Capítulo Oito


Cinco dias depois de Ashley ter voltado de Quebeque, seu pai estava ao telefone.

- Acabei de voltar

- Voltar? -Ashley precisou de um instante para se recordar

- Ah, o seu paciente na Argentina. Como vai ele?

- Vai sobreviver

- Que bom!

- Você pode vir até São Francisco para jantarmos amanhã?

Ela estremeceu diante da simples ideia de encará-lo, mas não conseguiu pensar em desculpa alguma.

- Tudo bem.

- Vamos nos encontrar no restaurante Lulu. Às oito.


Ashley estava esperando no restaurante quando o pai entrou. Mais uma vez ela percebeu os olhares de admiração estampados nos rostos das pessoas. Seu pai era um homem famoso. Ele arriscaria tudo que tinha só para...?

Ele estava à mesa.

- Que bom ver você, minha querida! Fiquei sentido pela ceia de Natal!

Ela se forçou a dizer:

- Eu também.

Ashley estava olhando para o cardápio, sem vê-lo, tentando colocar os pensamentos em ordem.

- O que você vai querer?

- Eu... Eu não estou com muita fome - disse ela.

- Você precisa comer alguma coisa. Está ficando magra demais.

- Vou querer frango, então...

Ela ficou olhando para o pai, enquanto ele fazia o pedido, e imaginou se teria coragem de comentar sobre o assunto.

- Como foram as coisas em Quebeque?

- Tudo muito interessante - disse Ashley. - A cidade é linda.

- Precisamos ir lá juntos uma hora dessas.

Ela tomou uma decisão e tentou manter o tom de voz o mais à vontade que conseguiu.

- Precisamos, sim. A propósito... Em junho último eu fui à reunião de dez anos de formatura da minha turma do segundo grau em Bedford.

Ele assentiu.

- E gostou?

- Não. - Ela falou devagar, escolhendo as palavras com cuidado. - Eu... Descobri que no dia seguinte à nossa partida para Londres, o corpo de Jim Cleary... Foi encontrado. Ele foi esfaqueado... E castrado. - Ela ficou sentada, olhando para ele, esperando uma reação.

O Dr. Paterson franziu o cenho.

- Cleary? Ah, sim! Aquele rapaz que vivia atrás de você! Eu a salvei das mãos dele, não salvei?

O que significaria aquilo? Seria uma confissão? Ele a teria salvado de Jim Cleary matando-o?

Ashley respirou profundamente e prosseguiu.

- Dennis Tibble foi assassinado da mesma forma. Foi esfaqueado e castrado. - Ela ficou olhando para o pai, enquanto ele pegava um pãozinho e passava a manteiga com delicadeza.

Quando ele finalmente se pronunciou, disse:

- Não me surpreende, Ashley. As pessoas ruins costumam encontrar o fim que merecem.

E ali estava um médico falando, um homem dedicado a salvar vidas. Eu jamais vou entendê-lo, pensou Ashley. E nem sei se quero. Quando o jantar terminou, Ashley não tinha conseguido chegar muito perto da verdade.


- Eu gostei muito de Quebeque, Alette. Eu gostaria de voltar um dia. Você se divertiu? - disse Toni.

- Eu gostei dos museus. - falou Alette, timidamente.

- Você já telefonou para o seu namorado em São Francisco?

- Ele não é meu namorado.

- Aposto que você quer que ele seja, não é?

- Fosse. Talvez.

- Por que não liga para ele?

- Acho que não ficaria bem eu...

- Ligue.

Eles marcaram para se encontrar no museu De Young.

- Senti saudade de você - falou Richard Melton. - Como foram as coisas em Quebeque?

- Va bene.

- Eu gostaria de ter ido com você.

Talvez um dia, pensou Alette, esperançosa.

- Como está indo a sua pintura?

- Nada mal. Acabei de vender um dos meus quadros para um colecionador muito conhecido.

- Fantástico! - Ela ficou satisfeita. E não conseguiu deixar de pensar. É tão diferente quando estou com ele! Se fosse qualquer outra pessoa, eu pensaria: E quem teria o mau gosto de dar algum dinheiro pelos seus quadros? Ou Não vá largar o seu emprego ou uma centena de outros comentários cruéis. Mas não faço isso com Richard.

Alette sentiu uma incrível sensação de liberdade, como se tivesse encontrado a cura para uma doença debilitante.


Eles resolveram almoçar no museu.

- O que você vai querer? - perguntou Richard. – O rosbife daqui é ótimo.

- Eu sou vegetariana.

- Tudo bem.

- Vou comer uma salada. Obrigada!

Uma garçonete jovem e atraente veio atendê-los.

- Oi, Richard!

- Oi, Bemice!

Inesperadamente, Alette sentiu uma pontada de ciúmes. Sua reação a surpreendeu.

- Vocês já querem fazer o pedido?

- Por favor. A Senhorita Peters vai querer uma salada, e eu vou comer um sanduíche de rosbife.

A garçonete estava analisando Alette. Ela está com ciúmes de mim? Indagou Alette a si própria. Quando a garçonete se foi, Alette falou:

- Que moça bonita! Você a conhece bem? - Ela corou imediatamente. Eu gostaria de não ter feito esta pergunta.

Richard sorriu.

- Eu venho sempre aqui. No início, quase não tinha dinheiro. Eu pedia um sanduíche, e Berenice me trazia um banquete. Ela é ótima.

- Ela parece ser muito legal - falou Alette. E pensou: Ela tem as coxas grossas.

Depois de fazerem o pedido, eles conversaram sobre pintores.

- E um dia eu quero ir a Giverny - disse Alette -, onde Monet pintava.

- Você sabia que Monet começou como caricaturista?

- Não.

- É verdade. Depois ele conheceu Boudin, que virou seu professor e o convenceu a começar a pintar ao ar livre. Existe uma história interessante sobre isso. Monet ficou tão aficionado por pintar fora do ateliê, que quando resolveu reproduzir a imagem de uma mulher num jardim, numa tela com quase três metros de altura, mandou cavar uma vala no meio do jardim para poder erguer ou baixar a tela com polias. Esse quadro está no Museu d'Orsay, em Paris.

O tempo passou rápida e alegremente.


Depois do almoço, Alette e Richard passearam pelas diversas mostras do museu. Havia mais de quarenta mil objetos na coleção, tudo desde artesanato egípcio antigo até pintura contemporânea norte-americana.

Alette se sentia radiante por estar na companhia de Richard e por não ter nenhum pensamento negativo. Che cosa significa? É um guarda uniformizado se aproximou deles.

- Boa tarde, Richard!

- Boa tarde, Brian! Esta é minha amiga, Alette Peters. Brian Hill.

Brian falou para Alette:

- Está gostando do museu?

- Ah, sim. É maravilhoso.

- Richard está me ensinando a pintar - disse Brian.

Alette olhou para Richard.

- É mesmo?

Richard falou, com modéstia:

- Ora, eu só o estou orientando!

- Ele está fazendo mais do que isso, senhorita. Eu sempre quis ser pintor. Foi por isso que aceitei este emprego no museu, porque adoro arte. Enfim, Richard vem sempre aqui, e é pintor. Quando vi o trabalho dele, pensei: "Quero ser como ele". Então, perguntei se ele não queria me dar aulas, e ele tem sido um ótimo professor! A senhorita já viu alguns dos quadros dele?

- Já vi, sim - disse Alette. - São magníficos.

Quando os dois se afastaram de Brian, Alette falou:

- É muito legal da sua parte fazer uma coisa dessas, Richard.

- Eu gosto de fazer coisas pelas pessoas - e ele estava olhando para Alette.

Assim que saíram do museu, Richard falou:

- Meu companheiro de quarto foi a uma festa hoje à noite. Por que não damos um pulinho no meu apartamento? - Ele sorriu. - Eu gostaria de lhe mostrar alguns dos meus quadros.

Alette apertou a mão dele.

- Ainda não, Richard.

- Como você quiser. Vamos nos ver no fim de semana que vem?

- Vamos.

E ele não tinha ideia do quanto ela estava ansiando por isso.

Richard caminhou junto com Alette até o estacionamento onde ela havia deixado o carro. Ele ficou acenando, enquanto ela partia.

Quando estava deitada para dormir naquela noite, Alette pensou: como se fosse um milagre. Richard me libertou. Ela adormeceu, sonhando com ele.


As duas da madrugada, o companheiro de quarto de Richard Melton, Gary, chegou de uma festa de aniversário. O apartamento estava às escuras. Ele acendeu as luzes da sala.

- Richard?

Foi em direção ao quarto. À porta, ele olhou para dentro do cômodo e teve ânsias de vomito.


- Acalme-se, meu filho. - O polícia Whittier olhou para a figura que tremia sentada na poltrona. - Agora, vamos repassar toda a história. Ele tinha inimigos, alguém que o detestava a ponto de fazer uma coisa dessas?

Gary engoliu em seco.

- Não. Ninguém... Todo mundo gostava de Richard.

- Existe alguém que não gostava. Há quanto tempo você e ele estavam juntos?

- Dois anos.

- Vocês eram amantes?

- Pelo amor de Deus! - disse Gary, indignado. - Não. Éramos amigos, compartilhávamos o apartamento por uma questão financeira.

O polícia Whittier olhou ao redor do pequeno ambiente.

- Com toda a certeza, não foi roubo - disse. - Não há o que roubar por aqui. O seu companheiro de quarto estava saindo com alguém, estava tendo algum romance?

- Não... Ou melhor, sim. Ele andava interessado numa garota. Acho que estava começando a gostar dela.

- Você sabe o nome dela?

- Sei. Alette. Alette Peters. Ela trabalha em Cupertino.

O polícia Whittier e seu parceiro Reynolds se entreolharam.

- Cupertino?

- Meu Deus! - disse Reynolds.


Trinta minutos depois, o polícia Whittier estava ao telefone com o comissário Dowling.

- Comissário, achei que o senhor gostaria de saber que estamos com um assassinato aqui com o mesmo modus operandi que vocês tiveram em Cupertino: vários ferimentos causados por objeto contundente pontiagudo e castração.

- Meu Deus!

- Acabei de ter uma conversa com o FBI. O computador deles mostra que houve três castrações com morte muito semelhantes a esta. A primeira ocorreu em Bedford, na Pensilvânia, cerca de dez anos atrás, a segunda com um homem chamado Dennis Tibble, que foi o seu caso, depois houve o mesmo modus operandi em Quebeque e agora este.

- Não faz sentido. Pensilvânia... Cupertino... Quebeque... São Francisco... Há alguma conexão?

- Estamos tentando encontrar. É necessário passaporte para ir a Quebeque. O FBI está fazendo uma verificação cruzada para ver se alguém que tenha estado em Quebeque na época do Natal estava em alguma destas outras cidades à época dos assassinatos...


Quando a mídia ouviu rumores do que estava acontecendo, suas histórias se espalharam pelas primeiras páginas do mundo inteiro:


"MANÍACO ASSASSINO À SOLTA..."


Em todas as redes, psicólogos arrogavam-se o poder de analisar os assassinatos:

"... e todas as vitimas eram homens. Devido à forma como eles foram esfaqueados e castrados, o autor seria indubitavelmente um homossexual que..."

"... portanto, conseguindo encontrar uma conexão entre as vitimas, a polícia acabará descobrindo que tudo isso foi obra de uma amante desprezada por esses homens..."

"... mas eu diria tratar se de assassinatos aleatórios, cometidos por alguém cuja mãe fosse dominadora..."


No sábado de manhã, o polícia Whittier telefonou de São Francisco para o delegado Blake.

- Delegado, tenho novidades.

- Diga.

- Acabo de receber um telefonema do FBI. Cupertino consta como residência de uma norte-americana que estava em Quebeque na data do assassinato de Parent.

- Muito interessante! E qual é o nome dela?

- Paterson. Ashley Paterson.


Às seis horas daquela mesma tarde, o delegado Sam Blake tocou a campainha do apartamento de Ashley Paterson. Ainda diante da porta fechada, ela ouviu a própria pergunta proferida com cautela:

- Quem é?

- Delegado Blake. Eu gostaria de conversar com a Senhorita Paterson.

Houve um silêncio prolongado e, em seguida, a porta foi aberta.

Ashley estava ali de pé, com uma expressão de alerta no rosto.

- Posso entrar?

- Pois não. - Seria algo sobre o meu pai? Preciso tomar cuidado. Ashley conduziu o delegado a um sofá. - Em que posso ser útil, delegado?

- A senhorita se importaria de responder a algumas perguntas?

Ashley se ajeitou no sofá, pouco à vontade.

- Eu... Eu não sei. Estou sob suspeita de alguma coisa?

Ele lhe abriu um sorriso reconfortante.

- Nada disso, Senhorita Paterson. Só uma questão de rotina. Estamos investigando alguns assassinatos.

- Eu não sei nada de assassinato algum - apressou-se em dizer. Teria se apressado demais?

- A senhorita esteve em Quebeque recentemente, não esteve?

- Estive.

- Conhece Jean Claude Parent?

- Jean Claude Parent? - Ela pensou um instante. - Não. Nunca ouvi falar. Quem é?

- É dono de uma joalheria em Quebeque.

Ashley balançou a cabeça.

- Não comprei nenhuma jóia em Quebeque.

- A senhorita trabalhava com Dennis Tibble.

Ashley sentiu o medo retornar. Aquilo tinha a ver com o seu pai. Ela falou, cautelosa:

- Eu não trabalhava com ele. Dennis trabalhava na mesma empresa que eu.

- Certo. A senhorita costuma ir a São Francisco, não é?

Ashley ficou a imaginar onde aquilo poderia acabar. Cuidado!

- De vez em quando, sim.

- Alguma vez teve a oportunidade de conhecer um artista plástico chamado Richard Melton?

- Não. Eu não conheço ninguém com esse nome.

O delegado Blake ficou sentado, estudando Ashley, frustrado.

- Senhorita Paterson, se importaria de vir à delegacia de polícia para fazer um teste poligráfico? Se desejar, pode chamar o seu advogado e...

- Não preciso de um advogado. Farei o teste com prazer.


O perito em poligrafia se chamava Keith Rosson e era um dos melhores. Teve de cancelar um compromisso para jantar, mas ficou satisfeito em poder atender Sam Blake.

Ashley estava sentada numa cadeira, conectada aos fios do polígrafo. Rosson já vinha conversando com ela fazia quarenta e cinco minutos, obtendo informações sobre o seu passado e avaliando o seu estado emocional. Agora estava pronto para começar.

- Está se sentindo confortável?

- Estou.

- Bom. Vamos começar - Ele apertou um botão. - Qual é o seu nome?

- Ashley Paterson.

Os olhos de Rosson passavam de Ashley para o gráfico impresso pelo polígrafo.

- Quantos anos tem, Senhorita Paterson?

- Vinte e oito.

- Onde mora?

- Na vila Via Camino, número 10. 964, em Cupertino.

- Tem emprego?

- Tenho.

- Gosta de música clássica?

- Gosto.

- Conhece Richard Melton?

- Não.

Não houve alteração do gráfico.

- Onde trabalha?

- Na Corporação Global de Computação Gráfica.

- Gosta do seu trabalho?

- Gosto.

- Trabalha cinco dias por semana?

- Trabalho.

- Conheceu Jean Claude Parent?

- Não.

O gráfico continuou sem alterações.

- Tomou café da manhã hoje?

- Tomei.

- Matou Dennis Tibble?

- Não.

As perguntas prosseguiram durante mais trinta minutos e foram repetidas três vezes, em seqüências diferentes.

Quando terminou a sessão, Keith Rosson entrou no escritório de Sam Blake e entregou-lhe o teste do polígrafo.

- Limpinha! Há menos de um por cento de chances de ela estar mentindo. Você pegou a pessoa errada.


Ashley saiu da delegacia de polícia, aliviada. Graças a Deus isso acabou! Ela estava aterrorizada com a possibilidade de eles lhe fazerem perguntas que pudessem envolver seu pai, mas isso não aconteceu. Agora ninguém vai poder associar papai a qualquer assassinato.

Ela estacionou o carro na garagem e pegou o elevador para o seu andar. Destrancou a porta, entrou e tornou a trancá-la com cuidado. Estava exausta e, ao mesmo tempo, rejubilada. Um bom banho quente, pensou. Entrou no banheiro e ficou lívida. Sobre o espelho do banheiro, alguém escrevera com batom vermelho brilhante "VOCÊ VAI MORRER".

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