Capítulo Quinze
San José logo assumiu ares de uma cidade em festa. Aportaram representantes da mídia do mundo inteiro. Todos os hotéis estavam com as reservas esgotadas, e alguns dos jornalistas se viram forçados a se hospedar nas cidades vizinhas de Santa Clara, Sunnyvale e Palo Alto. David foi cercado por repórteres.
- Sr. Singer, a respeito do seu caso, o senhor está alegando a inocência de sua cliente...?
- O senhor vai levar Ashley Paterson ao banco...?
- É verdade que o Ministério Público andou lhe propondo um acordo de alegações?
- O Dr. Paterson vai testemunhar em favor da filha...?
- Minha revista está disposta a pagar cinquenta mil dólares por uma entrevista com a sua cliente...
Mickey Brennan também estava sendo pressionado pela mídia.
- Sr. Brennan, o senhor faria alguns comentários sobre o julgamento?
Brennan se virou e sorriu para as câmaras de televisão.
- Claro, eu posso resumir o julgamento em três palavras. "Nós vamos ganhar". Sem mais comentários!
- Espere. O senhor acha que ela é doente mental...?
- O estado vai pedir a pena de morte...?
- O senhor chamaria este caso de irrefutável...?
David alugou um escritório em San José, perto do tribunal, onde poderia entrevistar suas testemunhas e prepará-las para o julgamento. Resolveu que Sandra ficaria baseada no escritório de Quiller, em São Francisco, até o início do julgamento. O Dr. Salem tinha chegado a San José.
- Eu gostaria que o senhor tornasse a hipnotizar Ashley - falou David. - Vamos obter todas as informações possíveis dela e dos alteres antes que comece o julgamento.
Eles se reuniram com Ashley numa sala da carceragem no centro de detenção da cidade. Ela estava fazendo um grande esforço para ocultar o nervosismo. Aos olhos de David, ela mais parecia um cervo aprisionado pelos faróis de uma motoniveladora se deslocando em sua direcção.
- Bom dia, Ashley! Está lembrada do Dr. Salem?
Ashley assentiu.
- Ele vai hipnotizá-la outra vez. Tudo bem?
- Ele vai conversar com as... as outras? - perguntou Ashley
- Vai, sim. Você se importa?
- Não. Mas eu... eu não quero falar com elas.
- Não tem problema. Não precisa.
- Ai, que ódio! - Ashley teve um rompante de raiva.
- Eu entendo - falou David, tentando confortá-la. - Não se preocupe. Logo vai acabar. - Ele assentiu para o Dr. Salem.
- Fique à vontade, Ashley. Você se lembra de que foi fácil da outra vez. Basta fechar os olhos e relaxar. Tente esvaziar a mente. Sinta o seu corpo relaxando. Ouça o som da minha voz. Deixe que tudo o mais se vá. Você está ficando com muito sono. Seus olhos estão ficando muito pesados. Você quer dormir... Dormir. .
Em dez minutos, ela estava hipnotizada. O Dr. Salem gesticulou para David, que se dirigiu a Ashley
- Eu gostaria de falar com Alette. Você está aí, Alette?
Eles viram o rosto de Ashley assumir uma expressão branda, passando pela mesma transformação que tinham presenciado anteriormente. Em seguida, ouviram o sotaque italiano, suave e melodioso.
- Buon giorno!
- Bom dia, Alette! Como vai?
- Male. Que momento difícil!
- Está difícil para todos nós - reforçou David -, mas tudo vai acabar bem.
- Assim espero.
- Alette, eu gostaria de lhe fazer algumas perguntas.
- As...
- Você conheceu Jim Cleary?
- Não.
- Você conheceu Richard Melton?
- Conheci. - Havia uma tristeza profunda em sua voz. - Foi... Foi terrível o que aconteceu com ele.
David voltou os olhos para o Dr. Salem.
- Foi, sim. Terrível! Quando você o viu pela última vez?
- Eu o visitei em São Francisco. Nós fomos a um museu e depois jantamos juntos. Antes de eu ir embora, ele me convidou para ir ao seu apartamento.
- E você foi?
- Não. Eu gostaria de ter ido - falou Alette, arrependida. - Quem sabe eu não poderia ter salvado a vida dele? - Houve uma pausa breve. - Nós nos despedimos, e eu peguei meu carro e voltei para Cupertino.
- E foi essa a última vez em que você o viu?
- Foi.
- Obrigado, Alette!
David se aproximou de Ashley e falou:
- Toni? Você está aí, Toni? Eu gostaria de conversar com você.
Enquanto eles observavam, o rosto de Ashley sofreu outra transformação notável. Sua personalidade se modificou diante de seus olhos. Houve uma nova postura, uma consciência sexual. Ela começou a cantarolar com aquela voz clara e gutural:
"Subindo e descendo a rua da cidade.
Entra tostão, sai tostão. Ora, ora!
Assim que o dinheiro se vai.
Mas a lontra - pluft! - foi embora. "
Ela olhou para David.
- Você sabe por que eu adoro cantar essa musiquinha, meu caro?
- Não.
- Porque a minha mãe a odiava. Ela me odiava.
- Por que ela a odiava?
- Ora, não dá mais para perguntar, não é mesmo? - Toni riu. - Não onde ela está agora! Para a minha mãe, nada do que eu fizesse estava correto. Que tipo de mãe você teve, David?
- Minha mãe foi uma pessoa maravilhosa.
- Você é um rapaz de sorte, hein? Acho que essa é a sorte do acaso. Deus gosta de jogar com a gente, não gosta?
- Você acredita em Deus? É uma pessoa religiosa, Toni?
- Não sei. Talvez haja um Deus. Se houver, ele tem um senso de humor estranho, não é mesmo? Alette é religiosa. Ela é quem vai sempre à igreja, regularmente.
- E você?
Toni soltou uma gargalhada breve.
- Ora, essa! Se ela está lá, eu também estou.
- Toni, você acha que é correto matar alguém?
- Não, claro que não!
- Então...
- A não ser que seja preciso.
David e o Dr. Salem trocaram olhares.
- O que você quer dizer com isso?
O tom de voz mudou. Ela subitamente se colocou na defensiva.
- Ora, você sabe, quando a gente tem de se proteger! Se alguém estiver machucando a gente. - Ela estava ficando agitada. - Se algum palerma estiver tentando fazer sujeira com a gente.
- Ela estava ficando histérica.
- Toni...
Ela começou a soluçar.
- Por que eles não me deixam em paz? Por que tinham de...? - Estava berrando.
- Toni...
Silêncio.
- Toni...
Nada.
- Ela se foi. Eu gostaria de despertar Ashley - disse o Dr. Salem.
David soltou um suspiro.
- Tudo bem.
Alguns minutos depois, Ashley estava abrindo os olhos.
- Como está se sentindo? - perguntou David.
- Cansada. Eu... foi tudo bem?
- Foi. Falamos com Alette e Toni. Elas...
- Eu não quero saber.
- Tudo bem. Por que não vai descansar agora, Ashley? Voltarei à tarde para vê-la.
Eles esperaram até a carcereira levá-la embora.
- Você precisa chamá-la ao banco, David. Isso há de convencer qualquer júri no mundo inteiro de que... - disse o dr. Salem.
- Já pensei muito nisso - falou David. - Acho que não posso.
O Dr. Salem olhou para ele um instante.
- Por que não?
- Brennan, o advogado de acusação, é cruel. Ele a destroçaria. Eu não posso correr esse risco.
Dois dias antes do início das preliminares do julgamento, David e Sandra estavam jantando com os Quiller.
- Nós nos hospedamos no Wyndham Hotel - falou David. - O gerente me fez um favor especial. Sandra vai ficar comigo. A cidade está mais superlotada do que se poderia imaginar.
- E se já está confuso agora - disse Emily -, imagine como vai ficar quando o julgamento começar!
Quiller olhou para David.
- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?
David balançou a cabeça.
- Eu preciso tomar uma grande decisão: se levo Ashley ao banco ou não.
- Essa decisão é difícil! - falou Jesse Quiller - Vai ser ruim se você a levar, e também se não a levar. O problema é que Brennan vai construir uma imagem de Ashley Paterson como um monstro sádico e assassino. Se você não a levar ao banco, esta é a imagem que os jurados terão em mente quando se recolherem à sala do júri para chegar ao veredito. Por outro lado, pelo que você diz, se levar Ashley ao banco, Brennan poderá destrui-la.
- Brennan vai levar todos os seus peritos médicos para desmoralizar os distúrbios de personalidade múltipla.
- Você vai precisar convencê-los de que é verdade.
- É isso o que pretendo fazer - falou David. - Sabe o que me incomoda, Jesse? As piadas. A última que anda circulando é que eu quis mudar o lugar do julgamento, a fim de assegurar a justiça, mas desisti porque não há um lugar sequer onde Ashley ainda não tenha matado alguém. Você se lembra de quando Johnny Carson tinha um programa na televisão? Ele era engraçado, e sempre manteve uma postura cavalheiresca. Agora, os comediantes dos programas que vão ao ar à noite são todos maliciosos. O humor que fazem à custa dos outros é selvagem.
- David?
- Diga.
- Vai piorar ainda mais - disse Jesse Quiller, tranquilamente.
Na noite anterior ao seu comparecimento ao tribunal, David Singer não conseguia dormir. Não podia impedir que os pensamentos negativos lhe rondassem a cabeça. Quando, finalmente, Caiu no sono, ouviu uma voz dizendo: Você deixou a sua última cliente morrer e se também deixar esta agora morrer?
Ele se sentou na cama, molhado de suor.
Sandra abriu os olhos.
- Você está bem?
- Estou. Não. Que diabos estou fazendo aqui? Tudo que eu precisava fazer era dizer não para o Dr. Paterson.
Sandra apertou-lhe o braço e disse baixinho:
- E por que você não disse?
Ele grunhiu:
- Você está certa. Eu não podia.
- Tudo bem, então. Agora, que tal dormir um pouco para estar bem-disposto amanhã de manhã?
- É uma excelente idéia.
Ele passou o resto da noite acordado.
A juíza Williams estava certa quanto à mídia. Os repórteres eram incansáveis. Chegavam jornalistas de toda parte do mundo, ávidos por cobrir a história de uma bela jovem que estava sendo julgada como uma assassina maníaca que mutilava sexualmente suas vitimas. O facto de Mickey Brennan estar proibido de citar os nomes de Jim Cleary e Jean Claude Parent no julgamento foi frustrante, mas a mídia resolveu o problema por ele. Os programas de entrevistas na televisão, as revistas e os jornais todos traziam histórias sensacionalistas dos cinco assassinatos acompanhados de castrações. Mickey Brennan estava satisfeito.
Quando David chegou ao tribunal, os jornalistas correram para entrevistá-lo. Ele foi cercado.
- Sr. Singer, ainda trabalha para a Kincaid, Tumer, Rose &Ripley...?
- Olhe para cá, Sr. Singer...
- É verdade que o senhor foi demitido por aceitar este caso...?
- Poderia nos dizer algumas palavras sobre Helen Woodman? O senhor foi o advogado no processo por assassinato...?
- Ashley Paterson disse por que ela fez isso...?
- O senhor vai levar sua cliente ao banco dos réus...?
- Nada a declarar - disse David, rispidamente.
Quando Mickey Brennan chegou ao estacionamento do fórum, seu carro foi instantaneamente cercado pelos jornalistas.
- Sr. Brennan, como acha que vai ser o julgamento...?
- O senhor já processou algum alter ego antes...?
Brennan abriu um sorriso simpático.
- Não. Mal posso esperar para falar com todas as rés. - Ele obteve a gargalhada que queria. - Se elas forem em número suficiente, podem até formar um clube. - Mais uma gargalhada.
- Eu preciso entrar. Não quero que nenhuma das rés tenha de esperar por mim.
O exame do júri teve início com a juíza Williams fazendo perguntas genéricas aos jurados em potencial. Quando ela terminou, foi a vez da defesa; e depois, da promotoria.
Para os leigos, a escolha de um júri parece simples: Escolha o pretenso jurado que pareça simpático e dispense os demais. A bem da verdade, o exame do júri era um ritual cuidadosamente planejado.
Os advogados mais habilidosos não faziam perguntas diretas, que pudessem gerar um simples sim ou não como resposta. Faziam perguntas genéricas, que encorajassem os jurados a falar e revelar algo sobre si mesmos e seus verdadeiros sentimentos.
Mickey Brennan e David Singer tinham pautas diferentes. Neste caso, Brennan queria que a maioria dos jurados fosse constituída de homens, para que estes sentissem repugnância e ficassem chocados diante da idéia de uma mulher esfaqueando e castrando suas vitimas.
As perguntas de Brennan visavam determinar aqueles que fossem tradicionais em seu modo de pensar, menos propensos a acreditar em espíritos, duendes e pessoas que alegassem ter alteres habitando o âmago de seu ser. David usou a abordagem oposta.
- Sr. Harris, correto? Eu sou David Singer. Estou representando a ré. Já tomou parte num júri antes, Sr. Harris?
- Não.
- Fico-lhe grato por dedicar seu tempo e sua atenção a este serviço.
- Deve ser interessante, um grande julgamento de assassinato como este!
- Perfeitamente. Acho que vai ser, mesmo.
- Eu estou ansioso para ver
- Está ansioso, então?
- Ora, sem dúvida!
- Onde trabalha, Sr. Harris?
- Na Siderúrgica da União.
- Eu suponho que o senhor e seus colegas tenham conversado sobre o caso Paterson.
- Conversamos, sim. De fato, conversamos.
- Isso é compreensível - falou David. - Todos parecem estar comentando sobre o caso. Qual é a opinião geral? Seus colegas de trabalho acham que Ashley Paterson é culpada?
- Oh, sim. Devo dizer que acham que ela é realmente culpada.
- E o senhor pensa da mesma forma?
- Bem, é o que parece.
- Mas o senhor está disposto a prestar atenção às provas antes de decidir?
- Sim. Estou, sim.
- O que gosta de ler, Sr. Harris?
- Não sou muito de ler. Eu gosto de acampar, caçar e pescar.
- Gosta da vida ao ar livre. Quando está acampando durante a noite e olha para as estrelas, o senhor pergunta a si mesmo se não existem outras civilizações lá no espaço?
- Está se referindo a essa maluquice de discos voadores? Eu não acredito nessa besteirada, não.
David se virou para a juíza Williams.
- Recusado, meritíssima.
Mais um interrogatório de jurado:
- O que gosta de fazer durante o seu tempo livre, Sr. Allen?
- Gosto de ler e assistir à televisão.
- Eu gosto de fazer as mesmas coisas. Ao que o senhor assiste na televisão?
- Há programas muito bons nas noites de quinta-feira. É difícil escolher. As emissoras colocam todos os programas de qualidade no mesmo horário!
- Tem razão. Isso é um absurdo! O senhor já assistiu ao Arquivo X?
- Já. Os meus filhos adoram.
- E Sabriruz, a bruxa adolescente?
- Ah, já. Nós gostamos desse também. É um bom programa.
- O que gosta de ler?
- Anne Rice, Stephen King...
Sim.
Mais um interrogatório de jurado:
- Ao que gosta de assistir na televisão, Sr. Mayer?
- Sessenta Minutos, o noticiário com Jim Lehrer, documentários...
- O que gosta de ler?
- Em geral, livros de história e política.
- Obrigado!
Não.
A juíza Tessa Williams permanecia sentada, escutando os interrogatórios, sem se deixar trair pela expressão do rosto. Mas David pôde sentir sua desaprovação todas as vezes em que a juíza olhou para ele.
Quando o último jurado foi finalmente escolhido, o painel consistia em sete homens e cinco mulheres. Brennan lançou um olhar de triunfo para David. Isso vai ser um massacre total.