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6h30m

Koronski saiu do saguão do Hotel Nove Dragões e chamou um táxi, dando as instruções ao chofer num cantonense passável. Acendeu um cigarro e desabou no banco de trás, dando uma olhada profissional pela vidraça, para ver se não estava sendo seguido, o que era improvável. Na verdade, não havia risco. Seus documentos como Hans Meikker eram impecáveis, seu disfarce esporádico como jornalista estrangeiro de um grupo de revistas da Alemanha Ocidental era real, e visitava Hong Kong freqüentemente, como rotina. Seus olhos o tranqüilizaram. Depois virou-se para olhar o povo, perguntando-se quem deveria ser interrogado por meio de substâncias químicas, e onde. Era um homem baixo, bem-alimentado, de aparência comum, óculos sem aros.

Atrás dele, a cerca de cinqüenta metros, entrando e saindo do tráfego, vinha um Mini pequeno e amassado. Tom Conno-chie, o agente da CIA, estava no banco de trás, e um dos seus assistentes, Roy Wong, dirigia.

— Está indo para a esquerda.

— Estou vendo. Fique calmo, Tom. Está me deixando nervoso, puta que o pariu!

Roy Wong era um americano de terceira geração, formado em literatura, e agente da CIA há quatro anos, designado para Hong Kong. Guiava com perícia, observado atentamente por Connochie, que estava com um aspecto amarfanhado e muito cansado. Ele passara a maior parte da noite acordado, com Rosemont, tentando destrinchar a inundação de instruções, pedidos e ordens altamente sigilosos gerados pelas cartas interceptadas de Thomas K. K. Lim. Pouco depois da meia-noite, um dos seus informantes no hotel lhes dera a dica de que Hans Meikker acabara de se registrar por dois dias, vindo de Bangkok. Havia anos que ele constava da lista deles como um possível risco de segurança.

— Filho da puta! — exclamou Roy Wong, quando, de repente, houve um congestionamento de tráfego na rua estreita e barulhenta próxima ao cruzamento movimentado de Mong Kok.

Connochie enfiou a cabeça pela janela.

— Ele também está fodido, Roy. Uns vinte carros adiante. Dali a pouco, o congestionamento começou a se desfazer, depois piorou de novo, por causa de um caminhão com excesso de carga. Quando as coisas se normalizaram, a presa havia sumido.

— Merda!

— Dê umas voltas. Talvez a gente tenha sorte e o descubra.

Dois quarteirões adiante, Koronski saltou do táxi e desceu um beco fervilhante de gente, dirigindo-se para outra rua superlotada, outro beco e o cortiço de Ginny Fu. Subiu as escadas sujas até o andar superior. Bateu três vezes numa porta suja. Suslev mandou que entrasse e trancou a porta atrás dele.

— Bem-vindo — disse suavemente, em russo. — Fez boa viagem?

— Sim, camarada comandante, muito boa — replicou Koronski, também falando baixo, por hábito.

— Venha sentar-se.

Suslev indicou uma mesa onde havia café e duas xícaras. A sala era desleixada, com poucos móveis. As janelas, cobertas por persianas sujas.

— O café é bom — falou Koronski, educadamente, achando que era pavoroso, nada que se comparasse ao café à moda francesa das exóticas Bangkok, Saigon e Phnom Penh.

— É o uísque — disse Suslev, a fisionomia dura.

— O Centro ordenou que eu fique à sua disposição, camarada comandante. O que quer que eu faça?

— Há um homem aqui que tem uma memória fotográfica. Precisamos saber o que há nela.

— Onde o cliente deve ser interrogado? Aqui? Suslev sacudiu a cabeça.

— A bordo do meu navio.

— Quanto tempo temos?

— Todo o tempo de que você precisar. Nós o levaremos conosco para Vladivostok.

— É muito importante obter informações de qualidade?

— Muitíssimo.

— Nesse caso, preferiria fazer a investigação em Vladivostok... posso dar-lhe sedativos e instruções especiais que manterão o cliente dócil durante a viagem para Iá, e que começarão o processo de amaciamento.

Suslev repensou o problema. Precisava da informação de Dunross antes de chegar a Vladivostok.

— Não pode vir comigo no meu navio? Zarpamos com a maré, à meia-noite.

Koronski hesitou.

— Recebi ordens do Centro para prestar-lhe assistência, contanto que não arrisque o meu disfarce. Se fosse para o seu navio, isso sem dúvida aconteceria... o navio certamente estará sob vigilância. Se eu sumir do hotel, hem?

Suslev balançou a cabeça, concordando. "Não faz mal", pensou. "Sou um interrogador tão bem treinado quanto Koronski, embora nunca tenha feito um interrogatório em profundidade com substâncias químicas."

— Como se faz um interrogatório com a ajuda de substâncias químicas?

— É muito simples. Injeções intravenosas de um agente químico que chamamos de Pentothal-V6, duas vezes ao dia, durante dez dias, com intervalos de doze horas... depois que o cliente estiver num estado mental adequado, assustado e desorientado, graças ao método costumeiro de dormir-acordar, seguido por quatro dias de ausência de sono.

— Temos um médico a bordo. Será que ele pode aplicar as injeções?

— Sim, claro. Posso sugerir-lhe que eu escreva o modo de agir e lhe forneça todas as substâncias químicas necessárias? Você fará o interrogatório?

— Sim.

— Se seguir o procedimento estabelecido, não terá problemas. A única coisa séria a lembrar é que, uma vez que o Pentothal-V6 seja administrado, a mente do cliente fica como uma esponja molhada. É preciso muito carinho e um cuidado ainda maior para extrair a quantidade exata de água, a informação, no ritmo exato, ou então a mente ficará permanentemente danificada, e todas as outras informações perdidas para sempre. — Koronski soltou baforadas do seu cigarro. — É fácil perder um cliente.

— É sempre fácil perder um cliente — falou Suslev. — Qual a eficácia desse Pentothal-V6?

— Tivemos grandes sucessos e alguns fracassos, camarada comandante — replicou Koronski, cautelosamente. — Se o cliente for bem preparado e saudável, estou certo de que terá êxito.

Suslev não respondeu, apenas deixou a mente reexaminar o plano apresentado tão entusiasticamente por Plumm no fim da noite anterior, plano com o qual Crosse concordara relutantemente.

— É uma barbada, Grigóri, tudo está se encaixando. Agora que o Dunross não vai para Taipé, virá à minha festa. Dar-lhe-ei uma bebida drogada, que o fará enjoar pra burro... será fácil fazer com que vá se deitar num dos quartos... a mesma droga o fará dormir. Logo que os outros tiverem ido embora (e a festa vai ser curtinha, das seis às oito), eu o colocarei num baú e o levarei até o carro pela entrada lateral. Quando derem por falta dele, direi que o deixei dormindo no quarto e que não tenho idéia da hora em que ele saiu. Bem, como vamos colocar o baú a bordo?

— Isso não é problema — disse ele. — Mande entregá-lo no barracão 7 do estaleiro de Kowloon. Estamos recebendo todo tipo de suprimentos a granel e mercadorias, já que nossa partida foi antecipada, e mal se examina o que sai de Hong Kong. — Suslev acrescentara, com divertimento sombrio: — Existe até mesmo um caixão, se precisarmos dele. O corpo de Voranski vem do necrotério as vinte e três horas, uma entrega especial. Filhos da mãe! Por que Nosso Amigo não apanhou os filhos da mãe que o assassinaram?

— Está fazendo o que pode, Grigóri. Está, sim, juro. Logo os apanhará... mas, o que é mais importante, este plano vai funcionar!

Suslev balançou a cabeça, concordando com seus botões. "É, é exeqüível. E se o tai-pan foi interceptado e descoberto? Não sei de nada, Boradinov não sabe de nada, embora seja o responsável, e eu simplesmente zarparei deixando Boradinov levar a culpa, se for necessário. Roger dará cobertura a tudo. Ah, sim", pensou, sombriamente, "dessa vez será o pescoço do Roger no cepo britânico, se eu não tiver cobertura. Plumm tem razão. O seqüestro do tai-pan pelos Lobisomens ajudará a criar o caos completo por algum tempo, sem dúvida com quase nenhum risco... tempo bastante para cobrir o desastre do Metkin e a intercepção das armas."

Ligara para Banastasio naquela noite, para se certificar de que o projeto da Par-Con estava em andamento, e ficou chocado ao saber da reação de Bartlett.

— Mas, sr. Banastasio, o senhor nos garantiu que teria tudo sob controle. O que pretende fazer?

— Pressão, sr. Marshall — disse Banastasio apaziguado-ramente, usando o pseudônimo pelo qual o conhecia. — Pressão até o fim. Farei a minha parte, o senhor faça a sua.

— Ótimo. Então prossiga com seu encontro em Macau.

Garanto que um carregamento substituto estará em Saigon dentro de uma semana.

— Mas esses palhaços aqui já disseram que não negociarão sem carregamento nas mãos.

— Ele será entregue diretamente aos nossos amigos viet-congues em Saigon. Pode fazer os arranjos que achar necessários para o pagamento.

— Claro, claro, sr. Marshall. Onde vai ficar em Macau? Onde posso entrar em contato com o senhor?

— Estarei no mesmo hotel — dissera-lhe, sem ter intenção de fazer contato. Em Macau, outro controlador com o mesmo pseudônimo cuidaria daquela parte da operação.

Sorriu consigo mesmo. Pouco antes de deixar Vladivostok, o Centro lhe ordenara que fosse o controlador daquela operação independente, codinome King Kong, que fora montada por um dos aparelhos do KGB em Washington. Só o que ele sabia do plano é que iam mandar armas avançadas, altamente secretas, para os vietcongues em Saigon, através da mala diplomática. Em troca, e em pagamento pela informação, ópio seria entregue a bordo em Hong Kong... a quantidade dependendo do número de armas contrabandeadas.

— Quem bolou isso merece uma promoção imediata — dissera ele ao Centro, encantado, e escolhera o pseudônimo de Marshall por causa do general Marshall e seu plano, que todos sabiam havia arruinado a tomada imediata e total da Europa pelos soviéticos, no final dos anos 40. "Esta é a nossa vingança, o nosso Plano Marshall ao contrário", pensou.

Abruptamente, riu em voz alta. Koronski esperou, atentamente, calejado demais para perguntar o que havia de tão divertido. Mas, sem pensar, analisara a risada. Havia medo nela. O medo era contagioso. Gente com medo comete erros. Erros prendem inocentes em armadilhas.

"É", pensou, inquieto, "esse homem cheira a covardia. Mencionarei o fato no meu próximo relatório, mas delicadamente, para o caso de ele ser importante."

Ergueu os olhos e viu que Suslev o observava, e perguntou-se, nauseado, se o homem lera os seus pensamentos.

— Sim, camarada comandante?

— Quanto tempo vai demorar para escrever as instruções?

— Alguns minutos. Posso fazê-lo agora, se desejar, mas terei que voltar ao hotel para pegar as substâncias químicas.

— Quantos tipos diferentes deverão ser usados?

— Três: um para fazer dormir, outro para acordar, e o último, o Pentothal V6. A propósito, ele deve ser mantido em temperatura baixa até ser usado.

— Apenas o último é aplicado na veia?

— É.

— Ótimo, então anote tudo. Agora. Tem papel? Koronski fez que sim, e tirou um pequeno caderno de

notas do bolso da calça.

— Prefere em russo, inglês, ou taquigrafia?

— Russo. Não há necessidade de escrever a técnica de acordar-dormir-acordar. Eu a usei muitas vezes. Só a última fase, e não cite nominalmente o Pentothal-V6, chame-o apenas de remédio. Compreendeu?

— Perfeitamente.

— Ótimo. Quando tiver acabado, coloque-o ali. — Indicou uma pequena pilha de jornais usados sobre o sofá comido de traças. — Ponha-o no segundo de cima para baixo. Apanharei depois. Quanto às substâncias químicas, há um banheiro de homens no andar térreo do Hotel Nove Dragões. Prenda-as com adesivo à parte de dentro da tampa, no último reservado da direita... e por favor, esteja no seu quarto às nove da noite, para o caso de eu precisar de algum esclarecimento. Está claro?

— Sem dúvida.

Suslev se levantou. Imediatamente Koronski fez o mesmo, estendendo-lhe a mão.

— Boa sorte, camarada comandante.

Suslev fez um sinal de cabeça cortês, apropriado a um inferior, e se retirou. Foi até o fim do corredor, atravessou uma porta empenada e subiu uma escada até o telhado. Sentiu-se melhor ao ar livre. O cheiro do quarto e o cheiro de Koronski o haviam desagradado. O mar o chamava, o oceano amplo e limpo, o cheiro de algas marinhas. "Será bom estar novamente no mar, longe da terra. O mar, o oceano e o navio mantêm a sanidade da gente."

Como a maioria dos telhados em Hong Kong, aquele estava lotado das mais diversas moradias improvisadas, o espaço alugado... a única alternativa para as encostas de lama superlotadas de favelas que ficavam nos Novos Territórios e nas colinas de Kowloon ou Hong Kong. Cada centímetro de espaço na cidade fora ocupado havia muito pelo vasto fluxo de imigrantes. A maioria das favelas era ilegal, como todas as moradias nos telhados, e conquanto as autoridades as proibissem e deplorassem, essas transgressões eram sabiamente ignoradas, pois para onde mais iriam aqueles infelizes? Não havia esgotos, água, nem a mais elementar higiene, mas ainda era melhor do que nas ruas. Do alto dos telhados, o método de se desfazer das coisas era arremessá-las para baixo. Os yan de Hong Kong sempre caminhavam no centro da rua, e nunca na calçada, mesmo que houvesse uma.

Suslev foi se abaixando por sob os varais de roupa, pisando o lixo trazido pelo mar, indiferente às obscenidades automáticas que o acompanhavam, divertindo-se com os molecotes que corriam à sua frente, gritando "Quai loh... quai loh!", rindo juntos, estendendo as mãos. Ele era yan de Hong Kong demais para dar-lhes algum dinheiro, embora sua pobreza e bom humor o emocionassem; assim, apenas xingou-os cordialmente e tocou de leve algumas cabeças tosadas.

No outro extremo do telhado, a entrada para o cortiço de Ginny Fu se projetava como um funil antigo. A porta estava entreaberta. Ele desceu.

— Alô, Gregy — falou Ginny Fu, ofegante, abrindo a porta da frente para ele. Estava vestida como ele mandara, num traje desmazelado de cule, com um grande chapéu de palha cônico descendo-lhe pelas costas, o rosto e as mãos sujos. — Que tal estou? Como artista de cinema, heya?

— Greta Garbo em pessoa — disse ele, com uma risada, enquanto ela corria para os seus braços e lhe dava um grande abraço.

— Quer mais "fuque-fuque" antes de partirmos, heya?

— Niet. Tempo de sobra nas próximas semanas. De sobra, heya? — Pousou-a no chão. Dormira com ela de madrugada, mais para provar sua virilidade do que por desejo. "Esse é o problema", pensou. "Não há desejo. Ela é enfadonha." — Bem, você entendeu o plano, heya?

— Oh, sim — disse ela, com imponência. — Vou até o barracão 7 e junto-me aos cules, carrego os fardos para navio. No navio, vou para a porta em frente à escada, entro e dou papel. — Tirou-o do bolso para mostrar que estava em segurança. No papel estava escrito em russo "cabine 3". Boradinov a estaria esperando. — Na cabine 3 posso usar banheiro, vestir roupas que você comprou, e esperar. — Outro grande sorriso. — Heya?

— Excelente!

As roupas tinham sido baratas, e comprá-las evitava levar bagagem. Era muito mais simples sem bagagem. Bagagem chamaria a atenção. Nada sobre ela devia ser notado.

— Certeza não precisa levar nada, Gregy? — perguntou, ansiosa.

— Não, só maquilagem, coisas de mulher. Tudo no bolso, compreendeu?

— Claro — respondeu, altiva. — Sou idiota?

— Ótimo. Então pode ir indo. Mais uma vez ela o abraçou.

— Ah, obrigado férias, Gregy... vou ser melhor do mundo — falou, e foi embora.

O encontro com Koronski dera-lhe fome. Foi até a geladeira velha e achou os chocolates que buscava. Comeu um deles, depois acendeu o fogão e começou a fritar uns ovos. Sua ansiedade começou a voltar. "Não se preocupe", ordenou a si mesmo. "O plano vai dar certo, você porá as mãos no tai-pan, e tudo será rotina no quartel-general da polícia.

"Deixe essas coisas de lado. Pense na Ginny. Talvez no mar não seja tão enfadonha. Ela ocupará as noites, algumas noites. O tai-pan, os dias, até atracarmos. A essa altura ele estará vazio, ela desaparecerá numa nova vida, esse perigo terá deixado de existir para sempre, e eu irei para a minha dacha, onde a diaba da Zergueiev estará esperando, e nós brigaremos, e ela me dirá todos os palavrões até que eu perca a paciência, e lhe arranque as roupas do corpo, talvez use o chicote de novo, e ela lutará e lutará até que eu entre nela à força e goze, goze levando-a comigo às vezes, Khristos, como eu adoraria que fosse sempre. Depois dormir, sem saber quando ela me matará enquanto durmo. Mas ela já foi avisada. Se alguma coisa me acontecer, meus homens a entregarão aos leprosos no leste de Vladivostok, com o resto da família dela."

O rádio deu o noticiário das sete em inglês:

"Bom dia. Aqui fala a Rádio Hong Kong. Espera-se mais chuva forte. O Victoria Bank confirmou oficialmente que assumirá todas as dívidas dos clientes do Ho-Pak, e pede a estes que façam fila pacificamente se necessitarem do dinheiro na segunda-feira.

"Durante a noite houve numerosos deslizamentos de terra e lama por toda a colônia. Os lugares mais atingidos foram as favelas acima de Aberdeen, Sau Ming Ping, e Sui Fai Terrace, em Wanchai, onde seis grandes deslizamentos de terra afetaram prédios naquela área. Ao todo, trinta e três pessoas pereceram, e teme-se que ainda haja muitas outras soterradas.

"Não há nenhuma novidade quanto ao brutal assassinato e seqüestro do sr. John Chen pela quadrilha dos Lobisomens. Foram oferecidas recompensas de cem mil dólares por informações que conduzam à sua captura.

"Notícias de Londres confirmam que as colheitas deste ano na URSS fracassaram novamente..."

Suslev não ouviu o resto do noticiário. Sabia que as notícias de Londres eram verdadeiras. Previsões altamente secretas do KGB haviam revelado que as colheitas ficariam mais uma vez abaixo do que era necessário até para a subsistência.

"Khristos, por que diabo não conseguimos nos alimentar?", tinha vontade de gritar, tendo visto de perto a fome, a intumescência e as dores, além das histórias pavorosas que o pai e a mãe lhe tinham contado.

"Então vai haver a fome mais uma vez, mais uma vez o apertar dos cintos, ter que comprar trigo do exterior, usando a nossa moeda estrangeira ganha a duras penas, nosso futuro em perigo, perigo terrível, a comida o nosso calcanhar-de-aquiles. Nunca o bastante. Nunca técnicos, tratores, fertilizantes ou dinheiro bastante, todo o dinheiro de verdade indo para armas, exércitos, aeroplanos e navios, em primeiro lugar, muito mais importante ficarmos fortes o bastante para nos protegermos dos porcos capitalistas e dos porcos revisionistas chineses e levarmos a guerra até eles, destroçando-os antes que nos destrocem, mas nunca comida o bastante para nós e para nossos Estados-tampão: os Bálcãs, a Hungria, a Tchecoslováquia, a Polônia, a Alemanha Oriental, as terras bálticas. Por que é que aqueles filhos da mãe podem alimentar-se, na maioria das vezes? Por que é que falsificam os dados relativos a suas colheitas e nos tapeiam, mentem e roubam de nós? Nós os protegemos, e o que fazem? Amarram a cara e nos odeiam, e no entanto, sem nossos exércitos e o KGB para manterem os dissidentes revisionistas nojentos na linha, eles fomentariam rebeliões (como na Alemanha Oriental e Hungria) e virariam as massas estúpidas contra nós.

"Mas a fome causa revolução. Sempre. A fome sempre fará com que as massas se sublevem contra o governo. Então, o que poderemos fazer? Mantê-los acorrentados (a todos) até esmagarmos os Estados Unidos e o Canadá e tomarmos conta dos seus trigais. Então, nosso sistema duplicará a colheita deles.

"Não se tente enganar", falou consigo mesmo, agoniado. "Nosso sistema agrícola não funciona. Nunca funcionou. Um dia funcionará. Nesse meio tempo, não conseguimos nos alimentar. Aqueles lavradores de merda, sem mãe, deviam..."

— Pare com isso — resmungou Suslev, em voz alta —, você não é responsável, o problema não é seu. Cuide dos seus próprios problemas e tenha fé no partido e no marxismo-leninismo.

Os ovos já estavam prontos, e ele preparou torradas. A chuva fustigava as janelas abertas. Cessara havia uma hora a torrente que durara a noite inteira, mas do outro lado da rua e acima do cortiço do lado oposto havia nuvens escuras. "Vem mais chuva por aí", pensou, "muito mais. Nesta droga de lugar ou há a maldita seca ou a maldita enchente!" Uma rajada de vento fustigou um dos barracos improvisados de papelão ensopado no telhado, fazendo com que desabasse. Imediatamente tiveram início os consertos estóicos, crianças que mal conseguiam andar já ajudando.

Com mãos hábeis, apreciando a ordem, ele arrumou um lugar para si à mesa, cantarolando ao compasso da música do rádio. "Está tudo jóia", tranqüilizou-se. "Dunross irá à festa, Koronski fornecerá os meios, Plumm, o cliente, Roger, a proteção, e só o que tenho a fazer é ir ao qg da polícia por cerca de uma hora, depois voltar calmamente para o meu navio. Com a maré da meia-noite, mando Hong Kong à merda, deixando os Lobisomens a enterrar os mortos..."

Os cabelos da sua nuca ficaram todos arrepiados ao ouvir a sirene de um carro de polícia que se aproximava. Ficou paralisado. Mas a sirene continuou o seu caminho. Logo o ruído desapareceu. Estoicamente, sentou-se e começou a comer. E então o telefone secreto tocou.


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