presença não é apreciada - Lorimaar falou, enquanto lutava para se juntar ao círculo. Estava apoiando grande parte de seu peso no teyn, então parecia curvado e derrotado, não mais o gigante que fora. E Dirk, olhando para ele, pensou ter visto novas rugas na escuridão, vincos profundos na pele recém-esculpidos pela dor.

- É óbvio agora que o duelo para o qual fui nomeado árbitro nunca acontecerá - Roseph comentou serenamente, sem nenhum traço da pesada hostilidade que engrossava a voz de Lorimaar

então não tenho nenhum tipo de autoridade, e não pretendo falar por Alto Kavalaan ou por Braith. Mesmo assim, acho que posso falar por todos nós. Não toleraremos sua interferência, Jadeferro. Com ou sem presente de sangue.

- É verdade - concordou Lorimaar.

- Não pretendo interferir. - Janacek explicou. - Pretendo me juntar a vocês.

- Estamos caçando seu teyn - o companheiro de Pyr disse.

- Ele sabe disso - Pyr rebateu.

- Não tenho teyn. - Janacek garantiu. - Um animal ronda a floresta, usando meu ferro-e-fogo. Ajudarei vocês a matá-lo, e reivindico a coisa que é minha. - Soou muito duro, muito convincente.

Um dos cães andava de um lado para o outro, impaciente na corrente. Rosnou e parou tempo suficiente para enrugar sua cara de rato para Janacek e mostrar uma fileira de dentes amarelados.

- Ele é um mentiroso - Lorimaar Alto-Braith afirmou. - Até nossos cães farejam suas mentiras. Não gostam dele.

- Um quase-homem - acrescentou seu teyn.

Garse Janacek virou a cabeça ligeiramente. A luz trêmula da fogueira dava novos tons vermelhos em sua barba quando sorriu irônica e ameaçadoramente.

- Saanel Braith - disse - seu teyn está ferido e me insulta com impunidade, pois sabe que não posso desafiá-lo a fazer suas escolhas. Você não tem essa mesma proteção.

- Neste momento, ele tem - Roseph falou com aspereza. - Isso é um truque que não vamos permitir que use, Jadeferro. Você não duelará conosco, um a um, e salvará seu teyn renegado.

- Jurei que não tenho desejo de salvá-lo. Não tenho teyn. Você não pode negar meus direitos garantidos pelo código.

O pequeno e encurvado Roseph - o menor dos kavalarianos por meio metro - encarou Janacek e se recusou a ceder.

- Estamos em Worlorn - disse. - E fazemos o que queremos.

Vários dos outros murmuraram em concordância.

- Vocês são kavalarianos - Janacek insistiu, mas uma faísca de dúvida cruzou seu rosto. - Vocês são Braiths e altos-senhores de Braith, ligados ao seu grupo, ao seu conselho e seus costumes.

- Em anos passados - Pyr disse com um sorriso vi muito dos meus kethi e ainda mais homens de outros grupos abandonarem a antiga sabedoria. "Isso, isso e mais isso está errado", os amaneirados Jadeferros falavam. "Não seguiremos isso." E os cordeiros de Açorrubro faziam coro, assim como os afeminados de Shanagate e, lamentavelmente, muitos Braiths. Minhas lembranças são falsas? Você fica aí parado e prega o código para nós, mas acho que me lembro de Jadeferros na minha juventude dizendo que não eu não podia mais caçar quase-homens. Alguns kavalarianos moles que foram mandados para Ávalon para aprender sobre naves espaciais, armas e outras coisas úteis não voltaram cheios de mentiras sobre como devíamos mudar nossos costumes, afirmando que nosso código era uma vergonha, o mesmo código que por tanto tempo havia sido motivo de orgulho? Diga-me, Jadeferro, estou errado?

Garse não disse nada. Cruzou os braços sobre o peito.

- Jaan Vikary, certa vez Alto-Jadeferro, era o maior dos reformistas e dos mentirosos. Você não estava muito atrás - Lorimaar falou.

- Nunca estive em Ávalon. - Janacek comentou simplesmente.

- Me responda - Pyr exigiu. - Você e Vikary não queriam mudar os velhos costumes? Vocês não riam das partes do código das quais não gostavam?

- Nunca rompi o código - Janacek falou. - Jaan... Jaan algumas vezes... - titubeou.

- Ele admite - o gordo Saanel apontou.

- Estivemos conversando entre nós - Roseph disse com voz calma. - Se os altos-senhores podem matar fora do código, se as coisas que conhecemos como verdadeiras podem mudar e ser desdenhadas, então também podemos fazer mudanças e descartar falsas sabedorias que não nos interessam. Não temos mais laços com Braith, Jadeferro. E o melhor dos grupos, mas não é bom o suficiente. Nossos antigos kethi foram brandos demais em aceitar muitas mentiras. Não seremos mais deformados, nem brincarão mais conosco. Regressaremos às antigas e verdadeira tradições, para o credo que já era antigo antes da queda do Punho de Bronze, mesmo nos dias em que os altos-senhores de Jadeferro, de Taal e das Moradas do Carvão Profundo lutavam juntos contra os demônios nas Colinas Lameraan.

- Vê, Jadeferro - Pyr falou -, você nos chama por falsos nomes.

- Não sabia - Janacek falou lentamente.

- Chame-nos por nosso nome verdadeiro. Não somos Braiths.

Os olhos do Jadeferro pareciam escuros e sombrios. Seus braços ainda estavam cruzados. Olhou para Lorimaar.

- Vocês criaram um novo grupo - disse.

- Há precedentes - Roseph comentou. - Açorrubro nasceu daqueles que romperam com Montanha Pedrardente, e Braith saiu de Punho de Bronze.

- Sou Lorimaar Reln Raposadeinverno Alto-Larteyn Arkellor - Lorimaar disse, com a voz dura, cheia de dor.

- Honra ao seu grupo - Janacek respondeu, ficando em pé rigidamente -, honra ao seu teyn.

- Somos todos Larteyns - Roseph falou.

Pyr riu.

- Somos o conselho de altos-senhores de Larteyn e mantemos o código antigo - garantiu.

No silêncio que se seguiu, os olhos de Janacek passaram de um rosto para o seguinte. Dirk, ainda desamparado e de joelhos na areia, observava a cabeça do Jadeferro se mover, virando de um para outro.

- Vocês se nomearam Larteyns - Janacek falou finalmente -, então são Larteyns. Toda a antiga sabedoria concorda com isso. Mesmo assim, lembro que todas as coisas sobre as quais falaram, os homens, os ensinamentos e os grupos que invocaram, todas essas coisas estão mortas. Punho de Bronze e Taal foram destruídos em altas-guerras antes que qualquer um de vocês tivesse nascido, e as Moradas do Carvão Profundo estavam inundadas e vazias até mesmo durante o Tempo do Fogo e dos Demônios.

- A sabedoria deles vive em Larteyn - Saanel garantiu.

- Vocês são apenas seis - Janacek lembrou e Worlorn está morrendo.

- Sob nosso domínio voltará a viver - Roseph falou. - As notícias chegarão a Alto Kavalaan, e outros virão. Nossos filhos nascerão aqui, para caçar nos bosques de estranguladores.

- Como quiserem - falou Janacek. - Isso não me importa. Jadeferro não tem agravo contra Larteyn. Venho até vocês abertamente e peço para me juntar à caçada. - Apoiou a mão no ombro de Dirk. - E trago um presente de sangue para vocês.

- É verdade. - Pyr concordou, e por um momento ficou em silêncio. Então falou para os outros - Digo que ele pode vir.

- Não - discordou Lorimaar. - Não confio nele. Está ansioso demais.

- Por uma razão, Lorimaar Alto-Larteyn - Janacek explicou.

- Uma grande vergonha caiu sobre meu grupo e meu nome. Pretendo limpar minha honra.

- Um homem deve manter seu orgulho, não importa o preço

- Roseph assentiu. - Isso é verdade suficiente para qualquer um.

- Deixem-no caçar - o teyn de Roseph falou. - Somos seis e ele está sozinho. Como pode nos fazer mal?

- Ele é um mentiroso! - Lorimaar insistiu. - Como chegou até nós? Perguntem-se isso! E olhem! - Apontou para o braço direito de Janacek, onde as pedrardentes queimavam como olhos vermelhos. Apenas um punhado faltava.

Janacek colocou a mão esquerda em sua faca e a desembainhou lentamente. Então estendeu a mão direita para Pyr.

- Ajude-me a sustentar o braço com firmeza - disse em um calmo tom de conversa -, e eu arrancarei os falsos fogos de Jaan Vikary.

Pyr fez o que lhe foi pedido. Ninguém falou nada. A mão de Janacek foi segura e rápida. Quando terminou, pedrardentes jaziam na areia como brasas de uma fogueira dispersa. Abaixou-se e recolheu uma, lançando-a levemente no ar e apanhando-a novamente, como se estivesse testando o peso, sorrindo todo o tempo. Então levou o braço para trás e a atirou; a pedra fez uma curva ampla antes de cair na água. No fim de seu arco, afundando, parecia um pouco uma estrela cadente. Dirk quase esperou ouvir um chiado quando ela mergulhou no lago escuro. Mas não houve som, apenas a distante pancada na água.

Janacek pegou todas as pedrardentes, rolou-as na palma da mão rapidamente e as jogou no lago. Quando a última se foi, voltou-se para os caçadores e estendeu o braço direito.

- Ferro vazio - disse. - Olhem. Meu teyn está morto.

Depois disso, não teve mais problema.

- A manhã está quase chegando - Pyr falou. - Coloquemos minha presa para correr.

Então os caçadores voltaram a atenção para Dirk, e tudo aconteceu mais ou menos do jeito que Janacek lhe dissera. Libertaram-no das cordas e o deixaram esfregar os punhos e os tornozelos um pouco para colocar o sangue em movimento. Então foi empurrado contra um aeromóvel, e Roseph e o gordo Saanel o seguraram enquanto Pyr cortava suas roupas. O caçador careca manejava sua pequena faca tão mortalmente quanto seu bastão, mas não foi gentil; deixou um longo corte na parte de dentro das coxas de Dirk e um mais curto e mais profundo em seu peito.

Dirk estremeceu quando Pyr o cortou, mas não ofereceu resistência. Até que ficou finalmente nu, tremendo ao vento e pressionando as costas com força contra o flanco de metal frio do aeromóvel.

Pyr franziu o cenho repentinamente.

- O que é isso? - disse, e sua pequena mão branca envolveu a jóia-sussurrante pendurada no peito de Dirk.

- Não - Dirk falou.

Pyr torceu e puxou com força. A fina corrente de prata se enterrou dolorosamente na garganta de Dirk; a jóia saltou livre de seu cordão improvisado.

- Não! - Dirk gritou. Atirou-se para frente sem aviso e começou a se debater. Roseph tropeçou, perdeu o controle sobre o braço direito de Dirk e caiu. Saanel se pendurou no outro braço com força. Dirk deu um soco no pescoço grosso como o de um touro do kavalariano, bem abaixo do queixo. O gordo o soltou com um xingamento, e Dirk se voltou para Pyr.

Pyr havia pego seu bastão. Estava sorrindo. Dirk deu um passo rápido na direção dele e parou.

A hesitação foi o suficiente. Saanel deslizou um grosso braço ao redor da cabeça de Dirk por trás e deu-lhe uma chave de pescoço que logo se transformou em estrangulamento.

Pyr observava com desinteresse. Enfiou o bastão na areia e segurou a jóia-sussurrante entre o polegar e o indicador.

- Jóias de quase-homens - disse com desdém. Não significava nada para ele; não havia ressonância na mente dele com os padrões incrustados pelo ésper na gema. Talvez notasse o quão fria a pequena lágrima era ao toque, talvez não. Mas não ouvia os sussurros. Chamou seu teyn, que estava chutando areia no fogo. - Você gostaria de um presente de t'Larien?

Sem dizer nada, o homem se aproximou, pegou a jóia e a segurou brevemente. Então colocou-a no bolso da jaqueta. Virou-se sem sorrir e começou a andar ao redor do perímetro do acampamento Braith, apagando o círculo de lanternas espetadas na areia. Enquanto as luzes eram desligadas, Dirk viu que o primeiro clarão do amanhecer estava no horizonte ocidental.

Pyr acenou com o bastão para Saanel.

- Solte-o - ordenou, e o gordo desfez o estrangulamento e se afastou. Dirk estava livre novamente. Seu pescoço doía, e a areia seca entre seus dedos era áspera e fria. Sentia-se muito vulnerável. Sem a jóia-sussurrante, estava muito assustado. Procurou por Garse Janacek, mas o Jadeferro estava do outro lado do acampamento, falando seriamente com Lorimaar.

- O amanhecer está quase despontando. - Pyr comentou. - Irei atrás de você logo em seguida, quase-homem. Corra.

Dirk olhou de relance sobre o ombro. Roseph franzia o cenho e massageava o ombro; caíra com força quando Dirk se libertara. Saanel, com um sorriso tolo, estava encostado no aeromóvel. Dirk deu alguns passos hesitantes para longe deles, em direção à floresta.

- Vá, t'Larien, estou certo de que pode correr mais rápido do que isso - Pyr gritou. - Corra rápido o suficiente e poderá viver. Estarei a pé também, assim como meu teyn e nossos cães. - Pegou a pistola e atirou-a no ar, rodopiando, para Saanel, que a pegou com as duas mãos enormes. - Não levarei laser, t'Larien. - Pyr prosseguiu. - Será uma caçada pura e limpa, do tipo mais antigo. Um caçador com faca e lâmina de arremesso, atrás de uma presa nua. Corra, t'Larien, corra!

Seu ossudo companheiro de cabelos negros se juntou a ele.

- Meu teyn - Pyr lhe disse -, solte nossos cães.

Dirk girou sobre os calcanhares e correu até o começo do bosque.

Era como correr em um pesadelo.

Haviam tirado suas botas; nem bem percorrera três metros entre as árvores, cortou o pé em uma pedra afiada na escuridão e começou a mancar. Havia outras pedras e, enquanto corria, parecia encontrar todas elas.

Também haviam tirado suas roupas; era melhor estar abrigado pelas árvores, onde o vento não era tão forte, mas ainda estava com frio. Muito frio. Tivera arrepios por um tempo, então passaram. Outras dores vieram, e o frio pareceu menos importante. Os bosques do mundo exterior eram ao mesmo tempo muito escuros e muito claros. Escuros demais para ver aonde estava indo. Tropeçava nas raízes, esfolava os joelhos e as palmas das mãos, caía em buracos. Mas era muito iluminado também. A aurora chegava rapidamente, rápido demais, e a luz se espalhava agonizante entre as árvores. Estava perdendo de vista sua estrela-guia. Olhava para cima todas as vezes que alcançava uma clareira, cada vez que podia ver entre a densa folhagem, olhava para cima e a encontrava. Uma única estrela brilhante vermelha, a própria estrela de Alto Kavalaan queimando no céu de Worlorn. Garse a mostrara para ele e lhe dissera que deveria segui-la se perdesse o rumo. Ela o levaria pela floresta até o laser e a jaqueta. Mas a aurora estava chegando, chegando muito rápido; os Braiths haviam demorado demais para soltá-lo. E cada vez que Dirk olhava para cima novamente e tentava ir pelo caminho certo - a floresta era espessa e confusa, os estranguladores formavam muralhas impenetráveis em alguns pontos e o forçavam a fazer desvios, todas as direções pareciam a mesma, e era fácil se perder -, cada vez que buscava por sua estrela-guia, ela estava mais fraca, mais desbotada. A luz ocidental tingia tudo de vermelho; o Satã Gordo erguia-se em algum lugar, e logo a estrela de Alto Kavalaan estaria apagada nesse céu crepuscular. Tentou correr mais rápido.

Tinha que percorrer menos de um quilômetro, menos de um quilômetro. Mas um quilômetro é um longo caminho através da floresta quando se está nu e quase perdido. Correra por dez minutos quando ouviu os cães Braiths latindo selvagemente atrás de si. Depois disso, não pensou nem se preocupou. Correu.

Correu como um animal em pânico, respirando ofegante, sangrando, o corpo todo tremendo e doendo. A corrida tornou-se algo sem-fim, uma coisa além do tempo, um sonho febril de pisadas frenéticas, fragmentos de sensações vividas, e o ruído dos cães cada vez mais próximos - ou assim parecia. Corria, corria e não chegava a lugar algum, corria e corria e não saía do lugar. Colidiu contra uma parede grossa de sarças-de-fogo, e os espinhos vermelhos entraram em sua carne em uma centena de lugares, mas não gritou; correu e correu. Chegou a um promontório coberto por pedra cinza e lisa e tentou correr mais rapidamente, mas caiu e esmagou o queixo no chão. Sua boca se encheu de sangue e ele cuspiu. Havia sangue na pedra também, não era de estranhar que tivesse escorregado; o sangue que saía de seus cortes nos pés estava por todo lado.

Rastejou pela pedra lisa e chegou às árvores novamente, e correu mais um pouco, frenético, até se lembrar que não estava procurando por sua estrela-guia. Encontrou-a novamente, atrás dele, muito fraca, um pontinho brilhante no céu escarlate. Virou-se e atravessou a pedra de novo, tropeçando em raízes ocultas, afastando as folhagens com mãos nervosas, correndo, correndo. Tropeçou em um galho baixo, caiu de costas, levantou-se segurando a cabeça e correu. Escorregou em uma cama de musgo lisa, negra, cheirando a podre, ergueu-se coberto pelo limo e pelo fedor, e correu, correu. Procurou por sua estrela-guia, e ela havia partido. Seguiu em frente. Tinha que ser a direção certa, tinha que ser. Os cães estavam atrás dele, latindo. Era apenas um quilômetro, era menos de um quilômetro. Estava congelando. Estava pegando fogo. Seu peito estava cheio de facas. Continuou correndo, cambaleando, tropeçando e caindo, se levantando e continuando a correr. Os cães estavam atrás dele, mais perto, mais perto, os cães estavam atrás dele.

E então, repentinamente - não sabia quando, não sabia a quanto tempo estava correndo, não sabia o quão longe fora, não tinha mais sua estrela -, pensou ter sentido um leve cheiro de fumaça no vento que seguia pela floresta. Correu na direção dele e saiu de entre as árvores em uma pequena clareira. Avançou na direção do outro lado do espaço aberto, e estancou.

Os cães estavam na frente dele.

Um deles, pelo menos. Veio se esgueirando por entre as árvores, rosnando, com olhos mortais e o focinho sem pelo retraído para mostrar as feias mandíbulas. Dirk tentou despistá-lo, mas o animal saltou sobre ele, derrubando-o, rolando com ele pelo chão. O cão se levantou de um pulo. Dirk lutou para ficar de joelhos; o animal deu a volta, rosnando ameaçadoramente enquanto ele tentava se levantar. O braço esquerdo de Dirk tinha sido mordido e sangrava. Mas o cão não o matara, não tentara atacar sua garganta. É treinado, Dirk pensou, é um animal treinado. O cão circulava ao redor dele, circulava, sem nunca afastar os olhos. Pyr enviara-o na frente e estava vindo atrás com seu teyn e os outros cães. Este apenas o manteria preso enquanto os outros chegavam.

Dirk levantou-se repentinamente, mancando em direção às árvores. O cão saltou, derrubando-o mais uma vez, lutando com ele no chão e quase arrancando seu braço. Dessa vez, Dirk não se levantou. O cão se afastou, ficou esperando, alerta, a boca molhada de sangue e saliva. Dirk tentou se apoiar no braço bom. Rastejou meio metro. O cão rosnou. Os outros estavam perto. Podia ouvi-los latindo.

Então, vindo de cima, ouviu algo mais. Olhou sem forças para a pequena fatia de céu coberto de nuvens, mal iluminado pelos raios do alvorecer do Olho do Inferno e seus assistentes. O cão Braith, latindo a um metro dele, olhava para cima também. E o som veio novamente. Era gemido e um grito de guerra, um alarido insistente e ululante, um grito de morte que era quase musical em sua intensidade. Dirk se perguntou se estava morrendo e ouvindo os sons de Kryne Lamiya em sua mente. Mas o cão ouvia também. Estava agachado, paralisado, olhando para cima.

Uma forma escura mergulhou do céu. Dirk a viu cair. Era imensa, muito negra, quase da cor do piche, e a parte inferior era recoberta com mil pequenas bocas vermelhas, e estavam todas abertas, todas cantando, todas entoando aquele gemido ar- repiante. Não tinha cabeça que pudesse ser vista; era uma vela larga, triangular e escura, uma arraia que nadava no vento, uma capa de couro que alguém soltara no céu. Mas era uma capa de couro com bocas e uma longa cauda fina.

Dirk viu a cauda chicotear uma vez, de repente, e acertar o focinho do cão Braith. O animal piscou e retrocedeu. A criatura voadora pairou por um instante, batendo as imensas asas com uma requintada lentidão ondulante, então desceu sobre o cão e o envolveu. Os dois animais ficaram em silêncio. O imenso cão musculoso com cara de rato, que em pé tinha a altura de um homem, sumiu. A outra criatura o cobriu completamente e permaneceu deitada na grama e na terra como uma descomunal salsicha de couro negro.

Tudo estava em silêncio. O grito do caçador havia silenciado toda a floresta. Dirk não ouvia os outros cães. Cuidadosamente ficou em pé e saiu andando, mancando, ao redor da torpe capa assassina. Parecia totalmente imóvel. Na penumbra da alvorada, parecia um grande tronco disforme.

Em sua mente, Dirk ainda a via como parecia no céu: uma forma negra, uivando, caindo, asas e bocas. Por um instante, reparando apenas na silhueta, pensara que Jaan Vikary viera resgatá-lo, voando no grande aeromóvel em forma de arraia.

Do outro lado da clareira estava um emaranhado de estrangu- ladores, espessos e amarelo-acastanhados. Mas a fumaça vinha de além deles. Cansado, Dirk se esquivou, se espremeu e empurrou os galhos, quebrando-os quando necessário e forçando sua passagem entre as árvores.

O veículo abatido parara de queimar, mas uma nuvem fina de fumaça ainda pairava sobre ele. Uma asa fora arrastada pelo chão, arrancando grandes torrões de terra e derrubando várias árvores antes de parar; a outra apontava para o ar, sua forma de morcego distorcida por sulcos de metal fundido e congelado e buracos feitos por um canhão laser. A cabine estava carbonizada e disforme, aberta com um buraco de largura irregular.

Dirk encontrou o laser ali perto. Também encontrou ossos: dois esqueletos entrelaçados em um abraço da morte, os ossos escuros e molhados, ainda marrons pelo sangue e com pedaços de carne. Um esqueleto era humano, ou fora. Os braços e as pernas estavam quebrados, e a maioria das costelas espalhadas ou perdidas, mas Dirk reconheceu a garra de metal de três pontas no extremo de um braço quebrado duas vezes. Misturado com ele, e tão morto quanto, estavam os restos de qualquer que fosse a criatura que arrastara a carcaça do carro incendiado - algum carniceiro cujos ossos tinham veios negros e aparência emborra- chada, curvados e muito grandes. O banshee o pegara comendo. Não era de admirar que estivesse tão perto.

Não havia sinal da jaqueta de couro e peles que ele e Garse haviam deixado ali. Dirk arrastou-se sobre o casco frio do aeromóvel e subiu no interior sombrio. Cortou-se em uma superfície de metal afiada, mas mal notou; o que era mais um corte agora? Dispôs-se a esperar, abrigado do vento, e esperando estar escondido do banshee e dos Braiths. A maior parte de seus ferimentos parecia ter fechado, notou sem entusiasmo. Estava sangrando apenas de forma irregular, aqui e ali. Mas as crostas marrons que haviam se formado estavam cheias de sujeira, e ele se perguntou se devia fazer alguma coisa para evitar uma infecção. Não parecia ter importância, no entanto; deixou o pensamento de lado e segurou o laser um pouco mais apertado, esperando que os caçadores chegassem logo.

O que os atrasava? Talvez tivessem ficado com medo de incomodar o banshee; isso fazia muito sentido. Dirk se estendeu nas brasas frias, descansando a cabeça no braço, e tentou não pensar, não sentir. Seus pés estavam em carne viva. Desajeitadamente, tentou colocá-los para cima, para que não tocassem em nada. Isso ajudou um pouco, mas não tinha forças para mantê-los assim por muito tempo. Seu braço latejava onde o cão Braith o mordera. Por um momento, desejou com fervor que suas dores parassem e que sua cabeça parasse de girar. Então mudou de idéia. A dor, pensou, era provavelmente a única coisa que o mantinha consciente. E, se adormecesse agora, de alguma forma achava que nunca mais acordaria.

Viu o Satã Gordo pairando sobre a floresta, seu disco sangrento meio obscurecido por uma tela de galhos negro-azulados. Perto, um único sol amarelo brilhava, uma pequena centelha no Armamento. Piscou para eles. Eram velhos amigos.

O som dos cães Braiths chamou sua atenção. A dez metros, os caçadores emergiram avidamente da folhagem. Não estavam tão perto quanto Dirk esperara. É claro, pensou, haviam dado a volta nos estranguladores em vez de lutar através deles. Pyr Braith estava quase invisível, negro-azulado como as árvores contra as quais estava parado, mas Dirk viu seu movimento, o bastão que carregava em uma mão e a lâmina lustrosa e brilhante que empunhava na outra. Seu teyn estava alguns passos atrás, segurando dois cães em correntes curtas, que latiam selvagemente e puxavam-no para a frente quase trotando. Um terceiro cachorro corria livre ao lado deles, e começou a farejar em direção ao carro abatido assim que saiu na clareira.

Dirk, deitado de bruços entre as cinzas e os instrumentos destruídos do veículo, repentinamente achou muita graça em tudo aquilo. Pyr ergueu seu eixo de prata sobre a cabeça e começou a correr; tinha certeza de que teria sua presa finalmente. Mas não tinha laser, e Dirk tinha. Engolindo a gargalhada, Dirk ergueu o rifle e mirou cuidadosamente.

Enquanto atirava, uma lembrança o assaltou tão repentina e penetrantemente quanto o pulso de luz que saiu do laser. Janacek, havia poucas horas, com expressão séria e indiferente: Sua vida pode depender do quão rápido e direto você pode correr, e quão boa é sua pontaria. E Dirk acrescentara: E o quanto estou disposto a matar. Isso lhe parecera muito importante no momento; matar era muito mais difícil do que simplesmente correr.

Segurou o riso novamente. A corrida fora muito difícil. Matar foi apenas algo que fez, e foi quase fácil.

O brilhante feixe incandescente do laser ficou no ar por um longo segundo, atravessando o intestino do maciço Pyr enquanto ele corria em direção ao casco do aeromóvel. O Braith tropeçou e caiu de joelhos. Sua boca ficou absurdamente aberta por um segundo, antes que desabasse de cara e sumisse da vista de Dirk. A longa lâmina de prata que carregava permaneceu fincada no chão, balançando com o vento.

O companheiro de cabelos negros de Pyr soltou as correntes que levava e pareceu congelar quando seu teyn tombou. Dirk moveu o laser suavemente e disparou mais uma vez, mas nada aconteceu; a arma ainda estava nos quinze segundos de recarga.

Isso tornava a caçada um esporte, lembrou; dava a chance da presa escapar, se você errasse. Pegou-se segurando o riso novamente.

O caçador voltou a si e jogou-se no chão, rolando pelo solo até a longa vala aberta pela asa do aeromóvel. Entrincheirado e procurando por seu laser, Dirk pensou, mas não o encontrará.

Os cães haviam cercado o veículo, latindo cada vez que Dirk mudava de posição ou levantava a cabeça. Nenhum deles tentou buscar a presa. Essa era tarefa do caçador. Dirk mirou cuidadosamente e atirou na garganta do mais próximo. O animal caiu como um pedaço de carne, e os outros dois retrocederam. Ajoelhando-se, Dirk rastejou para fora do abrigo. Tentou ficar em pé, apoiando-se com uma mão na asa retorcida. O mundo girava. Horríveis espasmos tomavam suas pernas e ele não conseguia sentir os pés. Mas, de alguma forma, conseguiu manter-se ereto.

Um grito ecoou, algo em antigo kavalariano; Dirk não conhecia a palavra. Os cães imensos atacaram, um após o outro, com a boca vermelha babando e rosnando. Com o canto do olho, viu o caçador saindo de seu esconderijo, a dois metros de distância, com a faca em punho. Agitou o braço e acertou a asa do aeromóvel atrás da qual Dirk se escondia. O homem já tinha se virado e estava correndo, e o cão mais próximo saltou no ar. Dirk se jogou no chão e ergueu o rifle. O animal não conseguiu atacá-lo, mas caiu em cima de seu alvo, rolou com ele pela terra e o prendeu de costas no chão com as patas. De alguma forma, Dirk encontrou o gatilho. Houve uma breve luz, depois o cheiro de pelo queimado e um gemido estranho. O cão caiu de lado, debilmente, engasgando com o próprio sangue. Dirk empurrou a carcaça para longe e lutou para se apoiar em um joelho. O Braith alcançara o corpo de Pyr e agitava a longa lâmina prateada. O outro cão prendera a ponta solta da corrente em uma saliência do carro abatido. Quando Dirk se levantou, o animal uivou e avançou, e a casca do grande veículo pareceu se mexer um pouco, mas o cão continuou preso.

O caçador de cabelos negros estava com a arma prateada. Dirk mirou seu laser e atirou; o raio queimando largo, mas um segundo era tempo suficiente, e Dirk moveu o rifle bruscamente, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita.

O homem caiu enquanto soltava a arma. A lâmina voou alguns metros, bateu na asa retorcida e espetou no chão, onde ficou se mexendo para a frente e para trás ao vento. Dirk ainda movia o rifle, esquerda, direita, esquerda, direita, esquerda, direita, muito tempo depois do caçador cair e da luz se extinguir. Finalmente a arma se recarregou e disparou novamente por um segundo, queimando apenas uma fileira de estranguladores, e Dirk, sobressaltado, soltou o gatilho e deixou cair a arma.

O cão, ainda preso, grunhia e avançava. Dirk olhou para ele, de boca aberta, quase sem entender. Então deu uma risadinha. Ajoelhou-se, pegou o laser e começou a rastejar na direção dos kavalarianos. Levou um tempo muito longo. Seus pés doíam. O ponto onde fora mordido no braço, também. O cão finalmente fez silêncio, mas ainda havia barulho. Dirk ouviu um lamento, um choro contínuo e baixo.

Arrastou-se pela terra e pelas cinzas, sobre o tronco queimado de um represeiro, até onde os caçadores jaziam. Estavam deitados lado a lado. O mais magro, aquele cujo nome nunca soubera, que tentara matá-lo com a faca, os cães e a lâmina prateada, estava rígido, com a boca cheia de sangue. Pyr, deitado de bruços, era a fonte dos lamentos. Dirk ajoelhou-se ao lado dele, colocou as mãos por baixo de seu corpo e o virou com muito esforço. O rosto do kavalariano estava coberto de cinzas e sangue; seu nariz se arrebentara com a queda, e um fio vermelho escorria de uma narina, deixando uma trilha brilhante através de suas bochechas manchadas de fuligem. Seu rosto era velho. Continuou gemendo e não pareceu notar Dirk, e suas mãos agarravam o estômago. Dirk o encarou por um longo momento. Pegou uma das mãos do kavalariano - estranhamente suaves e pequenas, sem outras marcas que não uma cicatriz negra que percorria a palma, quase a mão de uma criança, que não parecia pertencer àquele rosto careca e velho - e levantou-a. Depois fez o mesmo com a outra e olhou o buraco que abrira na barriga de Pyr. Uma barriga grande e um pequeno buraco escuro; não parecia doer tanto. Também não havia sangue visível, exceto pelo nariz. Era quase engraçado, mas Dirk descobriu que não tinha mais vontade de rir.

Pyr abriu a boca, e Dirk se perguntou se o homem estava tentando dizer alguma coisa, algumas palavras finais talvez, algum pedido de perdão. Mas o Braith apenas fez um barulho de engasgar e voltou a gemer.

Seu bastão estava jogado ali perto. Dirk o pegou e envolveu o punho de madeira com as mãos e colocou a pequena lâmina sobre o peito de Pyr, onde o coração devia estar. Apoiou todo o peso do corpo para frente e para baixo, pensando em acabar com a agonia do caçador. O pesado corpo de Pyr teve horríveis espasmos por um instante, e Dirk tirou a lâmina e a enfiou novamente, e então mais uma vez, mas o kavalariano não ficava quieto. A lâmina era muito curta, Dirk percebeu depois de um tempo, então decidiu usá-la de outro modo. Encontrou uma artéria no pescoço de Pyr, segurou o bastão com firmeza e pressionou a lâmina contra a clara pele gorda. Saiu muito sangue, um jorro que acertou Dirk no rosto, até que soltou o bastão e retrocedeu. O corpo de Pyr se sacudiu e o sangue continuou a jorrar do corte. Dirk observava, mas cada jato era um pouco mais fraco do que o anterior, e, depois de um tempo, a fonte era apenas uma gota, e depois de mais algum tempo pareceu parar. As cinzas e a terra beberam grande parte do sangue, mas ainda assim havia muito espalhado, uma pequena piscina entre os dois. Dirk não sabia que um homem tinha sangue suficiente para formar uma piscina. Sentiu-se enjoado. Mas finalmente Pyr estava quieto, e os gemidos pararam.

Dirk sentou-se sozinho, descansando, sob a pálida luz vermelha. Estava com muito calor e com muito frio ao mesmo tempo, e sabia que precisava pegar algumas roupas dos cadáveres para se cobrir, mas não conseguia forças para isso. Seu pé doía horrivelmente, e seu braço inchara até ficar com duas vezes o tamanho normal. Não dormiu, mas quase perdeu a consciência. Observou o Satã Gordo se erguer cada vez mais alto no céu, conforme o meio-dia se aproximava, com os sóis amarelos brilhando dolorosamente ao redor dele. Ouviu o cão Braith uivar muitas vezes, e uma vez escutou o estranho grito de caça do banshee e se perguntou se a criatura voltaria para comê-lo e aos homens que matara. Mas o grito parecia muito distante, e talvez fosse apenas seu estado febril ou o vento.

Quando a película pegajosa e úmida em seu rosto tornou-se uma crosta marrom, e a pequena piscina de sangue na terra se fora, Dirk soube que tinha que sair dali, ou morreria. Considerou por muito tempo a possibilidade de morrer; a idéia parecia muito boa, mas não conseguia fazê-lo. Lembrou-se de Gwen. Rastejou até onde estava o corpo do teyn de Pyr, ignorando a dor o melhor que podia, e vasculhou os bolsos do homem. Encontrou a jóia-sussurrante.

Gelo em seu punho, gelo em sua mente, memórias de promessas, mentiras, amor. Jenny. Sua Guinevere, e ele era Lancelot. Não podia falhar com ela. Não falharia. Apertou a fria e dura lágrima na mão, e o gelo entrou em sua alma. Obrigou-se a levantar.

Depois foi mais fácil. Lentamente tirou a roupa do homem morto e a vestiu, embora tudo fosse grande demais para ele, e a camisa e a jaqueta de tecido-camaleão estivessem queimadas na frente, e o homem tivesse sujado as calças. Dirk tirou as botas do cadáver também, mas eram pequenas demais para seus pés ensangüentados e cheios de crostas. Então foi obrigado a usar as botas de Pyr. Pyr tinha pés imensos.

Usando o rifle laser e o bastão de Pyr como apoio, dirigiu-se para o bosque. Alguns metros depois, já entre as árvores, parou e olhou para trás rapidamente. O grande cão estava latindo, uivando e debatendo-se para se libertar, e o aeromóvel balançava cada vez que o animal puxava. Dirk podia ver o corpo nu na terra, e além dele a arma prateada ainda balançando ao vento. Já quase não conseguia ver Pyr. Sob as manchas de sangue, o traje do caçador estava tingido de negro e marrom, e algumas partes vermelhas aqui e ali, de modo que o cadáver se confundia com o solo.

Dirk deixou o cão acorrentado e latindo e mancou através dos estranguladores emaranhados.

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