27
5h45m
Os dois cavalos de corrida fizeram a curva e entraram na reta final em grande velocidade. Era a falsa aurora, o céu ainda escuro do lado oeste, e o Hipódromo Happy Valley estava pontilhado de pessoas no treino matinal.
Dunross estava montado em Buccaneer, o grande baio capão, e corria lado a lado com Noble Star, montada pelo seu jóquei principal, Tom Leung. Noble Star corria por dentro, e os dois cavalos estavam correndo bem, com bastante reserva. Então, Dunross viu o poste de chegada adiante, e teve aquele ímpeto súbito de enfiar os calcanhares no animal e derrotar o outro. O outro jóquei pressentiu o desafio e olhou para ele. Mas os dois cavaleiros sabiam que só estavam ali para se exercitar, não para apostar corrida, estavam ali apenas para confundir a oposição, portanto Dunross abafou o seu desejo quase alucinante.
Agora, os dois cavalos tinham arriado as orelhas. Seus flanços estavam molhados de suor. Ambos sentiam o freio nos dentes. E agora, bem na reta final, dirigiam-se excitadamente para o poste de chegada, a pista interna de areia de treinamento não tão rápida quanto a de grama que a rodeava, exigindo mais deles. Os dois cavaleiros estavam de pé nos estribos, o mais alto que podiam, debruçados para a frente, com a rédea curta.
Noble Star carregava menos peso. Começou a sair na frente, Dunross automaticamente usou os calcanhares e xingou Buccaneer, que apressou o passo. A brecha começou a diminuir. A euforia dele aumentou. O galope não ultrapassou mais que meia pista, portanto Dunross achou que estava seguro. Nenhum treinador adversário poderia calcular exatamente o tempo de cada um, portanto chutou com mais força e a corrida passou a ser para valer. Os dois cavalos o sabiam. Suas passadas tornaram-se maiores. Noble Star estava com o focinho à frente, e então, sentindo que Buccaneer se acercava rapidamente, ela disparou, por conta própria, e ganhou de Dunross por meio corpo.
Então, os cavaleiros diminuíram a velocidade e, à vontade, continuaram em volta da linda pista... um pedaço de verde cercado por prédios amontoados e fileiras de apartamentos que pontilhavam as encostas das montanhas. Quando Dunross acabou de trotar de novo pela reta final, interrompeu o exercício, parou junto de onde seria normalmente o círculo do vencedor, e desmontou. Deu uma palmadinha afetuosa no pescoço do potro, e jogou suas rédeas para um cavalariço. O homem subiu na sela e continuou a exercitá-lo.
Dunross distendeu os ombros, o coração batendo gostosamente, o gosto de sangue na boca. Sentia-se bem, os músculos estirados doendo agradavelmente. Cavalgara toda a sua vida. A corrida de cavalos ainda era oficialmente um esporte amador em Hong Kong. Quando era jovem, havia competido durante duas temporadas, e teria continuado, mas fora aconselhado a deixar as pistas por seu pai, naquela época tai-pan e administrador-chefe, e novamente por Alastair Struan, quando assumiu os dois cargos, que lhe ordenou que parasse de correr sob pena de demissão imediata. Assim, parará de correr, embora continuasse a exercitar os cavalos da Struan quando lhe dava na telha. E corria na madrugada, quando sentia vontade.
Era o levantar-se quando a maior parte do mundo ainda dorme, o galopar à meia-luz... o exercício e a excitação, a velocidade e o perigo que lhe desanuviavam a cabeça.
Dunross cuspiu fora o gosto enjoativo de não ter vencido. "Assim está melhor", pensou. "Poderia ter ganho de Noble Star hoje, mas o teria feito na curva, não na reta."
Outros cavalos estavam se exercitando na pista de areia, entrando no circuito, ou deixando-o. Grupos de proprietários, treinadores e jóqueis conferenciavam, ma-foos — "cavalariços" — fazendo andar os cavalos cobertos com mantas. Viu Butter-scotch Lass, a grande égua de Richard Kwang, passar por ele a meio galope, uma estrela branca na testa, machins elegantes, seu jóquei segurando firme as rédeas, parecendo tudo muito bem. No extremo oposto, Pilot Fish, o garanhão de estimação de Gornt, saiu num galope controlado, atrás de outro animal do haras da Struan, Impatience, uma potranca nova, jovem, inexperiente, adquirida recentemente nas primeiras vendas da temporada. Dunross examinou-a com ar crítico, e achou que lhe faltava resistência. "Vamos dar-lhe uma ou duas temporadas, e depois veremos", pensou. Então Pilot Fish passou violentamente por ela, que escorregou de medo por um instante, e depois saiu a persegui-lo até que seu jóquei a controlou, ensinando-lhe a galopar segundo a vontade dele.
— E então, tai-pan? — perguntou o seu treinador. Era um imigrante russo de cara curtida, duro como aço, de sessenta e tantos anos, cabelos grisalhos. Aquela era a sua terceira temporada com a Struan.
— E então, Aleksei?
— Então você ficou com o diabo no corpo e enfiou os calcanhares nele, e viu como a Noble Star disparou à frente?
— Ela é esforçada. Noble Star é esforçada, todo mundo sabe disso — replicou Dunross, calmamente.
— É, mas eu teria preferido que somente eu e você fôssemos alertados para isso hoje, e não — o homenzinho apontou um dedo calejado para os espectadores e abriu um sorriso —...e não todo vibliadok na Ásia.
Dunross devolveu o sorriso.
— Você repara demais.
— Sou pago para reparar demais.
Aleksei Travkin suplantava qualquer homem com a metade da sua idade cavalgando, bebendo, trabalhando e resistindo. Era um solitário, entre os outros treinadores. Ao longo dos anos, contara diversas histórias sobre seu passado... como a maioria das pessoas apanhadas nos grandes tumultos da Rússia e suas revoluções, da China e suas revoluções, e que agora vagavam pelas veredas da Ásia buscando uma paz que jamais poderiam encontrar.
Aleksei Ivánovitch Travkin viera da Rússia para Harbin, na Manchúria, em 1919, depois seguira trabalhando para o sul, até o Povoado Internacional de Xangai. Lá, começou a cavalgar vencedores. Como era muito bom, e sabia mais sobre cavalos do que a maioria dos homens sabem sobre si mesmos, logo se tornou treinador. Quando o êxodo aconteceu novamente, em 49, ele fugiu para o sul, desta feita para Hong Kong, onde ficou durante alguns anos, depois se mandou de novo para o sul, para a Austrália, e os circuitos de lá. Mas a Ásia o chamava, e ele voltou. Dunross estava sem treinador, na época, e ofereceu-lhe a coudelaria da Casa Nobre.
— Aceito, tai-pan — respondera ele, prontamente.
— Ainda não discutimos dinheiro — dissera Dunross.
— O senhor é um cavalheiro, e eu também. Pagar-me-á o máximo para ficar por cima... e também porque sou o melhor.
— É?
— Por que outro motivo me ofereceria o lugar? Também não gosta de perder.
A temporada passada fora boa para ambos. A primeira não fora tão boa. Os dois sabiam que a temporada que estava prestes a se iniciar seria o teste real.
Noble Star passava devagar por eles, acomodando-se, com perfeição.
— E quanto ao sábado? — perguntou Dunross.
— Ela estará se esforçando.
— E Butterscotch Lass?
— Estará se esforçando. Assim como Pílot Fish. Assim como todos os outros... em todos os oito páreos. Será uma competição muito especial. Teremos que vigiar atentamente os nossos inscritos.
Dunross concordou. Viu Gornt conversando com Sir Dunstan Barre, junto ao círculo dos vencedores.
— Vou ficar muito puto da vida se perder para Pilot Fish. Aleksei riu, depois acrescentou, mordaz:
— Nesse caso, talvez seja melhor o senhor mesmo montar Noble Star, tai-pan. Assim, poderá empurrar Pílot Fish contra o gradil, na curva, se ele representar uma ameaça, ou chicotear os olhos do seu jóquei. Não? — O velho ergueu os olhos para ele. — Não é isso o que teria feito com Noble Star hoje, se fosse um páreo de verdade?
Dunross sorriu.
— Como não era verdade, nunca saberá... não é mesmo? Um ma-foo se aproximou e saudou Travkin, entregando-lhe um bilhete.
— Recado, senhor. O Sr. Choi gostaria que o senhor examinasse as ataduras de Chardistan, quando tiver um momentinho.
— Vou já para lá. Diga a ele para pôr farelo extra na ração de Buccaneer, hoje e amanhã. — Travkin voltou a olhar para Dunross, que observava atentamente Noble Star. Franziu o cenho. — Não está pensando em cavalgar no sábado?
— Não no momento.
— Eu não o aconselharia. Dunross riu.
— Eu sei. Até amanhã, Aleksei. Amanhã exercitarei Impatience.
Abraçou-o amistosamente e foi embora.
Aleksei Travkin ficou olhando enquanto ele se afastava; seus olhos voltaram-se depois para os cavalos sob seus cuidados, e para os adversários que estavam à vista. Sabia que esse sábado seria cheio de maldade, e que Noble Star teria que ser protegida. Sorriu consigo mesmo, satisfeito por estar num jogo cujas apostas eram tão altas.
Abriu o bilhete que estava na sua mão. Era curto, escrito em russo.
"Saudações de Kurgan, Alteza. Tenho notícias de Nestorova...
Aleksei soltou uma exclamação abafada. Seu rosto ficou sem cor. "Pelo sangue de Cristo!", tinha vontade de gritar. "Ninguém na Ásia sabe que vim de Kurgan, nas planícies às margens do rio Tobol, nem que meu pai era o príncipe de Kurgan e Tobol, nem que minha querida Nestorova, minha mulher-criança de mil vidas atrás, foi engolida pela revolução enquanto eu estava com meu regimento... Juro por Deus que jamais mencionei seu nome a ninguém, nem a mim mesmo."
Releu o bilhete, em choque. "Será mais uma tortura deles, os soviéticos... os inimigos de todos os russos? Ou será de um amigo? Ah, Santo Deus, permita que seja um amigo!"
Depois de "Nestorova", o bilhete terminava:
"Por favor, encontre-me no Restaurante Dragão Verde, no beco junto à Nathan Road, 189, na sala dos fundos, às três da tarde de hoje".
Não havia assinatura.
Do outro lado do paddock, perto do poste de chegada, Richard Kwang dirigia-se para junto do seu treinador quando viu seu primo em sexto grau, Ching Sorridente, presidente da junta diretora do imenso Ching Prosperity Bank, nas arquibancadas, os binóculos dirigidos para Pilot Fish.
— Alô, Sexto Primo — cumprimentou amavelmente, em cantonense —, já comeu arroz hoje?
O velho astuto pôs-se em guarda instantaneamente.
— Não vai arrancar nenhum dinheiro de mim — falou rudemente, os lábios afastando-se dos dentes saltados que lhe davam um ar de perpétua careta sorridente.
— Por que não? — falou Richard Kwang, com a mesma rudeza. — Tenho dezessete milhões emprestados a você e...
— É, mas vencem daqui a noventa dias, e estão bem investidos. Sempre pagamos os juros de quarenta por cento — rosnou o velho.
— Seu velho osso de cachorro miserável, ajudei-o quando precisava de dinheiro! Agora chegou a hora de retribuir!
— Retribuir o quê? O quê? — cuspiu Ching Sorridente. — Retribuí a você uma fortuna, ao longo dos anos. Assumi os riscos, e você acumulou os lucros. Esse desastre todo não podia ter acontecido numa hora pior! Estou com cada tostão de cobre investido... até o último! Não sou como certos banqueiros. Meu dinheiro está sempre bem empregado.
Empregado em narcóticos, ao que constava. Claro que Richard Kwang nunca perguntara, e ninguém sabia ao certo, mas todos acreditavam que o banco de Ching Sorridente era, secretamente, uma das principais câmaras de compensação para o comércio de drogas, a maioria proveniente de Bangkok.
— Escute, primo, pense na família — começou Richard Kwang. — É apenas um problema temporário. Esses demônios estrangeiros de merda estão nos atacando. Quando isso acontece, as pessoas civilizadas têm que se unir!
— Concordo. Mas você é o culpado da corrida ao Ho-Pak. Você. É no seu banco... não no meu. Você ofendeu os sacanas, de algum modo! Estão atrás de você! Não lê os jornais? É, e você está com todo o seu dinheiro investido nuns negócios muito ruins, ao que me contaram. Você, primo, colocou a própria cabeça na canga. Arranque dinheiro daquele maldito mestiço filho de uma puta malaia do seu sócio. Ele tem bilhões... ou do Pão-Duro... — O velho repentinamente casquinou. — Darei dez por cada um que aquele velho fornicador emprestar a você!
— Se eu entrar pelo cano, o Ching Prosperity virá atrás!
— Não me ameace! — exclamou o velho, raivosamente. Seus lábios tinham permanentemente um pouco de saliva nos cantos, depois eles cobriram os dentes uma vez e separaram-se de novo na careta habitual. — Se você entrar pelo cano, não será por minha culpa... por que desejar seu terrível azar para a minha família? Não fiz nada para prejudicá-lo... por que tentar passar seu azar para mim? Se hoje... ayeeyah, se hoje seu azar transbordar e aqueles depositantes de merda começarem uma corrida ao meu banco, não durarei um dia!
Richard Kwang sentiu-se momentaneamente melhor porque o império de Ching estava igualmente ameaçado. "Bom, muito bom. Eu poderia aproveitar todos os seus negócios... especialmente a operação Bangkok." Foi então que olhou para o grande relógio que encimava o totalizador, e gemeu. Eram pouco mais de seis horas. Às dez os bancos abririam, a Bolsa de Valores abriria, e, embora já tivessem sido tomadas providências com o Blacs, o Victoria e o Banco Oriental e de Bombaim, de Kowloon, para penhorar títulos que deviam cobrir tudo, com sobra, ainda estava nervoso. E furioso. Tivera que fazer uns tratos muito duros, que não desejava cumprir.
— Vamos lá, primo, só cinqüenta milhões durante dez dias... prorrogarei os dezessete milhões por dois anos, e acrescentarei outros vinte em trinta dias.
— Cinqüenta milhões por três dias a dez por cento de juros por dia, e o empréstimo atual como garantia. E também aceitarei a escritura da sua propriedade na zona central como garantia!
— Vá foder na orelha da sua mãe! A propriedade vale quatro vezes esse valor.
Ching Sorridente deu de ombros e voltou a focalizar os binóculos em Pilot Fish.
— O preto grande vai derrotar Butterscotch Lass, também?
Richard Kwang olhou com azedume para o cavalo de Gornt.
— Só se os cretinos do meu treinador e do meu jóquei se unirem para refreá-la ou dopá-la!
— Ladrões nojentos! Não se pode confiar num só deles! Meu cavalo nunca foi classificado. Nunca. Nem chegou em terceiro. Revoltante!
— Cinqüenta milhões por uma semana... dois por cento ao dia?
— Cinco. E mais a propriedade...
— Jamais!
— Aceitarei uma fatia de cinqüenta por cento da propriedade.
— Seis por cento — rebateu Richard Kwang.
Ching Sorridente calculou o seu risco. E seu lucro potencial. O lucro seria imenso. Se o Ho-Pak não falisse. Mas, mesmo que falisse, o empréstimo seria bem coberto pela propriedade. É, o lucro seria imenso, desde que não houvesse uma corrida ao seu próprio banco. Talvez ele pudesse arriscar e penhorar alguns carregamentos futuros e levantar os cinqüenta milhões.
— Quinze por cento, e fim de papo — falou, sabendo que retiraria a oferta, ou a modificaria ao meio-dia, depois de ter visto como estava o mercado, e a corrida... e continuaria a vender ações do Ho-Pak a descoberto e obter grande lucro. — E pode incluir também Butterscotch Lass.
Richard Kwang praguejou obscenamente, e ficaram ambos barganhando, depois concordaram que os cinqüenta milhões estariam à disposição às duas horas. Em espécie. Penhoraria também a Ching Sorridente trinta e nove por cento da sua propriedade na zona central como garantia adicional, e um quarto de participação na égua. Butterscotch Lass foi o argumento decisivo para fecharem o negócio.
— E quanto ao sábado?
— Como? — disse Richard Kwang, detestando a careta e os dentes saltados.
— Nosso cavalo está no quinto páreo, heya? Ouça, Sexto Primo, talvez devêssemos fazer um arranjo com o jóquei de Pilot Fish. Refreamos o nosso animal... será o favorito... e apostaremos em Pilot Fish e Noble Star, por segurança!
— Boa idéia. Decidiremos no sábado de manhã.
— Melhor eliminar Golden Lady também, não?
— O treinador de John Chen sugeriu isso.
— Eeee, aquele idiota, deixar-se seqüestrar! Espero que você me dê a informação real sobre quem vai vencer. Também quero o vencedor!
Sorridente escarrou e cuspiu.
— Todos os deuses defequem! Esses treinadores e jóqueis nojentos! É revoltante como nos manipulam, a nós, proprietários. Quem paga os salários deles, heya?
— O Turf Club, os proprietários, mas especialmente os apostadores que estão por fora. Ouvi dizer que você esteve no Old Vic ontem à noite, jantando comida de demônio estrangeiro.
Richard Kwang sorriu de orelha a orelha. Seu jantar com Vênus Poon fora um enorme sucesso. Ela usara o novo vestido pelos joelhos de Christian Dior que ele lhe comprara, seda negra colante, e gaze por baixo. Quando a vira saltar do Rolls dele e subir os degraus do Old Vic, seu coração dera uma cambalhota, e seu Saco Secreto tremera.
Ela ficara toda sorridente ao notar o efeito da sua entrada no saguão, suas pesadas pulseiras de ouro brilhando, e insistira em subir a ampla escadaria, ao invés de usar o elevador. O peito dele ficara apertado de alegria abafada e terror. Cruzaram por entre os comensais formais e bem-vestidos, europeus e chineses, alguns a rigor... casais, turistas e nativos, homens em jantares de negócios, amantes e candidatas a amantes de todas as idades e nacionalidades. Ele estava usando um terno novo e escuro de Savile Row, da caxemira mais leve e mais cara. Enquanto se dirigiam para a mesa especial que lhe custara uma vermelha — cem dólares —, acenara para muitos amigos, e gemera intimamente quatro vezes ao ver quatro amigos chineses muito chegados com as esposas, empetecadas e cheias de jóias. As mulheres o fitaram gelidamente.
Richard Kwang estremeceu. "As mulheres são uns verdadeiros dragões, e todas iguais", pensou. "Oh, oh, oh! E as nossas mentiras soam falsas aos seus ouvidos antes mesmo que as pronunciemos." Ainda não fora para casa enfrentar Mai-ling, que a essa altura já saberia de Vênus Poon por intermédio de pelo menos três grandes amigas. Ele deixaria que ela esbravejasse, berrasse, chorasse e arrancasse os cabelos por algum tempo, para soltar o vento do diabo, e depois diria que os inimigos haviam enchido sua cabeça de veneno... como podia acreditar naquelas mulheres tão maldosas?... e depois contar-lhe-ia humildemente sobre o casaco de vison comprido que encomendara há três semanas e que iria buscar a tempo de ela poder usá-lo para as corridas no sábado. E então haveria paz em casa... até a próxima vez.
Riu da sua perspicácia em ter encomendado o vison. O fato de tê-lo encomendado para Vênus Poon, e ter prometido naquela manhã, no calor do seu abraço, entregá-lo à noite a Mai-ling para que ela o usasse nas corridas de sábado, não o incomodava nem um pouco. "É bom demais para aquela piranha, afinal de contas", pensava. Custara-lhe quarenta mil HK. "Comprarei outro para ela. Talvez possa arranjar um de segunda mão..."
Viu Ching Sorridente olhando de esguelha para ele.
— O quê?
— Vênus Poon, heya?
— Estou pensando em produzir filmes e fazer dela uma estrela — falou altivamente, orgulhoso da história que inventara como parte da desculpa para a mulher.
Ching Sorridente ficou impressionado.
— Eeee, mas isso é um negócio arriscado, heya?
— É, mas há meios de... pôr no seguro o risco. Deu uma piscadela safada.
— Ayeeyah, quer dizer um filme pornô? Oh, avise-me quando marcar a produção. Posso investir alguma coisa. Vênus Poon nua! Ayeeyah, a Ásia inteira pagaria para ver! Que tal ela é na cama?
— Perfeita! Agora que a eduquei. Era virgem da primeira...
— Que sorte! — falou Ching Sorridente, depois acrescentou: — Quantas vezes escalou as Muralhas?
— Ontem? Três vezes... e cada vez mais forte do que a anterior! — Richard Kwang inclinou-se para a frente. — O Coração de Flor dela é o melhor que já vi. È. E o seu triângulo! Lindos cabelos sedosos e os lábios internos rosados e delicados. Eeee, e o seu Portão de Jade... o seu Portão de Jade tem mesmo o formato de um coração, e a sua "polegada quadrada" é de um oval perfeito, rosada e cheirosa, e a Pérola no Degrau também é rosada...
Richard Kwang sentiu que começava a suar ao lembrar-se de como ela abrira as pernas no sofá e lhe entregara uma grande lente de aumento.
— Tome — dissera com orgulho. — Examine a deusa que o seu monge careca está prestes a adorar.
E ele o fizera. Meticulosamente.
— A melhor parceira de cama que já tive — continuou Richard Kwang, animado, exagerando a verdade. — Estava pensando em comprar-lhe um grande anel de diamantes. A pobre Fala Macia chorou hoje de manhã quando saí do apartamento que lhe dei. Estava jurando que ia cometer suicídio, porque está apaixonada por mim.
Usou a palavra inglesa.
— Eeee, mas você é um homem de sorte!
Ching Sorridente não falava nada de inglês, exceto as palavras de amor. Sentiu um par de olhos fitos nas suas costas, e olhou para trás. Na seção seguinte das arquibancadas, a uns cinqüenta metros de distância, ligeiramente acima dele, estava o policial demônio estrangeiro Grande Montanha de Bosta, o odiado chefe do DIC de Kowloon. Os frios olhos de peixe o fitavam, e um binóculo pendia do pescoço do homem. Ayeeyah, resmungou Ching consigo mesmo, sua mente dardejando pelos diversos controles, armadilhas e saldos que protegiam sua principal fonte de renda.
— Hem? O que é? O que houve com você, Ching Sorridente?
— Nada. Só estou com vontade de mijar. Mande os papéis para mim às duas horas, se quiser meu dinheiro.
Aborrecido, virou-se para ir ao banheiro, perguntando-se se a polícia tinha conhecimento da chegada iminente do demônio estrangeiro da Montanha Dourada, um Grande Tigre dos Pós Brancos com o exótico nome de Vincenzo Banastasio.
Escarrou e cuspiu ruidosamente. "Tanto se me dá que saibam ou não. Não podem tocar em mim, sou apenas um banqueiro."
Robert Armstrong notara que Ching Sorridente estava conversando com o banqueiro Kwang e tinha certeza de que o par estava aprontando alguma. A polícia estava bem por dentro dos murmúrios sobre Ching, seu Prosperity Bank e o tráfico de narcóticos, mas até agora não tinha nenhuma prova concreta implicando-o, ou ao seu banco, nem mesmo provas circunstanciais que fizessem jus a detenção, interrogatório e deportação sumária.
"Bem, um dia desses ele vai escorregar", pensou Robert Armstrong, calmamente, e voltou a focalizar o binóculo em Pilot Fish, em Noble Star, em Butterscotch Lass, depois em Golden Lady, a égua de John Chen. Qual deles estaria em forma para vencer?
Bocejou e espreguiçou-se, cansado. Fora outra longa noite, e ele ainda não fora para a cama. Bem na hora em que estava saindo do QG da polícia em Kowloon, na véspera, houvera um alvoroço danado por causa de mais um telefonema anônimo avisando que John Chen fora visto nos Novos Territórios, na minúscula aldeia pesqueira de Sha Tau Kwok, que dividia em dois a ponta oriental da fronteira.
Ele correra para lá com uma equipe e revistara a aldeia, choça por choça. A revista tivera que ser feita com muita cautela, pois toda a área da fronteira era muito sensível, especialmente na aldeia, onde havia um dos três postos de controle da fronteira. Os aldeões eram uma turma durona, inflexível e belicosa, que queria ser deixada em paz. Especialmente pela polícia dos demônios estrangeiros. A revista provara ser apenas mais um alarme falso, embora tivessem descoberto dois alam-biques ilegais, uma pequena fábrica de heroína que transformava ópio bruto em morfina, e daí em heroína, e desmantelassem seis antros de jogatina ilegais.
Quando voltara ao QG de Kowloon, soubera de outro telefonema sobre John Chen, desta feita no lado de Hong Kong, em Wanchai, perto do Glessing's Point, na zona das docas. Aparentemente, John Chen fora visto sendo enfiado para dentro de um cortiço, com uma atadura suja cobrindo a orelha direita. Dessa vez, a pessoa que tinha ligado deixara o nome e o número de sua carteira de motorista, para poder reclamar a recompensa de cinqüenta mil HK oferecida pela Struan e pelos Chens da Casa Nobre. Novamente, Armstrong reunira unidades para cercar a área e dirigira a revista meticulosamente. Já eram cinco da madrugada quando cancelara a operação e dispensara os homens.
— Brian, vou direto para a cama — falou. — Que desperdício de outra noite fang-pi.
Brian Kwok também bocejou.
— É. Mas já que estamos deste lado, que tal tomarmos café no Para e depois irmos dar uma espiada nos exercícios matinais?
Imediatamente, quase todo o cansaço de Robert Armstrong se dissipou.
— Grande idéia!
O Restaurante Para, na Wanchai Road, perto do Hipódromo Happy Valley, estava sempre aberto. A comida era excelente, barata, e era um local de encontro costumeiro dos tríades e suas garotas. Quando os dois policiais entraram na sala grande, barulhenta, tumultuada, fez-se um súbito silêncio no ambiente. O proprietário, Ko Um Pé Só, veio mancando até eles, e acompanhou-os com um sorriso até a melhor mesa da casa.
— Dew neh loh moh para você também, Velho Amigo — falou Armstrong, sombriamente, e acrescentou algumas obscenidades escolhidas a dedo em cantonense de sarjeta, fitando intencionalmente o grupo mais próximo de jovens rufiões boquiabertos, que nervosamente lhe viraram as costas.
Ko Um Pé Só riu, mostrando os dentes estragados.
— Ah, senhores, honram o meu pobre estabelecimento. Dim sutn?
— Por que não?
Dim sum — "pequenos alimentos" — eram pequenos envelopes de massa recheados de camarões, legumes moídos ou carnes diversas e depois cozidos ou fritos, e comidos com um pouco de soja, de galinha e outras carnes em vários molhos ou pastéis de todos os tipos.
— Vossas Excelências vão ao prado?
Brian Kwok fez que sim com a cabeça, bebericando seu chá de jasmim, correndo os olhos pelos fregueses, deixando muitos deles nervosos.
— Quem vai ganhar o quinto páreo? — perguntou.
O dono do restaurante hesitou, sabendo que era melhor contar a verdade. Falou cautelosamente, em cantonense:
— Dizem que nem Golden Lady, Noble Star, Pilot Fish ou Butterscotch Lass ainda... ainda não se comentou que um tenha vantagem sobre o outro. — Viu os frios olhos castanho-escuros pousarem nele, e tentou não estremecer. — Por todos os deuses, é o que dizem!
— Ótimo. Virei aqui sábado de manhã. Ou mandarei meu sargento. Então você poderá sussurrar no ouvido dele se há boatos de jogo sujo. É. E se por acaso um desses for dopado ou cortado, e se eu não for informado no sábado de manhã... talvez as suas sopas fiquem apodrecendo por cinqüenta anos.
Um Pé Só sorriu nervosamente.
— Sim, senhor. Deixe-me agora tratar da sua comi...
— Antes de ir, quais as últimas fofocas sobre John Chen?
— Nenhuma. Ah, não há nenhuma, Honrado Senhor — disse o homem, o lábio superior perolado de suor. — O Porto Fragrante está tão limpo de informações sobre ele quanto um tesouro de virgem. Nada, senhor. Nem um peido de cachorro ou um rumor verdadeiro, embora todos estejam procurando. Ouvi dizer que há um grande prêmio extra.
— Como? Quanto?
— Cem mil dólares extras, se for descoberto dentro de três dias.
Os dois policiais soltaram um assobio.
— Oferecidos por quem? — quis saber Armstrong. Um Pé Só deu de ombros, os olhos duros.
— Ninguém sabe, senhor. Dizem que por um dos Dragões... ou todos os Dragões. Cem mil, e promoção, se for dentro de três dias... se for descoberto vivo. Por favor, agora deixe-me ir tratar da sua comida.
Ficaram olhando enquanto ele se afastava.
— Por que pressionou Um Pé Só? — perguntou Armstrong.
— Estou cheio da hipocrisia bajuladora dele... e de todos esses bandidinhos nojentos. A lei do chicote resolveria o nosso problema das tríades.
Armstrong pediu uma cerveja.
— Quando dei duro no sargento Tang-po não pensei que ia ter resultados tão rápidos. Cem mil é um bocado de grana! Isso não pode ser apenas um simples seqüestro. Santo Deus, é recompensa às pampas! Tem que haver algo de especial sobre John.
— É. Se for verdade.
Mas não haviam chegado a nenhuma conclusão, e quando chegaram ao prado Brian Kwok ligara para o QG e agora Armstrong focalizava o binóculo na égua. Butterscotch Lass estava deixando a pista para voltar para cima do morro, para os está-bulos. "Parece em grande forma", pensou. "Todos parecem. Merda, qual deles?"
— Robert?
— Oh, alô, Peter.
Peter Marlowe sorriu para ele.
— Está acordando cedo ou indo dormir tarde?
— Dormindo tarde.
— Notou como Noble Star disparou sem que seu jóquei fizesse nada?
— É bom observador.
Peter Marlowe sorriu, balançou a cabeça e indicou um grupo de homens que rodeavam um dos cavalos.
— Donald McBride me contou.
— Ah! — McBride era um organizador de corridas imensamente popular, um empresário imobiliário eurasiano que viera de Xangai para Hong Kong em 49. — Ele já lhe deu o nome do vencedor? Se alguém souber, esse alguém é ele.
— Não, mas me convidou para o seu camarote, no sábado. Vai correr?
— Mas, o que é isso? Vejo você no camarote dos sócios... eu não transo com a gente bem!
Os dois ficaram observando os cavalos durante algum tempo.
— Golden Lady parece bem.
— Todos parecem.
— Ainda nenhuma notícia de John Chen?
— Nada. — O foco do binóculo de Armstrong pegou Dunross, que conversava com alguns administradores. A pouca distância estava o guarda do sei que Crosse designara para vigiá-lo. "Que chegue logo a sexta-feira!", pensou o policial. "Quanto mais cedo virmos as tais pastas de Alan Medford Grant, melhor." Sentiu-se levemente indisposto, e não conseguiu chegar à conclusão se era de apreensão pelos papéis, pela Sevrin, ou se era apenas fadiga. Já ia estender a mão para pegar um cigarro... deteve-se. "Não precisa de um cigarro", ordenou para si mesmo. — Devia parar de fumar, Peter. Faz mal.
— É, devia mesmo. Como você está se saindo?
— Sem problema. O que me faz lembrar, Peter, que o Velho aprovou sua viagem pela estrada da fronteira. Depois de amanhã, sexta-feira, seis da manhã em ponto no QG de Kowloon. Está bem?
O coração de Peter Marlowe deu um salto. Finalmente poderia olhar para a China continental, para o desconhecido. Em toda a terra fronteiriça dos Novos Territórios havia apenas um mirante acessível que os turistas podiam usar para olhar para a China, mas a montanha ficava tão longe que não se podia ver grande coisa. Mesmo de binóculo.
— Espetacular! — exclamou, eufórico. Seguindo a sugestão de Armstrong, escrevera para o comissário, solicitando aquela permissão. A estrada da fronteira ia de costa a costa. Era proibida a todo o tráfego e todas as pessoas... exceto os habitantes locais, em certas áreas. Era uma vasta extensão de terra de ninguém, entre a colônia e a China. Uma vez por dia, era patrulhada sob circunstâncias muito controladas. O governo de Hong Kong não tinha nenhuma vontade de balançar o coreto da República Popular da China.
— Uma condição, Peter: não a mencione, nem fale nela por mais ou menos um ano.
— Tem a minha palavra. Armstrong abafou outro bocejo.
— Você vai ser o único ianque que já andou por ela, que talvez jamais andará.
— Fantástico! Obrigado.
— Por que se naturalizou americano?
Depois de uma pausa, Peter Marlowe falou:
— Sou um escritor. Toda a minha renda vem de lá, quase toda ela. Agora, as pessoas estão começando a ler o que escrevo. Talvez eu queira ter o direito de criticar.
— Já esteve em algum país da Cortina de Ferro?
— Ah, já. Estive em Moscou em julho, para o festival de cinema. Um dos roteiros que escrevi foi o do candidato americano. Por quê?
— Por nada — replicou Armstrong, lembrando-se do trânsito livre de Bartlett e Casey para Moscou. Sorriu. — Perguntei por perguntar.
— Um favor merece outro em troca. Ouvi uma fofoca sobre as armas de Bartlett.
— É? — perguntou Armstrong, instantaneamente alerta. Peter Marlowe era uma figura muito rara em Hong Kong, pelo fato de cruzar as barreiras sociais e ser aceito como amigo por muitos grupos normalmente hostis.
— Provavelmente não passa de conversa fiada, mas alguns amigos têm uma teoria...
— Amigos chineses?
— É. Acham que as armas são um carregamento para amostra, destinado a um dos nossos cidadãos piratas chineses, pelo menos, um com passado de contrabandista, para ser entregue a um dos grupos de guerrilheiros que operam no Vietnam do Sul, os vietcongues.
Armstrong resmungou.
— Excesso de imaginação, Peter. Hong Kong não é local para trânsito de armas.
— Sei, mas esse carregamento era especial, o primeiro. Foi encomendado às pressas, para ser entregue às pressas. Já ouviu falar na Força Delta?
— Não — retrucou Armstrong, abismado porque Peter Marlowe já tinha ouvido falar naquilo que Rosemont, da CIA, lhe assegurara sigilosamente que era uma operação ultra-secreta.
— Ao que sei, é um grupo de soldados de combate americanos especialmente treinados, Robert, uma força especial que está operando no Vietnam em pequenas unidades sob o controle do Grupo Técnico Americano, que é um nome sob o qual se oculta a CIA. Parece que estão se saindo tão bem que os vietcongues precisam de armas modernas rapidamente, e em grande quantidade, e estão preparados para pagar generosamente. Assim, essas foram mandadas imediatamente para cá, no avião de Bartlett.
— Ele está envolvido?
— Meus amigos duvidam que esteja — falou, depois de uma pausa. — De qualquer modo, as armas são de uso do exército americano, Robert, certo? Bem, uma vez que esse carregamento fosse aprovado, a entrega em grandes quantidades seria fácil.
— É, como?
— Os Estados Unidos vão fornecer as armas.
— O quê?
— Claro. — A fisionomia de Peter Marlowe endureceu. — É realmente muito simples: digamos que esses guerrilheiros vietcongues soubessem antecipadamente todas as datas exatas dos carregamentos americanos, pontos de destino, quantidades e tipos de armas (desde as menores até foguetes) exatos, quando chegassem ao Vietnam?
— Santo Deus!
— É. Conhece a Ásia. Um pouco de h'eung yan aqui e ali, e os assaltos constantes seriam simples.
— Seria como se eles tivessem suas próprias reservas! — exclamou Armstrong, estupefato. — Como vão ser pagas as armas? Um banco aqui?
Peter Marlowe olhou para ele.
— Ópio a granel. Entregue aqui. Um dos nossos bancos faz o financiamento.
O policial soltou um suspiro. A coisa se encaixava.
— Impecável — comentou.
— É. Um filho da mãe de um traidor nojento nos Estados Unidos simplesmente passa adiante as relações, itinerários, datas. Isso dá ao inimigo todas as armas e a munição de que precisa para acabar com nossos próprios soldados. O inimigo paga pelas armas com um veneno que nada lhe custa... imagino que seja o único artigo vendável que tenha a granel, e que possa adquirir facilmente. O ópio é entregue aqui pelo contrabandista chinês, e convertido em heroína, porque aqui é que eles têm os peritos para isso. Os traidores nos Estados Unidos fazem um trato com a Máfia, que vende a heroína com lucro enorme para mais garotos, e assim subvertem e destroem o bem mais importante que temos: os jovens.
— Como já falei, impecável! O que alguns sacanas não fazem por dinheiro! — Armstrong soltou outro suspiro, e relaxou os ombros. Pensou por um momento. A teoria fazia tudo se encaixar muito direitinho. — O nome Banastasio significa alguma coisa?
— Parece italiano.
Peter Marlowe manteve a fisionomia impassível. Seus informantes eram dois jornalistas portugueses eurasianos que detestavam a polícia. Quando Marlowe lhes perguntara se poderia passar adiante a teoria, Da Vega dissera:
— Claro, mas a polícia jamais acreditará. Não fale em nós, e nem mencione nomes, nem o de Wu Quatro Dedos, Pa Contrabandista, Ching Prosperity, Banastasio, nenhum.
Após uma pausa, Armstrong disse:
— O que mais ouviu dizer?
— Muita coisa, mas por hoje chega... é minha vez de acordar as crianças, fazer o café e mandá-las para a escola. — Peter Marlowe acendeu um cigarro, e de novo Armstrong sentiu dolorosamente a necessidade do fumo nos pulmões. — Exceto uma coisa, Robert. Um membro da imprensa, amigo meu, pediu-me que o avisasse de que ouviu falar numa grande reunião de narcóticos a ser realizada em breve em Macau.
Os olhos azuis se estreitaram.
— Quando?
— Não sei.
— Que espécie de reunião?
— Gente da pesada. "Fornecedores, importadores, exportadores, distribuidores", foi o que ele disse.
— Onde, em Macau?
— Não disse.
— Nomes?
— Nenhum. Mas acrescentou que a reunião incluirá um visitante VIP dos Estados Unidos.
— Bartlett?
— Meu Deus, Robert, não sei! E nem ele falou nisso. Linc Bartlett me parece um sujeito simpático, e corretíssimo. Acho que é tudo fofoca e inveja, tentando implicá-lo.
Armstrong sorriu seu sorriso amarelo.
— Sou apenas um tira desconfiado. Os bandidos existem nas altas esferas, assim como nos esgotos. Peter, meu velho, dê o seguinte recado ao seu amigo jornalista: se quiser me dar uma informação, ligue diretamente para mim.
— Ele tem medo de você. E eu também!
— Tem, uma ova. — Armstrong devolveu-lhe o sorriso, simpatizando com ele, muito satisfeito pela informação e pelo fato de Peter Marlowe ser um intermediário que sabia ficar de boca fechada. — Peter, pergunte-lhe onde em Macau, e quando, e quem e... — Repentinamente, Armstrong deu um tiro no escuro: — Peter, se você fosse escolher o melhor lugar da colônia para a entrada e saída de contrabando, qual seria?
— Aberdeen, ou a baía Mirs. Qualquer tolo sabe disso... são os locais que sempre foram usados primeiro, desde que existe Hong Kong.
Armstrong soltou um suspiro.
— Concordo...
"Aberdeen", pensou. "Qual contrabandista de Aberdeen? Qualquer um entre duzentos. Wu Quatro Dedos seria a primeira escolha. Quatro Dedos, com seu grande Rolls negro e chapa de sorte número 8, aquele maldito capanga Tok Duas Machadinhas e aquele seu jovem sobrinho, o que tem o passaporte ianque, o tal de Yale. É mesmo Yale? Quatro Dedos seria a primeira escolha. Depois Poon Bom Tempo, Pa Contrabandista, Ta Sap-fok, Pok Pescador... Deus, a lista é interminável, e só daqueles que conhecemos. Na baía Mirs, a nordeste dos Novos Territórios? Os Irmãos Pa, Fang Bocarra e mil outros..."
— Bem — falou, satisfeitíssimo agora pela informação... algo incomodando-o sobre Wu Quatro Dedos, embora nunca tivesse havido nenhum boato de que estava envolvido com heroína. — Um favor merece outro: diga ao seu amigo jornalista que nossos deputados visitantes, a delegação comercial, chegam hoje de Pequim... O que há?
— Nada — disse Peter Marlowe, tentando manter a fisionomia desanuviada. — O que estava dizendo?
Armstrong observou-o atentamente, depois acrescentou:
— A delegação chega no trem da tarde de Cantão. Estará na fronteira, trocando de trem, às quatro horas e trinta e dois minutos... soubemos da mudança de planos ontem à noite. Talvez seu amigo possa conseguir uma entrevista exclusiva. Parece que os deputados fizeram grandes progressos.
— Obrigado. Em nome do meu amigo. È, obrigado. Direi a ele imediatamente. Bem, tenho que ir andando...
Brian Kwok vinha caminhando apressado na direção deles.
— Alô, Peter. — Estava ofegante. — Robert, desculpe, mas Crosse quer nos ver imediatamente.
— Puta que o pariu! — disse Armstrong, cansado. — Disse a você que era melhor esperar um pouco antes de ligar para lá. Aquele sacana nunca dorme. — Esfregou o rosto para afastar a fadiga, os olhos vermelhos. — Apanhe o carro, Brian. Vou encontrá-lo na porta da frente.
— Certo.
Brian Kwok afastou-se rapidamente. Perturbado, Armstrong acompanhou-o com o olhar. Peter Marlowe falou, brincalhão:
— A prefeitura está pegando fogo?
— No nosso ramo a prefeitura está sempre pegando fogo, rapaz, em alguma parte. — O policial examinou Peter Marlowe.
— Antes de partir, Peter, gostaria de saber o que há de tão importante na delegação comercial para você.
Depois de uma pausa, o homem dos olhos curiosos falou: — Conheci um deles durante a guerra. Tenente Robin Grey. Foi o chefe da polícia militar de Changi nos dois últimos anos. — Sua voz estava seca, mais seca e gelada do que Armstrong imaginara ser possível. — Eu o odiava e ele me odiava. Só espero não encontrá-lo, isso é tudo.
Do outro lado do círculo dos vencedores, Gornt acompanhava Armstrong pelo binóculo, enquanto este ia atrás de Brian Kwok. Depois, pensativo, voltou a focalizar Peter Marlowe, que se dirigia para um grupo de treinadores e jóqueis.
— Sacana abelhudo! — disse Gornt.
— Hem? Quem? Ah, Marlowe? — Sir Dunstan Barre deu uma risadinha. — Não é abelhudo, só quer saber tudo sobre Hong Kong. É o seu passado negro que o fascina, meu velho. O seu e o do tai-pan.
— Você não tem nenhum segredo a esconder, Dunstan? — perguntou Gornt suavemente. — Está dizendo que você e sua família são imaculados?
— Deus me livre! — Barre ficou rapidamente afável, tentando transformar o súbito veneno de Gornt em mel. — Santo Deus, não! Risque o verniz de um inglês e encontrará um pirata. Somos todos suspeitos! É a vida, não é?
Gornt ficou calado. Desprezava Barre, mas precisava dele.
— Vou dar uma festinha no meu iate no domingo, Dunstan. Quer vir? Creio que achará interessante.
— É? Quem é o convidado de honra?
— Pensei em convidar só os homens... nada de mulheres, certo?
— Ah, pode contar comigo — disse Barre prontamente, animando-se. — Mas não posso levar uma amiguinha?
— Leve duas, se quiser, meu velho, quanto mais, melhor. Será um grupo pequeno, seleto, seguro. Plumm é um cara legal, e a garota dele é muito divertida. — Gornt viu Marlowe mudar de direção quando foi chamado por um grupo de administradores e organizadores dominado por Donald McBride. Depois, num súbito impulso, acrescentou: — Acho que também vou convidar Marlowe.
— Por quê, se o acha abelhudo?
— Pode ser que se interesse pelas histórias reais sobre os Struans, os nossos piratas fundadores e os dos dias de hoje.
Gornt sorriu apenas com o rosto, e Barre se perguntou que safadeza Gornt estaria planejando. O homem do rosto vermelho enxugou a testa.
— Deus, gostaria que chovesse. Sabia que Marlowe voou com os Hurricanes... derrubou três malditos boches na Batalha da Inglaterra, antes de ser mandado para Cingapura e toda aquela desgraça? Jamais perdoarei aos malditos japoneses pelo que fizeram aos nossos rapazes ali, aqui ou na China.
— Nem eu — concordou Gornt, com ar sombrio. — Sabia que meu velho esteve em Nanquim em 37, durante a pilhagem de Nanquim?
— Não. Deus, como saiu de lá?
— Alguns dos nossos conhecidos o esconderam durante alguns dias... há gerações que tínhamos associados ali. Depois, ele fingiu para os japoneses que era um correspondente amistoso do Times de Londres, e conseguiu voltar a Xangai com esse argumento. Ainda tem pesadelos com isso.
— Por falar em pesadelos, meu velho, estava tentando fazer com que Ian tivesse um, ontem à noite, aparecendo na festa dele?
— Acha que ele acertou as contas, mexendo no meu carro?
— Como? — Barre ficou abismado. — Santo Deus! Quer dizer que alguém mexeu no seu carro?
— O cilindro-mestre foi quebrado por alguma espécie de golpe. O mecânico falou que poderia ter sido feito com uma pedra que se chocasse com ele.
Barre fitou-o e sacudiu a cabeça.
— Ian não é um tolo. É louco, mas não é nenhum tolo. Isso seria tentativa de assassinato.
— Não seria a primeira vez.
— Se eu fosse você, não diria uma coisa dessas em público, meu velho.
— Você não é o público, meu velho. É?
— Não. Natural...
— Ótimo. — Gornt fixou nele os olhos escuros. — Esta é uma época em que os amigos devem se manter unidos.
— É? — Barre pôs-se em guarda, imediatamente.
— É. O mercado está muito nervoso. Essa confusão com o Ho-Pak pode atrapalhar um bocado os nossos planos.
— As minhas fazendas de Hong Kong e Lan Tao são tão sólidas quanto o Pico.
— É, desde que seus banqueiros suíços continuem a lhe conceder sua nova linha de crédito.
O rosto rosado de Barre empalideceu.
— Como?
— Sem o empréstimo deles você não poderá assumir o controle das Docas e Cais Hong Kong, da Real Seguros de Hong Kong e Malásia, expandir para Cingapura ou completar diversas outras transações escusas que tem na sua agenda... você e seu novo amigo, Mason Loft, o menino prodígio da Threadneedle Street. Certo?
Barre fitou-o, com o suor frio escorrendo pelas costas, chocado por Gornt saber dos seus segredos.
— Onde ouviu contar isso? Gornt deu uma risada.
— Tenho amigos nas altas esferas, meu velho. Não se preocupe, seu calcanhar-de-aquiles está a salvo comigo.
— Não estamos... não estão em perigo?
— Claro que não. — Gornt dirigiu o binóculo para o seu cavalo. — Ah, a propósito, Dunstan, posso precisar do seu voto na próxima assembléia.
— Para quê?
— Ainda não sei. — Gornt baixou os olhos para ele. — Só preciso saber que posso contar com você.
— Sim, claro. — Barre se perguntava nervosamente o que Gornt pretendia e onde estava o "vazamento". — Tenho sempre prazer em colaborar, meu velho.
— Obrigado. Está vendendo Ho-Pak a descoberto?
— Claro. Saquei todo o meu dinheiro ontem, graças a Deus. Por quê?
— Ouvi dizer que o negócio de Dunross com a Par-Con vai furar. Estou pensando em vender as ações dele a descoberto, também.
— É? O negócio vai furar? Por quê? Gornt sorriu sardonicamente.
— Porque, Dunstan...
— Alô, Quillan, Dunstan, desculpe interromper — disse Donad McBride, aproximando-se deles, trazendo junto dois homens. — Deixem-me apresentar-lhes o Sr. Charles Biltzmann, vice-presidente da American Superfoods. Vai dirigir a nova fusão General Stores-Superfoods, sediada na colônia, daqui para a frente. Sr. Gornt e Sir Dunstan Barre.
O americano alto, de cabelos cor de areia, usava terno e gravata cinza e óculos sem aro. Estendeu a mão, amavelmente.
— Prazer em conhecê-los. Pradozinho simpático vocês têm aqui.
Gornt apertou a mão do outro, sem entusiasmo. Ao lado de Biltzmann estava Richard Hamilton Pugmire, o atual tai-pan da General Stores de Hong Kong, um dos administradores do Turf Club, um homem baixo e arrogante de quarenta e muitos anos, que ostentava sua baixa estatura como um desafio constante.
— Alô, vocês dois! Bem, quem vai ganhar o quinto? Gornt parecia um gigante ao lado dele.
— Digo a você depois do páreo.
— Ora, qual é, Quillan? Você sabe que o resultado já estará definindo antes de os cavalos desfilarem.
— Se puder provar isso, estou certo de que todos gostaremos de saber. Eu pelo menos gostaria. E você, Donald?
— Tenho certeza de que Richard estava só brincando — replicou Donald McBride. Estava na casa dos sessenta, tinha feições eurasianas agradáveis, e o calor do seu sorriso era penetrante. Acrescentou para Biltzmann: — Sempre existem esses boatos sobre corridas com cartas marcadas, mas fazemos o que podemos, e quando pegamos alguém... cortamos-lhe a cabeça! Pelo menos, expulsamo-lo das pistas.
— Que diabo, as corridas também são "arranjadas" nos Estados Unidos, mas acho que aqui, onde têm o status amador, fica tudo mais fácil — falou Biltzmann, despreocupadamente. — Aquele seu garanhão, Quillan. É australiano, pedigree parcial, não é?
— É — retrucou Gornt abruptamente, detestando a familiaridade dele.
— Don estava me explicando algumas das regras das suas corridas. Gostaria muito de fazer parte da sua irmandade de corridas... espero poder ser sócio votante, também.
O Turf Club era muito exclusivo e fortemente controlado. Havia duzentos sócios votantes e quatro mil não-votantes. Apenas os sócios votantes podiam entrar no camarote dos sócios. Apenas os sócios votantes podiam possuir cavalos. Apenas os sócios votantes podiam propor duas pessoas por ano como sócios não-votantes. E a decisão dos administradores, fosse ela pela aprovação ou não, era definitiva, e a votação, secreta. E apenas sócios votantes podiam ser administradores.
— É — repetiu Biltzmann —, seria legal.
— Tenho certeza de que se pode dar um jeito nisso falou McBride, com um sorriso. — O clube está sempre procurando sangue novo... e cavalos novos.
— Pretende ficar em Hong Kong, Sr. Biltzmann? — perguntou Gornt.
— Chame-me de Chuck. Vou ficar aqui o tempo que for preciso — replicou o americano. — Suponho que sou o novo tai-pan da Superfoods da Ásia. Legal, não é?
— Maravilhoso! — disse Barre, ironicamente.
Biltzmann continuou alegremente, ainda não habituado ao sarcasmo inglês:
— Sou o bode expiatório da nossa diretoria em Nova York. Como disse o homem de Missouri, a transferência das responsabilidades acaba aqui. — Sorriu, mas ninguém sorriu com ele. — Vou passar pelo menos dois anos aqui, e estou ansiando por cada minuto. Estamos nos preparando para nos instalar imediatamente. Minha noiva chega amanhã e...
— É recém-casado, Sr. Biltzmann?
— Oh, não, isso é só uma expressão americana. Estamos casados há dois anos. Logo que nossa nova casa estiver arrumada a seu gosto, teríamos prazer em recebê-los para jantar. Quem sabe um churrasco? Já temos tudo bem organizado, as melhores carnes virão dos Estados Unidos de avião, uma vez por mês. E batatas de Idaho — acrescentou, com orgulho.
— Parabéns pelas batatas — disse Gornt, e os outros se acomodaram, esperando, sabendo que ele desprezava a cozinha americana, especialmente churrascos, hambúrgueres e "batatas assadas amanteigadas", como se referia a elas. — Quando a fusão será assinada?
— No fim do mês. Nossa proposta foi aceita. Tudo já está acertado. Espero realmente que nosso know-how americano se adapte a esta ilhazinha formidável.
— Suponho que vão construir uma mansão...
— Não, senhor. Dickie — continuou Blitzmann, e todos se crisparam — arranjou para nós a cobertura do apartamento da companhia na Blore Street. Portanto, estamos numa boa.
— É conveniente — comentou Gornt. Os outros sufocaram o riso. A mais antiga e mais famosa das casas de tolerância da colônia sempre fora na Blore Street, no número 1. O negócio do número 1 da Blore Street fora iniciado por uma das "garotas" da sra. Fotheringill, Nellie Blore, nos anos 1860, com dinheiro dado por Culum Struan, ao que constava, e ainda operava segundo os regulamentos originais: senhoras européias e australianas somente, e não se permitia a entrada de nativos ou cavalheiros estrangeiros. — Muito conveniente — repetiu Gornt —, mas não sei se você se enquadraria.
— Senhor?
— Nada, estou certo de que a Blore Street está bem de acordo.
— Uma linda vista, mas os encanamentos não prestam — disse Biltzmann. — Minha noiva dará um jeito nisso.
— Ela também é encanadora? — perguntou Gornt. O americano achou graça.
— Claro que não. Mas é muito jeitosa com as coisas da casa.
— Se me dá licença, tenho que ir ver meu treinador. — Gornt cumprimentou os outros com um gesto de cabeça e afastou-se, dizendo: — Donald, tem um momentinho? É sobre o sábado.
— Claro, até já, Sr. Bützmann.
— Pois não. Mas chame-me de Chuck. Tenha um bom dia. McBride emparelhou com Gornt. Quando estavam a sós,
Gornt falou:
— Não está falando a sério quando sugere que ele seja sócio votante, não é?
— Bem, estou sim. — McBride parecia constrangido. — É a primeira vez que uma grande companhia americana faz uma oferta para vir para Hong Kong. Ele seria muito importante para nós.
— Isso não é motivo para metê-lo aqui, é? Façam dele um sócio não-votante. Assim, poderá ir para as tribunas. E se você quiser convidá-lo para o seu camarote, problema seu. Mas um sócio votante? Santo Deus! Provavelmente escolherá "Superfoods" para as suas cores!
— Ele é novo, está desambientado, Quillan. Estou certo de que vai aprender. É um sujeito decente, embora cometa lá suas gafes. É muito rico e...
— E desde quando o dinheiro funcionou como "abre-te Sésamo" para o Turf Club? Santo Deus, Donald, se fosse assim, cada chinês novo-rico que tivesse ganho uma fortuna jogando no mercado imobiliário ou na Bolsa iria cair em cima de nós. Não íamos ter espaço nem para peidar.
— Não concordo. Quem sabe a solução seja aumentar o número de sócios votantes.
— Não, de modo algum. É claro que vocês, administradores, farão o que quiserem. Mas sugiro que reconsiderem.
Gornt era sócio votante, mas não administrador. Os duzentos sócios votantes elegiam anualmente os doze administradores e organizadores por voto secreto. A cada ano o nome de Gornt era colocado na lista aberta de candidatos a administrador, e a cada ano não conseguia obter os votos suficientes. A maioria dos administradores era reeleita pelos sócios automaticamente até se aposentarem, embora de quando em vez houvesse campanha eleitoral.
— Pois bem — falou McBride —, quando o nome dele for proposto, mencionarei que você se opõe.
Gornt deu um débil sorriso.
— Isso eqüivalerá a elegê-lo.
McBride deu uma risadinha.
— Acho que não, Quillan, não desta vez. Pug me pediu que o apresentasse às pessoas, e tenho que admitir que ele só dá mancada. Apresentei-o a Paul Havergill, e Biltzmann começou imediatamente a comparar os métodos bancários daqui com os dos Estados Unidos, e de um modo nada agradável. E com o tai-pan... — As sobrancelhas grisalhas de McBride ergueram-se bem alto — falou que tinha muito prazer em conhecê-lo, já que queria saber sobre a Bruxa Struan e Dirk Struan e todos os outros piratas e contrabandistas de ópio do seu passado! — Soltou um suspiro. — Ian e Paul na certa lhe darão bola preta. Portanto creio que você não precisa se preocupar. Não consigo entender por que Pug se associou a eles, afinal de contas.
— Porque não é o pai. Desde que o velho Sir Thomas morreu que a General Stores vem caindo. Apesar disso, Pug ganha seis milhões de dólares americanos pessoalmente, e tem um contrato inviolável de cinco anos; assim, tem todos os prazeres, nenhuma dor de cabeça, e a família está protegida. Quer se aposentar, ir para a Inglaterra, Ascot e tudo o mais.
— Ah, é um belo negócio para o velho Pug! — McBride ficou mais sério. — Quillan, o quinto páreo... o interesse é enorme. Estou preocupado de que haja interferência. Vamos aumentar a vigilância sobre os cavalos. Fala-se em...
— Em doping?
— É.
— Sempre há quem fale, e sempre haverá quem tente. Acho que os administradores fazem um belo trabalho.
— Os administradores concordaram, ontem à noite, em criar uma nova regra: no futuro haverá uma análise química obrigatória antes e depois de cada corrida, como fazem nos principais hipódromos da Inglaterra ou dos Estados Unidos.
— A tempo para o sábado? Como vão arranjar isso?
— O dr. Meng, patologista da polícia, concordou em ser responsável... até podermos obter um perito.
— Boa idéia — falou Gornt. McBride soltou um suspiro.
— É, mas o Poderoso Dragão não pode competir com a Serpente Local.
Virou-se e foi embora.
Gornt hesitou, depois foi até junto do seu treinador, que estava ao lado de Pilot Fish, conversando com o jóquei, outro australiano, Bluey White. Bluey White era ostensivamente o gerente de uma das divisões de navegação de Gornt... título que servia para manter sua condição de amador.
— Bom dia, Sr. Gornt — disseram. O jóquei tocou a ponta do topete.
— Bom dia. — Gornt olhou para eles por um momento, depois disse, serenamente: — Bluey, se você ganhar, terá uma bonificação de cinco mil. Se terminar atrás de Noble Star, está despedido.
O homenzinho rijo empalideceu.
— Sim, patrão.
— É melhor ir se trocar, agora — falou Gornt, para que se afastasse.
— Vou ganhar — dizia Bluey "White, enquanto ia embora.
O treinador falou, constrangido:
— Pilot Fish está em muito boa forma, Sr. Gornt. Vai tenta...
— Se Noble Star ganhar, você está despedido. Se Noble Star terminar na frente de Pilot Fish, você está despedido.
— Puxa vida, Sr. Gornt! — O homem enxugou o repentino suor que lhe cobrira a boca. — Não sou eu quem "arruma" quem vai...
— Não estou lhe sugerindo que faça nada. Só estou lhe dizendo o que vai acontecer com você.
Gornt fez um aceno afável de cabeça, e se afastou. Foi para o restaurante do clube, que dava para a pista, e pediu o seu desjejum predileto, ovos Benedict com o molho especial que guardavam para o seu uso exclusivo, e o café javanês que ele também fornecia.
Quando estava tomando a terceira xícara de café, o garçom se aproximou.
— Com licença, senhor, chamam-no ao telefone. Foi até o telefone.
— Gornt.
— Alô, Sr. Gornt, aqui é Paul Choy... o sobrinho do Sr. Wu... espero não estar incomodando.
Gornt disfarçou a surpresa.
— Está telefonando um tanto cedo, Sr. Choy.
— Sim, senhor, mas quis chegar cedo no primeiro dia — falou o rapaz, aos borbotões —, portanto eu era o único que estava aqui, há uns dois minutos, quando o telefone tocou. Era o Sr. Bartlett, Linc Bartlett, sabe, o tal das armas contrabandeadas, o milionário.
Gornt ficou espantado.
— Bartlett?
— É, sim, senhor. Disse que queria falar com o senhor, insinuou que era um tanto urgente, disse que já ligara para a sua casa. Juntei dois e dois e cheguei à conclusão de que o senhor deveria estar assistindo aos exercícios, e que era melhor eu me mexer. Espero não estar incomodando.
— Não. O que foi que ele disse? — indagou Gornt.
— Só que lhe queria falar. Perguntou se o senhor estava na cidade. Falei que não sabia, mas que ia me informar, deixar recado e depois ligar para ele.
— De onde ele estava falando?
— Do Victoria. Kowloon 662233, ramal 773... é o ramal do seu escritório, não da suíte.
Gornt ficou muito impressionado.
— Em boca fechada não entra mosca, Sr. Choy.
— Deus, Sr. Gornt, isso é uma coisa com que nunca precisa se preocupar — disse Paul Choy, fervorosamente. — Meu velho Tio Wu enfiou isso a muque na cabeça da gente.
— Ótimo. Obrigado, Sr. Choy. Até breve.
— Sim, senhor.
Gornt desligou, pensou um momento, depois ligou para o hotel.
— 773, por favor.
— Linc Bartlett.
— Bom dia, Sr. Bartlett, aqui é o Sr. Gornt. Estou às ordens.
— Ei, obrigado por responder ao meu telefonema. Soube de notícias perturbadoras que se encaixam naquilo que estivemos discutindo.
— É?
— É. As Indústrias de Navegação Toda significam alguma coisa para o senhor?
O interesse de Gornt cresceu vertiginosamente.
— A Toda é um imenso conglomerado japonês, estaleiros, siderúrgicas, engenharia pesada. A Struan tem um negócio de dois navios com eles, grandes cargueiros, se não me engano. Por quê?
— Parece que a Toda tem algumas promissórias da Struan, seis milhões de dólares em três prestações, que vencem nos dias 1.°, 11 e 15 do mês que vem, e mais outros seis em noventa dias. Há também outros seis milhões e oitocentos mil que vencem no dia 8, para o Orlin International Bank... conhece-os?
Com um grande esforço, Gornt manteve o tom de voz natural.
— É, ouvi falar neles — disse, abismado de que o americano soubesse tais detalhes das dívidas. — E daí? — perguntou.
— Daí soube que a Struan tem apenas um milhão e trezentos mil em dinheiro, sem reserva alguma, e sem fluxo de caixa suficiente para efetuar o pagamento. Não estão esperando um volume de renda significativo até obterem dezessete milhões, como sua parte em um dos negócios imobiliários da Investimentos Kowloon, e isso só em novembro, e já ultrapassaram vinte por cento dos seus limites no Victoria Bank.
— Isso... isso é estar muito por dentro — falou Gornt, com voz ofegante, o coração disparando no peito, sentindo o colarinho apertado. Sabia sobre a conta bancária a descoberto em vinte por cento. Plumm lhe contara, todos os diretores deviam saber. Mas não os detalhes da disponibilidade em dinheiro deles, nem do seu fluxo de caixa. — Por que está me contando isso, Sr. Bartlett?
— Qual é a sua liquidez?
— Já lhe disse, sou vinte vezes mais forte do que a Struan — falou automaticamente, a mentira saindo com facilidade, remoendo a oportunidade maravilhosa que toda essa informação lhe abria. — Por quê?
— Se eu for em frente no negócio com a Struan, ele estará usando o meu pagamento à vista para se livrar dos apertos com a Toda e o Orlin... se o seu banco não lhe aumentar o crédito.
— O Vic o apoiará?
— Sempre o fez. Por quê?
— Se não o fizer, ele estará com a corda no pescoço.
— A Struan é uma acionista substancial. O banco é obrigado a apoiá-la.
— Mas ele já sacou a descoberto no banco, e Havergill o odeia. Juntando as ações de Chen, da Struan e dos seus representantes, detêm vinte e um por cento...
Gornt quase deixou cair o aparelho.
— Que diabo, onde arranjou essa informação? Ninguém de fora poderia saber disso!
— É isso aí — ouviu o americano responder calmamente —, mas é verdade. Você poderia reunir os outros setenta e nove por cento?
— O quê?
— Se eu tivesse um sócio que pudesse colocar o banco contra ele, só desta vez, e ele não conseguisse obter crédito noutro lugar... abrindo o jogo: é uma questão de oportunidade. Dunross passou exageradamente dos limites, o que significa que está vulnerável. Se seu banco não lhe der crédito, terá que vender alguma coisa... ou obter uma nova linha de crédito. Em qualquer dos casos, está completamente vulnerável a um ataque e no ponto para uma compra de controle a preço de liquidação.
Gornt enxugou a testa, a cabeça rodando.
— Que diabo, onde arranjou todas essas informações?
— Depois, não agora.
— Quando?
— Quando chegarmos aos detalhes finais.
— Tem... tem mesmo certeza de que seus dados estão corretos?
— Tenho. Temos as folhas do balanço geral deles dos últimos sete anos.
A contragosto, Gornt soltou uma exclamação abafada.
— É impossível!
— Quer apostar?
Gornt agora estava abaladíssimo, e tentou pôr a mente para funcionar. "Seja cuidadoso", avisou a si mesmo. "Pelo amor de Deus, controle-se."
— Se... se tem tudo isso, se sabe isso, e se obtiver uma última coisa... a estrutura corporativa encadeada deles, se você soubesse isso, poderíamos fazer qualquer coisa que quiséssemos com a Struan.
— Também temos isso. Quer entrar no jogo?
Gornt ouviu-se respondendo calmamente, embora não se sentisse nada calmo.
— Mas claro! Quando poderíamos nos encontrar? Na hora do almoço?
— Que tal agora? Mas não aqui, nem no seu escritório. Temos que manter muita discrição.
O coração de Gornt doía dentro do peito. Sentia um gosto de estragado na boca, e perguntava-se até onde poderia realmente confiar em Bartlett.
— Posso... posso mandar um carro apanhá-lo. Poderíamos conversar no carro.
— Boa idéia, mas por que não o encontro no lado de Hong Kong? No Terminal da Balsa Dourada, dentro de uma hora.
— Excelente. Meu carro é um Jaguar... placa 8888. Estarei junto ao ponto de táxis.
Desligou e ficou olhando para o telefone por um momento, depois voltou para a mesa.
— Não foram más notícias, espero, Sr. Gornt.
— Ah, não, não mesmo. Obrigado.
— Mais um pouco do seu café especial? Foi feito agora.
— Não, não, obrigado. Quero uma meia garrafa de Taittinger Blanc de Blancs. De 55.
Recostou-se na cadeira, sentindo-se estranhíssimo. Seu inimigo estava quase nas suas mãos... se os fatos do americano fossem verídicos, e se o americano fosse de confiança, e não estivesse metido em alguma trama diabólica com Dunross.
O vinho chegou, mas ele mal o provou. Todo o seu ser estava concentrado, peneirando as coisas, preparando-se.
Gornt viu o americano alto cruzar a multidão, e por um momento invejou-lhe o corpo esbelto, em forma, e o modo esportivo e informal como se vestia (jeans, camisa desabotoada, paletó esporte) e sua evidente confiança. Viu a máquina fotográfica complicada, deu um sorriso sardônico, depois procurou Casey. Quando ficou evidente que Bartlett estava sozinho, ficou desapontado. Mas esse desapontamento não maculou a gloriosa expectativa que tomara conta dele desde que desligara o telefone.
Gornt debruçou-se e abriu a porta lateral.
— Bem-vindo ao lado de Hong Kong, Sr. Bartlett — disse com jovialidade forçada, dando partida no carro. Seguiu pela Gloucester Road, na direção do Glessing's Point e do Yacht Club. — As suas informações confidenciais são espantosas.
— Não se pode trabalhar sem espiões, não é mesmo?
— Pode-se, mas é trabalho de amador. Como vai a srta. Casey? Pensei que viria com você.
— Não está por dentro disso. Ainda não.
— É?
— É. Não, não está por dentro do ataque inicial. É mais valiosa se não souber de nada.
— Ela não está sabendo de nada disso? Nem do seu telefonema para mim?
— Não. De nada.
Depois de uma pausa, falou:
— Pensei que ela fosse a sua vice-presidente-executiva!... seu braço direito, foi como a chamou.
— E é, mas eu sou o patrão da Par-Con, Sr. Gornt. Gornt viu os olhos serenos, e, pela primeira vez, sentiu que isso era verdade, e que sua suposição inicial estava errada.
— Nunca duvidei disso — falou, esperando, os sentidos aguçados, de sobreaviso.
Então, Bartlett falou:
— Há algum lugar em que possamos estacionar... tenho algo para lhe mostrar.
— Por certo.
Gornt guiava pela Gloucester Road, à beira-mar, no tráfego cerrado de costume. Num momento encontrou um local para estacionar, perto do abrigo contra tufões da baía Cause-way, com suas ilhas flutuantes e amontoadas de barcos de todos os tamanhos.
— Tome.
Bartlett entregou-lhe uma pasta de documentos. Continha uma cópia detalhada do balanço geral do ano anterior àquele em que a companhia se tornara de capital aberto. Os olhos de Gornt percorreram rapidamente os números.
— Santo Deus! — murmurou. — Com que então o Lasting Cloud custou-lhes doze milhões!
— Quase os levou à falência. Parece que tinham todo tipo de carga maluca a bordo. Motores a jato para a China, que não estavam no seguro.
— Claro que não estariam no seguro... que diabo, como se pode pôr contrabando no seguro? — Gornt estava tentando entender todos aqueles números complicados. Estava atordoado. — Se eu tivesse sabido de metade disso, tê-los-ia apanhado da última vez. Posso ficar com ela?
— Quando tivermos fechado negócio, eu lhe darei uma cópia. — Bartlett pegou a pasta de volta, e entregou-lhe um papel. — Que tal este aqui?
Ele mostrava, graficamente, os investimentos em ações da Struan na Investimentos Kowloon, e detalhava como, através de representantes, o tai-pan da Struan exercia controle completo sobre a imensa companhia de seguros, propriedades e desembarcadouros que era, supostamente, uma companhia completamente independente e citada como tal na Bolsa.
— Maravilhoso — disse Gornt, com um suspiro, assombrado com a beleza da coisa. — A Struan possui abertamente apenas uma pequenina parcela das ações, mas retém cem por cento do controle, e sigilo perpétuo.
— Nos Estados Unidos, quem bolasse uma coisa dessas estaria na cadeia.
— Graças a Deus as leis de Hong Kong não são as mesmas, e tudo isso é perfeitamente legal, embora um tanto tortuoso.
Os dois homens riram. Bartlett embolsou o papel.
— Tenho detalhes semelhantes do resto dos bens deles.
— Falando francamente, o que tem em mente, Sr. Bartlett?
— Um ataque conjunto à Struan, a partir de hoje. Uma
Blitzkrieg. Racharemos meio a meio todo o espólio. Você fica com a Casa Grande no Pico, o prestígio, o iate... e cem por cento do camarote do Turf Club, inclusive o posto de administrador.
Gornt olhou para ele, vivamente. Bartlett sorriu.
— Sabemos como isso é importante para você. Mas todo o resto será rachado ao meio.
— Exceto as operações deles em Kai Tak. Preciso delas para a minha companhia de aviação.
— Está certo. Mas então eu quero a Investimentos Kowloon.
— Não — disse Gornt, pondo-se imediatamente em guarda. — Temos que rachar isso meio a meio, e tudo meio a meio.
— Não. Você precisa de Kai Tak, eu preciso da Investimentos Kowloon. Será um grande núcleo para o salto da Par-Con na Ásia.
— Por quê?
— Porque todas as grandes fortunas em Hong Kong têm por base os bens imóveis. A IK me dará uma base perfeita.
— Para novas incursões?
— Claro — respondeu Bartlett, calmamente. — Seu amigo Jason Plumm é o seguinte da lista. Podíamos engolir facilmente as suas Propriedades Asiáticas. Meio a meio. Certo?
Gornt ficou calado por um longo tempo.
— E depois dele?
— As Fazendas Hong Kong e Lan Tao.
O coração de Gornt deu novo salto. Sempre odiara Dun-stan Barre, e esse ódio fora triplicado no ano passado, quando Barre fora feito cavaleiro na Lista de Honra do Aniversário da Rainha — uma honraria conseguida, Gornt tinha certeza, com contribuições criteriosas para o fundo do Partido Conservador.
— E como você o engoliria?
— Há sempre uma hora em que qualquer exército, qualquer país, qualquer companhia fica vulnerável. Todo general ou presidente de companhia tem que se arriscar, numa hora qualquer, para continuar na frente. É preciso, para continuar na frente. Há sempre algum inimigo mordendo-lhe os calcanhares, desejando o que é seu, querendo o seu lugar ao sol, querendo o seu território. É preciso ter cuidado, quando se está vulnerável.
— Você está vulnerável agora?
— Não. Estive, faz dois anos, mas não agora. Agora tenho a força de que preciso... de que precisamos. Se você topar.
Um bando de aves marinhas mergulhava, ondulava e crocitava, acima deles.
— O que quer que eu faça?
— Você é o batedor, o ponta de lança. Eu defendo a retaguarda. Depois que você tiver aberto um buraco nas defesas dele, eu entro com o golpe do nocaute. Vendemos as ações da Struan a descoberto... imagino que tenha assumido uma posição quanto ao Ho-Pak.
— Vendi a descoberto, sim. Modestamente. Gornt contou tranqüilamente a mentira.
— Ótimo. Nos Estados Unidos, a gente poderia fazer com que os contadores deles "vazassem" os dados do fluxo de caixa para o falastrão certo. Logo a cidade inteira saberia. A mesma coisa não funcionaria aqui?
— Provavelmente. Mas você jamais conseguiria que os contadores deles fizessem isso.
— Nem pela quantia certa?
— Não. Mas pode-se dar início aos boatos. — Gornt deu um sorriso sombrio. — É muito ruim da parte de Dunross ocultar sua posição inepta dos seus acionistas. É. Isso seria possível. E depois?
— Você vende ações da Struan a descoberto, logo que a Bolsa abrir. Em grande quantidade.
Gornt acendeu um cigarro.
— Eu vendo a descoberto. E você, o que faz?
— Nada, abertamente. Esse será o nosso ás na manga.
— Talvez seja realmente, e eu esteja bancando o otário — falou Gornt.
— E se eu cobrir todos os prejuízos? Seria prova suficiente de que estou com você?
— Como?
— Eu pago todos os prejuízos e fico com a metade do lucro de hoje, amanhã e sexta-feira. Se ele não estiver desesperado até sexta-feira à tarde, você volta a comprar, pouco antes da hora de fechar, e nós falhamos. Se estiver parecendo que o pegamos, vendemos até o limite, pouco antes da hora de fechar. Isso o fará passar um mau pedaço no fim de semana. Na segunda, puxo o tapete de sob os pés dele, e começa a nossa Blitzkrieg. É infalível.
— É. Se você for digno de confiança.
— Depositarei dois milhões de dólares em qualquer banco suíço que você indique, até as dez horas de hoje. São dez milhões de HK, que dão de sobra para cobrir suas perdas nas vendas a descoberto. Dois milhões, limpinhos, sem documento, sem nota promissória, só sua palavra, que são para cobrir quaisquer prejuízos, e que, se ganharmos, rachamos os lucros, e o resto do negócio, como combinado... meio a meio, exceto a Investimentos Kowloon para mim, a Struan do aeroporto Kai Tak para você, e para Casey e eu, títulos de sócios votantes no Turf Club. Poremos tudo no papel na terça-feira... depois que ele tiver desabado.
— Você depositará dois milhões de dólares americanos, e a decisão é minha de quando comprar para cobrir quaisquer prejuízos?
Gornt estava incrédulo.
— É. Dois milhões é o quanto vou arriscar. Assim, como pode você sair machucado? Não pode. E como ele sabe o que você sente a seu respeito, não ficará desconfiado se você comandar o ataque, não estará preparado para uma blitz lateral da minha parte.
— Isso tudo depende de seus números estarem corretos, tanto as quantias quanto as datas.
— Verifique-as você mesmo. Tem que haver um jeito de você fazer isso... ao menos para se convencer.
— Por que a súbita mudança, Sr. Bartlett? Disse que esperaria até terça-feira... talvez mais tarde.
— Andamos fazendo umas verificações, e não gostei dos números que apareceram. Não devemos nada a Dunross. Seríamos malucos de nos unirmos a ele, quando está tão fraco. Na verdade, o que estou lhe oferecendo é uma grande jogada, grandes vantagens: a Casa Nobre contra uns míseros dois milhões. Se ganharmos, eles serão transformados em centenas de milhões.
— E se falharmos? Bartlett deu de ombros.
— Talvez eu volte para casa. Talvez possamos combinar um negócio entre a Rothwell-Gornt e a Par-Con. Às vezes a gente ganha, e perde um número de vezes bem maior. Mas esta incursão é boa demais para não ser tentada. Sem vocês, jamais funcionaria. Já vi o bastante de Hong Kong para saber que tem as suas regras especiais. Não tenho tempo para aprendê-las. Por que o faria... quando tenho você?
— Ou Dunross?
Bartlett achou graça, e Gornt não viu maldade nele.
— Você não está em dificuldades, não está vulnerável, ele está... azar dele. O que diz? A incursão está valendo?
— Diria que você é muito persuasivo. Quem lhe deu a informação... e o documento?
— Na terça-feira eu digo. Quando a Struan estiver no chão.
— Ah, tem que fazer algum pagamento para o Sr. X?
— Tem-se sempre que fazer algum pagamento. Sairá do topo, mas não será mais do que cinco por cento... se houver algo mais a ser pago, sairá da minha parte.
— Sexta-feira às duas, Sr. Bartlett? É quando eu decido recomprar e você talvez perca os seus dois milhões... ou conferenciamos e continuamos o ataque?
— Sexta às duas.
— Se continuarmos durante o fim de semana, você cobrirá qualquer risco posterior com fundos posteriores?
— Não. Não precisará de mais. Dois milhões é o máximo. Até sexta à tarde, ou as ações dele estarão lá embaixo e ele estará correndo, desesperado, ou não. Esta não é uma incursão a longo prazo, bem organizada. É uma tentativa única, de uma só vez, de burlar um oponente. — Bartlett abriu um sorriso feliz. — Arrisco dois míseros milhões num jogo que fará parte dos livros de história. Em menos de uma semana, derrubamos a Casa Nobre da Ásia!
Gornt balançou a cabeça, dividido. "Até onde posso confiar em você, Sr. Maldito Incursor, você, com a chave para o Demônio Dunross?" Olhou pela janela e viu uma criança dirigindo um barco a remo por entre os juncos, o mar tão seguro e familiar para ela quanto a terra seca.
— Vou pensar no que disse.
— Quanto tempo?
— Até as onze.
— Desculpe, esta é uma incursão, não um negócio comercial. É agora, ou nunca!
— Por quê?
— Há muita coisa a ser feita, Sr. Gornt. Quero que isso fique acertado agora, ou nunca.
Gornt olhou para o relógio. Havia tempo de sobra. Um telefonema para o jornal chinês certo, e o que quer que lhes contasse estaria nas bancas dentro de uma hora. Sorriu sombriamente consigo mesmo. O seu ás na manga era Havergill. Tudo se encaixava perfeitamente.
Uma ave marinha crocitou e voou para o interior, na direção do Pico, acompanhando alguma onda de calor. Ele a acompanhou com os olhos. Então, deparou com a Casa Grande no topo, branca, contrastando com o verde das encostas.
— Negócio fechado — falou, estendendo a mão. Bartlett apertou-a.
— Ótimo. Isso fica estritamente entre nós?
— Fica.
— Onde quer que deposite os dois milhões?
— No Banco da Suíça e Zurique, em Zurique, conta número 181819. — Gornt tateou no bolso, notando que seus dedos tremiam. — Vou anotar para você.
— Não precisa. A conta está em seu nome?
— Santo Deus, não! Canberra Limitada.
— Canberra Limitada está dois milhões mais rica! E dentro de três dias, com sorte, você será o tai-pan da Casa Nobre! Que tal? — Bartlett abriu a porta e saiu. — Até logo.
— Espere — falou Gornt, espantado. — Deixo você em...
— Não, obrigado. Preciso achar um telefone. Depois, às nove e quinze, tenho uma entrevista com sua amiga Orlanda, srta. Ramos... achei que não faria mal. Depois, quem sabe tire algumas fotos.
Acenou alegremente e se afastou.
Gornt enxugou o suor das mãos. Antes de sair do clube, ligara para Orlanda, mandando que ligasse para Bartlett e marcasse um encontro. "Isso é muito bom", pensou, ainda em choque. "Ficará de olho nele depois que se tornarem amantes, e se tornarão, com ou sem Casey. Orlanda tem muito a ganhar."
Ficou observando Bartlett, invejando-o. Num instante o americano sumira por entre as multidões de Wanchai.
Repentinamente, sentiu-se muito cansado. "É tudo certi-nho demais, arrumadinho demais, fácil demais", disse consigo mesmo. "E no entanto... no entanto!" Com mãos trêmulas, acendeu um cigarro. "Onde foi que Bartlett arranjou aqueles documentos? "
Inexoravelmente, seus olhos se voltaram para a Casa Grande do Pico. Sentia-se possuído por ela, e por um ódio tão imenso, que o fez pensar nos seus ancestrais, em Sir Morgan Brock, a quem os Struans levaram à falência, em Gorth Brock, assassinado por Dirk Struan, em Tyler Brock, cuja filha o traíra. Sem querer, renovou o juramento de vingança que fizera ao pai, que o pai fizera ao pai dele... assim sucessivamente, até Sir Morgan Brock, que, sem um tostão, destruído pela irmã, a Bruxa Struan, paralisado, uma sombra de homem, implorara por vingança, em nome de todos os fantasmas Brock, vingança da Casa Nobre e de todos os descendentes do homem mais malvado que jamais existira.
"Oh, deuses, dêem-me força", orava Quillan Gornt. "Que o americano esteja dizendo a verdade. Terei a minha vingança."