Capítulo Quatro
Ashley Paterson estava tomando banho às pressas, atrasada para o trabalho, quando ouviu o ruído. Uma porta sendo aberta? Fechada? Ela desligou o chuveiro, à escuta, o coração palpitando.
Silêncio. Ficou parada um instante, as gotas de água reluzindo sobre todo o corpo, depois se enxugou ligeiro e entrou no quarto, cautelosa, tudo parecia normal. A minha imaginação idiota outra vez! Preciso me vestir logo. Foi até a gaveta de lingerie, abriu-a e ficou olhando, incrédula. Alguém tinha mexido em suas roupas íntimas. Seus sutiãs e calcinhas estavam empilhados, todos juntos. Ela sempre guardava as peças arrumadas em separado. Ashley sentiu um nó no estômago. Teria ele aberto a própria calça, pegado uma calcinha dela e a esfregado contra o corpo? Teria se dado à fantasia de estuprá-la? Ela sentiu dificuldade para respirar. Eu deveria ir à polícia, mas eles ririam de mim. Você quer que nós façamos uma investigação porque está achando que alguém mexeu na sua gaveta de lingerie? Alguém anda me seguindo. Você já viu quem é? Não. Alguém a ameaçou? Não. Você sabe por que alguém iria querer lhe fazer mal? Não.
Não adianta, pensou Ashley, à beira do desespero. Não posso procurar a polícia. Eles me fariam exatamente estas perguntas, e eu iria passar por boba. Ela se vestiu o mais rápido que pôde, tomada por uma ânsia de fugir do apartamento. Vou ter de me mudar. Morar num lugar qualquer onde ele não consiga me encontrar. Mas embora entabulasse esses pensamentos, Ashley tinha a sensação de que seria impossível. Ele sabe onde eu moro, sabe onde eu trabalho. E o que eu sei sobre ele? Nada. Ela se recusava a ter uma arma no apartamento, pois detestava violência. Mas agora eu preciso de proteção, pensou. Foi até à cozinha, pegou a faca de cortar carne e levou-a para o quarto, colocando-a na gaveta da cômoda, ao lado de sua cama. É possível que eu mesma tenha misturado as calcinhas com os sutiãs. Só pode ter sido isso! Ou seria pensamento ansioso?
Havia um envelope em sua caixa de correspondência na portaria do prédio. O endereço do remetente era: "Escola de Segundo Grau da Região Administrativa de Bedford, Bedford, Pensilvânia". Ashley leu o convite duas vezes.
Reunião de Dez Anos da Turma!
Rico, pobre, mendigo, ladrão. Você não vive se perguntando como os seus colegas de turma se saíram nesses últimos dez anos? Eis a chance de descobrir. Vamos fazer uma reunião fantástica no fim de semana de 15 de junho. Comida, bebida, orquestra e baile. Venha se divertir. Basta enviar o cartão de resposta pelo correio para confirmar a sua presença. Todos estão ansiosos para rever você.
A caminho do trabalho, Ashley foi pensando no convite. "Todos estão ansiosos para rever você". Todos exceto Jim Cleary, pensou ela, com amargura.
"Eu quero me casar com você. O meu tio me ofereceu um emprego muito bom em Chicago, na agência de publicidade dele... Tem um comboio que sai para Chicago as sete da manhã. Você topa?" E ela se recordou da angústia da espera na estação ferroviária, acreditando nele, confiando nele. Jim mudara de idéia e não fora homem o suficiente para ir lhe dizer. Em vez disso, deixara-a sentada numa estação ferroviária, sozinha. É melhor esquecer o convite. Eu não vou.
Ashley almoçou com Shane Miller no TGI Friday's. Eles ficaram num dos compartimentos reservados, comendo em silêncio.
- Você está com um ar preocupado - falou Shane.
- Desculpe. - Ashley hesitou um instante. Ficou tentada a lhe contar sobre a lingerie, mas a história pareceria idiota. Alguém mexeu nas suas gavetas? - Em vez disso, falou: - Recebi um convite para a reunião de dez anos da minha turma do segundo grau.
- Você vai?
- Certamente que não. - A frase saiu com mais entonação do que Ashley pretendera.
Shane Miller olhou para ela, curioso.
- Por que não? Essas reuniões costumam ser divertidas.
Será que Jim Cleary estaria lá? Levaria mulher e filhos? O que me diria? "Desculpe! Eu não consegui ir me encontrar com você na estação ferroviária. Sinto muito por ter mentido para você quando lhe falei sobre casamento"?
- Eu não vou.
Mas Ashley não conseguiu tirar o convite da cabeça. Seria bom rever alguns dos meus colegas de turma, pensava ela. Tinha sido muito íntima de alguns. Em particular, de Florence Schiffer. Eu gostaria de saber como ela anda. E ficou curiosa por saber se a cidade de Bedford havia mudado.
Ashley Paterson crescera em Bedford, Pensilvânia, uma cidadezinha a duas horas de Pittsburgh, em direção ao leste, entranhada na serra de Allegheny. Seu pai foi diretor do Memorial Hospital do condado de Bedford, um dos cem melhores hospitais do país.
Bedford tinha sido um lugar maravilhoso para passar a infância. Cheia de parques para se fazer piquenique, de rios onde a pesca era boa e de eventos sociais ao longo do ano inteiro. Ashley gostava de visitar o Grande vale, onde havia uma colônia amish. Era comum ver cavalos puxando carruagens com tetos de cores diferentes, que dependiam do grau de ortodoxia dos seus donos.
Havia as festas noturnas da Vila do Mistério, as apresentações de teatro e o Grande Festival da Abóbora. Ashley sorriu só de pensar nos bons tempos que passou ali. Talvez eu vá, pensou. Jim Cleary não terá o desplante de aparecer.
Ashley contou sua decisão a Shane Miller
- Vai ser na sexta-feira seguinte a esta - disse ela. - Vou voltar domingo à noite.
- Que bom! Se você me avisar à hora em que vai chegar, vou buscá-la no aeroporto.
- Obrigada Shane!
Quando voltou do almoço, Ashley entrou em seu cubículo e ligou o computador. Para sua surpresa, uma súbita chuva de pixels se espalhou pela tela, formando uma imagem. Ela olhou para aquilo, perplexa. Os pixels estavam formando a imagem dela. Enquanto observava horrorizada, a mão de alguém, segurando uma faca de cortar carne, apareceu no alto da tela. A mão se aproximou rapidamente de sua imagem, disposta a esfaqueá-la no peito.
Ashley soltou um berro:
- Não!
Desligou o monitor, assustada, e se pôs de pé num pulo.
Shane Miller correu para perto dela.
- Ashley! O que foi?
Ela estava trêmula.
- Na... Na minha tela...
Shane ligou o computador. Apareceu a imagem de um gatinho, correndo pela grama atrás de um novelo de lã.
Shane olhou para Ashley, confuso.
- O que...?
- Mas... Sumiu - falou ela, com um sussurro de voz.
- O que foi que sumiu?
Ela balançou a cabeça.
- Nada. Eu tenho andado muito estressada ultimamente, Shane. Desculpe!
- Por que você não vai fazer uma consulta com o Dr. Speakman?
Ashley já havia se consultado com o Dr. Speakman antes. Era o psicólogo da empresa, contratado para acompanhar e orientar os funcionários abalados pelo estresse da informática. Não era um médico, mas era inteligente e compreensivo, e conversar com alguém sempre adiantava alguma coisa.
- Vou, sim - disse Ashley.
O Dr. Ben Speakman era um cinquentão, um patriarca da fonte da juventude. Seu consultório era um oásis tranqüilo, situado na extremidade mais longínqua do prédio, um local confortável e acolhedor.
- Eu tive um sonho terrível ontem à noite - disse Ashley. E fechou os olhos, revivendo as sensações. - Eu estava correndo. Estava num jardim enorme, cheio de flores... Elas tinham rostos estranhos, feios... Gritavam comigo... Eu não conseguia ouvir o que estavam dizendo. Só continuava correndo em direção a alguma coisa... Não sei o quê... - Ela parou de falar e abriu os olhos.
- Será que você não estava correndo de alguma coisa? Não havia nada que a estivesse perseguindo?
- Não sei. Eu... Eu acho que estou sendo seguida, Dr. Speakman. Parece maluquice, mas... Eu acho que alguém quer me matar. Ele a estudou durante alguns instantes.
- E quem poderia estar querendo matá-la?
- Não... Não faço a menor idéia.
- Você já viu alguém seguindo você?
- Não.
- Você mora sozinha, não é?
- Moro.
- Está saindo com alguém? Algum envolvimento romântico?
- Não. Agora, não.
- Então, já faz algum tempo desde que você... Quero dizer, às vezes, quando a mulher não tem ninguém em sua vida... Bem, é possível que vá se formando um acúmulo de tensão...
O que ele está tentando me dizer é que eu preciso de uma boa...
Ela não conseguiu se persuadir a dizer a palavra. Chegou a ouvir os gritos do pai: "Nunca mais repita essa palavra. As pessoas vão pensar que você é uma vagabundinha. Pessoas de bem não dizem trepar. Onde é que você aprende esse tipo de linguagem"?
- Acho que você anda trabalhando demais, Ashley. E acho que não tem com que se preocupar. Talvez seja só a tensão. Leve as coisas com mais tranqüilidade durante algum tempo. Descanse bastante.
- Vou tentar
Shane Miller estava esperando por ela.
- O que o Dr. Speakman disse?
Ashley conseguiu dar um sorriso.
- Ele disse que eu estou bem. Só que ando trabalhando demais!
- Se é assim, vamos tomar uma providência quanto a isso - falou Shane. - Para começar, por que você não dá o dia por encerrado? - O seu tom de voz demonstrou preocupação.
- Obrigada! - Ela olhou para ele e sorriu. Era um homem atencioso. Um bom amigo.
Não pode ser ele, pensou Ashley. Ele não.
Durante a semana seguinte, Ashley não conseguiu pensar em nada além da reunião. Será que a minha ida é um erro? E se Jim Cleary aparecer por lá? Será que ele faz idéia do quanto me magoou? Será que liga para isso? Ou não vai sequer se lembrar de mim? Na noite anterior à data marcada para a viagem, Ashley não conseguiu dormir. Ficou tentada a cancelar o vôo. Mas que besteira! Pensou. O passado é o passado.
Quando pegou a passagem no aeroporto, Ashley a examinou e disse:
- Acho que houve um erro. A minha passagem é para a classe turística. Este bilhete é para a primeira classe.
- É, sim. A senhora mudou.
Ela olhou para o funcionário.
- Eu o quê?
- A senhora telefonou e mandou mudar para a primeira classe. - Ele mostrou uma folha de papel para Ashley - Esse não é o número do seu cartão de crédito?
Ela olhou para o número e disse, bem devagar:
- É, sim...
Não tinha dado aquele telefonema.
Ashley chegou a Bedford cedo e se hospedou no Bedford Springs Resort. As festividades do encontro só teriam início às seis horas da tarde. Ela resolveu, então, explorar a cidade. Parou um táxi em frente ao hotel.
- Para onde, madame?
- Eu só quero dar um passeio.
A cidade natal de uma pessoa costuma parecer ainda menor quando esta volta para visitá-la muitos anos depois, mas, para Ashley, Bedford pareceu maior do que em suas lembranças. O táxi percorreu ruas conhecidas, passou pela sede da Bedford Gazette, pela estação de TV WKYE e por uma dúzia de restaurantes e galerias de arte que lhe eram familiares. O Baker's Loaf de Bedford ainda estava lá, assim como o Clara's Place, o museu do forte de Bedford e a Old Bedford Village. Eles passaram em frente ao Memorial Hospital, um simpático edifício de três andares, com fachada em tijolo aparente e um pórtico na entrada. Seu pai se tornou famoso ali. Ela voltou a se lembrar das terríveis discussões entabuladas aos berros entre a mãe e o pai. Sempre a respeito da mesma coisa. Mas que coisa? Ela não conseguia se lembrar as cinco da tarde, Ashley voltou para o hotel e foi para o seu quarto. Mudou de roupa três vezes antes de decidir o que usar. Optou por um vestido simples e liso, preto. Ao entrar no ginásio da Escola de Segundo Grau da Região Administrativa de Bedford, todo decorado para as comemorações, ela se viu cercada por 120 estranhos de aspecto remotamente familiar. Alguns de seus antigos colegas de turma estavam absolutamente irreconhecíveis; outros poucos haviam mudado. Ashley estava procurando uma única pessoa: Jim Cleary. Será que ele mudou muito? Estaria acompanhado da esposa? Muita gente começou a abordá-la.
- Ashley, eu sou Trent Waterson. Você está ótima!
- Obrigada! Você também, Trent.
- Eu gostaria de lhe apresentar minha mulher...
- Ashley! É realmente você, não é?
- Sou eu, sim. Ahn...
- Art. Art Davies. Você se lembra de mim? - Ele estava mal vestido e parecia pouco à vontade.
- Claro. Como vão as coisas, Art?
- Indo. Você sabe que eu queria ser engenheiro, mas não deu.
- Que pena!
- Mas, enfim, virei mecânico.
- Ashley! Eu sou Lenny Holland. Pelo amor de Deus, como você está linda!
- Obrigada Lenny! - Ele engordara e estava usando um enorme anel de diamante no dedo mínimo.
- Estou trabalhando com imóveis; estou indo muito bem! Você se casou?
Ashley hesitou.
- Não.
- Você se lembra de Nicky Brandt? Nós nos casamos. Temos gêmeos.
- Parabéns!
Era impressionante como as pessoas podiam mudar tanto em dez anos! Estavam mais gordas mais magras... Bem de vida, arrasadas. Casadas, divorciadas... Com filhos, sem filhos...
Conforme a noite foi passando, o jantar foi servido, a música começou, e muita gente dançou. Ashley conversou com muitos dos antigos colegas de classe e se inteirou de suas vidas, mas sua mente estava em Jim Cleary. Ainda não havia sinal algum dele. Ele não vem, concluiu. Ele sabe que eu posso estar aqui e ficou com medo de me encarar.
Uma mulher atraente veio se aproximando.
- Ashley! Eu estava torcendo para encontrar você.
Era Florence Schiffer. Ashley ficou realmente feliz. Florence fora uma de suas amigas mais intimas. As duas encontraram uma mesa ao canto, onde poderiam conversar.
- Você está ótima, Florence - disse Ashley.
- Você também. Sinto muito por ter chegado tão tarde. Meu bebê não estava passando muito bem. Desde a última vez em que nos vimos, eu me casei e me divorciei. Agora estou namorando um cara espetacular. E você? Desapareceu depois da festa de formatura! Eu tentei encontrá-la, mas você tinha ido embora da cidade.
- Eu fui para Londres - disse Ashley. - Meu pai me matriculou numa faculdade de lá. Nós fomos embora na manhã seguinte à formatura.
- Mas eu tentei encontrá-la de todas as maneiras. Os detetives acharam que eu talvez soubesse onde você estava. Estavam à sua procura porque você e Jim Cleary eram namorados.
Ashley falou devagar:
- Os detetives?
- Claro! Que estavam investigando o assassinato.
Ashley sentiu o sangue fugir-lhe do rosto.
- Que... Assassinato?
Florence estava olhando bem para ela.
- Meu Deus! Você não sabe?
- Sabe do quê? - perguntou Ashley, tensa. - Do que você está falando?
- No dia seguinte à festa de formatura, os pais de Jim chegaram em casa e encontraram o corpo. Ele foi morto a facadas... E castrado.
O salão começou a girar. Ashley se agarrou à borda da mesa.
Florence segurou-lhe o braço.
- Mas... Ashley desculpe! Eu achava que você teria lido em algum lugar... Claro que não... Você tinha ido para Londres.
Ashley fechou os olhos, bem apertados. Ela se viu fugindo de casa naquela noite, rumando para a casa de Jim Cleary. Mas tinha voltado, preferindo esperar por ele de manhã. Se ao menos eu tivesse ido até lá, pensou, agoniada, ele ainda estaria vivo. E durante todos esses anos, eu só senti ódio por ele! Ai, meu Deus! Quem o teria matado? Quem...?
Ela chegou a ouvir a voz do pai: Mantenha as mãos longe da minha filha, entendeu bem?... Se eu vir você por aqui outra vez, vou quebrar todos os ossos do seu corpo.
Ela se levantou.
- Você vai me desculpar, Florence. Eu... Eu não estou me sentindo muito bem.
E Ashley fugiu.
Os detetives. Devem ter entrado em contato com seu pai. Por que ele não me falou?
Ela pegou o primeiro avião de volta para a Califórnia. Só conseguiu dormir de manhã cedo. Teve um pesadelo. Um vulto na escuridão esfaqueava Jim, e gritava com ele. O vulto saiu do escuro.
Era o pai dela.
Capítulo Cinco
Os meses que se seguiram foram de absoluta tristeza para Ashley. A imagem do corpo de Jim Cleary mutilado e ensangüentado repassava a toda hora por sua mente. Ela pensou em se consultar com o Dr. Speakman outra vez, mas sabia que não ousaria discutir esse assunto com mais ninguém. Sentia culpa só de pensar que o pai poderia ter feito uma coisa tão terrível assim. Afastava esse pensamento e tentava se concentrar no trabalho. Era impossível! Ela olhou com desânimo para um logotipo que acabara de esboçar.
Shane Miller a estava observando, apreensivo.
- Você está bem, Ashley?
Ela forçou um sorriso.
- Estou.
- Eu realmente sinto muito pelo seu amigo. - Ela lhe contara sobre Jim.
- Mas eu... Eu vou superar isso.
- Que tal jantarmos juntos hoje à noite?
- Obrigada Shane! Eu... Eu ainda não estou preparada. Na semana que vem, quem sabe?
- Tudo bem. Se houver alguma coisa que eu possa fazer...
- Eu fico agradecida. Não há o que se possa fazer.
Toni falou para Alette:
- A dona Babacona está tendo um problema. Por mim, quero que ela se dane!
- Eu estou com pena dela. Ela está mal.
- Que se dane! Todo mundo tem problemas, não é mesmo, minha querida?
Quando Ashley estava saindo do trabalho numa sexta-feira à tarde, para um fim de semana prolongado, Dennis Tibble a deteve.
- Ei, doçura, estou precisando de um favor.
- Você vai me desculpar, Dennis, mas eu...
- Ei, espere aí. Não é nada disso! - Ele pegou o braço de Ashley - Preciso de um conselho do ponto de vista de uma mulher.
- Dennis, eu não tenho a mínima vontade de...
- Eu me apaixonei por alguém e quero me casar, mas estou com problemas. Você vai me ajudar?
Ashley hesitou. Ela não gostava de Dennis Tibble, mas não viu mal algum em tentar ajudá-lo.
- Será que dá para esperar até amanhã?
- Eu preciso conversar com você agora. É urgente mesmo.
Ashley respirou fundo.
- Tudo bem.
- Será que podemos ir para o seu apartamento?
Ela balançou a cabeça.
- Não. - Jamais conseguiria fazê-lo ir embora.
- Você toparia ir para o meu?
Ashley hesitou.
- Tudo bem. - Assim, posso sair quando bem entender. Se eu conseguir ajudá-lo a conquistar a mulher por quem está apaixonado, talvez ele me deixe em paz.
Toni falou para Alette:
- Puxa! Dona Maria Certinha vai para o apartamento do verme. Você acredita que possa ser idiota a esse ponto? Onde é que andam os miolos de araque dessa mulher?
- Ela só está tentando ajudar. Não há nada errado em...
- Ah, não me venha com essa, Alette! Quando é que você vai crescer, mulher? O cara só está querendo levá-la para o abatedouro.
- Nona. Non si fancos.
- Nem eu mesma teria sido capaz de dizer isso de uma forma melhor!
O apartamento de Dennis Tibble era decorado em neopesadelo. Havia pôs teres de antigos filmes de terror em todas as paredes, ao lado de folhinhas de mulheres nuas e animais selvagens comendo. Minúsculas esculturas eróticas em madeira abundavam pelas mesas.
Que apartamento de maluco pensou Ashley. Mal podia esperar para ir embora dali.
- Sabe, achei legal você ter vindo. Fiquei sensibilizado. Se...
- Eu não posso demorar, Dennis - advertiu Ashley logo de início. - Fale logo sobre essa mulher por quem você se apaixonou.
- Ela é realmente demais! - Ele ofereceu um cigarro. - Quer um?
- Eu não fumo. - Ela o observou acender o cigarro.
- Quer beber alguma coisa?
- Eu não bebo.
Ele abriu um sorriso.
- Você não fuma, não bebe. Sobra uma atividade interessante, não é mesmo?
Ela falou com firmeza:
- Dennis, se você não...
- Eu só estava brincando. - Ele foi até o bar e se serviu de vinho. - Tome um pouco de vinho. Mal não vai fazer - Ele entregou o copo a ela.
Ela tomou um gole do vinho.
- Agora me fale da moça.
Dennis Tibble se sentou no sofá, ao lado de Ashley.
- Eu nunca conheci ninguém igual. Ela é sexy como você e...
- Pare com isso, senão eu vou embora.
- Ei, isso foi um elogio. Enfim, ela está maluca por mim, mas a mãe e o pai dela têm uma vida social muito ativa e me detestam.
Ashley não fez comentário algum.
- Então, o caso é o seguinte: se eu forço a barra, ela se casa comigo, mas se isola da família. Ela é muito chegada aos pais e, se nós nos casarmos, eles com certeza vão deserdá-la. Então, ela vai acabar um dia me culpando por isso. Entendeu o problema?
Ashley tomou mais um gole do vinho.
- Entendi. Eu...
Depois disso, o tempo pareceu se esvair no meio de uma neblina.
Ela acordou devagar, sabendo que havia alguma coisa muito errada. Teve a sensação de ter sido drogada. O esforço para simplesmente abrir os olhos foi imenso. Ashley olhou ao redor do quarto e começou a entrar em pânico. Estava deitada numa cama, nua, num quarto de hotel barato. Conseguiu se sentar e começou a sentir a cabeça latejar. Não fazia idéia de onde estava nem de como chegara ali. Havia um cardápio sobre a mesinha-de-cabeceira, e ela se esticou para pegá-lo. Chicago Loop Hotel. Ela tornou a ler, atônita. O que eu estou fazendo em Chicago? Quando tempo faz que estou aqui? A visita ao apartamento de Dennis Tibble fora na sexta-feira. Que dia é hoje?
Mais alarmada a cada instante, ela pegou o telefone.
- Pois não?
Foi difícil falar.
- Que... Que dia é hoje
- Dia dezessete de...
- Não. Eu quero saber o dia da semana.
- Ah! Segunda-feira. Você gostaria...
Ashley repôs o aparelho no gancho, estarrecida. Segunda feira. Perdera dois dias e duas noites. Sentou-se na beira da cama, tentando se lembrar. Ela havia ido para o apartamento de Dennis Tibble... Tomara um copo de vinho... Depois disso, um hiato. Ele havia colocado algo no seu copo de vinho que a fizera perder a memória temporariamente. Ela já lera a respeito de incidentes nos quais fora usado essa droga, chamada "droga de estuprar namorada". Fora isso que ele lhe dera. O pretexto de precisar de um conselho tinha sido uma artimanha. E eu caí como uma boba! Ela não se lembrava de ter ido para o aeroporto, de ter tomado o avião para Chicago, nem de ter se hospedado neste hotelzinho infame com Tibble. E o que era pior - não se lembrava do que ocorrera neste quarto.
Preciso sair daqui, pensou Ashley, desesperada. Sentiu-se maculada, como se cada centímetro de seu corpo tivesse sido violado. O que ele lhe fizera? Ela tentou não pensar nisso. Saiu da cama, entrou no minúsculo banheiro e foi tomar um banho. Deixou que a água quente batesse contra o seu corpo, tentando lavar as coisas horríveis, sujas, que lhe pudessem ter sucedido. Se ele a tivesse engravidado? A simples idéia de ter um filho dele a deixou enojada. Ashley saiu do chuveiro, secou-se e foi até o armário. Suas roupas haviam sumido. Ela encontrou ali somente uma minissaia de couro preto, um top barato e um par de sapatos de saltos bem altos, pontiagudos. Sentiu repugnância de se ver forçada a usar tais roupas, mas não teve escolha. Vestiu-se rapidamente e olhou-se no espelho. Parecia uma prostituta. Ashley examinou a carteira. Somente quarenta dólares. O talão de cheques e o cartão de crédito ainda estavam lá. Graças a Deus! Ela saiu pelo corredor. Não havia ninguém. Pegou o elevador, desceu até o saguão mal conservado do hotel e foi até o balcão da recepção, onde entregou ao idoso funcionário o seu cartão de crédito.
- Já vai? - disse ele, em tom de zombaria - Mas tenho a impressão de que você se divertiu bastante, acertei?
Ashley ficou olhando para o homem, imaginando a que ele estaria se referindo e teve medo de descobrir. Sentiu-se tentada a perguntar-lhe quando Dennis Tibble havia deixado o hotel, mas achou melhor ficar calada.
O funcionário estava passando o seu cartão de crédito pelo aparelho de leitura. Ele fez uma careta e uma segunda tentativa.
Finalmente, falou:
- Moça, me desculpe, mas o cartão não está sendo aceito. Estourou o limite.
Ashley ficou boquiaberta.
- Isso é impossível. Deve ter havido um engano!
O velhinho deu de ombros.
- Não tem outro cartão?
- Não... Não tenho. Vocês aceitam cheque?
Ele estava olhando para as roupas dela com um ar desabonador.
- Acho que sim, acompanhado da identidade.
- Preciso dar um telefonema...
- A cabine fica logo ali.
- Memorial Hospital de São Francisco...
- Dr. Steven Paterson.
- Um momento, por favor.
- Consultório do Dr. Paterson.
- Sarah? Ashley. Preciso falar com o meu pai.
- Sinto muito, Ashley. Ele está na sala de operações e...
Ashley apertou o aparelho na mão e disse:
- Você sabe quanto tempo ainda vai demorar?
- É difícil dizer. Sei que há mais uma cirurgia marcada para depois...
Ashley teve de combater a histeria que começava a surgir.
- Eu preciso falar com ele. Urgente. Você pode lhe dar um recado, por favor? Peça para ele me ligar, assim que puder. - Ela olhou para o número do telefone dentro da cabine e passou-o para a recepcionista do consultório do pai. - Eu vou esperar aqui até que ele me ligue.
- Não se preocupe que eu vou dar o seu recado.
Aguardou sentada no saguão durante quase uma hora, torcendo para que o telefone tocasse. Todos que por ali passavam olhavam para ela com estranheza, e Ashley se sentia despida dentro daquelas roupas vulgares que estava usando. Quando o telefone finalmente tocou, foi um susto.
Ela entrou correndo na cabine.
- Sim...
- Ashley? - era a voz de seu pai.
- Papai, eu...
- O que houve?
- Estou em Chicago e...
- O que você está fazendo em Chicago?
- Não dá para falar agora. Preciso de uma passagem de avião para San José. Não tenho nenhum dinheiro aqui comigo. Você pode me ajudar?
- Claro. Espere. - Três minutos depois, o pai voltou ao telefone. - Há um vôo da American Airlines saindo do O'Hare às dez e quarenta; o número do vôo é 407. Vou mandar deixar uma passagem para você no balcão de embarque. Eu vou pegá-la no aeroporto de San José e...
- Não! - Ela não podia deixar que ele a visse naqueles trajes. - Eu... Eu vou para o meu apartamento mudar de roupa.
- Tudo bem. Eu vou pegá-la para almoçarmos juntos. E aí você me conta o que aconteceu.
- Obrigado papai! Obrigada!
No vôo de volta para casa, Ashley pensou na coisa imperdoável que Dennis Tibble tinha-lhe feito. Vou ter de ir à polícia, resolveu. Não posso deixá-lo assim, impune. A quantas outras mulheres ele já não fez isso?
Quando regressou ao seu apartamento, Ashley teve a sensação de que havia voltado para um santuário. Mal pôde esperar para se livrar das roupas de mau gosto que estava vestindo. Tirou-as mais que depressa. Achou que precisava de outro banho antes de ir se encontrar com o pai. Caminhou em direção ao seu armário e parou. Bem à sua frente, sobre a cômoda, havia uma ponta de cigarro.
Eles estavam sentados a uma mesa de canto num restaurante em The Oaks. O pai de Ashley a estudava, apreensivo.
- O que você foi fazer em Chicago?
- Eu... Eu não sei.
Ele olhou para ela, intrigado.
- Você não sabe?
Ashley hesitou, tentando decidir se deveria contar-lhe o que acontecera. Talvez ele pudesse lhe dar algum conselho.
Ela falou, comodamente:
- Dennis Tibble me pediu para ir ao seu apartamento a fim de ajudá-lo com um problema...
- Dennis Tibble? Aquele mau caráter? - Há muito, Ashley apresentara o pai aos colegas de trabalho. - Como você poderia ter alguma coisa a ver com ele?
Ashley imediatamente se deu conta de que cometera um erro.
Seu pai sempre reagira de forma exacerbada a qualquer problema que ela tivesse. Especialmente se envolvesse algum homem.
"Se eu vir você por aqui outra vez, vou quebrar todos os ossos do seu corpo".
- Não foi nada importante - disse Ashley.
- Eu quero ouvir a história.
Ashley ficou parada um instante, tomada por um pressentimento.
- Bem, eu tomei um drinque no apartamento dele e... À medida que falava, ela notava que o rosto do pai ia assumindo um ar sombrio. A expressão de seus olhos a amedrontava.
Ela tentou encurtar a história.
- Não - insistiu o pai. - Quero ouvir tudo...
Ashley deitou-se em sua cama à noite, exausta demais para conciliar o sono, seus pensamentos a girar num turbilhão caótico. Se o que Dennis me fez vier a público, será uma humilhação. Todos no trabalho saberão o que aconteceu. Mas eu não posso deixá-lo fazer isso com todo mundo. Preciso contar à polícia. As pessoas haviam tentado adverti-la de que Dennis tinha uma obsessão por ela, mas Ashley ignorara os avisos. Agora, repassando tudo em sua mente, ela podia perceber todos os sinais: Dennis sempre detestara ver qualquer outra pessoa conversando com ela, vivia insistindo para que saíssem juntos, sempre escutava sorrateiramente suas conversas...
Pelo menos agora sei quem é o maníaco que estava me perseguindo, pensou.
As 8 e 30 da manhã, quando Ashley estava se aprontando para ir para o trabalho, o telefone tocou. Ela atendeu:
- Ashley, é Shane. Você já ouviu a notícia?
- Que notícia?
- Está na televisão. Acabaram de encontrar o corpo de Dennis Tibble.
Por um instante, a terra pareceu se mexer.
- Meu Deus! O que aconteceu?
- Segundo a polícia, alguém o matou a facadas e depois o castrou.