Nessa altura, mal contendo a frustração pela sequência de passes que o colega de equipa desperdiçava, Angelino voltou-se para trás e cravou os olhos furiosos nele.

"Diogo, vou dar cabo de ti!", rosnou entre dentes. "Os cabrões estão-se a rir da malta!"

Aquela censura ligou um interruptor no jogo de Diogo. Espicaçado pela humilhação e por se aperceber do embaraço dos colegas de equipa e dos espectadores, o rematador do Orfeão soltou de repente o seu voleibol e conquistou uma mão-cheia de pontos até o Benfica, apesar de confrontado com inesperadas dificuldades, conseguir fechar o segundo set a seu favor.

O Orfeão da Madalena perdia por 2-0, mas aquele foi o ponto de viragem do jogo. Primeiro de raiva, depois com crescente confiança e segurança, Diogo guiou a equipa para a vitória no terceiro e no quarto sets, e fechou concludentemente o quinto set perante a incredulidade e a euforia de todos os que enchiam o recinto e mal queriam acreditar no milagre que se produzia diante dos seus olhos. A equipa da terra, os miúdos sem equipamento e que treinavam à noite no anexo coberto de pó de tijolo, haviam vencido o grande Benfica.

A partir daí tudo se tornou possível. Galvanizados pela surpreendente vitória sobre os encarnados, os jogadores do Orfeão acreditaram que podiam fazer o impossível e derrotaram consecutivamente o FC Porto e o Lisboa Ginásio. Perante a estupefacção geral, a equipa sagrou-se Campeã Nacional de Aspirantes em voleibol.O ritual matinal que o casal Branco havia instituído em João Belo foi transferido para Tete. Acordavam ambos pelas seis da manhã e, para aproveitar a única hora relativamente fresca do dia, tomavam o pequeno-almoço na longa varanda do apartamento. Saíam de casa de seguida e metiam-se no Opel branco de tejadilho azul para subir a rua até ao complexo formado pelo hospital e pela farmácia.

Depois de se despedir da mulher, José ia para o seu gabinete vestir a bata e, na companhia da irmã Lúcia, fazia às sete em ponto a visita às enfermarias para saber como os doentes haviam passado a noite e lidar com os casos que requeriam maior atenção. Às oito voltava ao gabinete para as consultas, muito concorridas, por só existirem dois médicos na cidade.

"Hoje tenemos doentes que vieram de muy lejos", anunciava a freira diariamente, procurando sensibilizá-lo para esses casos. "Ay, Dios mio! São muchos."

Além daqueles que viviam em Tete ou nos arredores, muitos pacientes vinham de locais com designações estranhas, como Mucumbura, Caldas Xavier, Furancungo, Fingué, Songo, Zum-bo, Magoe. De início eram apenas nomes que se sucediam em desfile e que ao médico nada diziam, mas um dia José pediu ao engenheiro Pontes, o director da Missão de Fomento do Zambeze, um mapa pormenorizado do distrito e pregou-o na parede do gabinete, assinalando com alfinetes vermelhos os pontos onde existiam pequenos postos de assistência médico-sanitária, como Chioco, Changara, Mandié, Zobué, Vila Coutinho, Furan^ungo, Fingué e Mutarara.

A partir desse dia começou as consultas com um novo procedimento. Depois de perguntar o nome queria sempre saber qual a terra de origem do paciente. Quando ouvia a resposta levantava-se e ia ao mapa verificar as distâncias em relação ao posto de assistência médico-sanitária mais próximo ou em relação a Tete. Depois voltava a sentar-se e tomava nota num pequeno caderno.

"Eles vêm mesmo de muito longe", observou ao fim de algum tempo, após mais uma manhã de consultas. "Se eu não visse, não acreditava."

"Yo tinha-lhe dito, doutor", exclamou a irmã Lúcia, quase feliz por ver reconhecida a sua razão.

"Vêm de muy lejos."

O médico apontou para os alfinetes vermelhos espetados no mapa.

"Mas alguns têm postos de assistência sanitária nas terras onde vivem ou perto delas", observou. "Por que motivo mesmo assim vêm a Tete? Porque não se tratam lá?"

"Eles tratam-se, doutor. Pero existem muchas razões para virem para cá. Algunos desses postos não têm médicos. Solo enfermeiros. Y mismo quando existem médicos esses postos não dispõem de

las condiciones adequadas. Por ejemplo, não têm laboratório de análises ou máquina de raio X. Ou

necesitan de cirurgia y solo em Tete existe um cirurgião. Ou..."

"Pronto, pronto, já percebi", atalhou José. "Mas como chega esta gente cá?"

"Oh, de todas las maneiras! Algunas veces são los postos médico-sanitários que, percebendo que

no tienen meios para lidar com essas situaciones, enviam las pessoas para Tete. Noutros casos são elas próprias que se metem al camino. Vienen de machibombo, de canoa, a pé. Já vi, com os meus próprios o/os, uno que veyo de Caldas Xavier numa ginga."

"Ginga?"

"Bicicleta." Abanou a cabeça. "Ay, pobrecito! Tinha febre- -amarela e veio a gingar de tão lejos.

Parece impossível, no?"

Este problema impressionou o médico. O ideal seria equipar melhor os postos médicos ou de enfermagem espalhados por todo o distrito, mas tinha plena consciência de que tal era impossível; havia falta de médicos e de enfermeiros por toda a província e, mesmo que esse problema não existisse, só os custos de um tal empreendimento, que teria de incluir investimento em pessoal e em equipamento, seriam exorbitantes e incomportáveis para o orçamento do governo central.

O assunto preocupava-o tanto que decidiu discuti-lo com o director do hospital.

"Porque não arranjar ambulâncias?", sugeriu. "Era uma forma de contornar o problema."

"Nós já temos ambulâncias", observou o doutor Martins.

"São só duas. Precisávamos de mais."

O director olhou para o mapa do distrito de Tete e fez uma careta, nada persuadido com a solução.

"Eu podia convencer Lourenço Marques a dar-nos mais uma ou duas ambulâncias", admitiu.

"Mas isso não resolvia o problema. Já viu o tamanho de todo o distrito?" Fez um gesto a indicar o mapa. "Olhe para isto. São cem mil quilómetros quadrados! Isso é equivalente a... sei lá!, à Metrópole, por exemplo! Já viu? E como se estivéssemos em Coimbra e tivéssemos de ir prestar assistência a Faro e a Bragança! E isto num território que só pode ser coberto em picadas!" Abanou a cabeça, enfático. "As ambulâncias estão totalmente fora de questão!"

A conversa com o director do hospital deixou José a contemplar longamente o mapa. Martins tinha razão, percebeu com desânimo. O problema não se resolvia com mais médicos, que não havia; nem com mais postos, que eram caros; nem com mais e melhor equipamento, de custos proibitivos; nem sequer com mais ambulâncias, que não poderiam mover-se pelas picadas esburacadas de um território tão vasto. O distrito era maior do que a própria Metrópole! Como cobrir tal imensidão e trazer de todos os recantos para Tete os casos que requeriam maiores cuidados?

Teve de se render. Por muito que lhe custasse, o problema simplesmente não tinha solução.

Naquela manhã chegou com olheiras ao hospital. Tinha na véspera ido com a mulher a casa do tenente Trovão para uma patuscada que se prolongara para além do previsto, pelo que acabara por se deitar tarde.

Faltavam três minutos para as sete quando entrou no gabinete e, sempre determinado a fazer a inspecção das enfermarias às sete em ponto, vestiu apressadamente a bata. Lançou um olhar à agenda pousada sobre a secretária, aberta nas páginas referentes à última semana de Setembro de 1964, e praguejou baixinho. Vinha aí a época das chuvas, sabia, e seria mais difícil os doentes percorrerem grandes distâncias para receberem ajuda no hospital.

Apercebeu-se nesse instante de que a porta se abria atrás dele e divisou a figura minúscula da irmã Lúcia a esgueirar-se pela entrada.

"Doutor, o senor já sabe de las notícias?"

"Bom dia, Lúcia", disse, como se sublinhasse que os cumprimentos deveriam sempre ser a primeira coisa que se trocava pela manhã. "Está tudo bem?"

"Las notícias, doutor. Já escuchou?"

A insistência da irmã Lúcia na pergunta, e o facto de lhe parecer tão preocupada que nem se dignou devolver a saudação, suscitaram-lhe estranheza.

"Que notícias?"

A freira espanhola espreitou de relance o canto do gabinete onde se encontrava um móvel de rádio.

"E mejor escuchar, doutor."

José ainda vacilou, determinado a cumprir as suas obrigações; fazia questão de iniciar a ronda às sete em ponto, como era seu hábito. No entanto, a expressão do olhar da irmã Lúcia indicava-lhe que talvez fosse melhor seguir a recomendação. Respirou fundo e, resignado, acocorou-se diante do aparelho. Sentiu a freira sair do gabinete, decerto para preparar a inspecção à enfermaria, mas não se importou; preferia ouvir telefonia sozinho. Carregou no botão do rádio e escutou uma voz familiar.

... que lavas no rio E talhas com o teu machado As tábuas do meu caixão. Pode haver quem te defenda Quem compre o teu chão sagrado Mas a tua vida não.

Embalado pela melodia, ele próprio cantarolou com Amália as estrofes de "Povo que lavas no rio", até que a música acabou e se ouviram duas vozes masculinas a falar sobre um som de fundo que parecia ser o lento marulhar do mar.

"Ontem fui à praia com a Isabel", anunciou a primeira voz.


"Az sim?", admirou-se a segunda. " então?"

"Ela estava deitada na areia, toda tostadinha" , retomou a primeira. "A Isabel mexia a coxa e eu só olhava para ela, ela a mexer-se e eu a olhar. Olha, não aguentei mais: saltei para cima dela e comi-a toda!" "O quê? A Isabel?"

"Claro! E uma galinha das Mahotas Avícola!", concluiu o primeiro. " Avícola das Mahotas: as melhores galinhas, o melhor sabor!"

O segundo anúncio gabava as virtudes da Gazcidla, "uma chama viva onde quer que viva", e o terceiro era aquele que antecedia sempre o sinal horário.

"Que horas são?", perguntou uma voz na rádio em tom casual.

"São horas de beber um copo de Laurentina preta", sentenciou uma segunda voz. " Todas as horas são boas para beber um copo de Laurentina preta!"

Veio o sinal horário e apareceu uma nova voz, esta em directo.

"São sete horas da manhã", anunciou. " Bom dia, está a sintonizar o Rádio Clube de Tete. Agora as notícias."

Seguiu-se o indicativo do noticiário.

"Prosseguem os combates no Congo", anunciou a mesma voz. "Os rebeldes congoleses tentam controlar o acesso a Stanleyville, tendo ontem de manhã..."

"Que está hacendo?"

Era a irmã Lúcia que espreitava à porta do gabinete. A pergunta embatucou o médico.

"Bem, estou a seguir a sua sugestão", explicou. "Não me tinha aconselhado a ouvir a rádio?"

A freira fez com a língua um estalido impaciente e acocorou- se diante do aparelho, rodando o botão de sintonização.

"No es la rádio portuguesa!", disse em tom de repreensão. "Essa nunca conta nada. Es la BBC!"

O receptor emitiu uma sucessão de zumbidos e assobios até se fixar na frequência dos Serviços Portugueses da estação britânica.

"... anunciou ter atacado o posto administrativo do Chai, em Cabo Delgado, no Norte de Moçambique", disse uma voz em tom solene e pausado. " Fonte da Frelimo na Tanzânia disse que esta foi a primeira acção armada lançada pelo movimento para libertar Moçambique do colonialismo português. A mesma fonte revelou que a acção envolveu ainda a destruição de pontes em Mocímboa da Praia, Esposende, rio Mueda, Nangade e Machoma e cortes em linhas telefónicas. Recorde-se que toda a região a norte do Zambeze se encontra em estado de emergência desde Abril, tendo os contingentes portugueses sido reforçados por dois mil e quinhentos homens. No mês passado um outro grupo rebelde matou um padre da Missão de Nangololo e feriu um africano a tiro de canhangulo."

As semanas que se seguiram a estes novos incidentes foram de inquietação, com os boatos a cruzarem-se em todas as direcções. A vida prosseguia com normalidade, é certo, e os jornais e rádios limitavam-se às notícias da actualidade geral, dominada por combates contra os vietcongues a sudoeste de Saigão, pelo anúncio da União Soviética de que não pagaria as operações da ONU no Congo, em Chipre e no Médio Oriente e pela goleada de 4-0 do Benfica ao Sporting, devidamente comemorada com mais uma patuscada em casa do inspector Silva.

Dir-se-ia à primeira vista que nada mudara, mas não era bem assim. As informações orais não confirmadas cruzavam-se nas conversas em voz baixa; havia até quem dissesse que estava iminente um ataque terrorista de grande envergadura contra a cidade de Tete, afirmação na qual ninguém verdadeiramente acreditou até ao dia em que, dois meses depois dos primeiros incidentes, a irmã Lúcia apareceu no gabinete de José Branco com a notícia de que tinha ocorrido um ataque no distrito de Tete, o primeiro de que havia notícia.


"Foi em Mutarara", esclareceu ela. " La noche passada."

"Quem lhe disse isso?"

"Un padre espanol que conheço."

Por esta altura já o médico conhecia quase de cor o mapa que tinha pregado à parede, mas mesmo assim foi espreitá-lo.

"Mutarara é aqui, no Sul do distrito", indicou. "Junto ao Malawi. E evidente que os tipos se infiltraram pela fronteira."

A freira espanhola mordeu o lábio inferior, os olhos a medirem a distância entre Tete e Mutarara.

"Acha que vão atacar nuestra ciudad, doutor?"

José encolheu os ombros.

"Quem sabe?"

Havia, porém, duas pessoas que sabiam. Ou pelo menos se elas não soubessem ninguém mais saberia. Uma era o comandante da PSP, com quem privava habitualmente. Convidou nessa noite o casal Trovão para jantar, mas o tenente não dispunha de muitos pormenores sobre o que sucedera em Mutarara.

"Deram uns tiritos contra o posto de sentinela", limitou-se a dizer. "O nosso pessoal respondeu e os terroristas cavaram."

"Ninguém foi atingido?"

"Não."

Restava a José tentar a segunda pessoa e a oportunidade sorriu-lhe no domingo seguinte.

Portugal jogava com Esganha, vencedora do recentemente criado Campeonato da'Europa, e o inspector Silva, amante da bola e a exemplo do que fazia nas tardes dominicais de futebolada, convidou-os, a ele e Mimicas e a mais dois casais, para um almoço no quintal ao som do relato da Emissora Nacional.

A refeição foi animada e a tarde coroada com dois golos de Eusébio que garantiram a vitória portuguesa por 2-1, façanha condignamente celebrada no quintal da casa do homem da PIDE com abundantes quantidades de whisky e até de vinho do Porto, em homenagem à cidade onde a partida decorrera.

"A minha Lúcia é que vai ficar chateada por termos dado cabo dos espanhóis", observou José com um sorriso. "Amanhã nem me fala."

"Os gajos não têm que se queixar", contrapôs Aniceto Silva. "Encavámo-los bem. Com este novo seleccionador, o Manuel da Luz Afonso, mais o Otto Glória, somos bem capazes de nos apurarmos para o Mundial."

"Ah, isso já me parece mais difícil..."

"Você duvida, Branco?", escandalizou-se o inspector da PIDE. "Então o Benfica não ganhou duas Taças dos Campeões Europeus? Então nós não derrotámos hoje o campeão da Europa? Com a armada moçambicana, o Eusébio, o Coluna e o Costa Pereira, mais o Torres e o resto da malta, não vejo porque não haveremos de estar em Inglaterra!..."

A satisfação pelo triunfo no relvado criou entre os convidados, e sobretudo no seu anfitrião, o ambiente propício para que José visse ali a oportunidade de suscitar a questão mais imediata que a todos verdadeiramente preocupava.

"Talvez tenha razão", admitiu o médico. "O facto é que derrotámos os Espanhóis. Mas sabe do que precisávamos mesmo? Era de derrotar os terroristas."

Aniceto fez com a língua um estalido contrariado, desagradado por lhe falarem de trabalho em momento tão festivo.

"Ai os turras, os turras!...", exclamou, deixando a voz perder-se na repetição. Era a primeira vez que os presentes ouviam a expressão turra como referência aos guerrilheiros. "Esse, meu caro doutor Branco, é um outro campeonato!"

"Disso ninguém tem dúvidas! A questão é saber como está ele a decorrer. Já viu? Os tipos fizeram agora o primeiro ataque aqui no distrito. Onde irá isto parar?"

O inspector da PIDE respirou fundo, como se ponderasse o que poderia ou deveria dizer diante de toda aquela gente; sabia que era uma pessoa temida na cidade e não estava habituado a ser interpelado em público sobre assunto tão sensível. Por outro lado, porém, tinha de transmitir algumas mensagens, sob pena de deixar que a boataria alarmista se propagasse ainda mais pela comunidade branca de Tete, e aquela oportunidade pareceu-lhe tão adequada como qualquer outra.

"Oiçam, os turras estão a tentar desestabilizar o Norte de Moçambique", reconheceu. "Temos informações, que os senhores farão o favor de manter reservadas, de que o plano deles é criar problemas em todas os distritos a norte do Zambeze: Niassa, Cabo Delgado, Zambézia, Moçambique e Tete. Querem insurreição em toda a parte."

"Ah!", exclamou o médico. "Então sempre é verdade que o estado de emergência foi declarado aqui no Norte!..."

Aniceto Silva esboçou uma careta contrariada.

"Não vou desmentir isso. Mas posso garantir-vos que a coisa só está a pegar no Niassa e em Cabo Delgado. Esta bandidagem não tem hipóteses no resto do território."

"Tem a certeza?"

O inspector estendeu a mão e desligou a voz do rádio, que se alongava já nos comentários ao jogo da tarde.

"É tão certo como nós irmos ao Mundial! Os tipos possuem a ajuda da Tanzânia e podem assim assegurar a retaguarda e o apoio logístico. Além disso, têm os macondes na mão. E por isso que andam tão activos ao longo da fronteira tanzaniana. Mas não conseguem descer devido aos macuas, que estão connosco. Por outro lado, é importante termos presente que eles não dispõem de muitos homens. Terão uns trezentos, no máximo."

"E aqui em Tete?"

"Nas actuais condições parece-me difícil que os gajos nos criem muitos problemas nesta zona.

Lembrem-se que Tete não faz fronteira com a Tanzânia. Os turras têm a Zâmbia do seu lado, mas precisam também da colaboração do Malawi para poderem vir até aqui, e aí... azar! O presidente Banda está do nosso lado." Fez um gesto na direcção do aparelho de rádio onde haviam escutado o relato de futebol. "O Banda é o nosso Eusébio!" Inclinou-se para a frente, conspirador. "Vou contar-vos uma coisa: o gajo autorizou-nos a andar pelo Malawi a recolher informações sobre o inimigo!"

Endireitou-se e contemplou o efeito que a sua revelação produzira nos presentes. "E só para verem.

De modo que, sem o Malawi a ajudá-los, o mais que os turras podem fazer aqui no distrito são umas acçõezinhas da treta, só para dizerem que já chegaram a Tete." Bateu no ombro do médico.

"Não se preocupem, meus caros. Está tudo controlado."

Por esta altura instalara-se o mais absoluto silêncio no quintal da casa, com todos os convidados a escutarem o homem da PIDE. O assunto era da mais elevada gravidade e pessoa mais bem informada do que o inspector seria difícil encontrar em Tete. Se ele parecia despreocupado e garantia que não havia problemas, quem poderia duvidar? Um murmúrio de alívio percorreu por isso o grupo e os sorrisos afloraram por toda a parte.

"Portanto", insistiu José, "os terroristas não vão entrar em Tete?"


"Nem pensar."

"E isto que eles estão a fazer, na sua opinião, o que é? São assaltos para roubar coisas?"

Aniceto Silva remexeu-se na cadeira, manifestamente incomodado com a pergunta. Passou os olhos em redor e viu as atenções cravadas nele, aguardando o seu veredicto. Pegou numa garrafa de Johnny Walker red label e despejou o whisky no copo.

"Eu não iria por aí", acabou por dizer, contemplando o líquido dourado a balouçar no vidro baço. "Temos de nos capacitar de um facto: a situação que enfrentamos é igual à de Angola e à da Guiné."

"Acha?"

Com as gotas de transpiração a deslizarem-lhe pela testa, o inspector bebeu o whisky até metade e soltou um longo "ahhhh!" quando pousou o copo. Depois voltou a olhar para os convidados e arreganhou os dentes, como se tentasse sorrir e não conseguisse.

"Estamos em guerra."

E engoliu o resto da bebida.O visitante, homem cerimonioso e bem-educado, só se sentou no sofá quando o anfitrião lhe fez sinal de que o fizesse. Diogo não conseguia tirar os olhos dele. Mal acreditava que tinha em sua casa o treinador do grande FC Porto.

Todavia, sabia que não deveria estar surpreendido, uma vez que a inesperada vitória do Orfeão da Madalena no campeonato fizera disparar a cotação voleibolística dos principais jogadores do clube, e dele próprio em particular. Impressionado com a qualidade dos jovens, o professor Puga viera nessa manhã ao Rego da Água e fora bater-lhes à porta.

A primeira visita havia sido feita ao mestre Melro, que aceitara a transferência do filho Angelino para as Antas. Agora era a vez de o técnico tentar contratar Diogo.

"Quer um cálice de vinho do Porto?", ofereceu Lourdes.

O professor Puga fez um gesto enfático com a mão.

"Nunca fora das refeições."

Joaquim acomodara-se na sua poltrona de chefe de família, colocada bem de frente para o televisor, e remexeu-se, impaciente por ir direito ao assunto. Sabia já da visita do treinadordo FC Porto ao mestre Melro, pelo que estava perfeitamente a par do motivo da presença do professor Puga em sua casa, mas as formalidades eram para se cumprir e as explicações para ser dadas, até porque havia alguns aspectos importantes a limar.

"Então conte lá o que se passa, mister."

Aquele mister era uma expressão que o pai de Diogo lera nos jornais em referência aos treinadores de futebol. Em boa verdade ignorava se ela se aplicava aos técnicos de outras modalidades, mas o facto é que o professor Puga, ou porque a referência era adequada ou meramente por boa educação, se comportou como se achasse natural ser referido naqueles termos.

"Penso que não surpreenderei ninguém se disser que o vosso filho provocou esta temporada uma enorme sensação no campeonato", começou por dizer. "É um rapaz cheio de potencial para o vôlei, devido sobretudo à sua enorme elasticidade e capacidade de elevação. Se ele chegou onde chegou numa equipa como a do Orfeão da Madalena, imaginem o que não fará no FC Porto.

Atenção: longe de mim qualquer intenção de beliscar o trabalho do mestre Melro, que foi extraordinário para quem não tem formação específica nesta área. Mas estou convencido que é possível polir o vosso Diogo até à perfeição e fazer dele um dos melhores voleibolistas do país."

Abriu a pasta que tinha pousada no regaço e extraiu uns papéis que estendeu na direcção de Joaquim. "Tomei, por isso, a liberdade de trazer comigo um contrato para inscrever o Diogo como jogador do FC Porto." Apontou para a última página. "Se estiverem de acordo, é só assinar aí em baixo."


Joaquim folheou o documento, maravilhado com o logótipo mágico do seu clube do coração.

Mas a mulher, com o sentido prático que a caracterizava, arrancou-lhe o contrato das mãos e folheou-o, em busca do essencial.

"Quanto é que pagam?", quis saber.

"Quarenta escudos por mês", respondeu o técnico do FC Porto. "Mais transportes."

Lourdes localizou o valor numa das cláusulas a meio da segunda página, mas torceu o nariz.

"É pouco."

O rapaz, sentado em silêncio ao lado do televisor, baixou a cabeça, desanimado com a resposta.

No entanto, o pai, refazendo-se do furto do contrato pela mulher, pigarreou e ergueu o braço, como um aluno a pedir a palavra.

"Eh, lá!", interveio. "Estamos a falar do Porto!"

Lourdes lançou-lhe um olhar de repreensão.

"Pagam pouco, Quim!", insistiu. "O miúdo tem e de ir para a escola, não de andar aos pulos com uma bola. As bolas não educam."

"Mas é o Porto, carago!"

"Nem que seja o Penafiel!..."

Joaquim desferiu uma palmada inesperada na própria coxa, assustando a mulher, o filho e o professor Puga.

"Bardamerda!", vociferou, a alma azul e branca a falar mais alto. "Portista que se dê ao respeito não impede filho seu de ir para o clube! Ainda por cima pagam quarenta paus, carago!... Qual é a dúvida?"As consultas da manhã haviam terminado minutos antes e José Branco despia já a bata quando sentiu um vulto espreitar-lhe pela porta. Desviou o olhar naquela direcção e reconheceu o rosto barbudo do doutor Martins, o director do hospital.

"Posso?"

"Entre", disse José, voltando a atenção para o cabide onde pendurava a bata. "Vai almoçar?"

Martins encostou-se à ombreira e cruzou os braços.

"Vou, pois. Mas primeiro tenho aqui uma visita a quem preciso de mostrar o hospital e gostaria que você nos acompanhasse."

"A minha mulher está à minha espera."

"Telefone-lhe e diga que vai chegar mais tarde. Isto tem uma certa prioridade."

O médico encaixou o cabide com a bata na vara do armário e voltou-se para o superior hierárquico, encarando-o com uma expressão interrogativa.

"Porquê? O que se passa?"

"Ó doutor Branco", disse o director com um leve tom de reprovação, "estamos em 1968, o que significa que o senhor já trabalha neste hospital há quatro anos, e ainda me pergunta o que se passa?"

José girou a cabeça em redor, para se certificar de que não lhe escapava nada.

"Sim, o que se passa?"

"Passa-se Cabora Bassa, doutor. Tem seguido as notícias, não tem?"

"Claro. Parece que sempre vamos construir a barragem."

"Parece, não. Vamos mesmo. O acordo com a Africa do Sul está fechado para erguer a barragem em Cabora Bassa e mais trinta no rio Cunene, em Angola."

José encolheu os ombros, indicando que nada daquilo era novidade para ele.

"E então?"

Em resposta, o doutor Martins afastou-se da ombreira e esticou o pescoço na direcção do corredor.


"Nicole, pode chegar aqui, por favor?"

O som de sapatos femininos a clacarem no piso de cimento antecedeu o aparecimento diante do gabinete de uma mulher alta, com um vestido azul, leve e justo, a combinar na perfeição com o cabelo loiro, tão claro que parecia palha; o que nela chamava mais a atenção, no entanto, era o peito amplo, solto por baixo do tecido, indício manifesto de que não usava soutien.

"Sim, doutor?"

O sotaque da mulher tinha uma estranha musicalidade, como de uma inglesa que falasse português do Brasil.

"Este é o doutor Branco", apresentou-os o director. "Doutor Branco, a doutora Nicole Thorn."

A visitante fitou José com os seus grandes olhos azuis ligeiramente amendoados e sorriu, ronronando como uma gata.

"Muito prazer."

"É sul-africana?"

Ela abanou negativamente a cabeça, embora mantendo o sorriso.

"Rodesiana."

"Mas fala português muito bem..."

"Tirei Medicina em Salisbúria, mas fiz uma pós-graduação em São Paulo, no Brasil."

"E o que está aqui a fazer?"

Nicole abriu as mãos, no gesto conformado de quem expõe uma evidência.

"Ora, o que haveria de ser?"

"Cabora Bassa", percebeu José. "Mas isso não é um projecto com os Sul-Africanos?"

O director do hospital meteu-se na conversa.

"O Consórcio ZAMCO, que está encarregado de executar o projecto, é constituído por empresas sul-africanas, francesas, suíças, italianas e portuguesas", esclareceu o doutor Martins. "Mas os rodesianos vão estar envolvidos na área da segurança e na navegabilidade do Zambeze, além de que também irão utilizar a energia da barragem."

"Com isso tudo ainda fico com a impressão que a senhora é engenheira!..."

A rodesiana soltou uma gargalhada.

"Ainda não. Estou aqui fazendo um levantamento das condições sanitárias da região, para saber o que espera os engenheiros e todo o pessoal ligado à obra e determinar as necessidades."

"Estou a ver", disse o médico. "Encontra-se portanto aqui numa visita de inspecção..."

"Chamemos-lhe visita exploratória", corrigiu o director do hospital, fazendo-lhes um sinal de que seguissem pelo corredor. "Vamos? E melhor começarmos a visita."

O périplo pelo hospital culminou num almoço no Zambe, o mais requintado botequim de Tete.

O ambiente era agradável, devido sobretudo à acção dos aparelhos de ar condicionado. O

restaurante estava mais cheio do que era habitual àquela hora e bastou observar os clientes com atenção para perceber porquê. Aos rostos familiares, como o do inspector Aniceto Silva, que almoçava junto à janela com o seu homem de mão, Francisco

Latino, acrescentavam-se muitas caras novas, em especial de homens aloirados de olhos claros e pele avermelhada como camarões, decerto sul-africanos e rodesianos.

"Bifes é mato", constatou José quando se instalaram nos lugares indicados pelo empregado.

"Não param de chegar."

O doutor Martins varreu as outras mesas com o olhar.

"A barragem trouxe animação, hem?"

Consultaram a ementa e encomendaram os pratos. Quando o empregado se afastou estabeleceu-se um silêncio desconfortável entre os três e José aproveitou estar num canto, na penumbra, para passear os olhos por Nicole. Era uma mulher atraente, como as que se viam nos filmes americanos, e tão vistosa que atraíra todos os olhares, incluindo dos homens estrangeiros, desde o momento em que os três haviam entrado no Zambe até àquele instante em que se encontravam ali sentados.

"Então?", protestou a rodesiana. "Ninguém bota faladura?"

"Peço desculpa", disse José. "Estava a pensar que conheço poucos bif... ingleses... enfim, sul-africanos ou rodesianos. Aliás, você é mesmo a primeira."

"Ai sim? Não me diga! Para compensar eu estou meio habituada a conviver com portugueses.

Quando era mais nova vinha sempre com os meus pais passar férias à Beira. Ainda peguei dois namorados portugueses. Oh, eram tão legais!... Um pouco machistas, é verdade, mas eu não lhes podia resistir." Suspirou. "Acho que foi por isso que tirei a pós-graduação no Brasil e aprendi português."

"Aprendeu português por causa dos seus namorados da Beira?"

Ela fechou-se num olhar enigmático; parecia sedutor, mas talvez fosse apenas nostálgico.

"Tenho uma perdição por homens mediterrânicos", revelou. "Claro que aproveitei quando vinha cá de férias. Mas naquele tempo eu ainda era muito garota e bem-comportada. Não havia nada das coisas que existem agora, está vendo?"

O médico abanou a cabeça, sem compreender.

"Que coisas?"

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