Capítulo Treze
Quando David chegou em casa, Sandra o esperava.
- Boa noite, querido.
Ele a abraçou e pensou: Meu Deus, ela está adorável. Quem foi idiota que disse que mulheres grávidas não são bonitas?
Sandra falou, empolgadíssima:
- O bebé chutou hoje de novo! - Ela pegou a mão de David e colocou-a sobre a barriga. - Dá para sentir?
Depois de alguns instantes, David disse:
- Não. Ele é muito teimoso!
- A propósito, o Sr. Crowther ligou.
- Crowther?
- O corrector de imóveis. Os papéis já estão prontos para serem assinados.
David teve uma sensação súbita de enfraquecimento.
- Uhn!
- Tenho uma coisa para lhe mostrar - disse Sandra com entusiasmo. - Não saia daqui.
David observou-a correr para o quarto e pensou: O que é que eu vou fazer? Preciso tomar uma decisão.
Sandra voltou para a sala trazendo várias amostras de papel de parede azul.
- Vamos fazer o quarto do bebé em azul, e a sala de estar em azul e branco, suas cores favoritas. Qual é o tom que você prefere, o mais claro ou o mais escuro?
David fez um esforço para conseguir se concentrar
- O mais claro vai ficar bom.
- Eu também gostei. O único problema é que o tapete vai ser azul-escuro. Você acha que esses dois elementos deveriam combinar?
Não posso abrir mão da participação na sociedade. Batalhei muito para isso. Significa tudo para mim.
- David, você acha que os dois deveriam combinar?
Ele olhou para ela.
- O quê? Ah, sim. O que você achar melhor, meu bem.
- Eu estou tão entusiasmada. Vai ficar lindo.
Não há como arcar com essas despesas se eu não conseguir a participação na sociedade.
Sandra olhou ao redor do pequeno apartamento.
- Podemos aproveitar alguns destes móveis, mas acho que vamos precisar de muitas coisas novas. - Ela olhou para ele, cheia de ansiedade. - Podemos arcar com isso, não podemos, querido? Eu não quero extrapolar.
- Pode deixar - falou David, distante.
Ela se aconchegou ao ombro dele.
- Vai ser uma vida totalmente nova, não é mesmo? O bebé, a participação na sociedade da firma e a cobertura. Eu passei por lá hoje. Quis ver a pracinha e a escola. A pracinha é linda. Tem escorrega, balanço e gangorra. Eu quero que você vá comigo até lá no sábado para darmos uma olhada juntos. Jeffrey vai adorar.
Talvez eu consiga convencer Kincaid de que este caso vai ser bom para afirma.
- A escola parece óptima. Fica a dois quarteirões de casa, e não é muito grande. Acho que isso é importante.
David estava prestando atenção a ela agora e pensou: Não posso decepcioná-la. Não posso privá-la de seus sonhos. Vou dizer a Kincaid amanhã de manhã que não vou ficar com o caso. Paterson que ache outra pessoa!
- É melhor nos aprontarmos, meu amor. Combinamos chegar na casa dos Quiller às oito horas.
Era o momento da verdade. David sentiu-se tenso.
- Há uma coisa que precisamos conversar.
- Fale.
- Eu fui ver Ashley Paterson hoje de manhã.
- Ah, me conte. Ela é culpada? Foi ela quem fez aquelas atrocidades?
- Sim e não.
- Resposta de advogado. O que isso quer dizer?
- Ela cometeu os assassinatos... mas não é culpada.
- David...!
- Ashley tem um problema psiquiátrico chamado distúrbio de personalidade múltipla. Sua personalidade é dividida, de forma que ela faz coisas sem estar consciente disso.
Sandra estava de olhos pregados nele.
- Que horror!
- Há duas outras personalidades. Eu as conheci.
- Você as conheceu?
- Conheci. E são verdadeiras. Quero dizer, ela não está fingindo.
- E ela não tem a menor idéia de que...?
- Nenhuma.
- Então, ela é inocente ou culpada?
- Isso quem decide é o tribunal. O pai dela não quer conversar com Jesse Quiller, de forma que eu vou ter de encontrar outro advogado.
- Mas Jesse é perfeito. Por que o Dr. Paterson não quer falar com ele?
David hesitou.
- Ele quer que eu a defenda.
- Mas você contou para ele que não pode, claro.
- Claro.
- Então...?
- Ele não quis me ouvir.
- O que ele disse, David?
Ele balançou a cabeça.
- Não importa.
- O que ele disse?
David respondeu devagar:
- Disse que eu confiei nele a ponto de colocar a vida da minha mãe nas suas mãos, e ele a salvou, e agora ele está confiando em mim a ponto de colocar a vida da filha nas minhas mãos, e está me pedindo que a salve.
Sandra estava analisando o rosto de David.
- Você acha que conseguiria?
- Não sei. Kincaid não quer que eu pegue o caso. Se eu pegar, posso perder a participação na sociedade.
- Oh!
Houve um silêncio prolongado. Quando enfim falou, David disse:
- Eu tenho uma opção. Posso dizer não para o Dr. Paterson e me tornar sócio da firma, ou posso defender a filha dele, provavelmente tirando uma licença sem vencimentos, e ver depois o que acontece.
Sandra escutou tranquilamente.
- Há gente muito mais qualificada para pegar o caso de Ashley, mas por alguma razão dos infernos o pai dela não quer saber de mais ninguém. Eu não sei por que ele está tão obstinado com isso, mas o facto é que está irredutível. Se eu pegar o caso e não me tornar sócio da firma, vamos ter de abdicar da mudança. E também de abrir mão de muitos dos nossos planos, Sandra.
Sandra falou baixinho:
- Eu me lembro que, antes de nos casarmos, você me falou dele. Era um dos médicos mais ocupados do mundo, mas encontrou tempo para ouvir o que um rapaz sem dinheiro algum no bolso tinha a lhe dizer. Ele foi o seu herói, David. Você disse que, se algum dia nós tivéssemos um filho, iria querer que ele fosse igual a Steven Paterson quando crescesse.
David assentiu.
- Quando você tem de decidir?
- Vou estar com Kincaid na primeira hora da manhã.
Sandra pegou-lhe a mão e disse:
- Você não precisa de todo esse tempo. O doutor Paterson salvou a sua mãe. Você vai salvar a filha dele. - Ela olhou para o ambiente em volta deles e sorriu. - Ora, a gente pode redecorar este apartamento em azul e branco.
Jesse Quiller era um dos melhores advogados de defesa criminal no país. Era um homem alto, robusto, com um jeito simples que fazia os jurados se identificarem com ele. Eles sentiam que ele era um igual e queriam ajudá-lo. Essa era uma das razões pelas quais ele raramente perdia um caso. As outras razões eram sua excelente memória fotográfica e sua mente brilhante. Em vez de tirar férias, Quiller aproveitava os verões para dar cursos de direito, e, anos antes, David fora um de seus alunos. Quando David se formou, Quiller o convidou para trabalhar na sua firma de advocacia, e dois anos depois David se tornou seu sócio. David adorava a prática do direito penal e se sobressaía nisso. Nunca deixou de manter dez por cento de casos dativos. Três anos depois da participação na sociedade, David se desligou abruptamente da firma e foi trabalhar para a Kincaid, Tumer, Rose &Ripley na área do direito comercial. Ao longo dos anos, David e Quiller continuaram muito amigos. Eles, e suas esposas, jantavam juntos uma vez por semana. Jesse Quiller sempre apreciou as louras sofisticadas, tipo ninfetas altas. Até que conheceu Emily e se apaixonou por ela. Emily era uma mulher baixinha e rechonchuda, envelhecida precocemente pelo trabalho numa fazenda do estado de Iowa exatamente o oposto das mulheres com quem Quiller tinha namorado até então. Era do estilo mãe, sempre cuidando de tudo e de todos. Os dois formavam um casal improvável, mas o casamento funcionava porque eles eram perdidamente apaixonados um pelo outro.
Todas as terças-feiras, os Singer e os Quiller jantavam juntos e jogavam um complicado jogo de cartas chamado Liverpool.
Quando Sandra e David chegaram à bela casa dos Quiller, na Hayes Street, Jesse foi recebê-los à porta.
Ele abraçou Sandra e falou:
- Entrem. O champanhe está no gelo. É um grande dia para você, hein? Cobertura nova e participação na sociedade. Ou será participação na sociedade e cobertura nova?
David e Sandra se entreolharam.
- Emily está na cozinha, preparando o jantar para comemorar sua promoção. - Ele olhou para os rostos dos dois. - Eu acho que é um jantar de comemoração. Será que eu não estou sabendo de alguma coisa?
- Não, Jesse - disse David. - Só que talvez tenhamos um... Um probleminha.
- Vamos entrar. Posso preparar um drinque? - Ele olhou para Sandra.
- Não, obrigada! Não quero que o bebé adquira maus hábitos.
- É um bebé de sorte, com pais como vocês - falou Quiller, carinhosamente. Ele se virou para David: - E você, vai beber o quê?
- Nada. Obrigado!
Sandra encaminhou-se para a cozinha.
- Vou ver se Emily está precisando de ajuda.
- Sente-se, David. Você está com um ar sério.
- Estou num dilema - admitiu ele.
- Deixe-me adivinhar. A cobertura ou a sociedade?
- Ambas.
- Ambas?
- Você está sabendo do caso Paterson?
- Ashley Paterson? Claro. O que isso tem a ver com...? - Ele parou. - Espere aí. Você me falou de Steven Paterson, na faculdade de direito. Ele salvou a vida de sua mãe.
- Exato. Ele quer que eu defenda a filha dele. Tentei passar o caso para você, mas ele não quer saber de ninguém defendendo a filha, exceto eu.
Quiller franziu o cenho.
- Ele está sabendo que você não atua mais no direito penal?
- Está. É isso que eu não entendo. Há dúzias de advogados muito mais capazes do que eu para pegar o caso.
- Ele está sabendo que você foi advogado criminalista de defesa?
- Está.
- O que ele sente com relação à filha? - falou Quiller, com certo cuidado.
Que pergunta estranha, pensou David.
- Ela significa mais do que tudo na vida dele.
- Pois bem. Suponhamos que você pegue o caso. O lado ruim é que...
- O lado ruim é que Kincaid não quer que eu o pegue. Se eu resolver ficar com o caso, tenho a impressão de que vou perder a participação na sociedade.
- Entendi. E é aí que entra a cobertura?
- É aí que entra toda a porcaria do meu futuro - retrucou David, zangado. - Seria uma grande besteira eu fazer isso, Jesse. - Sabe, uma besteira e tanto!
- Por que você está zangado?
David respirou fundo.
- Porque eu vou fazer essa besteira.
Quiller sorriu.
- Por que será que eu não estou surpreso?
David passou a mão pela testa.
- Se eu não aceitasse defender a filha dele e ela fosse condenada e executada, e eu não fizesse nada para ajudá-la, eu... Não conseguiria viver em paz com a minha consciência.
- Compreendo. E como é que Sandra está se sentindo com relação a isso?
David conseguiu esboçar um sorriso.
- Você conhece Sandra.
- Conheço. Ela quer que você vá em frente.
- Exato.
Quiller se inclinou para a frente.
- Eu vou fazer o que puder para ajudá-lo, David.
David soltou um suspiro.
- Não. Esta é a parte que me cabe na transação. Vou ter de conduzir o caso sozinho.
Quiller franziu o cenho.
- Isso não faz sentido algum.
- Eu sei. E tentei explicar isso ao Dr. Paterson, mas ele se recusou a escutar.
- Você já contou isso a Kincaid?
- Tenho uma reunião marcada para a primeira hora com ele.
- O que acha que vai acontecer?
- Eu sei o que vai acontecer. Ele vai me aconselhar a não pegar o caso e, se eu insistir, vai me pedir para tirar uma licença sem vencimentos.
- Vamos almoçar amanhã, no Rubicon, à uma da tarde?
David assentiu.
- Está bem.
Emily veio da cozinha, esfregando as mãos num pano de prato. David e Quiller se levantaram.
- Olá, David? - Emily se aproximou com um ar atarefado, e ele a beijou no rosto. - Espero que vocês estejam com fome. O jantar está quase pronto. Sandra está na cozinha me ajudando. Ela é tão prestativa! - Emily pegou uma bandeja e voltou apressada para a cozinha.
Quiller se dirigiu a David:
- Vocês são muito queridos por Emily e por mim. Vou lhe dar um conselho. Esqueça aquilo.
David ficou calado.
- Já faz muito tempo, David. E o que aconteceu não foi culpa sua. Poderia ter acontecido com qualquer um.
David olhou para Quiller.
- Aconteceu comigo, Jesse. Eu a matei.
Foi um déja vu. Tudo de novo. E de novo. David ficou sentado, transportado de volta para outro tempo, para outro lugar.
Era um caso dativo, e David tinha dito para Jesse Quiller:
- Eu pego.
Helen Woodman era uma moça adorável, acusada de ter assassinado a madrasta rica. As duas haviam travado acirradas discussões públicas, mas todas as provas contra Helen eram circunstanciais. Depois de ter ido conversar com ela na cadeia, David ficou convencido de sua inocência. A cada encontro, ele foi se deixando envolver emocionalmente. Por fim, quebrou uma regra básica: Nunca se apaixonar por uma cliente.
O desenrolar do julgamento foi bom. David refutou as provas da promotoria uma a uma e conquistou o júri para o lado de sua cliente. E, inesperadamente, um desastre ocorreu. O álibi de Helen era o de estar num teatro com um amigo na hora do assassinato. Sob interrogatório no tribunal, o amigo revelou a mentira, e uma testemunha alegou ter visto Helen no apartamento da madrasta na hora do crime. A moça perdeu toda a credibilidade. O júri a condenou por assassinato em primeiro grau, e o juiz decretou sentença de morte. David ficou arrasado.
- Como você pôde fazer uma coisa dessas, Helen? Como pôde mentir para mim?
- Eu não matei a minha madrasta, David. Quando cheguei ao apartamento dela, eu a encontrei no chão, morta. Tive medo de que você não fosse acreditar em mim, por isso eu... Inventei aquela história de ter ido ao teatro com um amigo.
Ele ficou parado, escutando, com uma expressão clínica no rosto.
- Eu estou lhe dizendo a verdade, David.
- Está mesmo? - Ele voltou as costas e partiu, furioso.
Em algum momento da noite, Helen cometeu suicídio. E uma semana depois, um ex-presidiário caço ao praticar um roubo confessou ter assassinado a madrasta de Helen.
No dia seguinte, David saiu da firma. Quiller ainda tentou dissuadi-lo.
- Não foi culpa sua, David. Ela mentiu para você, e além do mais...
- Aí é que está! Eu a deixei mentir. Não fiz o que me cabia fazer. Não confirmei a veracidade do que ela estava dizendo. Quis acreditar nela, e por causa disso, eu a decepcionei.
Duas semanas depois, David estava trabalhando para a Kincaid, Turner, Rose &Ripley
- Jamais tornarei a me responsabilizar pela vida de outra pessoa - jurou David.
E agora ia defender Ashley Paterson.