Capítulo 8
Ficaram parados no corredor sombrio como se estivessem paralisados. Gwen era uma obscura silhueta azul, seus olhos eram fossos negros. Sua boca contorcia-se no canto, fazendo Dirk se lembrar horrivelmente de Bretan e seu tique nervoso.
- Eles nos encontraram - ela disse.
- Sim. - Dirk concordou. Os dois estavam sussurrando, por medo de que Bretan Braith, como nova Voz de Desafio, pudesse ouvi-los se falassem algo. Dirk tinha a aguda impressão de que falantes os cercavam, e orelhas também, e talvez olhos: todos invisíveis atrás das paredes acarpetadas.
- Como? - perguntou Gwen. - Eles não tinham como. É impossível.
- Mas conseguiram. Devia ser possível. Mas o que fazemos agora? Vou até eles? O que há lá embaixo, no quinquagésimo segundo subsolo, de qualquer modo?
Gwen franziu o cenho.
- Não sei. Desafio não era minha cidade. Só sei que os subsolos não são residenciais.
- Máquinas. - Dirk sugeriu. - Energia. Suporte à vida.
- Computadores - acrescentou Gwen, em um pequeno sussurro cavernoso.
Dirk colocou as malas no chão. Parecia bobagem apegar-se a roupas e pertences a esta altura.
- Mataram a Voz - ele comentou.
- Talvez. Se é que ela pode ser morta. Pensei que fosse toda uma rede de computadores espalhada pela torre. Não sei. Talvez fosse apenas uma grande instalação.
- De qualquer modo, chegaram ao cérebro central, ao nervo central, o que quer que seja. Não teremos mais avisos gentis das paredes. E, provavelmente, Bretan nos vê bem agora.
- Não - Gwen falou.
- Por que não? A Voz podia.
- Sim, talvez, embora não ache que as instalações da Voz incluíam sensores visuais. Quero dizer, não eram necessários. Ela tinha outros sentidos, coisas que humanos não têm. Mas esse não é o ponto. A Voz era um supercomputador, construído para lidar com bilhões de bits de informação simultaneamente. Bretan não pode fazer isso. Nenhum humano pode. Além disso, a forma de recepção dos dados não foi criada para fazer sentido para ele, para você ou para mim. Apenas para a Voz. Mesmo se Bretan conseguir acesso a todos os dados que a Voz recolhia, a maioria será ininteligível para ele, ou ele receberá os dados tão rapidamente que serão inúteis. Talvez um especialista em cibernética pudesse tirar algo disso, embora eu duvide. Mas não Bretan. Não, a menos que ele conheça algum segredo que nós desconhecemos.
- Ele soube como nos encontrar - Dirk comentou. - E soube onde o cérebro de Desafio estava e como provocar um curto-circuito.
- Não sei como nos encontrou - Gwen respondeu -, mas não era tão difícil chegar à Voz. O último subsolo, Dirk! Foi só uma suposição da parte dele, tinha de ser. Kavalarianos constroem suas fortalezas na profundeza da rocha, e os níveis inferiores são sempre os mais seguros, os mais resguardados. E onde mantêm as mulheres e outros tesouros do grupo.
Dirk estava pensativo.
- Espere um minuto. Ele não pode saber exatamente onde estamos. Caso contrário, por que tentaria nos atrair para o porão ou ameaçaria nos caçar?
Gwen assentiu.
- Ele está no centro de computadores, no entanto. - Dirk prosseguiu. - Temos que ser cuidadosos. Ele pode ser capaz de nos encontrar.
- Alguns dos computadores ainda devem estar funcionando - Gwen falou, olhando de relance na direção do opaco globo azul a alguns metros. - A cidade ainda está viva, mais ou menos.
- Ele pode perguntar à Voz onde estamos? Se a conectar novamente?
- Talvez, mas a Voz lhe diria? Acho que não. Somos residentes legais, desarmados, e ele é um intruso perigoso violando as normas de di-Emerel.
- Ele? Você quer dizer eles. Chell está com ele. Talvez outros também.
- Um grupo de intrusos, então.
- Mas não podem ser mais do que... quantos? Vinte? Menos? Como vão vasculhar uma cidade deste tamanho?
- di-Emerel é um mundo totalmente desprovido de violência, Dirk. E este é um mundo de Festival. Duvido que Desafio tenha muitas defesas. Os guardiões...
Dirk olhou ao redor repentinamente.
- Sim, guardiões. A Voz os mencionou. Estava mandando um atrás de nós. - Quase esperava ver uma silhueta enorme e ameaçadora rodando em direção a eles por algum corredor transversal. Mas não havia nada. Sombras, globos cobalto e um silêncio azul.
- Não podemos ficar parados aqui - Gwen falou. Deixara de sussurrar. Então ele também parou. Ambos perceberam que se Bretan Braith e seus companheiros pudessem ouvir cada palavra que falavam, também poderiam localizá-los de uma dúzia de outros jeitos também. Se fosse assim, o caso deles era sem esperança. Sussurrar era um gesto inútil. - O aeromóvel está só a dois andares daqui - ela lembrou.
- Os Braiths podem estar a dois andares daqui também - Dirk respondeu. - Mesmo se não estiverem, temos que evitar o aeromóvel. Eles devem saber que temos um, e estarão esperando que tentemos fugir. Talvez seja por isso que Bretan fez seu pequeno discurso, para nos fazer decolar, onde seríamos presas fáceis. Seus irmãos de grupo estão provavelmente esperando para nos abater com lasers. - Fez uma pausa, pensativo. - Mas tampouco podemos simplesmente ficar aqui.
- Não perto do nosso apartamento - ela disse. - A Voz sabe onde estamos, e Bretan Braith pode ser capaz de descobrir. Mas temos que permanecer na cidade; você está certo sobre isso.
- Vamos nos esconder, então - Dirk falou. - Onde?
Gwen deu de ombros.
- Aqui, ali, em qualquer lugar. É uma cidade grande, como Bretan Braith disse.
Gwen rapidamente se ajoelhou sobre sua mala, descartando todas as roupas pesadas, mas mantendo os suprimentos de campo e o pacote de sensores. Dirk vestiu o pesado sobretudo que Ruark lhe dera e abandonou todo o resto. Caminharam até a galeria exterior; Gwen estava ansiosa para ficar o mais longe possível do apartamento, e nenhum dos dois queria se arriscar a usar os elevadores.
As luzes sobre a ampla galeria ainda irradiavam brilhantes e brancas, e as esteiras rolantes cantarolavam uniformemente; o caminho em espiral parecia ter uma fonte de energia independente.
- Para cima ou para baixo? - Dirk perguntou.
Gwen não pareceu escutá-lo; estava ouvindo outra coisa.
- Quieto - ela disse. Sua boca se contorceu. Por cima do zumbido constante das esteiras rolantes, Dirk ouviu outro barulho, fraco, mas inconfundível. Um uivo.
Vinha do corredor embaixo deles, Dirk tinha certeza. Era como um sopro frio estremecendo a cálida quietude azul, e parecia permanecer no ar por mais tempo do que devia. Gritos indistintos e distantes vieram na seqüência.
Houve um curto silêncio. Gwen e Dirk olharam um para o outro e ficaram parados muito rígidos, ouvindo. O uivo veio novamente, mais alto, mais distinto, ecoando por um momento, dessa vez. Era um grito furioso em forma de uivo, longo e agudo.
- Cães de caça dos Braiths - Gwen falou, em uma voz muito mais estável do que podia se esperar.
Dirk se lembrou da besta que encontrara enquanto caminhava pelas ruas de Larteyn - o cão do tamanho de um cavalo que rosnara à sua aproximação, a criatura com cara de rato, sem pelos e com pequenos olhos vermelhos. Olhou pelo corredor atrás deles com apreensão, mas nada se movia nas sombras cobalto.
Os sons estavam ficando mais altos, mais próximos.
- Para baixo - Gwen falou. - E rápido.
Dirk não precisou que ela falasse duas vezes. Correram para a faixa central da galeria, atravessando o caminho silencioso, e subiram na primeira e mais lenta das esteiras rolantes que desciam. Então começaram a se mover, passando de esteira em esteira até que chegaram a mais rápida delas. Gwen tirou os suprimentos de campo do ombro e abriu a bolsa, vasculhando o conteúdo enquanto Dirk permanecia em pé ao seu lado, uma mão pousada em seu ombro, observando os números dos andares passarem, negros sentinelas montados sobre as bocas cobertas de sombras crepusculares que levavam aos corredores interiores de Desafio. Os números piscavam a intervalos regulares, ficando cada vez menores.
Haviam acabado de passar pelo 490° andar quando Gwen ficou em pé, segurando uma curta vara de metal negro-azulada na mão direita.
- Tire as roupas - ela disse.
- O quê?
- Tire as roupas - ela repetiu. Como Dirk continuava olhando para ela, sem agir, ela sacudiu a cabeça impacientemente e bateu no peito dele com a ponta da vara. - Anulador de odores - disse-lhe. - Arkin e eu usamos no bosque. Vamos jogar em nós mesmos antes de sairmos. Vai matar o cheiro do nosso corpo por quatro horas e, espero, tirar os cães do nosso rastro.
Dirk assentiu e começou a se despir. Quando ficou nu, Gwen o fez ficar parado com as pernas afastadas e os braços erguidos sobre a cabeça. Pressionou uma ponta da vara metálica, e da outra saiu uma fina bruma cinzenta, que tocou levemente a pele desnuda de Dirk. Sentia-se gelado, tolo e muito vulnerável enquanto ela jogava o spray nele, na frente e atrás, da cabeça aos pés. Então Gwen se ajoelhou e cobriu as roupas dele com a névoa também, do lado de dentro e do lado de fora, tudo, exceto o grande sobretudo que Arkin lhe dera, que ela cuidadosamente deixou de lado. Quando terminou, Dirk se vestiu novamente - suas roupas estavam secas e cobertas por um pó fino e cinzento -, enquanto Gwen se despia e passava o spray para ele.
- E o sobretudo? - ele disse, quando ela se voltou para as próprias roupas. Jogou o spray em tudo: no pacote de sensores, nos suprimentos de campo, em seu bracelete jade-e-prata, em tudo, exceto no sobretudo de retalhos marrom de Arkin. Dirk o empurrou com a ponta da bota.
Gwen pegou o casaco e o jogou por sobre o parapeito, até uma das esteiras rolantes ascendentes. Ficaram observando enquanto a peça de roupa se afastava deles, até sair de vista.
- Você não precisa disso - Gwen falou quando o sobretudo se foi. - Talvez leve a matilha na direção errada. Certamente nos seguiram até a galeria.
Dirk parecia em dúvida.
- Talvez - disse, com um olhar de soslaio para a parede interna. O andar 472 veio e se foi. - Acho que devemos sair - disse repentinamente. - Sair da galeria.
Gwen olhou para ele interrogativamente.
- Você mesma acaba de dizer - ele explicou. - Quem quer que esteja atrás de nós, chegou até a galeria. Se já começaram a descer, meu casaco não os enganará muito. Eles o verão passar e rirão.
Ela sorriu.
- Você está certo. Mas valia a pena tentar.
- Então, presumindo que estejam descendo atrás de nós...
- Já teremos conseguido uma boa vantagem - ela interrompeu. - Nunca colocarão uma matilha de cães da caça em uma esteira rolante, o que quer dizer que estão a pé.
- E daí? A galeria ainda não é segura, Gwen. Olha, não é Bretan que está lá em cima, ele está lá embaixo, no subsolo. E provavelmente tampouco é Chell, não é?
- Não. Um kavalariano caça com seu teyn. Eles não se separam.
- Imaginei isso. Então temos um par brincando com a energia embaixo de nós, e outro par em nossos calcanhares. Quantos outros estão atrás de nós? Você pode responder isso?
-Não.
- Eu diria que uns poucos, ao menos; e mesmo se não for, é melhor presumir o pior e trabalhar com isso. Se há outros Braiths soltos pela cidade, e se estiverem em contato com os caçadores atrás de nós, os que estão em cima dirão para os outros fecharem a galeria.
Os olhos dela se estreitaram.
- Talvez não. As duplas de caça dificilmente trabalham juntas. Cada par quer a presa para si. Maldição, como eu queria uma arma!
Dirk ignorou o comentário final.
- Não podemos correr nenhum risco - ele falou.
Nesse momento, as brilhantes luzes sobre a cabeça deles começaram a piscar, diminuindo abruptamente para uma pálida penumbra cinzenta, e simultaneamente a esteira rolante sob seus pés deu um tranco e começou a ir mais devagar. Gwen tropeçou, mas Dirk a segurou pelo braço. A esteira mais lenta parou primeiro, depois a seguinte e, finalmente, a esteira em que estavam.
Gwen estremeceu e ergueu os olhos para Dirk, e ele a abraçou apertado, tirando desesperadamente a confiança que precisava do calor e da proximidade do corpo dela.
De baixo deles - Dirk jurava que o som vinha de baixo deles, da direção para onde a esteira rolante os levava - veio um grito áspero e não muito distante.
Gwen soltou-se dele. Não falaram nada. Moveram-se de uma esteira para outra, pelas linhas de tráfico sombrias e vazias, em direção à passagem que os tiraria da perigosa galeria e para dentro dos corredores novamente. Dirk olhou de relance para os números enquanto passavam da penumbra cinzenta para a azul: andar 468. Quando os carpetes engoliram seus passos novamente, começaram a correr, atravessando rapidamente o primeiro longo corredor, então viraram uma e outra vez, algumas vezes para a direita, outras para a esquerda, escolhendo ao acaso as direções. Correram até ficarem sem fôlego, então pararam e se jogaram no carpete sob a luz de um globo pálido e azulado.
- O que foi isso? - ele finalmente falou, quando retomou o fôlego.
Gwen ainda estava ofegante, arfando pelo esforço da corrida. Haviam percorrido um longo trecho. Ela lutava para recuperar o fôlego. Lágrimas silenciosas escorriam por seu rosto sob a luz azul.
- O que você acha que era? - disse, finalmente, com a voz crispada. - Era um quase-homem, gritando.
Dirk abriu a boca e sentiu gosto de sal. Tocou a umidade em seu rosto e se perguntou havia quanto tempo estava chorando.
- Mais Braiths, então - respondeu.
- Embaixo de nós - ela concordou. - E encontraram uma vítima. Maldição, maldição, maldição! Nós os trouxemos até aqui, é nossa culpa. Como pudemos ser tão estúpidos? Jaan sempre temeu que eles começassem a caçar nas cidades.
- Eles começaram ontem - Dirk falou - com os filhos da lesma vinhonegrinos. Era só uma questão de tempo até chegarem aqui. Não carregue...
Ela virou o rosto para ele, com as feições desfiguradas pela raiva e as faces marcadas pelas lágrimas.
- O quê? - cuspiu. - Você não acha que somos responsáveis? Quem mais, então? Bretan Braith seguiu você, Dirk. Por que viriam até aqui? Devíamos ter ido para Décimo-Segundo Sonho, para Musquel, para Esvoch. Cidades vazias. Ninguém seria machucado. Agora os emerelianos serão... Quantos residentes a Voz falou que ainda restavam?
- Não me lembro. Quatrocentos, acho. Algo assim. - Tentou colocar o braço ao redor dela e puxá-la em sua direção, mas ela se encolheu e olhou furiosa para ele.
- É nossa culpa - disse. - Temos que fazer alguma coisa.
- Tudo o que podemos fazer é tentar permanecer vivos - ele respondeu. - Estão atrás de nós, lembra? Não podemos nos preocupar com os demais. - Gwen o encarava, seu rosto duro de... de quê? Talvez desprezo, Dirk pensou. O rosto dela o sobressaltou.
- Não acredito no que está dizendo - ela falou. - Você não consegue pensar em ninguém além de si mesmo? Maldição, Dirk, nós ao menos contamos com o anulador de odores. Os emerelianos não têm absolutamente nada. Nenhuma arma, nenhuma proteção. Eles são quase-homens, presas apenas. Temos que fazer alguma coisa!
- O quê? Cometer suicídio? É isso? Você não queria que eu fosse contra Bretan esta manhã, em duelo, mas agora você...
- Sim! Temos que fazer isso. Você não teria falado assim em Ávalon - ela o recriminou, sua voz ficando cada vez mais alta até quase tornar-se um grito. - Você era diferente naquela época. Jaan não teria...
Parou, repentinamente ciente das próprias palavras, e desviou o olhar dele. Então, começou a soluçar. Dirk permaneceu sentado, imóvel.
- Então é isso - ele disse, depois de um tempo, com a voz tranqüila. - Jaan não teria pensado em si mesmo, certo? Jaan teria bancado o herói.
Gwen olhou para ele novamente.
- Teria, você sabe.
Ele assentiu.
- Teria. Talvez eu também tivesse, antigamente. Talvez você esteja certa. Talvez eu tenha mudado. Não sei mais nada. -
Sentia-se enjoado, cansado e derrotado, e muito envergonhado. Seus pensamentos iam de um lado para o outro e davam voltas sem parar. Os dois estavam certos, pensou. Eles haviam trazido os Braiths até Desafio, até centenas de vítimas inocentes. A culpa era deles; Gwen estava certa. E sim, ele estava certo também, não podiam fazer nada agora, nada. Aquilo podia ser egoísmo, mas não deixava de ser verdade.
Gwen chorava abertamente. Dirk esticou o braço novamente, e dessa vez ela deixou que ele a abraçasse e tentasse confortá-la com seus carinhos. Mas enquanto alisava os longos cabelos negros dela e lutava para conter as próprias lágrimas, ele compreendeu que aquilo era inútil, que não mudava nada. Os Braiths estavam caçando, matando - e ele não podia impedi-los. Dificilmente conseguiria salvar a si mesmo. Não era o antigo Dirk, no final das contas, o Dirk de Ávalon, não. E a mulher em seus braços não era Jenny. Ambos eram apenas presas.
Então repentinamente teve uma idéia.
- Sim - disse em voz alta.
Gwen olhou para ele, e Dirk ficou imediatamente em pé, ajudando-a a se levantar em seguida.
- Dirk? - ela perguntou.
- Podemos fazer alguma coisa - ele falou, e a levou até a porta do apartamento mais próximo. Abriu-a com facilidade e foi até a tela na parede ao lado da cama. As luzes do quarto estavam apagadas; a única iluminação era o comprido retângulo azul opaco que vinha da porta aberta. Gwen ficou parada no vão da porta, incerta, uma silhueta lúgubre e escura.
Dirk ligou a tela, sendo obrigado a esperar, e quando ela se iluminou, respirou mais aliviado. Virou-se para Gwen.
- O que você vai fazer? - ela lhe perguntou.
- Diga-me o número da sua casa - ele respondeu.
Ela compreendeu. Assentiu lentamente e ditou-lhe os números. Ele teclou um por um e esperou. O sinal intermitente de chamada iluminou o quarto. Quando se dissipou, os padrões de luz se redesenharam formando as feições de Jaan Vikary.
Ninguém falou. Gwen se adiantou para ficar atrás de Dirk, uma mão no ombro dele. Vikary olhou para eles em silêncio, e Dirk temeu, por um longo momento, que desligasse a tela e os deixasse à própria sorte.
Ele não fez isso. Em vez disso, falou para Dirk:
- Você era um irmão de grupo. Confiei em você. - Então seus olhos foram para Gwen. - E eu amei você.
- Jaan - ela disse, rápida e suavemente, em uma voz que era quase um sussurro, e Dirk duvidou que Jaan a tivesse ouvido. Então ela não aguentou, virou-se e saiu rapidamente do quarto.
Mesmo assim, Vikary não interrompeu a comunicação.
- Vejo que estão em Desafio. Por que ligou, t'Larien? Sabe o que temos que fazer com você, meu teyn e eu?
- Sei - Dirk falou. - Correrei o risco. Tenho que contar para você. Os Braiths nos seguiram. De algum modo, não sei como, nunca pensamos que pudessem nos rastrear. Mas estão aqui. Bretan Braith Lantry desligou o computador da cidade e parece controlar grande parte da energia restante. Os outros... estão com matilhas de caça aqui. Estão pelos corredores.
- Entendo. - Vikary comentou. Uma emoção ilegível e estranha cruzou seu rosto. - Os residentes?
Dirk assentiu.
- Vocês virão?
Vikary sorriu muito de leve, e não havia alegria naquele sorriso.
- Está pedindo minha ajuda, Dirk t'Larien? - Sacudiu a cabeça. - Não, não devo brincar, não é você quem pede, não é para você. Entendo isso. Para os outros, os emerelianos, sim, Garse e eu iremos. Levaremos nossos broches e faremos korariel de Jadeferro aqueles que encontrarmos antes dos caçadores. Mesmo assim, isso levará tempo, talvez tempo demais. Muitos morrerão. Ontem, na Cidade do Tanque sem Estrelas, uma criatura chamada Mãe sofreu uma morte súbita. Os filhos da lesma... você conhece os filhos da lesma vinhonegrinos, t'Larien?
- Sim. Bastante.
- Eles saíram da Mãe para encontrar outra, e não acharam nenhuma. Durante décadas, viveram dentro desse enorme hospedeiro, outros de seu mundo capturaram a criatura no Mundo do Oceano Vinhonegro e a trouxeram para Worlorn, e depois a abandonaram. As relações entre os filhos da lesma e outros vinhonegrinos que não participam do culto não são boas. De modo que saíram aos montes, uma centena deles ou mais, e percorreram a cidade, enchendo-a com súbita vida, sem saber onde estavam ou por quê. A maioria era velha, muito velha. Em pânico, começaram a despertar a cidade morta, então Roseph Alto-Braith os encontrou. Fiz o que pude, protegi alguns. Os Braiths encontraram muitos outros, porque levou tempo. Farei o mesmo em Desafio. Os que saírem correndo pelos corredores serão caçados e mortos, muito antes que meu teyn e eu possamos ajudar. Entendeu?
Dirk assentiu.
- Não é o suficiente me ligar. - Vikary prosseguiu. - Você deve agir por conta própria. Bretan Braith Lantry quer você, e ninguém mais. Ele pode até permitir que você duele. Os outros querem apenas caçá-lo, como um quase-homem, mas ainda assim o cobiçam como presa mais valiosa. Mostre-se, t'Larien, e irão atrás de você. Para os emerelianos escondidos ao seu redor, esse tempo será importante.
- Entendo. - Dirk falou. - Você quer que Gwen e eu...
Vikary ficou visivelmente contrariado.
- Não, Gwen não.
- Eu, então. Você quer que eu chame a atenção deles? Sem uma arma?
- Você tem uma arma - Vikary falou. - Você mesmo a roubou, insultando Jadeferro. Se vai usá-la ou não é uma decisão que apenas você pode tomar. Não confiarei em você para fazer a escolha correta. Já fiz isso uma vez. Simplesmente o informo. Outra coisa, t'Larien. O que quer que faça ou deixe de fazer, isso não muda nada entre mim e você. Esta chamada não muda nada. Você sabe o que temos que fazer.
- Você já me disse. - Dirk respondeu.
- Digo uma segunda vez. Quero que se lembre. - Vikary franziu o cenho. - E agora partirei. É um longo voo para Desafio, um longo e frio vôo.
A tela ficou escura antes que Dirk pudesse pensar em uma resposta.
Gwen estava esperando do lado de fora da porta, inclinada contra a parede acarpetada, o rosto escondido entre as mãos. Endireitou-se quando Dirk saiu.
- Estão vindo? - perguntou.
- Sim.
- Sinto muito, eu... saí. Não pude encará-lo.
- Não importa.
- Importa.
- Não - ele disse terminantemente. Seu estômago doía. Ficava imaginando gritos distantes. - Não importa. Você deixou claro antes... como se sente.
- Deixei? - ela riu. - Se sabe como me sinto, você me conhece melhor do que eu mesma, Dirk.
- Gwen, eu não... não, escute, não importa. Você tinha razão. Temos que... Jaan disse que temos uma arma.
Ela franziu o cenho.
- Temos? Ele acha que eu trouxe a arma de dardos? Ou o quê?
- Não, não acho. Ele só disse que temos uma arma, que a roubamos nós mesmos e insultamos Jadeferro.
Ela fechou os olhos.
- O quê? - disse. - É claro. - Abriu os olhos novamente. - O aeromóvel. É armado com canhões de laser. Deve ser o que ele quis dizer. Mas não estão carregados. Acho que nem estão conectados. Era eu quem usava esse aeromóvel a maior parte do tempo, e Garse...
- Entendo. Mas acha que os lasers podem ser consertados? Eles podem funcionar?
- Talvez. Não sei. Mas o que mais Jaan podia querer dizer?
- Os Braiths devem ter encontrado o carro, é claro. - Dirk comentou. Sua voz era fria e calma. - Teremos que nos arriscar. Vamos nos esconder... não podemos nos esconder, eles nos encontrarão. Bretan pode estar a caminho bem agora, se minha transmissão para Larteyn foi registrada em algum lugar lá embaixo. Não, vamos voltar para o aeromóvel. Eles não vão esperar por isso, se sabem que estávamos descendo pela galeria.
- O aeromóvel está a cinqüenta e dois andares acima - Gwen lembrou. - Como vamos chegar lá? Se Bretan tem tanto controle sobre a energia quanto achamos que tem, certamente desligou os elevadores. Ele parou as esteiras rolantes.
- Ele sabia que estávamos usando as esteiras rolantes - Dirk falou. - Ou pelo menos que estávamos na galeria. Os que estavam nos rastreando falaram para ele. Eles estão em contato, Gwen. Os Braiths. Têm que estar. As esteiras pararam de modo muito conveniente. Mas isso facilita as coisas.
- Facilita? O quê?
- Chamar a atenção deles - ele falou. - Para que venham atrás de nós, para salvar os benditos emerelianos. E isso o que Jaan quer que façamos. Não é o que você quer? - sua voz era cortante.
Gwen empalideceu visivelmente.
- Bem - disse. - Sim.
- Então você venceu. Vamos fazer isso.
Ela olhou pensativa.
- Os elevadores, então? Se ainda estiverem funcionando?
- Não podemos confiar nos elevadores - Dirk falou. - Mesmo se estiverem funcionando, Bretan pode pará-los quando estivermos dentro de um deles.
- Não sei se há escadas - ela disse. - E nunca encontraremos sem a Voz, mesmo se existirem. Podemos andar pela galeria, mas...
- Sabemos que pelo menos dois pares de Braiths estão percorrendo a galeria. Deve haver mais. Não.
- Então como?
- O que nos resta? - Dirk franziu o cenho. - O espigão central.
Dirk se inclinou por sobre a grade de ferro fundido, olhando para cima e para baixo, e ficou tonto. O espigão central parecia seguir infinitamente em ambas as direções. Eram apenas dois quilômetros do topo até a base, ele sabia, mas tudo ali dava a sensação de distância infinita. As correntes ascendentes de ar quente que divertiam os visitantes com a flutuabilidade de uma pena também enchiam o espaço com uma névoa branco-acinzentada, e os balcões que se alinhavam pela circunferência, andar após andar, eram todos idênticos, dando a ilusão de uma repetição sem-fim.
Gwen pegou algo de seu pacote de sensores, um instrumento metálico prateado do tamanho da palma de sua mão. Ficou parada perto de Dirk e o jogou suavemente no vão do espigão central. Os dois o observaram flutuar, girando mais e mais, piscando com a luz refletida. Flutuou até metade do diâmetro do grande cilindro antes que começasse a cair lentamente, gentilmente, meio suportado pelo ar ascendente, um grão de poeira metálica dançando na luz solar artificial. Observaram por uma eternidade, até que desaparecesse no abismo cinza embaixo deles.
- Bem - Gwen falou, depois que perderam o instrumento de vista -, a gravidade artificial ainda está funcionando.
- Sim. Bretan não conhece a cidade. Não o suficiente. - Dirk olhou de relance para cima, novamente. - Acho que devemos começar. Quem vai primeiro?
- Os homens primeiro - ela disse.
Dirk abriu o portão do balcão e retrocedeu até a parede. Tirou uma mecha de cabelo dos olhos impacientemente, deu de ombros e saiu correndo, dando o maior impulso que conseguiu quando chegou na beirada.
O impulso o levou para cima e ainda mais para cima. Por um segundo, era como se caísse, e o estômago de Dirk se contraiu, mas então olhou, viu e sentiu que não estava caindo, estava voando, subindo. Riu alto, repentinamente exultante, levou os braços adiante e começou a dar fortes braçadas, nadando mais alto e mais rápido. As fileiras de balcões vazios passavam por ele: um andar, dois, cinco. Cedo ou tarde, começaria a cair, uma lenta curva descendente até a distância envolta de cinza, mas dificilmente teria tempo de descer muito. O outro lado do espigão central estava a apenas trinta metros de distância, uma distância fácil de atravessar com a gravidade artificial do vão.
Finalmente, aproximou-se de uma parede curva e ricocheteou em um corrimão de ferro negro, girando sobre si mesmo e rodando absurdamente antes de alcançar e agarrar uma barra do balcão bem acima do corrimão em que batera. Foi fácil entrar. Viera sem problemas pelo espigão central e estava onze andares acima. Sorrindo e sentindo-se estranhamente animado, sentou-se e reuniu forças para um segundo salto enquanto observava Gwen vindo atrás dele. Voava como algum gracioso pássaro fabuloso, seu cabelo negro ondulando enquanto ela flutuava. Parou dois andares acima dele.
Quando chegaram ao 520° andar, Dirk tinha hematomas em meia dúzia de lugares em que batera contra varandas de ferro, mas sentia-se quase bem. Ao final de seu sexto salto vertiginoso pelo vão do espigão, estava quase relutante em chegar ao seu destino e retornar à gravidade normal. Mas chegou. Gwen já estava ali, esperando por ele, com o pacote de sensores e os suprimentos de campo presos às costas, entre as omoplatas. Ela lhe estendeu a mão e o ajudou a entrar no balcão.
Seguiram pelo amplo corredor que circundava o espigão central, até as já familiares sombras azuis.
Os globos brilhavam fracamente nos cruzamentos em cada lado deles, onde compridas passagens retas se afastavam do centro da cidade como raios em uma roda enorme. Escolheram um ao acaso e avançaram rapidamente em direção ao perímetro. Era uma caminhada mais longa do que Dirk imaginara, passando por vários outros cruzamentos (ele perdera a conta em quarenta), cada um como os demais, passando por portas negras que diferiam umas das outras apenas pela numeração. Nem ele nem Gwen falavam. A sensação agradável que o tocara por um breve tempo, a alegria de voar sem asas, deixou-o tão subitamente quanto viera enquanto ele caminhava pela meia-luz turva. No lugar dela, assaltou-o uma fraca sensação de medo. Ruídos imaginários atazanavam seus ouvidos: uivos distantes e as suaves pegadas de seus perseguidores. Seus olhos transformavam os globos de luz mais distantes em algo estranho e terrível, e Dirk via formas nos cantos cobalto onde só havia escuridão. Mas não encontraram nada, ninguém; era apenas sua mente pregando peças.
Contudo, os Braiths tinham estado ali. Perto do perímetro de Desafio, onde o corredor transversal cruzava com a galeria exterior, encontraram um dos veículos de roda-balão que a Voz usava para levar os visitantes de um lado para outro. Estava vazio e virado, parte no carpete azul, parte no limpo e frio plástico que cobria o chão da galeria. Quando chegaram lá, pararam, e os olhos de Gwen encontraram os de Dirk em um comentário sem palavras. Os carros de roda-balão, ele se lembrou, não eram controlados pelos passageiros; a Voz os dirigia. E apenas um estava caído desse lado, sem energia ou movimento. Também notou outra coisa. Perto de uma roda traseira o carpete azul estava úmido e malcheiroso.
- Vamos - Gwen sussurrou, e voltaram a percorrer a galeria silenciosa, esperando que os Braiths que tinham estado por ali tivessem partido ou que não pudessem ouvi-los. A pista de aterrissagem e o carro deles estavam muito próximos agora; seria uma ironia cruel se não conseguissem alcançá-los. Mas parecia para Dirk que seus passos ecoavam horrivelmente altos na superfície não acarpetada da galeria. Certamente o prédio inteiro podia ouvi-los, mesmo Bretan Braith nos sótãos profundos, quilômetros abaixo. Quando chegaram à passarela de pedestres que passava por sobre as esteiras rolantes, começaram a correr. Ele não saberia dizer quem começou, se Gwen ou ele. Em um momento caminhavam lado a lado, tentando mover-se o mais rápido possível, com menos barulho que conseguissem fazer; então, repentinamente, estavam correndo.
Depois da galeria não acarpetada, passaram por duas voltas e uma porta larga que parecia relutante em abrir. Finalmente Dirk a empurrou com seu ombro coberto de hematomas, e ambos gemeram em protesto, mas a porta se abriu. Finalmente estavam novamente na pista de aterrissagem do 520° andar de Desafio.
A noite estava fria e escura. Podiam ouvir o eterno vento de Worlorn choramingando contra a torre emereliana, e uma única estrela brilhando no comprido e baixo retângulo que demarcava o céu do mundo exterior. Do lado de dentro, a pista de aterrissagem estava igualmente escura.
Nenhuma luz se acendeu quando entraram.
Mas o aeromóvel ainda estava lá, encurvado na escuridão como uma coisa viva, como o banshee que pretendia retratar, e nenhum Braith estava de guarda.
Aproximaram-se do veículo. Gwen pegou o pacote de sensores e os suprimentos de campo e colocou-os no banco traseiro, onde os aeropatinetes ainda estavam guardados. Dirk ficou observando-a, tremendo; o sobretudo de Ruark se fora, e o ar estava gélido naquela noite.
Gwen tocou em um controle do painel de instrumentos, e uma fenda escura se abriu no centro da parte superior da arraia. Painéis de metal correram para trás e para cima, e as entranhas da máquina kavalariana estavam diante deles. Ela se aproximou da dianteira e acendeu uma luz na parte inferior de um dos painéis. O outro painel, Dirk viu, estava coberto de ferramentas de metal presas em clipes.
Gwen, de pé em uma pequena área iluminada com luz amarela, estudava o intrincado mecanismo. Dirk se aproximou. Finalmente, ela balançou a cabeça.
- Não - disse, em uma voz cansada. - Não funciona.
- Podemos tirar energia do controle de gravidade - Dirk sugeriu. - Você tem as ferramentas - apontou.
- Não tenho conhecimento suficiente para isso - ela disse. - Um pouco, sim. Esperava ser capaz de descobrir... você sabe. Não posso. É mais do que apenas uma questão de energia. Os lasers das asas não estão nem conectados. Pelo que podem nos servir, daria no mesmo se fossem de enfeite. - Voltou-se para Dirk. - Imagino que você não...
- Não - ele confirmou.
Ela assentiu.
- Não temos armas, então.
Dirk parou e olhou para além da arraia, na direção do céu vazio de Worlorn.
- Podíamos voar para fora daqui.
Gwen puxou os painéis, um com cada mão, e os fechou novamente, e mais uma vez o escuro banshee estava inteiro e feroz. Sua voz estava inexpressiva.
- Não. Lembre-se do que você disse. Os Braiths estarão lá fora. Os carros deles estarão armados. Não teríamos chance. Não. - Passou por Dirk e entrou no aeromóvel.
Depois de um tempo, ele a seguiu. Sentou-se meio torto no assento, para que pudesse olhar a solitária estrela no frio céu noturno. Sabia que estava muito cansado, e também que esse esgotamento era mais do que físico. Desde que chegara a Desafio, suas emoções o castigaram como ondas sobre uma praia, uma após a outra, mas repentinamente parecia que o oceano se fora. Não sobraram mais ondas.
- Suponho que você estava certa, antes, no corredor - ele disse, em uma voz introspectiva. Não estava olhando para Gwen.
- Certa? - ela perguntou.
- Sobre ser egoísta. Sobre... você sabe... sobre não ser um cavaleiro branco.
- Um cavaleiro branco?
- Como Jaan. Talvez eu nunca tenha sido um cavaleiro branco, mas, em Avalon, eu gostava de pensar que era. Eu acreditava em coisas. Agora, nem consigo lembrar o que eram. Exceto você, Jenny. De você, eu me lembrei. Foi por isso, bem, você entende. Nos últimos sete anos, fiz coisas, nada terrível, você sabe, mesmo assim, coisas que não teria feito em Avalon. Coisas cínicas, coisas egoístas. Mas até agora ninguém morreu por minha culpa.
- Não se faça de vítima, Dirk - ela disse. Sua voz estava exausta também. - Não é atraente.
- Quero fazer alguma coisa. - Dirk prosseguiu. - Tenho que fazer. Eu só... você sabe. Você estava certa.
- Não podemos fazer nada, exceto fugir e morrer, e isso não vai ajudar em nada. Não temos uma arma.
Dirk riu amargamente.
- Então vamos esperar que Jaan e Garse venham nos salvar, e então... nosso reencontro teve uma vida terrivelmente curta, não foi?
Ela se inclinou para a frente sem responder e apoiou a cabeça no antebraço sobre o painel de instrumentos. Dirk olhou para ela de relance e depois para fora novamente. Ainda estava com frio, com aquelas roupas finas, mas de algum modo isso não parecia importante.
Ficaram sentados em silêncio na arraia.
Até que finalmente Dirk se virou e colocou uma mão no ombro de Gwen.
- A arma - disse, em uma voz estranhamente animada. - Jaan disse que tínhamos uma arma.
- Os lasers no aeromóvel - Gwen respondeu. - Mas...
- Não. - Dirk a interrompeu com um sorriso súbito. - Não, não, não!
- O que mais ele poderia querer dizer?
Em resposta, Dirk estendeu o braço e ligou os ascensores do aeromóvel. O banshee de metal cinza voltou à vida e se elevou ligeiramente do solo.
- O carro - ele disse. - O próprio carro.
- Os Braiths lá fora têm carros - ela lembrou. - Carros armados.
- Sim - Dirk respondeu. - Mas Jaan e eu não estávamos falando sobre os Braiths lá fora. Estávamos falando sobre as duplas de caça aqui dentro, as que estavam percorrendo as galerias e matando pessoas!
A compreensão iluminou o rosto de Gwen como a luz do sol. Ela sorriu.
- Sim - disse com entusiasmo; tocou nos controles e a arraia rosnou, e de algum lugar sob o capô colunas brilhantes de luz branca se espalharam para perseguir a escuridão diante deles.
Enquanto ela manobrava a meio metro do chão, Dirk desceu pelas asas, correu até a porta maltratada e usou seu ombro igualmente castigado para abrir um segundo painel, amplo o suficiente para que o aeromóvel saísse. Então Gwen moveu a arraia na direção dele, e ele subiu novamente.
Algum tempo depois, flutuavam pela galeria, perto de onde o carro de rodas-balão estava virado. Os feixes luminosos dos faróis oscilaram pelas esteiras rolantes e pelas lojas havia muito desertas e apontaram para a frente, iluminando o caminho que os conduziria para baixo, em espiral, pela alta torre de Desafio, até finalmente chegar ao térreo.
- Você percebeu - Gwen comentou antes de saírem - que estamos na mão errada? O tráfego de descida deveria estar do outro lado do corredor central.
- Isso é proibido, sem dúvida, pelas normas de di-Emerel - Dirk sorriu. - Mas não acho que a Voz vá se incomodar.
Gwen devolveu o sorriso, tocou nos instrumentos, e a arraia sob eles arrancou e acelerou. Então, por um longo tempo, fizeram vento enquanto deslizavam pela penumbra cinzenta, cada vez mais rápido. Gwen estava nos controles, pálida e com os lábios apertados, e Dirk, ao seu lado, observava de braços cruzados os números dos andares, enquanto corredor após corredor passava por eles.
Ouviram os Braiths muito antes de vê-los - os uivos novamente, os latidos selvagens que eram diferentes de qualquer som canino que Dirk já ouvira, ainda mais selvagens pelos ecos que reverberavam na galeria. Quando ouviu a matilha, Dirk estendeu a mão e apagou os faróis do aeromóvel.
Gwen olhou para ele interrogativamente.
- Não fazemos muito barulho - ele disse. - Nunca nos ouvirão com os uivos e seus próprios gritos. Mas podem ver as luzes chegando por trás. Certo?
- Certo - ela respondeu. Nada mais. Estava concentrada no aeromóvel. Dirk a observou sob a luz pálida e cinzenta que restava para eles. Seus olhos eram jade novamente, duros e polidos, tão zangados quanto os de Garse Janacek ficavam algumas vezes. Ela tinha sua arma finalmente, e os caçadores kavalarianos estavam em algum lugar adiante.
Perto do andar 497, passaram por uma área repleta de panos rasgados que esvoaçavam e se agitaram com sua descida. Um pedaço maior do que os outros permaneceu parado no meio da galeria. Os restos de um sobretudo de retalhos marrom, feito em tiras.
Adiante, os uivos ficavam mais fortes e mais altos.
Um sorriso passou brevemente pelos lábios de Gwen. Dirk viu e recordou, intrigado, sua gentil Jenny de Ávalon. Então viram as figuras, pequenas formas negras na galeria sombria, formas que se transformaram rapidamente em homens e cães conforme a arraia corria na direção deles. Cinco dos grandes cães de caça corriam livremente pela galeria, nos calcanhares de um sexto, maior do que todos eles, preso na extremidade de duas pesadas correntes negras. Dois homens estavam na outra ponta das correntes, tropeçando atrás da matilha enquanto o imenso cão líder os levava adiante.
Ficavam cada vez maiores. Como cresciam rápido!
Os cães foram os primeiros a ouvir o aeromóvel. O líder lutou para se virar, e uma das correntes foi arrancada da mão do caçador. Três dos cães soltos deram a volta, rosnando, e um quarto começou a correr para cima, ao encontro do veículo que descia em alta velocidade. Os homens pareceram confusos por um instante. Um estava enroscado na corrente que segurava quando o cão líder mudou de direção. O outro, de mãos vazias, tateou o quadril em busca de algo.
Gwen acendeu as luzes. Na semiescuridão, os olhos da arraia eram cegantes.
O aeromóvel os alcançou.
As impressões rolaram sobre Dirk uma após a outra. Um uivo persistente que abruptamente se transformou em um grito de dor; o impacto sacudiu a arraia. Selvagens olhos vermelhos brilhando horrivelmente perto, uma cara de rato e dentes amarelos cheios de baba, então o impacto novamente, outra sacudida, um estalo. Mais impactos, ruídos repugnantes de carne, um, dois, três. Um grito, um grito bem humano, e então o perfil de um homem contra a luz dos faróis. Pareceu que levou uma hora até alcançá-lo. Era um homem robusto e maciço, ninguém que Dirk conhecesse, vestido com calças grossas e jaqueta de tecido-camaleão que parecia mudar de cor enquanto se aproximavam. Suas mãos estavam na frente dos olhos, uma delas segurando um inútil laser de duelo, e Dirk pode ver o brilho do metal do bracelete sobre a manga do homem. Cabelos brancos caíam até os ombros.
Então, repentinamente, depois de uma eternidade em câmara lenta, o homem se foi. A arraia sacudiu novamente. Dirk saltou no assento.
Na frente estava uma vastidão cinzenta, a comprida galeria curva.
Atrás - Dirk se virou para olhar -, um cão de caça os perseguia, arrastando duas correntes barulhentas enquanto corria. Mas foi ficando cada vez menor e menor. Formas escuras enchiam a fria rua de plástico. Nem bem Dirk começara a contá-los e já estavam fora de sua vista. Um pulso de luz brilhou brevemente sobre suas cabeças, vindo de algum lugar distante.
Em pouco tempo, ele e Gwen estavam sozinhos novamente e não havia outro ruído que não o sussurro de sua descida. O rosto dela estava rígido, as mãos firmes. As dele, não.
- Acho que os matamos - ele disse.
- Sim - ela respondeu. - Matamos. Alguns cães também. - Ficou em silêncio por um instante. Então, disse. - O nome dele, se me lembro bem, era Teraan Braith alguma coisa.
Ambos ficaram em silêncio. Gwen desligou os faróis mais uma vez.
- O que está fazendo? - Dirk perguntou.
- Há mais adiante - ela respondeu. - Lembre-se do grito que ouvimos.
- Sim. - Ele pensou por um tempo. - O carro agüenta mais batidas?
Ela sorriu de leve.
- Ah - disse. - O código de honra kavalariano tem vários modos aéreos. Aeromóveis são freqüentemente escolhidos como armas. São aparatos muito fortes. Este carro é construído para agüentar tiros a laser o máximo de tempo possível. A blindagem... Precisa que continue?
- Não. - Ele fez uma pausa. - Gwen.
-Sim?
- Não mate mais ninguém.
Ela olhou de relance para ele.
- Eles estão caçando os emerelianos - disse - e quem quer que teve o azar de ficar em Desafio. Eles nos caçariam sem o menor pudor.
- Mesmo assim - ele pediu. - Podemos afugentá-los, ganhar algum tempo para os demais. Jaan estará aqui logo. Ninguém precisa ser morto.
Ela suspirou e reduziu a velocidade do aeromóvel.
- Dirk - começou a dizer. Então viu alguma coisa no caminho e reduziu a velocidade ao mínino. - Ali. Olhe - apontou.
A luz estava tão fraca que era difícil ver as coisas com clareza até que se aproximassem, e então... uma carcaça de algum tipo, ou o que restara dela. No centro da galeria, rígida e ensangüentada. Pedaços de carne estavam espalhados por todo lado. Havia sangue seco escuro no plástico.
- Deve ser a vítima que ouvimos mais cedo. - Gwen supôs em um tom coloquial. - Caçadores de quase-homens não comem sua presa, você sabe. Não pensam duas vezes antes de dizer que as criaturas não são humanas, apenas algum tipo de animal semi-senciente, e acreditam nisso. Mesmo assim, o fedor de canibalismo é muito forte, mesmo para eles, então não ousam. Mesmo antigamente, em Alto Kavalaan, durante a era da escuridão, os grupos de caçadores nunca comeram a carne dos quase-humanos que abatiam. Deixavam para os deuses, para as mariposas carniceiras, para os besouros da areia. Depois de ter dado um pedaço para os cães provarem, é claro, como recompensa. Os caçadores tinham seus troféus, no entanto. A cabeça. Vê o torso ali? Mostre-me a cabeça.
Dirk se sentiu enjoado.
- A pele também. - Gwen continuou. - Eles levam facas de esfola. Ou levavam. Lembre-se, a caça de quase-homens está banida em Alto Kavalaan há gerações. Até o conselho de altos-senhores de Braith se pronunciou contra. Tais matanças que esses caçadores remanescentes fazem são sub-reptícias. Eles têm que esconder seus troféus, exceto entre eles mesmos. Aqui, no entanto, bem, deixe-me dizer que Jaan espera que os Braiths permaneçam em Worlorn o máximo que puderem. Segundo me disse, falam de renunciar a Braith, de trazer suas betheyn das fortalezas no planeta natal e formar uma nova coalizão aqui, um grupo que trará de volta os velhos tempos, todas as mortes e as tradições mais sanguinárias. Por um tempo, um ano, dois ou dez, enquanto o estratoescudo toberiano mantiver o calor. Lorimaar Alto-Larteyn e os seus, sem ninguém para restringi-los.
- Isso seria insano!
- Talvez. Isso não os parará. Se Jaantony e Garse partissem amanhã, seria feito. A presença dos Jadeferros os detém. Temem que se eles e os outros Braiths tradicionalistas formassem um contingente para vir para cá, então a facção progressista de Jadeferro também mandaria um contingente. Não teriam nada para caçar, então, e eles e seus filhos encarariam uma vida dura e curta em um mundo moribundo, sem sequer gozar seus prazeres preferidos, as alegrias da alta-caça. Não. - Ela deu de ombros. - Mas há salas de troféus em Larteyn mesmo agora. Lorimaar sozinho gaba-se de ter cinco cabeças, e dizem que tem duas jaquetas feitas de pele de quase-homem. Ele não as usa. Jaan o mataria.
Colocou o aeromóvel em movimento novamente, e mais uma vez começaram a ganhar velocidade.
-Agora - ela continuou -, ainda quer que eu desvie da próxima vez que encontrarmos alguns deles? Agora que sabe o que são?
Dirk não respondeu.
Pouco depois, os barulhos começaram novamente, abaixo de onde estavam, os uivos e os gritos ecoando pela galeria outrora deserta. Passaram por outro veículo tombado, as enormes rodas-balão desinfladas e rasgadas. Gwen teve de dar a volta ao redor dele. Logo toparam com uma armação de metal negro que bloqueava o caminho, um robô maciço com quatro braços tensos paralisados em grotescas posições sobre a cabeça. A parte de cima do torso era um cilindro escuro cravejado com olhos de vidro; a parte de baixo era uma base do tamanho de um aeromóvel, com rodas.
- Um guardião. - Gwen comentou, enquanto passavam pelo silencioso cadáver mecânico, e Dirk viu que as mãos haviam sido arrancadas dos braços e o corpo estava crivado por disparos de laser.
- Será que lutou contra eles? - ele perguntou.
- Provavelmente - ela respondeu. - O que quer dizer que a Voz ainda vive e controla algumas funções. Talvez seja por isso que não ouvimos mais nada de Bretan Braith. Pode ser que esteja com problemas lá embaixo. A Voz naturalmente deve ter convocado os guardiões para proteger as funções de vida da cidade. - Deu de ombros. - Mas não importa. Os emerelianos não agem com violência. Os guardiões são instrumentos de contenção. Disparam dardos soníferos, e acho que podem jogar gás lacrimogêneo por essas grades na base. Os Braiths vencerão. Sempre.
Atrás deles, o robô já havia sumido, e a galeria estava vazia mais uma vez. Os barulhos adiante aumentavam.
Dessa vez, Dirk não falou nada quando Gwen avançou sobre eles e acendeu as luzes, e os gritos e os impactos se sobrepuseram uns aos outros. Ela acertou os dois caçadores Braiths, embora depois confessasse que não tinha certeza se o segundo tinha morrido. O kavalariano fora atingido por um golpe que o lançou de costas em um dos cães.
E a voz de Dirk sumiu, porque, enquanto o homem estava tropeçando e girando à direita do veículo, soltou alguma coisa que estava carregando. Essa coisa voou pelos ares e se esmagou contra a vitrine de uma loja, deixando um rastro sangrento no vidro quando caiu no chão. Dirk notou que o caçador a estivera segurando pelo cabelo.
O caminho em espiral descia ao redor da torre de Desafio, afundando lenta e progressivamente. Levou mais tempo do que Dirk teria imaginado descer do 388° andar, onde surpreenderam o segundo grupo de Braiths, até o térreo. Um longo voo em um silêncio cinzento.
Não encontraram mais ninguém, nem kavalariano nem emereliano.
No 120° andar, um guardião solitário bloqueou o caminho deles, encarando-os com seus olhos opacos e ordenando que parassem, no tom de voz sempre uniforme e cordial da Voz de Desafio. Mas Gwen não diminuiu a velocidade, e, quando se aproximou, o guardião rodou para fora do caminho, sem disparar dardos ou exalar gases. Suas ordens retumbantes os perseguiram galeria abaixo.
No 57° andar, as opacas luzes sobre eles piscaram e apagaram, e por um instante voaram na escuridão total. Então Gwen acendeu os faróis e reduziu um pouco a velocidade. Nenhum deles falou nada, mas Dirk pensou em Bretan Braith e se perguntou brevemente se as luzes haviam falhado ou se haviam sido cortadas. Optou pela última alternativa; um sobrevivente acima finalmente tinha se comunicado com seus irmãos de grupo que estavam embaixo.
No térreo, a galeria terminava em um grande centro comercial e uma imensa rotatória. Podiam ver muito pouco; apenas onde os feixes dos faróis tocavam, e formas surpreendentes saltavam do oceano de piche que os cercava. No meio do centro comercial parecia haver uma árvore ou algo do tipo. Dirk entreviu um tronco maciço e retorcido, uma parede virtual de madeira, e ouviu folhas farfalhando acima deles. O caminho dava uma volta ao redor da árvore e encontrava-se consigo mesmo. Gwen percorreu todo o amplo círculo.
No outro extremo da árvore, havia uma porta larga que se abria para a noite, e Dirk sentiu o toque do vento no rosto dele e percebeu por que as folhas estavam farfalhando. Quando passaram pela porta, permanecendo no círculo, deu uma espiada para fora. Além da porta, uma estrada branca se afastava de Desafio.
E um aeromóvel movia-se velozmente por esse caminho, em direção à cidade. Em direção a eles. Dirk vislumbrou-o apenas por um instante. Era escuro - mas tudo era escuro sob as fracas luzes das estrelas dos mundos exteriores - e metálico, alguma disforme besta kavalariana que não era capaz nem de começar a identificar.
Mas, sem dúvida, não eram os Jadeferros.