Capítulo Vinte e Quatro


Na manhã seguinte, um enfermeiro estava acompanhando Ashley de volta para o seu quarto.

- Você está diferente hoje - disse ele.

- Estou mesmo, Bill?

- Está. Quase como se fosse outra pessoa.

Toni falou baixinho:

- É por causa de você.

- O que quer dizer com isso?

- Você me faz sentir diferente. - Ela encostou no braço dele e olhou-o nos olhos. - Você me faz sentir maravilhosa.

- Ora, por favor.

- Estou falando sério. Você é muito sexy. Sabia disso?

- Não.

- Mas é. Você é casado, Bill?

- Já fui.

- Sua mulher só pode ser louca por ter deixado você escapar! Há quanto tempo você trabalha aqui, Bill?

- Cinco anos.

- Muito tempo! Você nunca sente vontade de sair daqui?

- às vezes, sinto.

Toni baixou a voz.

- Sabe que realmente não há nada de errado comigo? Admito que tinha um probleminha quando cheguei, mas já estou curada. Eu também gostaria de me mandar daqui. Aposto que você pode me ajudar. Nós dois poderíamos sair juntos. Iríamos nos divertir muito.

Ele a estudou durante algum tempo.

- Eu não sei o que dizer.

- Ora, sabe, sim! Veja só como é simples. Tudo o que você tem de fazer é me deixar sair daqui uma noite dessas quando todo mundo estiver dormindo, e vamos embora! - Ela olhou para ele e falou baixinho: - Eu vou fazer com que valha a pena para você.

Ele assentiu.

- Vou pensar nisso.

- Pois pense - falou Toni, confiante.

Quando Toni voltou ao seu quarto, falou para Alette:

- Vamos sair deste lugar.


Na manhã seguinte, Ashley foi levada à sala do Dr. Keller

- Bom dia, Ashley!

- Bom dia, Gilbert!

- Vamos experimentar um pouco de sódio amial hoje de manhã. Você já tomou antes?

- Não.

- É bastante relaxante, você vai ver.

Ashley assentiu.

- Tudo bem. Estou pronta.

Cinco minutos depois, o Dr. Keller estava falando com Toni:

- Bom dia, Toni!

- Oi, doutorzinho!

- Você está feliz aqui, Toni?

- É engraçado você me perguntar isso! Para dizer a verdade, eu realmente já estou começando a gostar deste lugar; me sinto em casa aqui.

- Então, por que está querendo fugir?

A voz de Toni ficou áspera:

- O quê?

- Bill me contou que você lhe pediu ajuda para fugir daqui.

- Mas que filho da puta! - Sua voz saiu com um tom de fúria. Ela deu um pulo da cadeira, voou para a mesa, pegou um peso de papel e o arremessou contra a cabeça do Dr. Keller.

Ele se abaixou.

- Eu vou matar você e vou matar aquele safado também.

O Dr. Keller a agarrou.

- Toni...

Ele viu a expressão no rosto de Ashley se modificar. Toni se fora. Ele percebeu que seu coração estava palpitando com força.

- Ashley!

Quando despertou, Ashley abriu os olhos, olhou ao redor, intrigada, e falou:

- Está tudo bem?

- Toni me atacou. Ficou zangada porque eu descobri que ela estava tentando fugir.

- Eu... eu sinto muito. Tive a sensação de que algo ruim estava acontecendo.

- Tudo bem. Eu quero juntar você, Toni e Alette.

- Não.

- Por que Não?

- Eu tenho medo. Eu... não quero conhecê-las. Você Não entende? Elas não são reais. São a minha imaginação.

- Mais cedo ou mais tarde, você terá de conhecê-las, Ashley. Vocês precisam se conhecer. É a única maneira de se curar.

Ashley se levantou.

- Quero voltar para o meu quarto.


Quando foi levada de volta para o quarto, Ashley esperou o enfermeiro sair. Estava tomada por uma profunda sensação de desespero. Ela pensou: Eu nunca vou sair daqui. Eles estão mentindo para mim. não voo conseguir me curar. não conseguia enfrentar a realidade de que outras personalidades viviam dentro dela... Por causa dessas personalidades, algumas pessoas haviam sido assassinadas, famílias haviam sido destruídas. Por que eu, meu Deus? E começou a chorar. O que foi que eu fiz contra você? Ela se sentou sobre a cama e pensou: não posso continuar assim. Só há uma maneira de pôr um fim a isto. Tenho de fazer o que é preciso agora.

Ela se levantou e passeou pelo quarto, procurando algo pontiagudo. Não encontrou nada. Os quartos tinham sido projectados de forma a não haver nada com que os pacientes pudessem se machucar. Enquanto seus olhos vasculhavam o ambiente, ela viu as tintas, as telas e os pincéis e foi até onde eles estavam. As hastes dos pincéis eram de madeira. Ashley quebrou uma ao meio, obtendo com isso lascas de pontas afiadas. Lentamente, ela pegou a ponta mais afiada e a encostou ao pulso. Com um movimento rápido e forte, enfiou-a profundamente, atingindo as veias, e o sangue começou a jorrar. Ashley colocou a ponta afiada contra o outro pulso e repetiu o movimento. Ficou ali parada, vendo o sangue pingar sobre o carpete. Começou a sentir frio. Caiu no chão e se enroscou em posição fetal.

Em seguida, o quarto caiu na escuridão.


Quando recebeu a notícia, o Dr. Gilbert Keller ficou chocado. Foi visitar Ashley na enfermaria. Seus punhos estavam enfaixados.

Ao vê-la ali deitada, o Dr. Keller pensou: não posso deixar que isso torne a acontecer.

- Nós quase a perdemos - disse ele. - Teria sido ruim para mim.

Ashley conseguiu esboçar um sorriso sem graça.

- Eu sinto muito. Mas é que nada... nada parece ter solução.

- É aí que você se engana - reconfortou-a o Dr. Keller - Você quer ser ajudada, Ashley?

- Quero.

- Então, precisa acreditar em mim. Precisa trabalhar comigo. Eu não posso fazer nada sozinho. O que você me diz?

Houve um silêncio prolongado.

- O que o senhor quer que eu faça?

- Primeiro, que prometa que não vai mais atentar contra a sua vida.

- Tudo bem, prometo.

- Eu vou pedir que Toni e Alette me façam a mesma promessa. Vou colocá-la para dormir agora.

Alguns minutos depois, o Dr. Keller estava falando com Toni.

- Aquela cadela egoísta tentou nos matar. Só pensa nela mesma! Você está entendendo o que eu digo?

- Toni...

- Ora! Eu não vou aceitar uma coisa dessas. Vou...

- Quer calar a boca e me escutar.

- Estou escutando.

- Eu quero que você prometa que não vai fazer mal a Ashley.

- E por que eu deveria prometer?

- Eu vou lhe dizer por quê. Porque você é parte dela. Nasceu da dor dela. Eu ainda não sei o que você teve de suportar, Toni, mas sei que deve ter sido terrível. Mas você precisa entender que ela teve de passar pelas mesmas coisas, e Alette nasceu pela mesma razão que você. Vocês três têm muita coisa em comum. Deveriam ajudar um as às outras, e não nutrir um ódio mútuo. Posso contar com a sua palavra?

Nada.

- Toni?

- Acho que sim - disse ela, resmungando.

- Obrigado! Você quer conversar sobre a Inglaterra agora?

- Não.

- Alette, você está aí?

- Estou. Onde você acha que eu estou, seu idiota?

- Quero que você me faça a mesma promessa que Toni fez. Que jamais vai fazer mal a Ashley.

- É só nela que você pensa, não é? Ashley, Ashley, Ashley. E nós?

- Alette?

- Eu prometo.


Os meses foram se passando, e não havia sinal de progresso. O dr. Keller estava sentado à sua mesa, repassando apontamentos, recordando sessões, tentando encontrar alguma indicação do que deveria estar dando errado. Ele tinha meia dúzia de outros pacientes sob os seus cuidados, mas percebeu que se preocupava mais com Ashley. Havia um abismo incrível entre sua vulnerabilidade inocente e as forças sinistras capazes de assumir o comando de sua vida. Toda vez que falava com Ashley, ele tinha um impulso incontrolável de tentar protegê-la. Ela é como uma filha para mim, frisou. A quem estou tentando enganar? Eu estou me apaixonando por ela.


O Dr. Keller foi falar com Otto Lewison.

- Estou com um problema, Otto.

- Eu achava que isso era exclusivo dos nossos pacientes.

- Envolve um dos nossos pacientes. Ashley Paterson.

- Oh?

- Percebi que me sinto muito... muito atraído por ela.

- Contra transferência?

- É.

- Isso pode ser muito perigoso para vocês dois, Gilbert.

- Eu sei.

- Bem, pelo menos, enquanto você tiver consciência disso... Tome cuidado.

- É o que pretendo fazer.


Novembro.

Dei uma agenda para Ashley hoje de manhã .

- Eu quero que você, Toni e Alette usem esta agenda, Ashley pode guardá-la no seu quarto. Quando tiver algum pensamento ou idéia que você prefira escrever em vez de falar comigo, basta usar a agenda.

- Tudo bem, Gilbert.


Um mês depois, o Dr. Keller escreveu em sua agenda:


Dezembro

O tratamento está estático. Toni e Alette se recusam a discutir o passado. Está ficando mais difícil convencer Ashley a se submeter à hipnose.


Março

A agenda ainda está em branco. Não tenho certeza se a maior resistência vem de Ashley ou de Toni. Quando hipnotizo Ashley, Toni e Alette surgem durante um intervalo de tempo muito curto.

Estão irredutíveis quanto a discutir o passado.


Junho

Tenho sessões com Ashley regularmente, mas não percebo progresso algum. A agenda permanece intocada. Dei a Alette um cavalete e um estojo de tintas. Se ela começar a pintar, espero que haja uma brecha.


Julho

Algo aconteceu, mas não estou certo de que seja um sinal de progresso. Alette pintou um lindo quadro dos jardins do hospital. Quando a elogiei por isso, ela se mostrou satisfeita. Naquela noite, o quadro apareceu rasgado em pedaços.


O Dr. Keller e Otto Lewison estavam tomando café.

- Acho que vou experimentar terapia de grupo - falou o dr. Keller - Nada mais tem funcionado.

- Está pensando em quantos pacientes?

- Não mais do que meia dúzia. Quero que ela comece a interagir com outras pessoas. Neste exacto momento, está vivendo num mundo próprio. Eu quero que ela saia disso.

- Boa idéia! Vale a pena tentar.


O Dr. Keller levou Ashley para uma pequena sala de reuniões.

Havia seis pessoas lá dentro.

- Quero que você conheça alguns amigos - falou o dr. Keller.

Ele levou Ashley a cada uma das pessoas e a apresentou, mas ela estava apreensiva demais para escutar seus nomes. Cada um se misturava com o seguinte. Ela registrou a Mulher Gorda, o Homem Ossudo, a Mulher Calva, o Homem Manco, a Chinesa e o Homem Afável. Todos pareceram ser gente muito agradável.

- Sente-se - disse a Mulher Calva. - Você gostaria de tomar um pouco de café?

Ashley se sentou.

- Obrigada!

- Nós já tínhamos ouvido falar de você - disse o Homem Afável. - Passou por muita coisa!

Ashley assentiu.

O Homem Ossudo falou:

- Acho que todos nós passamos por muita coisa, mas estamos recebendo ajuda. Este lugar é maravilhoso.

- Eles têm os melhores médicos do mundo - disse a Chinesa. Eles parecem tão normais, pensou Ashley.

O Dr. Keller se sentou a um canto, monitorando as conversas.

Quarenta e cinco minutos depois, ele levantou-se.

- Acho que é hora de você ir, Ashley.

Ela se levantou.

- Foi bom conhecer todos vocês.

O Homem Manco se aproximou dela e sussurrou:

- Não beba a água daqui. Está envenenada. Eles querem nos matar e continuar recebendo o dinheiro do estado.

Ashley engoliu em seco.

- Obrigada! Não... não vou me esquecer do seu conselho.

Enquanto Ashley e o Dr. Keller caminhavam pelo corredor, ela falou:

- Quais são os problemas deles?

- Paranóia, esquizofrenia, DPM, perturbações compulsivas. Mas, Ashley, a melhoria desde que vieram para cá tem sido notável. Você gostaria de conversar com eles regularmente?

- Não.


O Dr. Keller entrou no escritório de Otto Lewison.

- Não estou conseguindo chegar a lugar algum - confessou. - A terapia de grupo não funcionou, e as sessões de hipnose não estão surtindo qualquer efeito. Quero tentar algo diferente.

- O quê?

- Quero pedir sua permissão para levar Ashley para jantar fora da clínica.

- Não acho uma boa idéia, Gilbert. Poderia ser perigoso. Ela já...

- Eu sei. Mas neste exacto momento, eu sou o inimigo. Quero me tornar um amigo.

- O alter dela, Toni, tentou matá-lo uma vez. E se ela tentar novamente?

- Vou saber resolver.

O Dr. Lewison pensou um instante.

- Tudo bem. Você gostaria que alguém fosse junto?

- Não. Não vai ser preciso, Otto.

- Quando quer começar?

- Hoje à noite.


- Você quer me levar para jantar fora?

- Quero. Acho que seria bom para você, Ashley, sair deste ar por algum tempo. E então?

- Está bem.


Ashley ficou surpresa com o seu nível de entusiasmo diante da perspectiva de sair para jantar com Gilbert Keller. Vai ser divertido sair daqui por uma noite, pensou. Mas ela sabia que seria mais do que isso. A idéia de uma saída com Gilbert Keller era muito estimulante.


Eles estavam jantando num restaurante japonês chamado Otani Gardens, a oito quilómetros do hospital. O Dr. Keller sabia que estava correndo um risco. A qualquer instante, Toni ou Alette poderiam sobrevir. Ele fora advertido. É mais importante que Ashley aprenda a confiar em mim, para que eu possa ajudá-la.

- Engraçado, Gilbert! - disse Ashley, olhando para o restaurante lotado à sua volta.

- O quê?

- Estas pessoas não parecem nada diferentes das pessoas do hospital.

- Elas não são realmente diferentes, Ashley. Tenho certeza que todas têm problemas. A única diferença é que as do hospital não conseguem lidar com os seus tão bem assim, então nós as ajudamos.

- Eu não sabia que tinha problemas até... Bem, você sabe.

- Sabe por quê, Ashley? Porque você enterrou os seus problemas. Não conseguiu enfrentar o que lhe aconteceu, então construiu muralhas em sua mente e trancou as coisas ruins do lado de fora. Até um certo ponto, muita gente faz isso. - Ele mudou de assunto deliberadamente. - Que tal o seu filé?

- Delicioso. Obrigada!


Daí por diante, Ashley e o Dr. Keller, uma vez por semana, passaram a fazer uma refeição fora do hospital. Almoçaram num excelente restaurante italiano chamado Banducci's e jantaram algumas vezes no The Palm, no Eveleene's e no The Gumbo Pot. Nem Toni nem Alette apareceram uma vez sequer.

Certa noite, o Dr. Keller levou Ashley para dançar. Foram a uma boate pequena, com uns músicos maravilhosos.

- Você está se divertindo? - perguntou ele.

- Bastante. Obrigada! - Ela olhou para ele e falou: - Você não é igual aos outros médicos.

- Eles não dançam?

- Você sabe o que eu quero dizer.

Ele a estava segurando bem junto de si, e ambos sentiram o impulso do momento.

"Isso poderia ser muito perigoso para vocês dois, Gilbert..."

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