Inferno

Deixai tocar a esperança, Ó vós que

entrais!

DANTE

A primeira palhota apareceu entre dois embondeiros. Angelino alçou a mão, ordenando ao grupo que se imobilizasse, e fez sinal a um dos seus homens de que avançasse. O soldado ultrapassou a fila com a G3 apontada para a frente e meteu-se pelo capim até desaparecer para além da palhota.

A mochila que Diogo trazia às costas era demasiado pesada, pelo que a pousou no chão com um suspiro de alívio, e ajeitou a arma, preparando-se para qualquer eventualidade. Ao lado Angelino perscrutava o capim, atento aos mais pequenos ruídos.

"Que se passa?", perguntou-lhe Diogo num sussurro. "Onde estamos?"

"Zangaia."

Era o nome do aldeamento para onde se deveriam dirigir, o que significava que haviam chegado ao destino. Olhou em redor e viu o grupo de comandos agachado no trilho com as armas automáticas em prontidão; não era assim que imaginava a primeira parte da missão, considerando o seu perfil.

"Porque parámos?"

"O Samuel foi bater o terreno."

Isso já Diogo havia percebido. O que não entendia era a prontidão para o combate diante de um aldeamento considerado amistoso. Decidiu, contudo, manter-se calado. Aquele era o modo operacional dos comandos e achou que, em tais circunstâncias, não devia submeter o amigo a uma barragem de perguntas; o tempo lhe traria as respostas.

A primeira surgiu, de resto, menos de cinco minutos depois, quando Samuel reapareceu na companhia de dois aldeãos sorridentes e fez um sinal com o braço aos seus camaradas. Ao identificar o sinal, Angelino ergueu-se e deu a ordem.

"Vamos!"

O grupo de comandos levantou-se com descontracção e começou a caminhar despreocupadamente em direcção à palhota. Diogo agarrou na G3 e, encorajado por ver a sua maratona à beira do fim, levantou a mochila e pô-la às costas, preparando- se para o derradeiro esforço. Eram só mais uns metros até se ver livre do peso infernal que arrastara pela picada desde que as Berliets os haviam largado na estrada.

Os soldados entraram na aldeia e foram acolhidos com hospitalidade. Homens e mulheres aproximaram-se, algumas mamanas traziam até bebés embrulhados às costas, e transportaram pequenos troncos para os visitantes se sentarem. Havia crianças a saltitar entre as cubatas, espreitando os recém-chegados com um misto de receio e fascínio.

Angelino cumprimentou o régulo e, depois de trocar as gentilezas habituais com o chefe da aldeia, veio ter com o amigo a rir-se.

"Olha para eles!", disse, apontando para as crianças. "Mostra-lhes uma das tuas prendas e já vais ver!..."

Diogo pousou a mochila com estrondo e, bufando para recuperar o fôlego, arrancou a tira que a selava e meteu a mão no interior, extraindo uma enorme caterpillar vermelha de plástico que mostrou às crianças.

"Unfuna brinquedo?", gritou-lhes Angelino. "Venham buscá-lo!"

Os rapazes hesitaram um momento ainda, os olhos arregalados na direcção do grande carro que Diogo tinha na mão. Um deles, mais atrevido, perdeu a vergonha e veio dali a correr, no que foi imitado pelos restantes. Estabeleceu-se de imediato uma algazarra infantil em redor do atrapalhado Diogo e da sua mochila, o que ateou gargalhadas dos soldados e dos aldeãos.

"Eh pá!", gritou Diogo, tentando controlar a excitação dos rapazes e mantê-los afastados do saco.

"Calma! Calma!"

Sentia-se o Pai Natal do mato. Extraiu uma pistola de plástico que uma criança logo lhe surripiou e a seguir aconteceu o mesmo com um pequeno Fórmula 1 azul, um Tyrrell-Ford do campeão do mundo, Jackie Stewart. Qualquer brinquedo que tirava do saco volatilizava-se entre aqueles braços magros.

"E as miúdas?", perguntou-lhe Angelino, a voz a sobrepor-se ao clamor agitado da rapaziada. "E

as miúdas?"

Diogo viu as raparigas paradas à distância a observá-los e percebeu a observação do amigo.

Vasculhou no saco e retirou uma boneca com um vestido rosa-bebé que exibiu no ar. Os rapazes olharam desconcertados para o brinquedo, não era o que estavam à espera de ver, mas as meninas reagiram de imediato e aproximaram-se. A primeira a chegar ficou com a boneca.

A algazarra prolongou-se enquanto havia brinquedos no saco; nas mãos do soldado apareciam sucessivamente carros, bonecas e armas de plástico. Logo que a distribuição terminou, porém, as crianças largaram Diogo e afastaram-se para brincar na clareira. O saco havia-lhe dado um trabalhão durante a marcha, mas o visitante sentia-se plenamente compensado.

Sentou-se à sombra de uma maçaniqueira e ficou a contemplar a fila de pessoas diante das caixas e dos sacos que os comandos haviam transportado até à aldeia; as caixas traziam medicamentos e os sacos estavam cheios de rações de combate. A distribuição era comandada por Angelino, mas a certa altura o comandante da companhia delegou a tarefa no furriel Sousa e foi inspeccionar as sentinelas que haviam sido distribuídas em torno da aldeia para garantir a segurança de todo o grupo.

Quando a distribuição ficou concluída e Angelino voltou da sua inspecção, os soldados foram convidados para a clareira principal. Os aldeãos acendiam uma fogueira e Diogo viu-os esfolar um cabrito que tinham acabado de matar em honra dos visitantes e atravessá-lo com um pau para o rodar sobre o fogo. Algumas mulheres pilavam o pilão, o som surdo a ecoar como um batuque que marcava o ritmo da vida na aldeia, e uma enorme panela cheia de xima, a tradicional farinha de milho, foi igualmente posta ao lume.

Os anfitriões distribuíram os primeiros pedaços de carne pelos visitantes e Diogo não pôde deixar de se rir.

"é esta a guerra dos comandos?", perguntou ao sentar-se ao lado de Angelino enquanto trincava o cabrito quente. "é a primeira vez que vos acompanho numa missão e não imaginava que fosse tão violento!..."

O amigo ignorou o tom irónico.

"O psico faz parte do nosso trabalho."

"é duro, sim senhor! Transportar brinquedos, medicamentos e comida? Caramba!" Voltou a rir-se. "Pensava que tinhas dito que com os comandos a guerra era a doer!..."

"E é!", retorquiu Angelino, entretido a limpar com os dentes os últimos vestígios de carne que permaneciam teimosamente agarrados a um osso. "O que nós estamos a fazer chama-se operação de acção psicológica. Nunca ouviste falar? Visitamos aldeamentos amigos, trazemos ajuda e convivemos com o pessoal."

"Ora! Isso também faz o resto da tropa", argumentou Diogo. "Conviver com as populações é o pão nosso de cada dia. O que os comandos fazem qualquer magala faz. O que têm vocês de especial?"

O chefe da missão contemplou demoradamente o osso que segurava na ponta dos dedos.

Estava limpo, já não havia nem um farrapo de carne para arrancar. Atirou o osso para trás das costas e foi com o prato buscar um pedaço de xima, que acompanhou com feijão. Voltou ao lugar e sentou-se pesadamente.

"Queres saber o que nós temos de especial?"

"Não estou cá para outra coisa."

Angelino molhou a xima no feijão e meteu-a na boca com as pontas dos dedos.


"Amanhã já vais ver."

A escova tocou na lama e recuou, como se a testasse. A luz da alvorada era ainda fraca e Diogo teve de aproximar os olhos, à maneira de um míope, para analisar o resultado. Estava seca. Com um movimento brusco e rápido, escovou a parte'interior da sola da bota e voltou-a para o outro lado, estudando as ilhoses metálicas de latão preto unidas pelo atacador; tinham poeira. Passou a escova pelas duas filas paralelas de ilhoses e ergueu-se delas uma fina nuvem de pó. A seguir inspeccionou a parte externa da bota; havia mais lama junto ao calcanhar. Aproximou a escova e esfregou de novo com intensidade.

"Diogo, já estás pronto?"

Ergueu os olhos e viu Angelino aproximar-se com o furriel Sousa.

"Quase, quase."

"Estás a fazer o quê? A cheirar o chulé da bota?"

"A tirar o matope."

"Tem juízo, pá! Calça-te e vem daí! Está na hora!"

Sabendo que não se podia tornar um fardo para os comandos, Diogo encaixou os pés nas botas, pegou na G3 e na mochila e ergueu-se, apressando o passo para se pôr ao lado dos dois homens que haviam passado por ele sem parar.

"Partimos já?"

"Iá, mas agora é a doer. Quero-te a meio da coluna." Deu uma palmada no ombro do furriel que caminhava ao seu lado. "Aqui o Sousa vai atrás de ti para se assegurar de que não te acontece nada.

Não é, Sousa?"

O furriel riu-se.

"Até lhe dou o biberão!"

"Vês? Se quiseres o biberão é só falares com o Sousa. A propósito, já matabichaste?"

"Pára com isso, pá!", protestou Diogo. "Pareces a minha mãe!"

"Sou mais do que a tua mãe", devolveu Angelino, deitando um olhar indagador à espingarda automática do amigo. "E a G3? Está em condições?"

"Vá lá, não me chateies..."

"Eu fiz-te uma pergunta!"

Diogo quase revirou os olhos, mas o tom de comando tornara claro que dessa vez Angelino não falara como seu amigo, mas como comandante da 6.a Companhia de Comandos.

"Passei a noite a limpá-la."

O alferes inclinou a cabeça e, estreitando os olhos, esboçou uma expressão desconfiada.

"Não brinques comigo, pá! Eu vi-te andar por aí depois do jantar. Não foste às pretas?"

"Claro que não."

O amigo riu-se.

"Olha-me esta andorinha, armada em menina! Ontem foi toda a gente às gajas e tu andaste a fazer o quê?

"Não preciso das gajas aqui do aldeamento."

O olhar de Angelino iluminou-se.

"Ah, pois! Tu tens a tua Sheila, não é?" Voltou a rir-se, muito satisfeito consigo próprio. "Estás habituado a bife da cidade e já não te contentas com galinhas do mato! Iá, és um finório!"

Apesar de os primeiros raios de Sol despontarem já sobre o mato, ainda fazia escuro e ali apenas se viam luzes de lanternas a bailar na sombra e escutavam-se ordens dadas em voz baixa.

Diogo integrou-se na coluna e posicionou-se entre Isaías, um maconde ainda estremunhado, e o furriel Sousa, um mulato de Vila Pery. Espreitou o relógio. Seis da manhã; era de facto a hora prevista para se porem a caminho.

"Vamos", murmurou Angelino ao passar pelo furriel. "Tá a andar!"

A ordem de marcha foi dada em voz baixa, como era hábito entre os comandos, e o furriel Sousa passou-a a Diogo, que a passou a outro homem, até todo o grupo se pôr em movimento e fundir-se em silêncio com o mato, como fantasmas a mergulhar na bruma.Havia já três horas que Diogo estava deitado no capim, ao lado de um arbusto, a vigiar o Mazonha. O longo lençol prateado serpenteava pela planície, deslizando gorgolhante uns cinquenta metros mais à frente. O Sol brilhava alto, incendiando-lhe o cocuruto, pelo que se encostou à direita, a tentar refugiar-se na sombra de uma micaia.

"Tá quieto!", murmurou Angelino. "Uma emboscada requer imobilidade total."

"Isto é uma seca", queixou-se Diogo, indicando com a cabeça o rio vazio. "Já aqui estamos há maningue tempo e ainda não apareceu ninguém."

"Tem paciência."

Um zunido enervante cortou a erva e Diogo fez um gesto rápido com a mão, tentando afastar a mosca incómoda. O insecto voltou à carga, serpenteando em torno da cabeça, e o furriel viu- se forçado a enxotá-lo com gestos largos que Angelino teve de travar para evitar que a posição fosse denunciada. Mas a técnica pareceu ter funcionado porque a mosca acabou por desaparecer e a modorra reinstalou-se na margem do rio.

"Quando é que saímos daqui?"O comandante consultou o relógio.

"Mais três horas e pomo-nos na alheta!"

O amigo bufou, esforçando-se por ganhar paciência, e deixou-se ficar quieto. Fazia calor, embora a brisa do rio temperasse o ar. Ouviu uma rã e distraiu-se a tentar localizá-la; pelo som pareceu-lhe que estaria junto a uns ramos que haviam encalhado na margem, mas um novo coaxar deu-lhe a impressão de vir de outra direcção e esforçou-se por lobrigar a rã nuns tufos de capim alto e amarelado. Permaneceu longamente naquele jogo estúpido, procurando a todo o custo situar as rãs em função da direcção dos sucessivos coaxares, mas não logrou identificar a posição de uma única.

O jogo foi interrompido uma hora depois por um súbito marulhar da água. Olhou naquela direcção e viu círculos concêntricos a afastarem-se da superfície, num ponto próximo da margem.

Destravou a G3 e apontou-a para ali, o coração de repente aos pulos. Acontecera alguma coisa.

"Viste aquilo?"

Angelino olhava na mesma direcção.

"lá."

"Achas que são eles?"

A voz de Diogo era ansiosa, mas o amigo parecia manter a calma mais absoluta.

"Eles, quem?"

"Os turras, pá!"

O comandante dos comandos riu baixinho.

"São turras, são."

"Viste-os?"

"Vi pois!"

Diogo olhou para os círculos que se afastavam da superfície da água e voltou a cabeça para o amigo, sem perceber as risadinhas.

"E então? Não abrimos fogo?"


Angelino voltou a rir baixo.

"Ó parvalhão, são jacarés!"

O amigo fixou os olhos na superfície do rio, tentando confirmar a informação.

"Jacarés? Tens a certeza?"

"O Mazonha está cheio deles", retorquiu Angelino, apontando para a água. "Estás a ver aquele tronco ali?"

Diogo olhou na direcção indicada e viu um tronco de árvore a boiar na corrente líquida, o perfil recortado sobre o espelho reluzente. "Iá."

"é um jacaré."

Observou com mais cuidado, tentando destrinçar movimento, mas o tronco permanecia perfeitamente imóvel.

"A sério?"

"Estou-te a dizer. Ora olha com atenção."

Diogo ficou longos minutos a espreitar o tronco, que continuava estático. Em circunstâncias normais teria desistido de olhar para aquele ponto durante mais de um ou dois minutos, mas ali não havia nada para fazer e aquela parvoíce, por incrível que pudesse parecer, mantinha-o distraído.

Ao fim de quinze minutos, o tronco moveu-se, soltando novos círculos concêntricos na superfície, e, com um movimento rápido e um breve borborejar, desapareceu no fundo da água.

"Tinhas razão!"

A novidade alegrou Diogo: afinal sempre sucedera qualquer coisa. Sorriu para Angelino com a satisfação de quem presenciara um grande acontecimento, mas depressa o efeito da novidade se desvaneceu e percebeu que, eliminada aquela pequena atracção, teria de se voltar para o jogo das rãs. Apurou o ouvido, tentando captar mais um coaxar, e suspirou com enfado.

"Que seca!"

Faltavam já menos de três horas para o pôr do Sol quando Angelino se levantou e olhou em redor, procurando os seus homens. Consciente de que todos o estavam a ver, ergueu o braço e encolheu-o; depois ergueu-o de novo e voltou a encolhê- lo. Estava dado o sinal para se porem em movimento.

Por toda a margem do rio, onde antes se avistavam apenas capim e arbustos, os homens emergiram quase do nada. Eram vinte e cinco comandos, que, apesar de fatigados por tantas horas em silêncio, se mantiveram calados e acompanharam a direcção de marcha do seu comandante.

Os soldados caminhavam espaçados, conforme a técnica de progressão no mato, mas a curiosidade levou a melhor sobre Diogo, que acelerou o passo e foi ter com o amigo.

"Para onde vamos?"

Angelino tirou um mapa do bolso e desdobrou-o.

"Temos de fazer uma operação de progressão até este ponto", disse, indicando o destino com o dedo. "Pernoitamos aqui e logo pela manhã vem um helicóptro trazer-nos um turra que os pides arranjaram. Parece que o gajo nos vai mostrar a localização de uma base do in."

"Vai, vai", ironizou o furriel Sousa, que também se aproximara. "Se for como o último, acho que vamos andar à caça dos gambozinos!..."

O comandante suspirou.

"O que tu achas não interessa nada", cortou com secura. "Estas são as ordens que temos e vamos cumpri-las. Daqui até ao objectivo são duas horas de marcha pelo mato." Verificou o relógio.

"Arrancando agora, chegamos lá antes ainda de a noite cair." Fitou reprovadoramente os dois homens plantados junto dele. "O que estão vocês a fazer ao pé de mim? Tá a andar."

O furriel Sousa assentiu e afastou-se de imediato, mas Diogo manteve-se colado ao amigo.

Angelino franziu o sobrolho, pouco habituado a que as suas ordens não fossem imediatamente acatadas.

"Que foi? Não ouviste o que eu disse?"

"Ouvi, pois", admitiu Diogo. "Mas o que é uma operação de progressão?"

Angelino esboçou uma expressão contrariada e fez tenção de se afastar, mas reconsiderou e indicou ao amigo que o acompanhasse. Todo o grupo se encontrava já em marcha, deambulando pelo mato denso. Samuel seguia à frente, na posição de batedor, aos ziguezagues por entre arbustos e árvores, evitando pontos de exposição. Os comandos avançavam um a um, em fila, mas deixando muito espaço entre eles. Os únicos que caminhavam juntos eram o comandante e Diogo.

"Uma operação de progressão é o que estamos a fazer agora", explicou Angelino em voz baixa.

"Como sabes enconframo-nos numa zona do in. A nossa missão é identificar toda esta área para localizar turras ou população que os proteja. Quem for apanhado por aqui é, por definição, um in ou um apoiante do m."

Diogo ouviu a explicação mas não pareceu convencido.

"E como damos com esse pessoal? Metemos pelo mato e fazemos figas para ter sorte?"

O amigo riu-se de mansinho.

"Achas que estamos a avançar ao acaso?"

"Parece."

Angelino deteve-se e apontou para a esquerda.

"Olha para ali", disse. "Estás a topar aquilo?"

Diogo fixou a atenção na direcção indicada e, após algum esforço, destrinçou efectivamente algo de irregular; pareceu-lhe uma linha estreita em que o capim estava tombado e que corria quase paralelamente ao percurso que os comandos seguiam.

"lá."

"É um trilho."

O significado da linha pisada tornou-se claro.

"Pois é!", constatou. "E porque não vamos por ali? Sempre era mais fácil do que irmos pelo meio do mato!..."

O comandante retomou a marcha.

"Estás parvo ou quê?", repreendeu-o. "Os tipos davam com as nossas pegadas, pá. Além do mais, aquela merda pode estar minada. Mas o mais importante é que os turras usam o trilho.

Vamos vigiá-lo um bocado e pode ser que tenhamos sorte."

"Eles andam ali? Porquê, se está minado?"

"Não te preocupes com os gajos. Os cabrões sabem muito bem onde esconderam as minas."

Caminharam mais umas centenas de metros. Diogo ia observando o trilho distante, quase fascinado. Será que veria turras aparecerem por ali? A ideia produziu nele sentimentos ambivalentes; por um lado, ansiava pela excitação de um recontro, mas por outro receava as consequências de tal situação.

"Já alguma vez deste com um turra nos trilhos?", quis saber Diogo.

"Eu? Claro."

"Ai sim? Como foi?"

Angelino riu-se baixinho.

"Eh, pá! Foi uma cilada bem montada!... Pusemo-nos todos a andar no trilho durante um ou dois quilómetros e a determinada altura eu fiz um sinal e demos todos um passo para o lado, pisando o capim. Depois escondemo-nos e ficámos à espera, emboscados no trilho. Passada meia hora vimos aparecer um gajo com uma kalash a andar devagar e curvado, de olhos nas nossas pegadas. Até que chegou ao ponto onde elas acabaram. O turra ficou atarantado e pôs-se à procura da continuação. Foi aí que o Sousa lhe mandou uma bojarda e acabámos com ele."

A memória da história provocou um largo sorriso no comandante dos comandos, evidentemente orgulhoso com o engenho da emboscada. Todavia, Diogo não se riu; não porque não achasse graça à história, mas porque estava a imaginar-se no lugar do turra.

Lançou um olhar desconfiado ao trilho.

"Olha lá, e se eles nos toparem agora?"

Angelino encolheu os ombros, quase indiferente.

"Isso é pouco provável", retorquiu. "Nós estamos fora do trilho."

"Sim, mas e se toparem?"

"Se toparem, toparam." Indicou o grupo de comandos que progredia em fila pelo mato, um homem aqui e outro lá atrás.

"Estás a ver o espaço entre nós? É um procedimento elementar de segurança, uma vez que assim, se derem connosco, dificilmente conseguirão disparar sobre mais de dois."

Diogo observou os comandos a progredirem isoladamente pelo mato e ponderou o que o amigo lhe explicara.

"Então se calhar era melhor fazermos o mesmo, não?"

Angelino riu-se.

"Estás com medo?"

"Não, mas...", atrapalhou-se Diogo. "Enfim..."

"Tens razão, é melhor respeitarmos o procedimento de segurança."

Acto contínuo o comandante apressou o passo, distanciando-se do amigo. O par desfez-se e a fila de comandos alongou-se pelo mato, contornando elevações e arbustos; pareciam formigas num carreiro espaçado.

Um burburinho alguns metros adiante despertou a atenção de Angelino. O comandante aproximou-se da dianteira da fila e viu Samuel a falar com duas pessoas. Era uma mulher envolta numa capulana já muito gasta, embora limpa, e uma menina que não deveria ter mais de sete anos.

Tinham um saco de serapilheira pousado no chão com o interior repleto do que pareciam ser frutos silvestres.

"Que se passa?", quis saber. "Quem é esta gente?"

Samuel indicou uma maçaniqueira encostada a um pequeno monte ali ao lado.

"Estavam ali a apanhar maçanicas."

Contrariado, o comandante respirou fundo e lançou um olhar reprovador ao subordinado.

"Porra! Não podias ter-te mantido invisível?"

O comando, um negro do Moatize bem constituído, abriu os braços num gesto impotente.

"Ia a vigiar o trilho e não as vi", explicou. "Quando dei por ela, estavam as duas a olhar para mim. Que havia eu de fazer? Já não me podia esconder..."

Diogo chegou nesse instante junto dos camaradas e observou a mulher e a criança com curiosidade. Ambas fitavam os soldados com uma evidente expressão de receio; mal se atreviam sequer a mexer-se para não darem mais nas vistas.

"Quem são estas?"

A pergunta não recebeu réplica; na verdade nem precisava, tão evidente era a resposta.


"Pergunta-lhe quem são e de onde vieram", ordenou Angelino, indicando a mulher.

Samuel pôs-se a dialogar com ela em nhungué e recebeu respostas rápidas e nervosas, acompanhadas por uma profusão confusa de gestos.

"Dizem que vivem num aldeamento a duas horas daqui e que vieram cá buscar comida."

"Viram turras?"

O soldado do Moatize voltou a trocar palavras em nhungué com a mulher, que abanou a cabeça com veemência.

"Diz que não. Diz que não há turras por aqui."

Angelino esfregou o queixo, meditativo.. Por esta altura já outros comandos haviam chegado ao local, embora se tivessem colocado em posições de vigilância para garantir a segurança. O

comandante fitou Samuel com uma expressão inquisitiva.

"O que achas?"

"Ela está a mentir", opinou Samuel. "Fez duas horas a pé para vir aqui buscar umas maçanicas?

Não existem maçaniqueiras ao pé do aldeamento?" Fez uma careta céptica. "Hmm... esta tipa está-

nos a partir a vista!..."

O comandante assentiu.

"Também acho", disse. Olhou para a posição do Sol. "Já só temos mais uma hora de luz.

Despacha-te."

Samuel ergueu a G3 e apontou-a na direcção da mulher e da rapariga, que deram um passo horrorizado para trás.

"Não!", travou-o Angelino. "A G3 faz muito barulho."

Sem largar a espingarda automática, o comando negro tirou a faca do cinto. Diogo observou o movimento com estupefacção e voltou-se para Angelino, esperando dele uma contra-ordem que travasse Samuel. Para seu maior pasmo, porém, o amigo tinha também ele extraído a faca do cinto e dera já um passo em frente.

"O que vão vocês fazer?", perguntou Diogo, mal acreditando no que observava diante dele.

"Então? Que é isso?"

Vendo os dois soldados a aproximarem-se com lâminas na mão, a mulher agarrou-se à rapariga, tapando-lhe o rosto, e ambas caíram de joelhos a chorar.

"Lekani kutipaah!" , balbuciou a mulher aos soluços, o rosto molhado com lágrimas de desespero. "Não nos matem!"

Os dois comandos deram um salto e agarraram-nas por trás; Samuel ficou com a mulher e Angelino com a rapariga.

"Pára!", gritou Diogo com horror, sem saber o que fazer para travar aquela loucura, impotente para impedir o que se tornara já inevitável. "Pára com isso, pá! Pára com isso!"

O que se passou a seguir foi estonteantemente rápido e bizarramente lento. Com os braços esquerdos em V a imobilizarem as cabeças das vítimas, os dois comandos fizeram um movimento rápido com as facas e rasgaram os pescoços à sua mercê. Diogo ouviu uma erupção líquida e um gorgorejar sinistro e viu as vítimas espernearem em silêncio até que os comandos as largaram e elas tombaram, a mancha de sangue a alastrar pela terra enquanto se remexiam nas derradeiras pulsões de vida, até ao estertor final, a convulsão que as deixou enfim imobilizadas e estancou o rio vermelho que lhes jorrava das gargantas rotas.

Boquiaberto, Diogo levou um longo instante a despertar do torpor da surpresa.

"Já viste o que vocês fizeram?", perguntou numa fúria súbita, dando um salto em frente e encostando o rosto à cara de Angelino. "Assassino! és um assassino! és um..."

O amigo deu-lhe um empurrão, tentando mantê-lo à distância.


"Cala-te!"

"... criminoso! Filho da puta!" Diogo voltou a colar-se a Angelino e aplicou-lhe um murro no estômago que apanhou o comandante de surpresa. "Cabrão de merda! Viste o que fizeste? Viste o que..."

Uma mão ensanguentada colou-se à boca de Diogo e calou-o, ao mesmo tempo que algo de repente o imobilizou. Era Samuel que o agarrava por trás e o amordaçava com a mesma mão com que degolara a menina de sete anos. Diogo emitiu ainda sons abafados e pontapeou o ar, tentando libertar-se a todo o custo, mas acalmou no mesmo instante em que, com a outra mão, Samuel exibiu ameaçadoramente a faca suja de sangue e lhe encostou a ponta ao pescoço.

"Quietinho."

Angelino, que caíra no chão, ergueu-se devagar e apanhou a sua G3. Depois aproximou-se de Diogo e apontou-lhe um dedo à cara.

"Não voltes a questionar-me numa operação, ouviste?", rugiu entre dentes. "Querias ver o que é a verdadeira guerra?" Indicou os dois cadáveres. "Pois ei-la!"

Samuel largou a sua presa e, sem tirar os olhos dela, ajoelhou-se e pôs-se a limpar a faca às folhas de um arbusto.

Livre do abraço que lhe tolhia os movimentos, Diogo cambaleou e contemplou com angústia os dois corpos estendidos no chão, como se tentasse certificar-se de que eram verdadeiros e tudo não ocorrera durante um pesadelo, mas no mundo real. Rodou a cabeça como num sonho e viu vários comandos em redor a observá-lo; os homens haviam-se aproximado logo que se aperceberam da altercação e pareciam estudá-lo com curiosidade divertida, como se o anormal não fosse matar aquelas pobres criaturas, mas tentar salvá-las.

Angelino mirava-o também, como um professor a submeter o aluno ao crivo de um exame, mas não prolongou o olhar por muito tempo. Ao fim de uns instantes deu meia volta e fez sinal aos seus homens.

"O circo acabou", disse. "Tá a andar!"A água que encontraram no meio do capim era esverdeada de tão nojenta, havia até larvas de mosquito a boiar à superfície, mas isso não impediu Angelino de mergulhar o cantil no charco e extraí-lo repleto de líquido; parecia uma sopa de verduras.

O chefe dos comandos não se intimidou com o aspecto repugnante da água. Retirou do bolso uma pequena caixa de medicamentos, isolou um comprimido e atirou-o para o fluido infecto que lhe enchia o cantil. Aguardou uns minutos e depois desfez o lenço do pescoço, pô-lo por cima de um cantil vazio e vazou a água do primeiro cantil sobre o lenço até encher o segundo. Terminada a operação, examinou a água assim filtrada; mantinha-se ainda algo baça, mas já não se podia dizer que estivesse imunda.

"Já está!", exclamou com satisfação. Estendeu o cantil na direcção de Diogo. "Queres?"

O furriel abanou negativamente a cabeça, mas nada disse e nem sequer olhou para o comandante.

Angelino virou-se e, respirando fundo, sentou-se ao lado do amigo com o cantil na mão. Encostou-se à rocha e exalou o ar como se assim se libertasse de todo o cansaço acumulado ao longo do dia.

A jornada havia sido longa e tinha de se preparar para uma outra que podia ser pior.

"Ainda estás amuado?"

A pergunta quase fez Diogo revirar os olhos de irritação. Sentindo o corpo do comandante ao seu lado, remexeu-se e afastou-se um palmo para marcar as distâncias. Claramente não queria conversas.

"O que foi?", insistiu Angelino. "Cheiro mal?"

O amigo hesitou, como se ponderasse se devia responder ou permanecer em silêncio. Poderia manter-se calado, mas receou parecer demasiado infantil. é certo que tinha bons motivos para pôr o comandante de quarentena, mas isso seria fazer figura de criança mimada. A fúria que o consumia, por outro lado, era demasiado forte. Por que razão se deveria conter?

"Cheiras a crianças mortas!", vociferou baixinho. "Metes-me nojo!"

Angelino ficou momentaneamente calado, como se não tivesse resposta a dar; ou talvez estivesse apenas a pensar no que poderia dizer. Bebericou a água do charco que havia coado e cuspiu para o lado, possivelmente para se livrar do sabor amargo do comprimido que usara para eliminar as larvas de mosquito.

"Queres saber porque matámos aquelas duas?", perguntou por fim.

Diogo nem o encarou.

"Isso já sei", limitou-se a dizer. "Porque és um criminoso."

"Não vês nenhuma outra razão?"

Dessa vez Diogo voltou-se e derramou um olhar de desprezo sobre Angelino.

"Que outra razão poderia haver para degolares uma mulher e uma criança?"

"Por segurança."

A resposta desencadeou em Diogo uma gargalhada forçada.

"Segurança? Deves estar a reinar comigo!", exclamou com desdém. "Que ameaça representavam aquelas duas desgraçadas?

Tinhas medo que a mais pequena te matasse à dentada? Ou que a mais velha te trincasse a pila?

Não me venhas com histórias, pá! Aquelas mortes foram gratuitas! Eram civis, estavam desar-madas e não constituíam a mínima ameaça. Matá-las foi um crime."

Angelino cuspiu novamente para o lado.

"Não fales alto, ouviste? E controla-me essas risadas parvas!" Depois esticou a cabeça e varreu o espaço em redor, como se procurasse alguém. "Samuel?! Samuel?!"

A noite havia despontado e apenas restava no horizonte o clarão moribundo do Sol já desaparecido, como o rasto escarlate de um fantasma que se desvanecia lentamente no céu. Um vulto curvado assomou então da sombra.

"Que é?"

Era Samuel.

"Podes contar aqui ao nosso amigo a operação no monte Xipire?"

"Qual? A dos dois putos?"

"Essa mesmo."

Preocupado com a possibilidade de o seu perfil ser detectável recortado pela luz do crepúsculo, Samuel sentou-se aos pés dos dois interlocutores e pousou a G3 no regaço.

"Foi uma operação comandada pelo alferes Anselmo", disse. "Fomos com um turra que os pides nos entregaram e que supostamente sabia da localização de um aquartelamento do in. O gajo levou-nos até uma palhota e disse que era um receptor de alimentação. Não havia nada lá dentro e ficámos a emboscar a palhota. Como não apareceu ninguém, queimámo-la e apertámos com o turra para nos dar um objectivo verdadeiro."

"Isso é palha", cortou Angelino, impaciente. "Vai ao que interessa nessa história."

Samuel respirou fundo.

"Quando íamos pelo mato em busca de um novo objectivo demos com dois miúdos de mão dada. Um tinha talvez sete anos e o outro uns três. Tentámos sacar-lhes alguma informação, mas eles não disseram nada de útil. Depois pôs-se o problema do que fazer com eles. Era uma das nossas primeiras operações em território do in e, na instrução em Montepuez, tinham-nos dito que as testemunhas são sempre para eliminar. Mas o alferes Anselmo teve maningue pena dos putos, de modo que..."

"Conta o que o Anselmo disse."

O comando hesitou, tentando reconstituir de memória os acontecimentos.

"Disse que eram miúdos desarmados e inofensivos, não constituíam a menor ameaça e seria um crime se os matássemos."

"E então? O que aconteceu?"

"Deixámo-los ir e seguimos o nosso caminho. Duas horas depois caímos numa emboscada.

íamos pelo capim, longe de qualquer trilho, quando apanhámos fogo de toda a parte. Xi! Aquilo foi maningue mau! Os turras até tiros de morteiro despejaram sobre a malta! O Orario foi atingido e nós tivemos de bater em retirada. O problema é que os gajos vieram atrás do pessoal e metralharam-nos constantemente. Ficámos à rasca. Tínhamos de carregar o Orario e estávamos em território do in a ser caçados pelos turras. Andámos dois dias naquilo: eles a disparar e nós a cavar.

Até que o alferes Anselmo lançou uma acção de mão e conseguimos capturar um turra. Os gajos recuaram para se reorganizarem e, aproveitando a trégua, chamámos os helis e saltámos dali para fora."

"Depois interrogaram o turra capturado, não foi?"

"lá."

"O que disse ele?"

Samuel fez uma pausa antes de responder.

"Que uns miúdos foram dizer aos pais que tinham visto a tropa", murmurou num tom seco. "Os pais falaram com os guerrilheiros. Os turras interrogaram os putos sobre o número de soldados do nosso grupo e a direcção em que seguíamos e comunicaram com uma unidade que tinham no sector para onde nós nos dirigíamos." Fez um estalido com a língua. "Foi essa unidade que montou a emboscada."

"Olha lá, desde que és comando quantas vezes estiveste numa operação em que sofreste uma emboscada?"

"Foi só essa vez."

"E em quantas operações houve baixas do nosso lado?"

"Foi só essa vez também." O soldado negro respirou fundo e arreganhou os lábios, exibindo os dentes amarelados. "Filhos da puta dos miúdos!"

Fez-se um silêncio momentâneo entre os três, que Afígelincf deixou prolongar para que a informação fosse devidamente digerida pelo amigo.

"Obrigado, Samuel", disse por fim o comandante da companhia. "Podes ir."

O vulto do soldado fundiu-se de imediato com a sombra. A noite caíra por completo e apenas as luzes das estrelas e do quarto crescente lunar iluminavam o mato com um clarão de prata. A treva enchia-se de ruídos estranhos; eram os insectos e os pássaros envolvidos em duetos mais ou menos melódicos, um criiiii-criiii ali, um tu-tu acolá. Os soldados falavam em sussurros, esforçando-se por se manter invisíveis.

Angelino bebeu a água que lhe restava e pousou o cantil.

"Como vês, em território do in nenhum civil é inofensivo", disse à laia de conclusão. "Nem dois putos com menos de dez anos. Por ter poupado esses miúdos, não só o nosso grupo acabou por não cumprir a missão como se viu emboscado, foi perseguido e sofreu uma baixa. E sabes porquê? Porque o Anselmo não teve tomates para cumprir o seu dever! A segurança do grupo e a execução da missão são as duas prioridades que devem orientar a acção de um comando.

Toda a ameaça a essas prioridades tem de ser eliminada, custe o que custar e por mais repugnante que isso pareça. Isto é uma coisa que nos foi ensinada na instrução em Montepuez e constatada na vida real." Fez um gesto largo, como se quisesse abarcar todo o mato. "Porque isto, meu caro amigo, não é uma fita de Hollywood nem uma história do Mundo de Aventuras, mas a realidade da guerra. Nos filmes e nos livros os bons nunca eliminam mulheres nem crianças e só matam os maus em última instância. O mundo real não é assim. Em território hostil até as mulheres e as crianças constituem, mesmo que não o queiram, ameaças maningue sérias à tua segurança. Se não as eliminares, já sabes: serás morto."

Diogo remexeu-se no lugar.

"Está bem, é verdade que aquelas duas não podiam ser deixadas à solta", admitiu, voltando ao caso do dia. "Mas ao menos podíamos tê-las trazido connosco. Não havia necessidade de as matar..."

"Trazíamo-las connosco, dizes tu?"

"Sim, porque não? Poupavas-lhes a vida e salvaguardavas a nossa segurança."

Angelino soltou uma gargalhada baixa e sem humor.

"Então vou-te contar outra história", disse. "E essa passou-se comigo. Aqui há uns tempos estivemos três semanas numa operação no mato e, já no final, quando nos encaminhávamos em território do in para o ponto onde seríamos recolhidos pelos helis, demos de caras com uma miúda. A gaja devia ter uns quinze anos, não menos. A nossa reacção foi limpá-la imediatamente, para ela não denunciar a nossa presença e não termos os turras todos em cima de nós. Mas eu pensei: a missão está terminada e já vamos de regresso. Para quê eliminá-la? O perigo que a tipa representa é mínimo. Porque não poupá-la? De modo que foi o que fizemos."

"Deixaste-a ir embora?"

"Claro que não!", exclamou Angelino de pronto. "Achas que sou parvo ou quê? Não a podíamos largar em liberdade, isso nem pensar. A gaja poderia pôr em risco a segurança da nossa retirada do teatro de operações. O que eu fiz foi pegar nela e trazê-la connosco, estás a perceber?" Mudou o tom de voz. "Oh pá, nem imaginas o pesadelo que foi!"

"O quê? Ela arranjou maneira de contactar os turras?"

"Não é isso, pá!" Angelino aproximou-se do amigo e a voz assumiu um tom de confidência.

"Repara, há três semanas que o pessoal estava no mato. Isso significa que há três semanas que não víamos uma gaja, não é? Éramos vinte e cinco homens,tínhamos ainda de passar a noite no mato antes de sermos recolhidos no dia seguinte, a malta andava toda com tusa e, de repente, ficamos ali com uma miúda de quinze anos toda boa e à mão de semear. O que pensas tu que aconteceu?"

A pergunta fez estremecer Diogo, que se pôs a imaginar a cena e a reconstituir o que lhe era sugerido.

"Vocês... porra! Vocês fizeram-lhe alguma coisa? Vocês..."

O comandante da companhia riu-se.

"Tentativas não faltaram, posso-te garantir", disse. "Toda a gente queria molhar a sopa, como deves calcular. De modo que nessa noite nem preguei olho só para me assegurar de que ninguém tocava na miúda. Ó pá, só te digo que cheguei a arrepender-me de não a ter matado! Iá, caraças! Foi um inferno a noite inteira! Mas no dia seguinte lá a consegui meter no heli e a miúda veio connosco para o quartel. Chegou ao Mazoi pura e casta como a virgem que se calhar não era."

"Fizeste bem."

"A questão não é essa, Diogo. Eu pude garantir que ninguém tocava nela porque foi só uma noite. Agora imagina que eu trazia aquelas duas gajas que hoje nos viram? Achas que as conseguia proteger estas noites todas que vamos estar no mato? Ia ser um regabofe, pá!"


"Mas ao menos sobreviviam..."

"Não sei se sobreviviam." Fez um gesto com a cabeça a indicar os camaradas. "Qualquer gajo aqui que esteja a rebentar de tusa podia sacá-las à socapa pela noitinha, violava-as atrás de um arbusto e matava-as para elas não o denunciarem. Isto são comandos, pá, não são meninas do

ballet!"

"Eu protegia-as."

"Não gozes comigo!", riu-se Angelino, como se a ideia de um furriel da tropa regular a enfrentar um punhado de comandos fosse a coisa mais absurda que jamais ouvira. "Mas, imaginando que esse problema se resolvia, o facto é que as gajas iam ser um fardo enquanto estivéssemos no mato. Eu e tu não pregávamos olho só para as proteger, a malta só pensava nelas em vez de se

concentrar na missão, andávamos sempre preocupados com elas e as tipas arrastavam-se pelo mato a queixar-se que estavam cansadas e tinham fome e mais não sei quê. No fim retiravam- nos agilidade, concentração e capacidade de movimento. Com as gajas aqui connosco, a nossa missão dificilmente seria levada a cabo com sucesso."

"Mas estavam vivas", insistiu Diogo. "E isso é importante."

"É importante nos filmes americanos! Se nós fôssemos trazer connosco cada civil que encontramos no mato, nenhuma missão dos comandos seria bem sucedida, pá. Nem uma! O nosso trabalho não é andar a carregar civis de um lado para o outro em zona hostil; é localizar e eliminar os turras. E é bom que não te esqueças que, em território do in, a população não é neutral. Os civis, mesmo aqueles que têm o aspecto mais inocente do mundo, fazem parte do in."

Diogo reajustou o corpo, acomodando-se contra a rocha junto à qual se haviam sentado.

"Olha, não tenho a certeza de que..." Interrompeu a frase e deu um salto, alarmado. "Eh pá! O

que é isto?"

Reagindo quase instantaneamente, Angelino pôs-se em pé com a G3 em riste.

"O quê? Que se passa?"

"Está aqui alguma coisa, pá!"

"O quê? Onde?"

"Aqui! Na pedra!"

O comandante dos comandos extraiu a lanterna do bolso e acendeu-a, voltando-a para a rocha que haviam escolhido para protecção durante a noite. O foco de luz deambulou nervosamente pela superfície rugosa, fazendo as sombras dançarem com movimentos bruscos, até se imobilizar no que parecia um cilindro brilhante. Fixaram os olhos no cilindro e, pasmados, perceberam que ele se mexia.

"Porra!", exclamou Angelino. "É uma cobra!"

Atraídos pelo súbito sururu, vários comandos convergiram para o foco de luz e admiraram o enorme volume viscoso que se contorcia em torno de um buraco rasgado na base da rocha.

"É jibóia, pá!", constatou Samuel. "Temos de dar cabo dela!"

Ainda contemplaram a possibilidade de usarem a G3, mas era uma solução ruidosa e, por isso, demasiado arriscada e desaconselhável em território hostil. Os soldados acabaram por optar pelas facas e por paus. Retiraram-nas do cinto e atiraram-se à enorme cobra, retalhando-a ainda viva.

Depois enterraram os pedaços e limparam os vestígios com uma pá.

"é a pedra", observou Angelino, enquanto lavava as mãos com um pano molhado. "Como ela se mantém quente durante a noite, as gajas vêm para aqui." Pegou na lanterna e passeou o foco pela base da grande rocha, incidindo no buraco para onde a jibóia se havia dirigido. "Olha ali! Estão a ver? Pode haver mais cobras, caraças!"


"Nesta zona jibóias é mato", confirmou Samuel. "Acho que vamos ter de usar pólvora. Vai fazer um bocadinho de barulho, mas paciência!"

Os comandos retiraram algumas balas das caixas de munições e abriram-nas, despejando a pólvora numa folha de papel. Quando a pólvora se acumulou num pequeno montículo, inseriram a folha à entrada do buraco e deitaram-lhe um fósforo. A pólvora incendiou-se com um fzzzzz

transformado em clarão e os militares viram duas cobras pequenas sair apressadamente do buraco e desaparecer na treva.

A visão das jibóias em fuga desencadeou uma galhofa breve.

"Esta noite já não nos chateiam mais!", exclamou Angelino, encostando-se à rocha. "Seria mais seguro se estivéssemos debaixo de uma árvore, mas como por aqui não há nenhuma teremos de nos contentar com isto."

Nessa noite jantaram a ração de combate. Quando acabaram de comer, enterraram os resíduos para não deixar vestígios da sua passagem por ali e foram-se deitar. Angelino pôs dois homens de vigia em posições opostas; ficaram ambos deitados de barriga para baixo, de modo que a sua silhueta não se recortasse no horizonte.

Os restantes foram dormir junto à grande rocha. Estenderam- se num círculo com a cabeça virada para fora e a G3 encostada ao corpo, sempre preparada para uma eventualidade. Os murmúrios acabaram e a noite foi entregue aos sons do mato, uns estranhos e outros familiares; os grilos estridulavam, os lagartos gecavam, um mocho crocitava. O concerto foi interrompido por uma gargalhada distante.

Diogo ergueu a cabeça, alarmado.

"Angelino!", sussurrou. "Angelino!"

A voz impaciente do comandante dos comandos sussurrou- lhe de volta.

"Que é?"

"Ouviste esta gargalhada?"

Foi a vez de Angelino soltar a dele, mas baixa e curta.

"É uma hiena, pá", disse. "Cala-te e dorme!"

O céu constelado estava limpo de nuvens e o mato era iluminado pelo clarão flamejante do mar de estrelas; o braço da galáxia estendia-se pelo eixo central do firmamento, tão brilhante que a sua luz projectava sombras ténues no mato. Diogo fixou a atenção no Cruzeiro do Sul; parecia-lhe a estrutura de um papagaio de papel. De tanto deambular com os olhos pelas profundezas do céu, começou a sentir vertigens e virou-se de lado, evitando assim contemplar as estrelas.

Fechou os olhos e tentou adormecer, mas as imagens dos acontecimentos do dia não paravam de aflorar. Com a mente a fervilhar de interrogações, Diogo deu voltas e reviravoltas no lugar até chegar à conclusão de que não conseguiria adormecer enquanto não assentasse todas as ideias que se cruzavam na sua cabeça.

"Angelino!", sussurrou ele ao fim de alguns minutos. "Angelino! Estás acordado?"

O amigo respondeu num fio de voz estremunhado.

"Que é?"

"Estou ainda a pensar naquelas duas gajas que matámos hoje."

"Vai dormir, pá!"

Diogo calou-se por momentos, avaliando se valia a pena dizer o que lhe ia na mente. Admitiu deixar a coisa por ali, mas as ideias não lhe saíam da cabeça e, após novas reviravoltas, ergueu-se um pouco e apoiou-se nos cotovelos.

"Sempre ouvi o Marcello dizer que a guerra só se ganha conquistando as mentes e os corações da população."

"Qual Marcello?"

"O Caetano, pá. O presidente do Conselho."

Angelino suspirou pesadamente.

"Esse gajo não tem a mínima noção do que se passa aqui", murmurou o comandante da companhia com um traço de irritação na voz. "Também é daqueles que acham que a guerra no mato é igual à guerra dos filmes e coisa e tal."

"Mas ele tem razão, pá. Como é que ganhas a guerra sem o apoio das populações? E se nós matamos as populações, como podemos nós esperar que elas nos ajudem?"

Novo suspiro.

"Já vi que também não tens noção nenhuma."

"Desculpa, mas não respondeste à minha pergunta", insistiu Diogo, convencido de que a sua ideia era pertinente. "Como podes esperar conquistar o apoio das populações se matas todos os civis que te aparecem pela frente? Como achas que as famílias vão reagir?"

"Eu não mato todos os civis", corrigiu Angelino. "Só mato os civis que se encontram em zona hostil e faço-o porque sei que eles já estão contaminados pelo in."

"E contaminados continuarão se procedermos todos como vocês procedem..."

Foi a vez de Angelino, já bem desperto, se soerguer e se apoiar nos cotovelos.

"Mas tu achas que alguma população em zona hostil virará para o nosso lado só porque poupámos alguns dos seus elementos?", perguntou erguendo a voz, quase exaltado. "Se os pouparmos eles ficam todos contentes porque passam a dispor de informações precisas sobre a nossa força e os nossos movimentos e podem montar-nos emboscadas a seu bel-prazer. Se os pouparmos, eles..."

"Chiu!", sussurrou um soldado que tentava dormir.

Apercebendo-se de que se exaltara, Angelino interrompeu-se e controlou de imediato o nível da voz.

"Tu tens de perceber uma coisa elementar", disse, regressando ao tom murmurante. "Por que razão as populações ficam contaminadas? A resposta é: devido à presença do in. A nossa tropa está nos quartéis, mas os turras misturam-se com as populações, entendes? Se eu vivo numa aldeia e tenho turras a morarem na palhota ao meu lado, é natural que me deixe contaminar por eles. Se não o fizer de livre vontade, faço-o por medo. A tropa entra na minha aldeia e vai-se embora, mas os turras continuam a viver ali. Se eu os denunciar à tropa, outros turras vão aparecer e à primeira oportunidade tratam-me da saúde. Nessas condições, como poderei eu pôr-me ao lado da tropa?"

"Estou a perceber..."

"É por isso que, quando o Marcello diz que é preciso conquistar as mentes e os corações das populações, ele não tem a mínima noção da realidade do terreno. Quando os turras se infiltram numa aldeia, a aldeia fica contaminada e não há nada que possamos fazer. Se os quisermos eliminar, temos de eliminar a aldeia."

"Mas há aldeias que nos são favoráveis", argumentou Diogo. "Ainda ontem fomos dar brinquedos, comida e medicamentos a uma aldeia dessas. Isso prova que, adoptando a política certa, podemos conquistar mentes e corações."

"Isso só é verdade nas aldeias que não foram contaminadas."

"Não foram contaminadas por causa da nossa ajuda."

"Não!", corrigiu Angelino. "Não foram contaminadas apenas porque o in ainda não decidiu contaminá-las. No momento em que os turras entrarem nelas e se puserem a viver ali, vais ver o que acontece!..."


"Os régulos podem expulsá-los..."

O comandante riu-se baixinho.

"Isso queriam eles! Ainda há uns tempos o régulo Buxo, em Mucumbura, fez frente aos turras.

Sabes o que lhe aconteceu? Mataram-no! O resto do pessoal acagaçou-se e submeteu-se. Conclusão: a aldeia dele ficou contaminada. E isto está sempre a acontecer, pá. Os turras assassinam qualquer régulo ou fumo que se ponha do nosso lado. Portanto, mete isto na cabeça: por convicção ou medo, as populações estão sempre do lado de quem vive com elas. A partir do momento em que os turras vivem nas aldeias e a tropa fica nos quartéis, está tudo dito! Numa situação destas, a única maneira de..."

"Chiu!"

A reprimenda calou Angelino. O comandante da companhia consultou o relógio e, sabendo que teriam de se levantar às quatro da manhã, calculou as horas que lhe restavam de sono. Não eram muitas.

"É tarde, pá", disse, voltando a deitar-se e acomodando-se numa posição confortável. "Toca a dormir."

Estendido na sua esteira, Diogo voltou a mirar o firmamento estrelado enquanto digeria o que acabara de ouvir. Mas não levou muito tempo. A treva profunda do céu, que antes lhe desencadeara vertigens, começou a pesar-lhe nos olhos e um minuto mais tarde já o furriel deslizara para o sono profundo.As portinholas foram fechadas e os camiões arrancaram com fragor, os motores a urrarem como uma súbita erupção. A nuvem de pó erguida pelos pneus das

Berliets em movimento envolveu as palhotas e engoliu a aldeia do fumo Mandie, o chefe aliado que os acolhera para a missão que acabavam de levar a cabo. Diogo sentia-se cansado e pousou o olhar nas palhotas que iam ficando para trás, transformando-se em silhuetas que se esfumaram na poeira escura.

O Sol estava a pique e fazia um calor infernal. Diogo esticou a cabeça para aproveitar o movimento do camião onde seguia e refrescar-se com o vento. O ar que lhe bateu na cara era quente e seco, mas sempre lhe parecia melhor do que a fornalha da imobilidade.

Sentiu os olhos pesarem e, espreitando em redor, percebeu que já havia camaradas seus a dormitarem, indiferentes aos solavancos da Berliet pela picada. Tinham acordado cedo e o dia já ia longo. A viagem de regresso ao Mazoi durava uma hora, pelo que o melhor seria fazer como eles.

O soldado ajeitou a G3, acomodou-se no seu lugar e encostou-se ao companheiro dadireita, mergulhando num torpor sonolento. Gostaria de dormir, mas o veículo, como todas as Berliets, tinha a meio da caixa duas filas de bancos virados para fora e os soldados ficavam todos voltados para o mato; se adormecesse poderia cair da viatura, pelo que se limitou a dormitar.

Bonk.

Veio a si com um salto e olhou em volta, observando alguns companheiros de ar estremunhado a tentarem igualmente" perceber o que acontecera. Fora um solavanco mais forte do que o habitual.

Trocaram olhares cúmplices e sorriram, voltando a acomodar-se para retomar o sono. Mas depressa veio outro solavanco violento e mais outro, este último tão grande que todos ficaram por momentos suspensos no ar.

"Porra para esta merda!", protestou Diogo. "Parece uma montanha russa!"

Um negro franzino, macua dos arredores de Nampula, arreganhou os lábios e exibiu uma fileira reluzente de dentes brancos.

"Um comando até de pé dorme", proclamou, mudando de posição para se pôr mais confortável.

"Só a tropa da Metrópole é que precisa de colchão, como as meninas. és menina?"

Diogo mudou de posição, desesperado com o assento duro da Berliet.


"Vai-te lixar!"

O macua riu-se e fechou os olhos, regressando instantaneamente ao torpor sonolento. Mas Diogo não conseguiu descontrair-se; os sucessivos abanões do camião eram demasiado desconfortáveis para isso, pelo que ficou a contemplar o mato. O Sol flamejava alto e inclemente, e nada mexia em redor; apenas se via capim, terra vermelha, embondeiros gigantescos e os morros de muchém erguidos pelas colónias de térmitas.

A picada desembocou numa estrada de terra batida e a viagem tornou-se mais cómoda, mas Diogo manteve-se desperto porque sabia que Tete era já a seguir. Viu as primeiras casas e estudou as pessoas que circulavam pelas ruas; tentava avistar Sheila, mas, embora a cidade fosse pequena, sabia que dificilmente daria com ela a andar ao ar livre àquela hora. Teve ganas de saltar lá para fora e ir ao hospital procurá-la, mas foi apenas um impulso inconsequente e deixou-se estar até o casario ficar para trás e a coluna meter pela estrada de Vila Pery e da Beira, a mesma que passava pelo Mazoi.

O furriel Sousa, que viera sempre no lugar ao lado do condutor, saltou pouco depois para a carga e juntou-se aos homens sob o seu comando. Três ainda dormitavam, embalados pelo balouçar monótono da Berliet, mas os restantes haviam despertado quando a coluna circulou por Tete e passavam agora um maço de LM entre todos.

"Está tudo bem?"

"Sem problemas, meu furriel."

"Vai uma bazuca?"

A pergunta agitou o grupo, subitamente interessado.

"Ainda há, meu furriel?"

Sousa dobrou-se sobre o assento da frente e ergueu uma caixa de madeira que tilintou com o movimento. Pousou a caixa diante dos soldados e, com um sorriso triunfal, extraiu uma garrafinha de Manica.

"Está quente, mas não faz mal", disse. "É cerveja!"

O ambiente na Berliet animou e todos agarraram a sua garrafa, arrancando a tampa na fechadura da portinhola do camião e despejando a cerveja quente pela garganta.

"Agora só falta uma gaja, caraças!"

"O quê? Não te chegou a mamalhuda de ontem?"

"As gajas nunca chegam, pá! Quantas mais melhor!" "Iá."

O tema, regado a cerveja, alegrou os comandos. Seguiram-se alguns comentários sobre as mulheres com quem haviam estado na véspera, no aldeamento Mandie, a troco de vinte escudos, mas sem dar pormenores. Eram como irmãos, mas havia coisas que cada um reservava para si.

A Diogo também coubera uma pretinha, mas recusara. A rejeição valera-lhe a troça dos camaradas, embora isso não o tivesse incomodado; não era comando nem tinha nascido em Moçambique, não se sentia obrigado a partilhar aqueles rituais de iniciação. Por isso, e apesar de integrar o grupo havia já quinze dias, achava-se um estranho e mantinha-se relutante em participar na galhofa como se fosse um deles. Estava a meio da comissão e faltavam-lhe outros quinze dias para terminar aquela missão entre os comandos; a verdade é que não via a hora de regressar ao BART. Desde que integrara as tropas especiais que a sua perspectiva sobre a guerra de facto se alterara, mas não para melhor. Seria um alívio voltar ao Chioco. Ficou por isso a observar as brincadeiras entre os comandos como se não fosse participante, mas mero espectador.

As cervejas esvaziaram-se e os soldados recostaram-se nos assentos, iniciando um concerto de arrotos que voltou a divertidos; tudo servia para se entreterem. Mas depressa a algazarra acalmou e o furriel Sousa, preocupado com o protegido de Angelino, sentou-se ao lado de Diogo.

"Então?", interpelou-o. "Divertiste-te?"

Não era a pergunta que Diogo esperava, pelo que ficou momentaneamente sem saber o que dizer.

"Acho que sim", acabou por murmurar.

"Deste uns tiraços?"

"Dois ou três para o ar."

O alferes aplicou-lhe uma palmada na perna.

"Um destes dias vais ter de dar um balázio em alguém", disse. "Ninguém é verdadeiramente um comando se não matar um turra, caraças! Ainda tens dez dias para mostrares o que vales!"

"Mas eu não sou um comando."

O furriel abriu-se num sorriso.

"Lá isso é verdade!"

Diogo voltou-se e mirou a Berliet que os seguia. Era ali que viajava o régulo e os respectivos filhos, que haviam capturado durante a operação que tinham levado a cabo nessa madrugada.

"O que vai acontecer aos presos?"

"Vamos entregá-los à PIDE."

"Mas o que lhes irá suceder?"

"Serão interrogados."

"E depois?"

Sousa encolheu os ombros com indiferença.

"Sei lá", exclamou. "Depende do que disserem e das informações que a PIDE tiver sobre eles. Se os tipos..."

Zzzzzziiim mmmm

Rata-ta-ta-ta-ta-ta!

O caos irrompeu sem aviso na Berliet. Os zumbidos de bala rasgaram o ar e vários projécteis ricochetearam na blindagem do camião numa sinfonia de morte.

"Emboscada!"

Quando o furriel Sousa gritou já todos os soldados se haviam espalhado pela carga para se abrigarem das balas invisíveis. Diogo sentiu uma chicotada de adrenalina incendiar-lhe o sangue e começou a ver o caos que se desencadeara em seu redor ao retardador, como em câmara lenta, os sentidos aguçados, as cores mais vivas, os sons mais presentes, os movimentos incrivelmente demorados. Mesmo ao lado escutou um gemido romper no meio da confusão e apercebeu-se de que alguém ficara ferido. A sua prioridade naquele instante era, todavia, outra, e concentrou-se antes nos sons realmente importantes, as detonações e os zumbidos de projécteis metálicos que rasgavam o ar; eram eles a verdadeira ameaça, os ruídos que requeriam toda a sua atenção.

A Berliet emitiu um ronco de esforço, mas uma nova saraivada cortou-lhe a progressão e o camião deu um solavanco e imobilizou-se na berma. Ouvia-se um matraquear ininterrupto de armas automáticas e os soldados, passada a surpresa, esperaram uma aberta com as G3 em riste.

"Agora!"

À primeira pausa, os comandos expuseram os canos das armas em busca de alvos, mas foram acolhidos por uma nova saraivada de balas e a situação tornou-se outra vez confusa.

Alguns soldados caíram sobre outros, Diogo via pernas e braços e tudo aos saltos, sempre aos solavancos e sempre em câmara lenta, e só depois de algum pandemônio os homens conseguiram pôr-se em posição e abrir fogo sobre o mato.

A intensidade da emboscada inimiga diminuiu, mas um súbito movimento no capim denunciou posições. "Ali! Ali!"

Os comandos fizeram convergir o fogo sobre o local onde detectaram o movimento e Diogo, mais para aplacar a angústia do que para atingir alguém, seguiu-lhes o exemplo e lançou granadas de mão e descarregou a G3 e todos os medos naquela direcção.

Os homens que vinham nas restantes Berliets da coluna apareceram entretanto, indicando outras posições suspeitas para onde as armas dos comandos se voltaram.

"Cessar fogo!"

A voz rouca do furriel Sousa foi reconhecida no meio de fuzilaria e de imediato obedecida pelos seus homens. Os comandos suspenderam o tiro e um estranho silêncio abateu-se sobre a estrada. O

inimigo também havia deixado de disparar e o mato tornara-se imóvel. O capim apenas ondulava ao sabor da brisa escaldante, o cheiro a pólvora queimada a fundir-se com o cacimbo.

"Segunda equipa", chamou o furriel. "Reconhecimento!"

Cinco homens desataram a correr curvados, as armas em riste, e mergulharam no capim. Os comandos observaram o movimento com grande atenção, os olhos a dardejarem em todas as direcções; esperavam o recomeço do tiroteio a todo o instante e sabiam que o fogo contrário denunciaria as posições hostis. Se identificassem esse fogo, identificariam o inimigo.

A espera prolongou-se por alguns minutos.

"Está limpo!", anunciou enfim a voz de um elemento da segunda equipa que partira em reconhecimento. "Os turras cavaram."

Os comandos ergueram-se com cautela, as G3 sempre a postos.

"Médico!"

Um soldado correu na direcção do furriel Sousa, que pedira assistência. Diogo olhou com atenção e percebeu que o chefe do grupo de combate, apesar de ainda dar ordens, se encontrava imobilizado.

Outras vozes levantaram-se a pedir auxílio e ele próprio foi lá ajudar. Um homem havia sido baleado e dois tinham sofrido ferimentos ao cair da Berliet; o motorista ficara mesmo sem a mão direita e tiveram de lhe fazer um torniquete e dar-lhe morfina. O caso estava difícil, mas Diogo recebeu entretanto ajuda do homem que fora prestar assistência a Sousa, o cabo Rosa, e que apareceu com uma maca que pousou ao lado do ferido.

"Seguras pelos pés que eu seguro pelos ombros", ordenou o cabo, assumindo posição. "Um...

dois... upa!"

Diogo e o cabo Rosa puseram o ferido na maca. O homem urrou de dor, pelo que fizeram um pequeno compasso de espera até erguerem a maca e arrumarem-no na Berliet mais próxima. O

camião militar estava transformado em ambulância improvisada.

"O que tem o nosso furriel?", perguntou Diogo, incapaz de conter a curiosidade. "Não se conseguia mexer..."

"Acho que partiu a bacia."

"O quê?"

"Caiu mal no chão e está cheio de dores", explicou o cabo Rosa. "Já o imobilizei numa maca, mas o gajo ainda acha que está operacional."

Diogo olhou para trás e viu o furriel dos comandos deitado na maca a inspeccionar o capim. Era incrível como, apesar de ter a bacia partida, Sousa estudava as posições que haviam sido ocupadas pelo inimigo. Viam-se palhotas lá ao fundo e, para as identificar, o furriel ordenou que lhe mostrassem um mapa. Um homem foi buscá-lo à mochila e estendeu-o no chão, ao lado da maca.

"Esta merda chama-se Corneta", constatou o furriel Sousa, os olhos colados ao mapa. Ergueu a cabeça e encarou os seus homens. "A primeira equipa que se junte à segunda e limpe a aldeia. Os outros estabelecem um perímetro de segurança aqui na estrada."

Diogo pertencia à primeira equipa, pelo que pegou na G3 e acompanhou os camaradas na batida até Corneta. Meteram pelo capim, evitando os trilhos por causa das minas, e cercaram a aldeia. Não se via vivalma. Os comandos avançaram com cautela, evitando expor-se, até penetrarem nas primeiras palhotas. Estavam desertas.

"Os cabrões cavaram", concluiu Samuel, que comandava a segunda equipa. "Vamos deitar fogo a esta merda toda." Fez sinal a Diogo e aos restantes membros do grupo. "Ponham-se a andar. Eu e o Isaías tratamos disto."

Diogo hesitou. Já que viera para os comandos queria ver tudo o que eles faziam; podia não ser bonito, mas ao menos era instrutivo.

"Posso ficar a ver?"

O pedido surpreendeu Samuel.

"Estás parvo ou quê?", exclamou o comando negro. "Os turras fugiram mas devem ter os morteiros apontados para aqui. Logo que virem o fumo a subir das palhotas, os gajos põem-se a despejar granadas sobre a aldeia. O grupo tem de sair daqui antes que eu e o Isaías peguemos fogo às cubatas."

"Eu também posso ajudar-vos a lançar o fogo", propôs Diogo. "Com três homens até é mais rápido!..."

Samuel encolheu os ombros, consentindo. Os homens abandonaram Corneta e os três soldados que ficaram para trás caminharam para a ponta mais longínqua da aldeia, acenderam os fósforos e colaram as chamas a várias tochas. Depois arrancaram em corrida e lançaram as tochas para dentro das palhotas, correndo sempre na direcção da saída da aldeia. Em poucos instantes o fogo alastrou, transformando as habitações cilíndricas em piras dançantes, e os três tinham já deixado Corneta quando as granadas de morteiro começaram a cair na aldeia em chamas.

"Olha para eles!", observou Isaías com um sorriso fatigado, já junto à estrada, enquanto as explosões se sucediam na aldeia, transformada num lençol de fogo e fumo. "Devem achar que somos parvos."

A Berliet com os seis feridos partiu em direcção a Tete e os comandos montaram nos restantes camiões e arrancaram com destino ao quartel do Mazoi. Os homens iam de semblante carregado, furiosos com o que acontecera e com vontade de ir atrás dos turras lá onde eles estavam a lançar os morteiros, mas permaneceram calados. A excepção era Samuel, o grande negro de Moatize, o único que verbalizava a revolta que a todos ruminava no peito.

"Filhos da puta!", rugiu em voz baixa. "Isto não vai ficar assim!"A Berliet chiou ao travar, elevando uma nova nuvem de poeira, e Angelino apeou-se de um salto logo que a viatura se imobilizou por completo e o motor se calou. Diogo, que ia ao lado, apressou-se a seguir no encalço do amigo.

"Eh pá, espera por mim!"

Sem olhar para trás, Angelino ergueu o braço e exibiu o relógio.

"é uma e um quarto da tarde!", exclamou. "Está quase na hora da reunião e um comando nunca chega atrasado."

O edifício para onde caminhavam, uma estrutura de um único piso com um telhado de zinco e um alpendre a todo o comprimento, situava-se no complexo militar da estrada à entrada de Tete. O


calor apertava, jorrando do Sol impiedoso. O ar escaldante ondulava sobre o fundo amarelo e castanho do capim que se estendia até ao horizonte, o mar de erva seca apenas cortado pela ocasional maçaniqueira ou por embondeiros colossais.

Dos dois lados da estrada erguia-se o complexo militar da Zona Operacional de Tete, o local de onde se coordenava aguerra em todo o distrito. Era a primeira vez que Angelino tinha sido convocado para uma reunião na ZOT. Quase por hábito espiou de relance as sentinelas e os portões e não pôde deixar de se admirar com o dispositivo de segurança existente no comando militar.

"Olha para isto", exclamou quase com desdém, indicando a Diogo o portão por onde haviam entrado com a Berliet. "Bastava um grupo de comandos para tomar esta merda em dez minutos."

O amigo olhou e nada disse. Depois do que vira nas últimas semanas, não tinha a mínima dúvida de que isso era verdade. Mas também sabia que qualquer outra força suficientemente treinada e determinada que contasse com o factor surpresa poderia tomar conta do complexo, embora talvez não por muito tempo.

Entraram no edifício que lhes havia sido indicado na ZOT e sentiram o alívio da sombra. Fazia calor ali dentro, mas não era nada comparado com a fornalha que fervia no exterior. Os visitantes foram acolhidos por uma sentinela em continência e dirigiram-se à recepção. A ordenança sentada ao balcão pediu-lhes os documentos e levantou-se, fazendo-lhes sinal de que a acompanhassem no percurso até à sala de planeamento operacional.

Percorreram o corredor até chegarem à sala. A ordenança tentou abrir a porta, mas estava fechada à chave; a reunião havia sido marcada para as treze e trinta e, como era previsível, eles eram os primeiros a chegar.

"O nosso coronel ainda deve estar a almoçar", disse a ordenança para o chefe dos comandos, afastando-se pelo corredor em passo lesto. "Vou avisá-lo de que o meu alferes já chegou."

Angelino encostou-se à parede e tirou do bolso um LM, que acendeu com o seu Zippo de estimação. Uma nuvem de fumo branco ergueu-se diante do rosto, esvoaçando pelos olhos meditativos.

"Em que estás a pensar?"

"Na vingança."

"Eh pá, o que aconteceu foi guerra", argumentou Diogo. "Umas vezes somos nós quem faz emboscadas, outras vezes são eles. Já se sabe, quem vai à guerra dá e leva."

Angelino desviou o olhar furioso na direcção do amigo.

"Deves estar a fazer confusão", rosnou. "Os comandos não levam, só dão."

"Hoje levaram."

O alferes colou o cigarro à boca e aspirou com força,"deixando o fumo sair com lentidão.

"Já vais ver o troco que lhes vamos dar."

"Estás a falar a quente, pá. Tem calma."

Angelino fitou o amigo e a expressão baça pareceu cintilar de fúria muda.

"Ouve, Diogo, tens de perceber uma coisa de uma vez por todas", rosnou num tom controlado.

"Os comandos não são tropa macaca como vocês. Eu sei isso, vocês sabem isso e os turras também.

Que os turras se metam com a tropa macaca é uma coisa. Mas que se metam connosco é diferente.

Nós íamos com as nossas boinas vermelhas, não íamos? Os tipos sabiam muito bem que nós éramos comandos e mesmo assim abriram fogo. Tudo bem. Vão já levar com o troco e aprender de uma vez por todas que connosco ninguém se mete! Ouviste? Ninguém!"

"Até parece que foste pessoalmente alvejado", observou Diogo, intimidado com aquela fúria fria. "Eu é que estive lá e, ó p'ra mim, não estou tão enxofrado como tu. Por isso acalma-te! Que eu saiba não levaste com as balas. Além do mais, isto é guerra, pá."

"Não estás a entender o problema", insistiu Angelino. "Os gajos meteram-se com os comandos e não podem. E isso que eles vão ter de aprender. Se uma coisa destas passar impune, amanhã voltam a fazer-nos uma emboscada igual ou ainda pior. A malta não pode deixar que estes cabrões percam o respeito aos comandos. Nós não estamos aqui a brincar e eles já vão perceber isso de uma forma muito clara."

"O que vais fazer? Queres queimar outra vez as palhotas que já queimámos? Os gajos fugiram, pá!"

Angelino deitou o cigarro para o chão e esmagou-o com a ponta da bota.

"Isso é o que vamos ver", sentenciou. "Esta reunião vai servir para planear a resposta."

Calaram-se por momentos. Diogo voltou a experimentar a porta e confirmou que estava trancada.

"Achas que me deixam assistir?"

Angelino abanou a cabeça.

"O quê? Tu? A uma reunião com o governador? Deves estar a reinar, pá."

"Então não estou aqui a fazer nada", constatou o amigo. "Quanto tempo vai demorar esta merda?"

"Sei lá! Tanto pode durar meia hora como a tarde toda. Porquê?"

Um brilho de esperança cintilou no olhar de Diogo.

"Então vou dar ali um passeio a Tete, tá?", disse. "Volto daqui a pouco."

"Não me digas que queres ir ter com a tua Sheila..."

A pergunta emudeceu Diogo, subitamente ruborizado. Ao ver a reacção do amigo, Angelino percebeu que havia acertado em cheio e foi a vez de ele próprio corar, mas de irritação.

"Não tens vergonha?", repreendeu-o. "Um grupo nosso foi emboscado há uma hora, tu próprio ias lá dentro, e só pensas numa gaja? Mas que raio de soldado és tu?"

Diogo suspirou.

" Angelino, eu não sou um comando e não penso como vocês", justificou-se. "Há uma hora estava eu a levar tiros e não sei se amanhã me volta a suceder o mesmo e se escapo. Posso ficar com a bacia partida, como o Sousa, ou até bater a bota. A verdade é que não sei o que me vai acontecer. Se tenho uma oportunidade de ir ver a minha namorada, porque não aproveitar?"

O amigo fitou-o com intensidade. Apesar da sua habitual expressão fria e calculista era evidente que estava à beira de explodir. O autodomínio, porém, sobrepôs-se às emoções e o comando acabou por meter a mão nas calças, retirar um pequeno objecto metálico do bolso e lançá-lo na direcção de Diogo. O furriel interceptou o objecto no ar com um gesto reflexo e, abrindo o punho, viu-o pousado na palma da mão. Era a chave da Berliet.

"Tens uma hora."

*

A maca transportava um rapaz com a perna esquerda engessada e amputada acima do joelho; tratava-se evidentemente de um soldado que havia pisado uma mina e que estava ainda sob o efeito de um anestésico. A enfermeira empurrava a maca pelo corredor do hospital e, vendo o frasco de soro prestes a saltar do gancho, estendeu o braço para ajeitar a sua posição. Apercebeu-se nesse momento de um vulto atrás dela e deu um salto de alarme.

"Diogo!", exclamou Sheila ao voltar-se, pousando a mão sobre o peito como se quisesse conter o coração. "Que susto!"

"Desculpa. Foi sem querer!..."

"Que estás aqui a fazer?"

"Sofremos uma emboscada esta manhã e..."


A rapariga arregalou os olhos, horrorizada, e estudou-o da cabeça aos pés com um movimento rápido e ansioso.

"Oh!", interrompeu-o. "Estás ferido?"

"Não, está tudo bem", disse ele, abrindo os braços para provar que se encontrava intacto. "Mas tivemos de vir à ZOT e aproveitei para dar cá um salto e matar saudades."

Fundiram-se num abraço sentido, feito de saudade e alívio. O corpo de Sheila tremia, evidentemente assustada por o namorado ter estado envolvido numa emboscada. Enquanto a enlaçava, e ao sentir-lhe a agitação, Diogo considerou se não teria feito melhor em inventar uma desculpa em vez de lhe ter contado a verdade. A realidade, porém, é que acreditava que a verdade os aproximaria e renovaria a ideia de que deviam viver um momento de cada vez, saborear todos os instantes como se fossem os últimos. Não que ele acreditasse nisso. Pelo contrário, achava-se imortal e não lhe passava pela cabeça a possibilidade de ser atingido por uma bala ou de pisar uma mina; isso era para os outros, não para ele. Mas os riscos que corria impressionavam a namorada e isso era algo que Diogo estava disposto a usar em seu favor.

O abraço foi longo, mas Sheila acabou por se libertar quando se sentiu mais calma.

"Quanto tempo ficas em Tete?"

"Não muito", disse ele. "Deram-me uma hora e já passaram quinze minutos."

"Só!?" A rapariga suspirou, angustiada com os perigos que o namorado correra e irritada com o pouco tempo de que dispunha com ele. "Não podes passar cá a noite?"

Diogo consultou o relógio e abanou a cabeça.

"Tenho trinta e cinco minutos, se descontarmos o tempo que levo a voltar à ZOT. Não mais."

"Mas eu preciso de falar contigo", argumentou ela. "Tenho uma coisa muito importante para te dizer."

O soldado inclinou a cabeça, num esgar trocista.

"Então diz."

Sheila desviou o olhar para a maca. O ferido continuava inconsciente, mas o facto é que não podia permanecer ali.

"Agora não pode ser", disse. "Tenho de levar este paciente para a enfermaria."

"Então contas-me noutro dia."

Sheila abanou a cabeça, rejeitando liminarmente essa possibilidade. Lançou um olhar perscrutador pela janela do corredor, em busca de um lugar onde pudessem falar à vontade, e a imagem do edifício vizinho deu-lhe a resposta.

"Espera-me à porta da farmácia, pode ser?"

A farmácia abria-se para o exterior graças a uma comprida fileira de janelas ao longo das paredes que a rodeavam. Enquanto aguardava, Diogo espreitou o interior do edifício e viu um farmacêutico indiano sentado numa mesa em redor de um microscópio. Devia estar a fazer análises clínicas, presumiu. Sentiu nesse momento uma batida surda e voltou-se para o Zambeze.

Um Alouette sobrevoava o rio e perfazia um arco já para virar na direcção do hospital. Devia trazer mais feridos; um desgraçado que pisara uma mina ou alguém atingido durante mais uma emboscada.

"Diogo?"

O soldado virou-se e viu Sheila caminhar na direcção dele; a rapariga vinha com uma expressão séria no rosto e os dedos a remoinhar o cabelo, evidentemente nervosa. Aproximou-se e caíram de novo nos braços um do outro.

"Está tudo bem?", quis ele saber, sentindo-a perturbada. "Se ainda andas preocupada com a emboscada, não andes. Estou óptimo, não me aconteceu nada."


Sheila suspirou.

"Graças a Deus!", murmurou. "Não sei o que faria se te sucedesse alguma coisa!..."

Diogo afagou-lhe o cabelo, carinhoso.

"Não me aconteceu nada", repetiu. "Está tudo bem. Acalma-te."

A rapariga anichou-se mais uma vez no corpo do namorado e deixou-se ali ficar um momento, a face a repousar-lhe no peito, as pálpebras cerradas num instante de sossego. Depois respirou fundo e levantou o olhar.

"Tenho uma coisa maningue importante para te contar." Ergueu a mão e exibiu dois dedos.

"Uma não. Duas."

O soldado franziu o sobrolho.

"O quê?", perguntou ele num tom brincalhão. "Não me vais dizer que o Porto perdeu com a CUF, pois não? Isso já eu sei!..."

Apesar do peso que lhe oprimia o peito, Sheila não conseguiu reprimir uma risada.

"Tonto! Não é nada disso!"

"Então?"

Ela desviou o olhar e respirou fundo mais uma vez, como se procurasse ganhar coragem.

Encheu os pulmões de ar e fitou-o de novo.

"Tenho um namorado."

Diogo riu-se, divertido com a expressão solene com que ela proclamara uma coisa tão óbvia.

"Claro que tens, palerma. E espero que estejas satisfeita com ele."

Sheila revirou os olhos.

"Não estás a perceber", disse ela. "Tenho outro namorado."

O anúncio atingiu Diogo como uma bala. Cravou na rapariga um olhar interrogador e segurou-a pelos ombros, de modo a evitar que ela lhe fugisse com a cara.

"Outro namorado como? Que queres dizer com isso?"

"Chama-se Ismael."

A confirmação deixou Diogo boquiaberto. Esperava que ela negasse ou que lhe explicasse que ele havia entendido mal ou lhe dissesse qualquer outra coisa que mostrasse que falavam de assuntos diferentes, mas o nome que Sheila lhe atirou provava que não havia equívocos, que ele entendera tudo à primeira, que ela queria mesmo dizer o que dissera e que ele compreendera bem.

"Mas... o que...", gaguejou Diogo, tentando reordenar os pensamentos. "Quem é esse? Como é que... que..."

"Foi antes de te conhecer", esclareceu a rapariga, adivinhando a torrente de perguntas que o assaltavam. "Comecei a namorar com ele há dois anos, antes até de ir para Lourenço Marques tirar Enfermagem. Ele fez a tropa na Matola, nos arredores da cidade, e encontrávamo-nos todos os fins-de-semana. Mas desde que terminei o curso e vim para Tete que não o vejo, uma vez que ainda não lhe concederam licença." Passou a mão pela face de Diogo, num gesto de ternura. "Ou seja, não estou com o Ismael desde que te conheci."

Diogo assentiu, percebendo a situação mas com dificuldade em aceitá-la.

"Só agora é que me dizes?"

Ela encolheu os ombros e baixou a cabeça, embaraçada.

"Tentei muitas vezes", murmurou. "Mas nunca tive coragem."

O rapaz teve vontade de gritar e recriminá-la, mas pôs-se na posição dela e conteve-se. Será que, se ele tivesse uma namorada em Portugal, lhe contaria logo? Gostaria de responder que sim, mas sabia que provavelmente se manteria calado. O que tinha a fazer, considerou, era lidar com a situação com a mesma coragem que ela mostrava nesse momento.


"E agora?", quis saber, receando a resposta. "O que vais fazer?"

"Tenho de resolver a situação, não é?"

"Pois tens. Não nos podes ter aos dois." Forçou um sorriso. "Os maometanos aceitam que um homem tenha duas mulheres, mas não me parece que aceitem uma mulher com dois homens."

Ela baixou a cabeça.

"Eu sei", sussurrou. "Mas não é fácil."

"O que não é fácil?", exclamou Diogo, desprendendo-se da rapariga e sentindo que começava a perder o controlo das emoções. "Parece-me até muito simples. Há dois namorados e tens de escolher um. Escolhe."

Sheila manteve a cabeça baixa e reprimiu um soluço.

"Tenho andado toda a semana angustiada, meu Deus! Não sei o que faça!"

"É assim tão difícil escolher entre nós os dois?"

"Não é isso", sussurrou ela, desfazendo-se em novos soluços. "Não é isso."

"Então porque choras?"

Ela levantou a cabeça e deixou Diogo ver-lhe a face molhada de lágrimas.

"Porque te escolhi a ti."

Disse-o com um gemido, embora a ele aquela confissão soasse a música. Sheila escolhera-o.

Diogo abriu os braços e acolheu-a, soltando uma gargalhada feliz.

"E é caso para chorares, minha parva?", perguntou com ternura. "Acho que escolheste maningue bem! Porque choras?" Ergueu uma sobrancelha desconfiada. "Não me digas que ainda gostas dele!..."

A rapariga refugiou-se-lhe no peito. Abanou a cabeça e fungou, tentando recuperar a compostura. "Não."

"Então? Porque choras?"

Fungou mais uma vez e levantou os olhos, fitando-o com intensidade.

"Porque estou grávida."

Segundo tiro. Como se tivesse sido atingido por mais uma bala traiçoeira, Diogo deu um passo para trás, atónito, e procurou-lhe os olhos para se certificar de que ouvira bem.

"O quê?"

Afogada em vergonha, Sheila baixou as pálpebras e caiu para a frente, desamparada, deixando a cabeça voltar a colar-se-lhe ao peito, como se estivesse desesperada e clamasse por protecção.

"Estou grávida e não sei quem é o pai."O líquido negro fumegante ondulava na chávena num remoinho lento. Parecia petróleo a escaldar.

"Vai um café?"

Angelino, muito hirto e de olhar carregado, abanou ligeiramente a cabeça.

"Não, meu coronel. Vou comer quando voltar ao Mazoi."

O coronel Varela apreciou a recusa. Se fosse tropa regular, o seu interlocutor já se teria agarrado à chávena e se calhar até tinha pedido umas bolachas para acompanhar. Mas não aquele homem. O

alferes era um comando e estava ali para actuar, não para confraternizar.

Na verdade, Armando Varela estava habituado a ver os comandos como rivais; no fim de contas ele próprio era coronel pára-quedista. Mas desde que assumira simultaneamente as funções de chefe militar e de governador de Tete, já não podia olhar para os comandos com os olhos antagonistas de um pára-quedista. Pairava agora acima das rivalidades e tinha o dever de coordenar todas aquelas forças.O coronel girou a cabeça pela sala de planeamento operacional, uma divisão simples com paredes de madeira, e pareceu- lhe tudo a postos. Pousado sobre a mesa estendia-se um grande mapa a mostrar o regulado de Gandali, situado poucos quilómetros a sul da ZOT; aliás, as instalações da Zona Operacional de Tete encontravam-se tão perto do regulado que até apareciam assinaladas no mapa.

Em redor da mesa, quatro homens aguardavam que o chefe militar desse início à reunião. O

coronel Varela olhou-os um a um. O homem da Força Aérea, capitão Vasco Telles, e o comandante do Batalhão de Caçadores 17, major Josué Ponces, mantinham-se numa expectativa tranquila; era natural, tratava-se de dois executores que simplesmente aguardavam as ordens do seu superior hierárquico.

A mesma postura seria aliás de esperar do comandante dos comandos, Angelino Melro, mas o coronel sabia ler os homens e descortinava no alferes, sob a máscara de uma impavidez obviamente simulada, a ebulição de um operacional impaciente por entrar em acção. Não era preciso ser um génio para perceber aquela impaciência; o governador sabia muito bem que o sangue do alferes fervia por causa da emboscada que os comandos haviam acabado de sofrer na estrada. Se bem os conhecia, não descansariam enquanto não ajustassem contas com os turras.

Os olhos do chefe militar de Tete desviaram-se para o quarto homem, que se remexia com impaciência e mudava amiúde a perna em que se apoiava. O coronel estreitou as pálpebras, tentando interpretar aquela postura corporal. Conhecia o pequeno inspector da DGS havia algum tempo e já tinha notado que, quando Aniceto Silva se apresentava assim agitado, era porque rebentava de novidades. Estava na hora de as conhecer.

O coronel Varela pousou a chávena na borda da mesa e pôs as mãos à ilharga, como fazia nos seus tempos de operacional pára-quedista quando se preparava à porta de um avião para se lançar no abismo.

"Meus senhores", começou por dizer no tom de quem abre formalmente a reunião. "Como sabem, os turras andam a ganhar cada vez mais atrevimento e já chegaram à entrada de Tete." Fez um gesto na direcção da janela, exibindo a planície seca que se estendia pelo horizonte amarelado.

"Os gajos estão, aliás, a meia dúzia de quilómetros aqui da ZOT e ameaçam Tete e a estrada do Songo para Cabora Bassa. O general Kaúlza anda muito preocupado com a situação e já me ligou várias vezes nas últimas semanas. É imperativo garantir a segurança de Tete e de Cabora Bassa e barrar-lhes o caminho para Vila Pery e para a Beira. Mas, além da grande importância estratégica do que está em causa, é bom lembrar que a própria honra das Forças Armadas se encontra em jogo.

Se nós nem os arredores de Tete controlamos, controlamos o quê? Precisamos, pois, de pôr ordem nisto! Para lidar com este problema andamos há uma semana a planear a Operação Marosca. A ideia era lançá-la depois do Natal, mas parece que surgiram umas novidades que nos poderão forçar a antecipar a acção planeada." Indicou Angelino. "O nosso alferes sofreu agora uma emboscada a poucos quilómetros daqui, não é verdade?"

O comandante da 6.3 Companhia de Comandos inclinou-se sobre o mapa e apontou para uma aldeia junto à estrada.

"Foi aqui em Corneta, meu coronel", indicou. "Eu não estive lá, as coisas aconteceram com os meus camaradas do segundo grupo. Eles tinham ido pernoitar ao aldeamento Mandie para fazer esta manhã um golpe de mão no aldeamento Cebola e capturar o régulo e os filhos, conforme as ordens que tínhamos recebido, e foram emboscados na estrada no caminho de regresso. Sofremos seis feridos, incluindo o furriel Amaro Sousa, que ficou com a bacia fracturada. Os nossos homens bateram a aldeia situada ao lado do ponto da emboscada, mas ela estava deserta e limitaram-se a queimar as palhotas."

O coronel Varela comparou no mapa a distância de Corneta à ZOT e à cidade de Tete.

"Porra, os cabrões estão mesmo próximo!", constatou. Desviou o olhar para o impaciente inspector Aniceto Silva. "Quais são as informações de que a PIDE dispõe sobre esta zona?"


"Está totalmente infiltrada pelos turras, senhor coronel", retorquiu o homem da DGS. "O que o alferes Melro acaba de contar confere com o que tem acontecido nas últimas vinte e quatro horas nesse sector. Ainda agora o Guerra apareceu a queixar-se de que, quando vinha de avião e descia para aterrar em Tete, foi alvejado de umas palhotas." Fez um gesto em direcção ao ponto no mapa a assinalar Corneta. "A avioneta fez a aproximação à cidade por sudoeste e, pelos meus cálculos, os tiros vieram justamente desta zona."

O coronel franziu o sobrolho.

"Andaram a disparar desse sector contra a geringonça do Guerra?"

"Sim, senhor coronel. Foi ontem."

"E o que fez o senhor?"

"Mandei o Chico ver o que se passava. Ele foi lá esta manhã perguntar à população se os turras andavam por ali."

O chefe militar soltou uma gargalhada.

"Quando viram o Chico devem ter apanhado um cagaço, não? Eu, se desse com um brutamontes daqueles, confessava logo tudo!"

Aniceto Silva não acompanhou o riso.

"Pois eles não confessaram coisa nenhuma", retorquiu com secura. "Aquilo está tudo infiltrado pelos turras, senhor coronel. Tudo." O inspector inclinou a cabeça na direcção de Angelino. "Aliás, os comandos foram há pouco emboscados naquele sector pouco depois de a população ter garantido ao Chico que ali não havia turras. Mas a emboscada prova que os turras estão lá e que a população nos anda a mentir."

O coronel Varela endireitou-se e pegou na chávena de café. Sorveu um gole quente e respirou fundo, avaliando as suas opções. O quadro que lhe havia sido traçado era claro e cabia- lhe a ele tomar as decisões que se impunham. Pousou a chávena e afinou a voz, como sempre quando se preparava para dar ordens importantes.

"Muito bem, vamos então antecipar a Operação Marosca", decidiu. Virou-se para o comandante da Força Aérea. "Como sabe, capitão Telles, o plano prevê que a operação seja desencadeada pelos

Fiats."

"Pode contar connosco, meu coronel."

O chefe militar de Tete voltou-se para o comandante da 3 Companhia de Comandos.

"Depois avançam os comandos", indicou, consultando as folhas onde a Operação Marosca se encontrava planificada. "São necessários três grupos. Dois serão inseridos a norte e terão de estar em posição pelo final da manhã." Apontou para o major Ponces. "O Batalhão de Caçadores 17 terá uma força a apoiar os comandos emboscados a norte." Indicou um ponto no mapa a assinalar a estrada. "O terceiro grupo de comandos encontrar-se-á aqui no entroncamento da estrada do Songo com os Alouettes que os levarão para a borda sul do sector."

"Eu conheço o plano, meu coronel", retorquiu Angelino. "Precisava é que o bombardeamento dos Fiats incidisse em pleno centro da aldeia, para obtermos maior efeito."

"No centro da aldeia?", estranhou o capitão Telles. "Isso está cheio de civis!..."

"É verdade", confirmou Angelino. "Mas a confusão que o bombardeamento irá gerar entre a população é a mais propícia para a entrada em segurança das nossas forças."

O comandante da Força Aérea abanou a cabeça enfaticamente.

"Não, nem pensar!", declarou. "A Força Aérea não bombardeia populações civis. Dêem-nos um alvo militar e tudo bem, mas não posições civis!"

"A aldeia é um alvo militar", atalhou o inspector Aniceto Silva, intrometendo-se na conversa.

"Os turras estão infiltrados no sector e contaminaram as populações civis."


O capitão Telles ergueu o dedo, como quem diz que dali não arredava pé.

"Repito que a Força Aérea não bombardeia alvos civis!", sentenciou. "Dêem-nos um alvo militar e podem contar connosco, mas não alvos civis!"

"Os alvos civis são alvos militares", insistiu o homem da DGS. "Não percebe o que se passou ali esta manhã? Os comandos foram atacados naquele local pouco depois de a população ter garantido ao Chico que por ali não havia turras! Isto mostra que toda a zona está infiltrada!"

O capitão Telles voltou a abanar a cabeça, irredutível.

"Os bombardeamentos aéreos são indiscriminados", explicou. "Não podemos largar bombas no meio de uma aldeia cheia de civis."

"Mesmo estando ela infiltrada de turras?"

"Mesmo assim."

Aniceto Silva abanou a cabeça, agastado. O bombardeamento aéreo, porém, era sobretudo um requisito táctico, o que levou Angelino a tentar encontrar uma solução que contornasse a recusa obstinada do homem da Força Aérea.

"Então lance pelo menos uma bomba pequena", argumentou o comandante dos comandos.

"Precisamos dela para estabelecer a confusão."

"Nem pequena nem grande! Não há bombas da Força Aérea contra aldeia nenhuma."

Angelino, que se esforçava por manter a postura tranquila, aclarou a garganta.

"Desculpe, meu capitão, mas só se for nova política da Força Aérea", disse. "Há uns tempos vi uma aldeia com o chão coberto de crateras de bombas lançadas pela Força Aérea. Algumas eram tão grandes que cabia lá uma Berliet."

O capitão Telles olhou-o com desconfiança.

"Onde foi isso?"

"Na serra Mapé, em Cabo Delgado. Como sabe é uma zona totalmente contaminada, mas na aldeia viviam populações. E as crateras estavam bem no meio da povoação."

"Eu não tenho nada a ver com as operações da Força Aérea em Cabo Delgado", rugiu o oficial aviador. "Aqui em Tete nós não..."

"Meus senhores!", sobrepôs-se a voz do coronel Varela, impondo o silêncio. "A Operação Marosca decorrerá conforme planeado." Lançou um olhar ao capitão Telles. "A Força Aérea irá bombardear o alvo, como consta dos requisitos operacionais." Virou a cara para Angelino e para o major Ponces. "Dois grupos de comandos e um de caçadores estarão em posição a norte e logo a seguir ao bombardeamento avança de sul um terceiro grupo de comandos nos Alouettes." O

movimento da cabeça terminou no inspector Aniceto Silva. "A PIDE acompanhará este terceiro grupo de comandos e conduzirá os interrogatórios." O coronel calou-se e voltou a encarar os quatro interlocutores um a um, como se indicasse que a hora da discussão já terminara e aquelas instruções eram finais. "Entendido?"

Os quatro anuíram com movimentos afirmativos de cabeça. O chefe militar de Tete voltou a consultar os documentos onde a operação estava planificada.

"O bombardeamento dos Fiats será efectuado às sete da manhã do dia 18 e logo a seguir..."

"Tem de ser amanhã", cortou Aniceto Silva.

O coronel Varela arregalou os olhos, espantado com a interrupção.

"Como?"

O inspector da DGS tinha uma expressão convicta no rosto.

"Se queremos ter a certeza que apanhamos os turras, temos de avançar amanhã o mais tardar."

"Amanhã?"


"lá, amanhã."

O coronel suspirou; parecia um pai a lidar com o capricho de uma criança.

"Inspector, todos queremos antecipar a operação", disse. "Mas ninguém quer antecipá-la assim tanto. Porquê essa urgência?"

"Já lhe expliquei, senhor coronel", argumentou o inspector da DGS. "Se queremos ter a certeza de que apanhamos os turras, temos de avançar amanhã o mais tardar."

"Mas porquê amanhã? Porque não dia 18?"

"Porque são essas as informações de que disponho, senhor coronel. Estou a falar de informações seguras."

Angelino apoiou-se noutra perna, impaciente e irritado com tanta certeza.

"Eu conheço muito bem as informações seguras da PIDE!", exclamou o chefe dos comandos num tom de desprezo. "Estou farto de andar à caça dos gambozinos à custa das vossas informações seguras! Ainda noutro dia a PIDE nos garantiu que havia no Zoboe um acampamento de turras e, quando lá chegámos, só vimos impalas!"

"Estas informações são seguras", insistiu Aniceto Silva, quase rangendo os dentes.

"Seguríssimas!"

O coronel Varela inclinou-se sobre a mesa, apoiando-se nas mãos.

"lá, mas seguras a que ponto, senhor inspector? O nosso alferes tem razão. Não tem conta o número de missões que enviamos à custa das informações seguras da PIDE e que se vêm a revelar um completo fiasco..."

O inspector suspirou.

"As nossas informações indicam a presença do Raimundo na zona." A referência ao nome teve o condão de calar os quatro militares na sala, garantindo ao inspector a melhor atenção. "Não preciso de vos recordar o prestígio desse chefe maconde que veio aqui para Tete desestabilizar o distrito, pois não?"

O coronel Varela cruzou os braços e mordeu o lábio inferior, considerando a informação.

"Tem a certeza de que o Raimundo está neste sector?"

O rosto do homem da DGS abriu-se num sorriso sibilino.

"Quem mais se atreveria a atacar os comandos à luz do dia?" Fez uma pausa, deixando a ideia germinar na mente dos militares. "Ele comanda trezentos guerrilheiros que se infiltraram nas aldeias desta área. E eu sei que o tipo vai estar amanhã numa delas."

Angelino soltou uma gargalhada céptica.

"Como pode o senhor saber uma coisa dessas? Falou com ele?"

Aniceto Silva estreitou ligeiramente os olhos, com ar de quem estava na posse de matéria confidencial.

"É uma informação que tenho."

"Desculpe, senhor inspector", interveio o coronel Varelíu "Considerando o que está aqui em causa gostaria de saber qual a fonte dessa informação."

O responsável da DGS respirou fundo, sabendo-se derrotado.

"é o Mendes", disse. "O gajo foi esta manhã comprar cabritos às aldeias e os turras apanharam-no."

"Qual Mendes? O da Toyota vermelha?"

"Esse mesmo."

"Os turras apanharam-no?"

"Sim, mas não lhe fizeram mal", apressou-se o inspector a esclarecer. "Os tipos disseram-lhe que não o matavam mas que precisavam de ser abastecidos de farinha e sal e mandaram-no ir a Tete buscar esses produtos e entregá-los amanhã na aldeia." Consultou uma anotação. "Marcaram encontro junto a uma pedra chamada... tombonhapangara... ou lá como se diz essa merda! Só sei que o coitado do Mendes apanhou um cagaço dos antigos! Foi a correr para Tete e veio logo falar comigo."

Os quatro militares estavam boquiabertos, os olhos presos no inspector; era demasiado bom para ser verdade! Passada a surpresa inicial, o coronel Varela acercou-se de Aniceto Silva e desferiu-lhe uma sonora palmada nas costas.

"ó homem, porque não disse isso mais cedo?", exclamou com indisfarçável entusiasmo. "Você tinha uma informação dessas e estava calado?"

Apanhado de surpresa pela palmada, o inspector cambaleou e esboçou um esgar de dor.

"Mas, senhor coronel, é o que eu estava a tentar fazer", defendeu-se. "Eu disse que tinha informações seguríssimas de que o Raimundo estava localizado, não disse?"

O chefe militar soergueu o sobrolho.

"Muito bem, você sabe onde os turras vão estar amanhã. Mas como tem a certeza de que o Raimundo estará lá?"

"Certeza ninguém tem de nada, mas foi o que o Mendes me disse", explicou Aniceto Silva.

"Parece que os tipos da aldeia estavam todos em respeito por terem o Raimundo com eles. Diziam que estava ali o dalepa e que com o gajo ninguém se metia."

Todos reconheceram a referência. "Dalepa", ou "bicho que cheira mal", era o inconfundível nome de guerra do lendário Raimundo, o guerrilheiro maconde que andava a desestabilizar o distrito de Tete. Enfim convencido, o coronel Varela desferiu um murro inflamado na palma da mão.

"Muito bem, pessoal!", exclamou. Encarou o comandante dos comandos e apontou-lhe o dedo para enfatizar as suas ordens. "Esta zona é para limpar, percebeu alferes? Para limpar! Quero tudo limpo de uma vez por todas!"

Era a primeira vez que Angelino recebia uma ordem daquelas, mas nem sequer pestanejou. No seu dicionário, "limpar" significava limpar. Sabia que essa ordem já havia sido dada em operações envolvendo outras companhias e sempre imaginara que alguma vez teria de lhe caber a ele. A hora chegara e não havia que duvidar, até porque um comando obedecia a ordens e ele era o melhor da sua companhia.

"Sim, meu coronel."

O chefe militar de Tete voltou a inclinar-se sobre a mesa, analisando as posições identificadas no mapa.

"Qual é o ponto de encontro marcado pelo Raimundo com o Mendes? Vai ser em Corneta?"

O inspector da DGS abanou a cabeça.

"Corneta encontra-se demasiado exposta por causa da estrada que passa ao lado", disse Aniceto Silva. "Além disso foi destruída há pouco pelos comandos, como aqui o senhor alferes teve a amabilidade de nos explicar." Indicou um espaço no mapa mais a norte. "Os turras estão numas aldeias ali mais para o interior." Dobrou-se também sobre a mesa e ajeitou os óculos, procurando uma referência mais exacta. Consultou umas anotações que extraiu do bolso da camisa e comparou-as com as legendas registadas no mapa. "As coordenadas da zona onde os turras se encontram são... deixe cá ver... 3334.1618... 3337.1618 e... e 3334.1621." Indicou um triângulo imaginário com os vértices assentes nas três coordenadas. "E aqui dentro."

"Que aldeias estão aí?"

O inspector identificou-as com o dedo.

"São estas."


Aniceto Silva ergueu os olhos e viu os quatro militares voltados igualmente sobre o mapa, esforçando-se por reconhecer as legendas aí assinaladas.

"Chawola e... e Juwau?"

"Sim, senhor coronel", confirmou o inspector, deslizando de seguida o dedo para um terceiro ponto. "Mas o Mendes ficou de entregar a farinha e o sal nesta outra aldeia."

O olhar do chefe militar deslizou para o nome da terceira referência.

"Willamo?"

O chefe distrital da DGS abanou a cabeça e corrigiu-o.

"Wiriyamu."As pás das hélices cortavam o céu a um ritmo cadenciado e trepidante, invisíveis mas perceptíveis, tão rápidas que sobre o aparelho apenas se destrinçava uma vaga ondulação, como se ali estivesse uma lente a desfocar o firmamento. Angelino Melro acariciou a espingarda automática e, dominando a tensão, verificou as munições pela terceira vez no último minuto; tudo lhe parecia em ordem. "Ali!"

Ergueu os olhos e viu o piloto gritar-lhe qualquer coisa e apontar para a frente. O ar reverberava, abafando a voz do piloto, pelo que não entendeu o que lhe era dito. Teve de alongar o pescoço num esforço para perceber o que se passava. Lobrigou duas colunas de fumo negro a erguerem-se do arvoredo e a serpentearem pelo ar até se esbaterem nas alturas; pareciam vulcões a vomitar da planície fios de carvão em pó. Analisou o solo de onde o fumo se alteava e apenas vislumbrou árvores. Procurou as palhotas e enxergou-as um pouco mais aquém do local de onde jorrava a fumaça."Filhos da puta!", praguejou entre dentes. "Estes gajos da Força Aérea não têm emenda!"

"Que foi? O que aconteceu?"

Olhou para Diogo, que lhe fizera a pergunta, e depois desviou a atenção para o piloto, certificando-se de que ele nada ouvira. O homem aos comandos do Alouette mantinha-se concentrado na sua tarefa, o que o tranquilizou. Mas teria de se controlar; o helicóptero era da Força Aérea e aquele momento não era o adequado para iniciar uma altercação com os tipos.

"Que foi?", insistiu Diogo. "Passa-se alguma coisa?"

Angelino fez com a cabeça sinal para as colunas de fumo lá adiante.

"Os sacanas não bombardearam o centro da aldeia", disse. "Deitaram as bombas no mato.

Cabrões de merda, eu sabia que não se podia contar com estes gajos!"

A observação deixou Diogo desconcertado e o seu alcance só foi plenamente apreendido por Samuel, que se encontrava sentado ao lado e que assentiu sem pronunciar palavra. O Alouette aproximava-se em velocidade do teatro de operações e Angelino espreitou para os lados, certificando-se de que tudo corria bem; os outros quatro helicópteros seguiam em formação, não havia problemas.

Depois passou os olhos pelos quatro operacionais que iam no seu Alouette. Dois eram homens seus; tratava-se de Diogo e de Samuel, um soldado negro que encarava como irmão porque nos comandos a maioria dos homens era negra e entre todos a cor não contava; os outros dois eram os tipos da DGS que o inspector Aniceto Silva lhe impingira.

Estudou-os com curiosidade. O chefe era Francisco, um matulão de quem se dizia ter combatido noutras guerras ao serviço dos Espanhóis. Já o outro, Maurício, era um lomué da confiança de Francisco. Havia muitos negros a trabalhar para a DGS, sabia Angelino; não constava que fossem mais meigos do que os brancos.

O facto, porém, é que ele não gostava de operar com a DGS; as informações que os pides davam à tropa revelavam-se pouco fidedignas e resultavam amiúde em trabalho infrutífero. Mas ordens eram ordens e, como por vezes sucedia, tinha de os aturar nesta missão; o comando impusera-os porque os considerava fundamentais para recolher informação — e a verdade é que aquela zona de operações estava totalmente contaminada pelos turras e informação era decerto coisa que por ali não faltava.

"Prontos?"

A voz do piloto trouxe Angelino de volta à realidade do momento. O comandante dos comandos fez um sinal a Samuel e Diogo e os três posicionaram-se junto às portas do Alouette.

Angelino destravou a G3 e encarou o piloto, indicando-lhe que estava a postos.

O aparelho perdeu imediatamente altitude e começou a rasar as copas das árvores, aproximando-se a grande velocidade de uma clareira que se abria antes das primeiras palhotas. O

catacatacata das hélices em rotação dominava tudo; o capim girava em círculo por baixo do helicóptero, bailando ao ritmo frenético das pás em espiral, soprado pelo vento que ao mesmo tempo erguia revoadas de poeira alaranjada em remoinho.

O Alouette abrandou sobre o centro da clareira e desceu até pairar pouco menos de dois metros acima do solo.

"Vai!"

Diogo viu Angelino saltar e foi a seguir. Sentiu o chão travar-lhe a queda, verificou que os restantes homens pulavam igualmente dos outros helicópteros como sementes lançadas nas machambas e desatou de imediato a correr em direcção às palhotas. As pessoas fugiam em debandada, cada uma para o seu lado; eram coelhos a tentar ludibriar a rede que sobre eles se fechava.

Os comandos enchiam a clareira e os helicópteros já se afastavam, levando consigo a vibração do ar e tornando-se um zumbido cada vez mais distante.

"Por ali e por ali!", gritou Angelino, apontando direcções aos seus homens. "Quero o perímetro imediatamente estabelecido!"

Os comandos espalharam-se com rapidez, um grupo pela direita e outro pela esquerda conforme as ordens, contornando a orla da aldeia de modo a selar a zona de operações. Todos sabiam que este movimento era crucial para os proteger de ataques de flanco e para impedir a fuga da população. Mas os aldeãos tentavam desesperadamente furar o cerco. Com Diogo colado a ele, Angelino viu um homem escapulir-se à sua direita e apontou-lhe a arma.

"Alto!"

O homem continuou a correr e o comando certificou-se de que o aldeão se encontrava na sua mira.

Crack.

O fugitivo tombou desarticulado ao lado de uma palhota. No mesmo lugar viu uma mulher a correr com uma criança nos braços.

"Alto!"

Cega de medo, a mulher não parou e o comandante dos comandos voltou a disparar, derrubando-a sobre o capim. Por esta altura o tiroteio era generalizado e toda a gente abria fogo; os comandos davam ordens para parar e quem não obedecia era de imediato abatido. No meio daquela confusão, Diogo viu e ouviu pessoas a correr, vozes a gritar, o trovejar raivoso das G3 e corpos franzinos a rolarem pelo chão; alguns eram homens, outros mulheres, também crianças.

O caos foi intenso, mas breve. Em poucos minutos os aldeãos perceberam que o cerco se havia fechado em definitivo sobre eles e que qualquer tentativa de fuga era de imediato travada pelas balas punitivas. As pessoas ergueram as mãos com os corpos encolhidos por instinto, os olhares assustados a tentarem interpretar as intenções dos soldados.


"Tudo para o centro!", ordenou Angelino, sentindo que a situação estava enfim controlada.

"Vamos!"

Samuel repetiu a ordem em nhungué e os comandos começaram a empurrar os aldeãos na direcção indicada. A multidão, resignada, convergiu obedientemente para a grande clareira; um mar de mãos estendidas para o céu juntava-se no centro da aldeia, como se ali se ensaiasse uma estranha coreografia de adoração ao Sol.

"Homens para ali!", ordenou o comandante da 6.a Companhia, apontando para a direita.

"Mulheres para o outro lado!"

Samuel traduziu e a multidão obedeceu. Naquela mistura desordenada de gente estabeleceu-se um esboço de organização; os homens afluíram para o lado que lhes havia sido indicado e as mulheres e as crianças seguiram para o outro, deixando um corredor livre a separar os dois grupos.

"Sentem-se!"

Homens, mulheres e crianças acomodaram-se no chão da clareira; os poucos que falavam faziam-no em voz baixa. Percebendo que a população estava domada e completamente submetida, Angelino olhou à volta e cobriu todo o espaço ao alcance do seu campo de visão, preocupado com assegurar-se de que os seus homens cumpriam o plano previamente estabelecido. Alguns comandos cercavam a multidão, as armas ameaçadoramente em riste, enquanto outros se mantinham de guarda atrás das cubatas no limiar da aldeia, de modo a evitarem qualquer ataque pelos flancos.

Percebeu que tinha homens a mais a controlar uma multidão já passiva e que havia outras tarefas prioritárias que era necessário completar o mais depressa possível.

"O que estão vocês aí parados a fazer?", perguntou a um punhado de subordinados. "Revistem as palhotas!

Os comandos afastaram-se em passo de corrida, espraiando- se pela aldeia. O comandante da 6.a Companhia passou os olhos atentos em redor e constatou que estava tudo finalmente em ordem.

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