"Então diz isso ao padre Jacinto."

"Digo o quê?"

"Que não tens nenhuns pecados para confessar.-"

O mais novo baixou os olhos e abanou a cabeça.

"Ele não s'acredita."

"Não s'acredita?"

"Não. Da última vez disse-lhe isso e ele respondeu-me que era feio mentir."

António esboçou um trejeito de boca, como quem não tem resposta para tal argumento.

"Ah, bom..."

José permaneceu um instante calado, fitando o altar e o padre prestes a terminar a homilia.

Após uma hesitação, voltou a aproximar a boca do ouvido direito do irmão.

"António."

"Sim?"


"Empresta-me os teus pecados."

O pesadelo do confessionário terminou em breve, quando os pecados, aqueles pecados genuínos e praticados com deliciosa intenção, começaram por fim a surgir.

É certo que o primeiro grande pecado não foi lá muito intencional, ou pelo menos planeado.

Joana fazia anos a 9 de Abril e o capitão Branco deu ao filho mais novo um punhado de tostões para comprar uns bolinhos e ir oferecê-los à tia. Com aquele dinheiro na mão, José desceu à rua no final da manhã e adquiriu na Pastelaria Brasil meia dúzia de bolinhos de coco, os seus favoritos; de pacote apertado ao peito, foi a saltitar pelo passeio em direcção à casa do juiz Brandão, situada na outra ponta da cidade. Mas aqueles tempos, difíceis como eram, revelavam-se particularmente cruéis para quem tanto gostava de doçuras; o racionamento do açúcar tornava geralmente problemático o acesso às delícias das confeitarias e ter aquele pacote na mão, mais do que uma simples tentação, constituía um suplício infernal.

Não admirou por isso que, volvidos alguns passos, o pequeno começasse a espreitar o embrulho. Primeiro lançou-lhe olhares furtivos, meras espiadelas fugidias e tímidas, mas em breve os esgares tornaram-se abertos, directos, lascivos até. No fim de contas, pensou para si mesmo, meia dúzia de bolos era muita coisa! Certamente a tia não ia comer aquilo tudo. O que lhe importaria a ela que fossem seis ou cinco bolos? Provavelmente nem notaria a diferença.

O raciocínio instalou-se devagar, insidioso, parecia a sombra leve de uma nuvem que se anuncia breve, mas que logo mancha todo o céu; tal como ela, o desejo tudo invadiu e tornou-se gula desenfreada. Depressa a glutonaria se estendeu às mãos e, acto contínuo, os dedos irrequietos puseram-se a desfolhar o embrulho, primeiro a medo, depois com impaciência. Escancarou o pacote com inesperada brutalidade e, tremendo de prazer antecipado, furtou um bolo e devorou-o num impulso voraz, ávido, consumido por uma volúpia já sôfrega e descontrolada.

"Aaaaaah."

O prazer foi imenso.

Mas curto.

Quando a nuvem do desejo incontrolável passou e a chama do êxtase se extinguiu, José caiu em si. Deu-se conta do que fizera e olhou em redor, assustado, os olhos muito arregalados, o coração aos pulos; sentia-se culpado e fechou atabalhoadamente o embrulho. Acelerou o passo, os olhos fixos no chão, incapazes de se erguerem; eram olhos de transgressor, de prevaricador, de culpado.

De pecador.

Acabou por ganhar coragem e levantou-os. Apesar do angustiante flagelo da consciência, ou talvez por causa dele, impôs-se a si mesmo o suplício de enfrentar os seus actos e os olhares reprovadores da imensa multidão que o observara a pecar tão desavergonhadamente. Quando rodou a cabeça e a medo encarou o mundo em redor, todavia, acabou por perceber, surpreendido, que ninguém parecia ter notado; os transeuntes circulavam com indiferença, alheios ao crime hediondo que acabara de ser cometido mesmo diante deles. A verdade, a estranha verdade, é que se comportavam todos como se José não existisse; era como se o crime nem tivesse sido cometido, como se um bolo a menos realmente não tivesse grande importância.

Hesitou.

"Sim, é isso!", murmurou com intensidade. "E mesmo isso!"

Que importaria um bolo a mais ou a menos? Que diferença fazia? Quem se ralaria com tal coisa? Abrandou e acalmou-se. Qual o problema? O coração, momentos antes um batuque imparável, nervoso e descontrolado, voltou à sua batida tranquila. Seis ou cinco bolos era tudo a mesma coisa, ninguém notaria a diferença. Aliás, o mesmo se aplicaria se fossem quatro, não é verdade? Quem toparia a marosca? Quem dava cinco dava quatro. Que diferença fazia?

Enquanto considerava isto, os dedos pareceram ter novamente adquirido vida própria e, sem que a mente lhes tivesse transmitido tal ordem, voltaram ao embrulho, de onde surripiaram um segundo bolo. Quase sem dar por isso engoliu furtivamente a segunda iguaria. Ai!, gemeu, mas logo contrapôs: seis, cinco ou quatro bolinhos, era tudo a mesma coisa!

Voltou a fechar o embrulho e retomou a marcha. Logo ali na esquina, todavia, sentiu a dúvida assaltá-lo. Quem acreditaria que havia comprado quatro bolos? Abanou a cabeça. Ninguém.

Ninguém compraria quatro bolos para oferecer a alguém. Ninguém! Quatro bolos era coisa que não se usava! Ainda se fossem três, vá que não vá, a coisa passava, sempre era metade de meia dúzia, um número bonitinho. Mas quatro? Hmm, nem pensar! Três era um número mais convincente, não era? Ou seis ou três. Quatro é que não podia ser. Pois, concluiu, balouçando afirmativamente a cabeça. Tinha de acertar as contas.

Assaltado quase por um sentimento de obrigação, José voltou a meter a mão no pacote, de onde extraiu o terceiro bolo, que desta vez comeu com tranquilidade, sem medo, à vista de todos, exibindo ao mundo o prazer da gula. Não, não estava a cometer nenhuma infracção. Limitava-se a acertar as contas. Claro que era uma maneira agradável de acertar as contas, não era? Mas disso não tinha ele culpa. Olaré! O que importava é que ia apresentar à tia uma conta certa.

Três bolos.

Mas seriam três bolos mesmo uma conta assim tão certa? A dúvida assaltou-o algumas dezenas de metros mais adiante, sacudindo-o com violência. Bem vistas as coisas, para que precisava a tia Joana de três bolinhos de coco? Sempre que ia lá a casa, ela quase não comia nada! Dois bolos não lhe bastariam? Para que raio quereria três? Não, não podia ser. Três eram de mais! A mão tornou-se firme e foi com resolução que a enfiou dentro do embrulho e tirou mais um bolinho. Comeu-o devagar, ao ritmo lento e prazenteiro dos passos que o conduziam inexoravelmente a casa da tia.

Quando acabou lambeu os dedos, ergueu o embrulho e contemplou o seu interior. Dois bolos chegavam-lhe perfeitamente, concluiu. Perfeitamente. Eram a prenda ideal.

Dois.

José pôs-se a imaginar a tia a recebê-lo com um grande sorriso e a agradecer-lhe os dois bolinhos de coco. Comeria um, estava visto. Mas o que faria com o outro? O pequeno coçou o queixo. Hmm, provavelmente oferecê-lo-ia a ele. Era mulher para isso, não era? Tia generosa, gostava muito de oferecer coisas, uma mãos-largas, e então com os sobrinhos, uf, nem se falava!, era uma loucura, dava-lhes tudo, tudo. Sim, não havia dúvida, ela ia oferecer-lhe o segundo bolo, não era pessoa para se alambuzar com os dois e deixá-lo sem nada, a ver navios. Coitadinha da tia, era mesmo simpática... Uma santa! E tinha sofrido tanto com a morte do marido, 'tadinha! Como ela não havia muitas. Suspirou. Hmm, pois. Bem vistas as coisas, era até um favor que lhe fazia se comesse já o segundo bolo. Então não era? Assim ia adiantando serviço e a tia ficaria toda contente.

Era isso, não havia que hesitar.

Comeu o penúltimo bolo.

Dobrou a esquina do antigo quartel e deu com a casa da tia Joana. Foi nesse instante que voltou a espreitar o embrulho. Ergueu o pacote e sentiu-lhe o peso; constatou que se tornara demasiado leve, pesava menos que um jornal. Que diabo!, pensou. Um embrulho tão grande para levar apenas um bolinho! A constatação deixou-o preocupado. Aquilo já era coisa para dar um pouco nas vistas... Ela iria topar logo que faltavam bolos. Diabo da tia, não lhe escapava nada! Espreitou para o interior do pacote e analisou todo o espaço em torno do único bolo que lhe restava. Não havia dúvidas, aquilo notava-se. Além do mais, o que faria a tia quando visse que só havia um bolo no pacote? Comia-o e deixava o sobrinho a ver? José abanou a cabeça. Hmm, não era pessoa para isso.


Se bem conhecia a tia Joana, ela ia oferecer-lhe o bolo. Que bondosa que a tia era! Os olhos fixaram-se-lhe então no derradeiro bolinho de coco. Não havia dúvidas, a tia não o iria comer. Havendo só um bolo, era certo e sabido que lho ofereceria a ele. Não era ela uma santa?

Parado diante do portão, venceu a derradeira hesitação e meteu o sexto bolo à boca. Mastigou-o com violência e engoliu-o à pressa. Ainda a lamber os beiços para apanhar as últimas migalhas de farinha açucarada, cruzou o portão e entrou no quintal.

Bateu à porta.

Ouviu passos a aproximarem-se e a porta abriu-se, revelando a figura esguia e alta da tia Joana, um sorriso a dançar-lhe nos lábios.

"Olha quem aqui está!", exclamou a tia abrindo os braços. "O Zezinho!"

Com as mãos atrás das costas a esconder o embrulho, José baixou a cabeça e mirou o soalho.

"Olá, tia!", saudou, a voz num fio, quase a sumir-se.

"Então, Zezinho? Entra." Joana puxou-o para dentro de casa. "O que te traz por aqui, rapaz?"

Sempre com os olhos voltados para baixo, tirou as mãos de trás das costas e estendeu o pacote.

"Parabéns, tia!", murmurou. "Trouxe-lhe aqui a sua prenda de anos."

Joana pegou no pacote e estranhou o peso, ou a falta dele.

"O que é isto?"

"Comprei meia dúzia de bolinhos de coco para si."

A tia abriu o embrulho, que já vinha meio desfeito, e espreitou para o interior.

"Mas onde estão eles?"

José torceu-se todo, consciente de que o grande dia tinha enfim chegado.

"Comi-os."

Tornara-se um pecador.Os pecados foram-se revelando mais graves com o tempo, graças a Deus, mas nem sempre por livre iniciativa do pequeno José. Por cima do rapaz pairava uma influência poderosa, a atracção de alguém que o dominava e que o arrastava para a transgressão.

António, claro.

O irmão mais velho, por malícia ou puro tédio, aproveitava a modorra do tempo derramado em casa em horas sem rumo para desviar o mais pequeno até ao mundo do interdito. Como passatempo ensinou o irmão a arrancar a ponta das espigas de milho e a triturar os fiapos, a que chamavam barba de milho, enrolando-os em papel de jornal e pegando lume às pontas. Depois colava o papel enrolado na boca e aspirava-o. José engasgou-se da primeira vez, sentindo o gás acre a atravessar-lhe a garganta e a queimar-lhe os pulmões, e quis saber o que era aquilo.

"Um cigarro à minha maneira", explicou António entre duas passas fumarentas.

Tal como José, António era guloso; um mal de família, sem dúvida. Embora a diferença de idades o afastasse do irmão maisnovo, o facto é que via em José o instrumento ideal para alimentar a gula; afinal o mais pequeno obedecia-lhe cegamente, mostrava-lhe uma fidelidade canina e ingénua que o tornava uma verdadeira marioneta nas suas mãos. António não hesitava em usar esse poder.

Já perto das férias de 1944, que iria passar com o doutor Reis e família a banhos na Foz, o mais velho lembrou-se um dia de fazer uma inspecção à casa. Percorreu-a de alto a baixo e localizou tudo o que achava de interesse, em particular as rabanadas e os bolinhos de bolina. Ao fim da tarde fechou-se no quarto, no sótão, para comer as amêndoas doces que o senhor Pires mandara de Lisboa para a família Branco. Tornara-se uma tradição: todos os anos o velho amigo do pai remetia para Penafiel um grande pacote de amêndoas, que depois eram divididas pela família em doses iguais.

Como é bom de ver, António e José tudo devoravam de uma assentada; não conseguiam resistir à visão daquelas delícias estendidas diante deles. As duas raparigas, mais pacientes e contidas, tragavam uma ou duas amêndoas e, respeitando os ensinamentos de poupança que lhes vinham do pai, guardavam o resto na gaveta de um armário do quarto. Essa gaveta, claro está, encontrava-se fechada à chave. Era precisamente aí que residia o busílis da questão, o cerne do problema, ou, para utilizar a expressão mais adequada às circunstâncias, a palavra- -chave.

A chave.

António sabia onde se escondia a chave.

Enquanto saboreava as derradeiras amêndoas da sua ração, o rapaz ia congeminando um plano de ataque. Seria uma operação eficiente, coordenada, devastadora, uma operação como aquela que a BBC dizia ter sido lançada pelos Aliados na Normandia. Porém, apesar de toda a concentração, de todo o esforço intelectual com que delineou os pormenores do raide que tinha em mente, a verdade é que não foi difícil encontrar o operacional para executar esse plano, uma vez que ele tinha um nome familiar. Chamava-se José.

Naquela noite, quando as últimas lamparinas foram apagadas e a casa dos Branco mergulhou no sono, António foi de pé leve até ao quarto do irmão e sacudiu-lhe o ombro.

"Zé!", chamou, num sopro brusco. "Zé!"

O irmão abanou a cabeça, estremunhado. "Hã?"

"Zé! Acorda!"

O pequeno focou os olhos e, com ar ensonado, mirou António.

"Hã? O que é?"

"Acorda!"

"Já acordei!", quase rosnou, erguendo-se e apoiando o corpo num cotovelo. "O que é?"

"Chiu!", ciciou António, colando o indicador à frente da boca. "Fala baixinho, está tudo a dormir!"

José olhou em redor, atrapalhado, e constatou que de facto a noite se prolongava, escura, e a casa era ainda embalada pelo ritmo do sono.

"Que horas são?"

"Onze da noite."

"Tão tarde?", surpreendeu-se José. "O que é, António? Passa-se alguma coisa?"

"Passa-se que vamos encher o papo", devolveu António com uma ponta de impaciência, puxando-lhe pelo braço. "Anda, levanta-te! Vá!"

Sem nada compreender, José obedeceu ao irmão e saltou da cama. António fez-lhe sinal de que se vestisse. O mais novo pôs as roupas, mas sem calçar os sapatos. Quando terminou, e seguindo ainda as instruções do irmão, sentou-se na cama.

"Então?", foi tudo o que perguntou, com ar expectante.

António fixou-se ao lado e adoptou uma postura condescendente.

"Já ouviste falar no general Montgomery?"

"Quem?"

"O general Montgomery. É o melhor general do mundo. E inglês."

"O pai diz que o melhor é o Archil." "Hã?"

"O pai diz que o melhor general do mundo é o Archil."

A perplexidade no olhar de António prolongou-se por alguns instantes, até o nome ser identificado.

"O Churchill?", riu-se.

"Sim, o Archil."


O mais velho abanou a cabeça.

"Não, esse não é general, palerma. Esse é o que manda nos generais."

"E o dono do mundo?"

"Hmm... mais ou menos. Mas quem é mesmo general, daqueles que andam na guerra, é o Montgomery, percebes?"

"Sim", disse José, evidentemente sem perceber.

António espalmou a mão no peito.

"Ouve bem. Eu agora sou o general Montgomery, estás a ver?" Bateu com o indicador na cabeça. "Tenho aqui preparado o desembarque na doçaria."

"O desembarque na Normandia?", admirou-se José, papagueando a expressão que ultimamente os adultos repetiam à hora do jantar.

"O desembarque na doçaria", repetiu António com ar grave, parecia mesmo que se preparava para tomar decisões de vida ou de morte.

"Que é isso?"

"É a operação que vamos agora lançar." Inclinou a cabeça e aproximou os lábios do ouvido direito do irmão. "Queres comer rabanadas?"

José arregalou os olhos e balançou energicamente a cabeça para cima e para baixo.

"Sim."

"E bolinhos de bolina, também queres?"

"Quero pois. Então não havia de querer?" Cerrou as sobrancelhas, numa expressão desconfiada.

"Mas a mãe deixa?"

"Claro que não deixa. E por isso que isto é uma operação secreta."

"Ah", exclamou José, não querendo mostrar ignorância mas ainda sem entender muito bem a ideia. "Que é isso?"

"Uma operação secreta? E... deixa cá ver... é irmos lá às escondidas e gamarmos os doces."

"Ah." Hesitou, incerto quanto à sensatez do projecto. "E se a mãe descobre?"

"Não descobre. Se tu fizeres tudo bem, ela não descobre nada."

"Se eu fizer tudo bem?"

"Sim."

"Eu?"

"Sim, tu, claro. Quem mais querias que fosse?"

"Então e tu?"

"Eu? Eu não. Eu sou o general Montgomery, lembras-te? Os generais mandam os soldados fazer as coisas. Eu sou o general e tu és o soldado, percebes? Eu mando e tu fazes. Não tem complicação nenhuma, é só seguires as minhas ordens e o desembarque na doçaria será um sucesso."

José fez um ar pensativo.

"Olha lá, António, isto não é pecado?"

"Claro que é, ó idiota! E por isso que tens de executar a operação, não percebes?" Apontou-lhe o indicador. "Precisas de pecados para confessar. Se não fizeres isto, o que diabo vais confessar tu no domingo ao padre Augusto?! Que deste uns peidos às escondidas? Que tiraste uns burriés do nariz sem o pai ver?"

O mais novo meditou naquelas sábias palavras. Como sempre, concluiu, o irmão tinha razão.

Precisava realmente de facturar uns pecados e tinha diante de si uma oportunidade de ouro, uma daquelas ocasiões que seria um crime desperdiçar.

"Obrigado, António", exclamou com um sorriso. "És mesmo meu amigo." Saltou da cama e pôs-se em pé, endireitando o corpo. "Vamos lá às rabanadas?"


Passaram o Verão em raides cirúrgicos, numa rotina clandestina que se repetia na pacatez das trevas. À noitinha, quando toda a família dormia e a vida se suspendia, António ia despertar José e o pequeno saía à aventura, como um batedor, explorando os cantos da casa. O primeiro alvo, devidamente assinalado pelo irmão mais velho, era o pesado molho de chaves que a mãe guardava no avental. José esgueirava-se pela porta do quarto dos pais e, rastejando, no início, ou caminhando curvado, quando ganhou mais traquejo, mas sempre com infinitas cautelas, abria o armário e apalpava as roupas penduradas nos cabides, passava a mão por todas, ao de leve, até descobrir o avental; fazia deslizar os dedos até aos bolsos, num exercício que só terminava quando identificava a superfície fria e dura do molho, que retirava com suprema lentidão para evitar um chocalhar denunciador do metal.

Com o molho de chaves nas mãos, entregavam-se os dois à orgia das guloseimas. Abriam os armários da cozinha e da sala de jantar, ou entravam na despensa do rés-do-chão, e devoravam duas fatias de rabanadas e um bolinho cada um. Embora se tratasse supostamente de uma orgia, a verdade é que tudo comiam com alguma contenção. Afinal era importante não exagerar; caso contrário a mãe daria pela marosca na manhã seguinte e as coisas complicar-se-iam. Como não podiam arrasar todos os doces, apenas aliviavam os pratos de umas quantas fatias; dias depois a mãe reforçava a dose, sem perceber que as rabanadas e os bolinhos iam desaparecendo aos poucos nas furtivas excursões nocturnas dos dois rapazes.

O problema é que António não se contentou com as rabanadas e os bolinhos de bolina. Cansado já daquela dieta repetitiva, decidiu atacar também as amêndoas das irmãs. Os almejados tesouros encontravam-se trancados numa gaveta cuja chave, por maravilhosa coincidência, se achava igualmente no fatídico molho da mãe. O mais velho decidiu passar à acção na sua última semana antes das férias; para isso bastou-lhe convencer José a lançar um raide decisivo ao quarto das raparigas, operação que, como era de esperar, decorreu com o habitual sucesso. O pequeno voltou com o embrulho das amêndoas doces das irmãs debaixo do braço e logo ambos engoliram duas cada, voltando José a guardar o resto no seu sítio. Na noite seguinte repetiram a operação e na outra noite também, fazendo sucessivas incursões no quarto das irmãs, que se prolongaram até as férias de António começarem.

Só que as amêndoas, ao contrário das rabanadas e dos bolinhos, não eram supríveis. Uma amêndoa comida era uma amêndoa desaparecida, uma vez que o senhor Pires, decerto por avareza, não tinha o elementar cuidado de mandar reforços para substituir aquelas que se sumiam durante a noite. António sabia isso, claro, mas a José nunca ocorrera o problema. Como é bom de ver, o que tinha de acontecer aconteceu.

Foi numa manhã do início de Julho que Lourdes resolveu deliciar-se com uma apetecível amêndoa do senhor Pires. Ao abrir a gaveta descobriu, horrorizada, que só lhe restavam três minúsculos exemplares, por sinal os mais mirrados e miseráveis do lote. Depois de inquirir sobre o paradeiro das restantes amêndoas junto da irmã e da mãe, logo se concluiu que andava por ali mão da rapaziada.

Seguiu-se, claro está, uma manhã de pranto, com Mana e Lourdes a derramarem sentidas lágrimas pelas amêndoas para sempre perdidas.

"Foste tu que tiraste as amêndoas às tuas irmãs?"

O pequeno José foi chamado ao escritório do pai, diante de quem se plantou, trémulo e temeroso, vergastado pelo olhar feito de lei e justiça.

"Foste tu?", repetiu o pai, a voz intensa de autoridade. "Tiraste as amêndoas das tuas irmãs?"

O mais novo dos Branco nem conseguia levantar os olhos. O queixo começou a vibrar e as pálpebras molharam-se. No terror do momento acabou por fazer que sim com a cabeça.

"Só tu? Ou o António também?"

O irmão mais velho, que tudo previra em tempo oportuno e tratara de se pôr a conveniente distância, gozava já na Foz os folgados prazeres da vida a banhos com o doutor Reis e família. José sentiu por isso o peso de toda a injustiça daquele instante, a tortura de enfrentar sozinho as amarguras do momento em que tinha de prestar contas.

"Ele também", confessou num fio de voz.

Sem largar os olhos do pequeno, o pai suspirou e recostou-se na cadeira. Pousou a mão na secretária, tamborilando os dedos pensativamente na madeira, e fez sinal ao filho.

"Anda cá", chamou-o, batendo com a palma da mão na sua própria coxa. "Senta-te aqui."

José ficou momentaneamente desconcertado com a ordem, incapaz de interpretar as intenções do pai. Receava a autoridade que aquela voz firme exprimia, mas o facto é que não se lembrava de alguma vez ter sido sovado, como lhe acontecia na escola às mãos dos professores ou como lhe contavam alguns colegas a propósito dos próprios pais. Seria agora que o seu lhe poria também a mão em cima?

"Anda cá", repetiu o pai no mesmo tom, dando de novo palmadinhas na coxa para assinalar o local. "Senta-te aqui."

Estava fora de questão desobedecer, pelo que, embora esmagado de respeito e quase paralisado de medo, José se aproximou do pai e se acomodou sobre a coxa dele, a face voltada para as inúmeras molduras com fotografias de família pregadas na parede à frente da secretária.

"As amêndoas eram boas?"

A pergunta foi feita com inesperada doçura, tranquilizando José. O momento em que o pai o iria sovar ainda não chegara. Sentiu por isso a confiança regressar e a voz também.

"Eram."

"Andaste portanto na boa vida."

"Sim."

O capitão Branco recuou ligeiramente o tronco, de modo a poder fitar o filho nos olhos.

"Tu ainda és pequeno, mas gostaria que começasses já a pensar nesta pergunta que te vou fazer", disse. "O que é uma vida boa?"

Surpreendido com a pergunta, José pestanejou e devolveu o olhar ao pai. O que era uma vida boa? Que questão seria aquela? Onde queria o pai chegar?

"Imagina que vives muito tempo", retomou o capitão, sentindo a perplexidade do pequeno perante a pergunta que lhe fizera. "Mas um dia todos morremos, não é? Quando morreres, Deus chama-te para o pé dele e pergunta-te: «Tiveste uma vida boa?» Que irás tu responder? «Sim, tive.

Comi as coisas dos outros. Roubei, enganei, fui desonesto. Tive uma boa vida.»" Fez uma pausa. "E

isso o que Lhe vais responder?"

O filho imaginou a cena, Deus diante dele tão justiceiro quanto o pai, talvez mais ainda, e os actos da sua vida expostos no juízo final. Ficou paralisado de horror, incapaz de responder à pergunta.

"Uma vez conheci no Porto um homem muito rico que me disse que tinha uma boa vida.

Possuía um automóvel, uma grande casa na Foz e outra em Lisboa e outra no Rio de Janeiro, grandes propriedades na Régua e em Amarante e fartava-se de viajar. Ia a Madrid, a Paris, a Londres. Mas com tudo isso afastara-se da família e os amigos só o queriam porque ele era rico.

Fiz-lhe, por isso, a mesma pergunta. «O senhor anda numa boa vida, mas acha realmente que tem tido uma vida boa?» Ele ficou um longo momento calado e acabou por responder: «Não.» Sabes porquê? Porque andar na boa vida e ter uma vida boa são coisas diferentes. Andar na boa vida é viver no conforto e no luxo, é ter grandes casas e grandes carros, é aproveitar-se das coisas e gozar o momento. Ter uma vida boa é diferente. É ter amor e amigos, é ter valores, é ajudar os outros, é ter carácter e ser honesto, é ser feliz e fazer os outros felizes. Esses são os que têm uma vida boa.

Estás a perceber?"

José fez que sim com a cabeça e o pai ergueu um dedo e apontou-o ao rosto do filho.

"Quando comeste as amêndoas das tuas irmãs andaste na boa vida. Mas é importante que saibas que não tiveste uma vida boa. Roubaste as tuas irmãs e enganaste-as. Viveste com um segredo que te sujou. Viver bem não é viver à grande, é viver limpo e feliz."

O filho baixou a cabeça, sentindo-se um miserável.

"Foi um pecado mau?"

"Sim. Muito mau."

"Deus vai-me mandar para o Inferno?"

O capitão Branco respirou fundo, como se essa não fosse a pergunta certa a fazer naquelas circunstâncias.

"Talvez, não sei", retorquiu. "Mas há pessoas que acham que Deus não existe e mesmo assim são boas pessoas. Se nós vivemos uma vida boa não é porque temos medo de ir para o Inferno ou receamos o que os outros possam pensar de nós, mas porque essa é a maneira certa de viver.

Entendes?"

O pequeno olhou para o pai, manifestamente confuso. Percebendo que teria de explicar as coisas de outra forma, o capitão lembrou-se de um velho texto de Platão e retirou o anel de casamento que lhe enlaçava o dedo.

"Estás a ver este anel?"

"Sim."

Enfiou o anel de novo no dedo.

"Imagina que quando pões este anel ficas invisível. Nem Deus te consegue ver. Ficando invisível, ninguém poderá saber o que tu fazes, não é? Isto quer dizer que nada do que fizeres te será atribuído. Nem as coisas boas nem as más. Podes roubar uma pessoa e ninguém saberá. Podes salvar outra e ninguém saberá. Que farás nessas circunstâncias? Farás o que farias se te pudessem ver? Ou farás coisas diferentes?"

José ficou um longo instante a imaginar esse poder e o que faria com ele. O exercício de imaginação foi, porém, interrompido pelo pai, que lhe pegou pela cintura e o pôs no chão, indicando desse modo que a conversa terminara.

"É esse o teste das pessoas boas", concluiu. "Comporta-te sempre com honestidade, estejam ou não outros a ver-te, possas ou não ser premiado, e terás uma vida boa." "Aqui Londres. Esta é a BBC."

Tal como a maioria das notícias da guerra, o anúncio do fim das hostilidades também veio pelas ondas da rádio, embora sem grande surpresa para ninguém. A recente notícia da morte de Adolf Hitler tinha criado em todos a impressão de que a guerra iria a qualquer momento acabar na Europa. Daí que, quando a voz solene e pausada de Augusto Silva entrou pela sala depois de almoço com a grande novidade, foi recebida com sorrisos aliviados e não com festa efusiva.

Embora contasse apenas nove anos, José dispunha de suficiente noção dos acontecimentos para discernir a importância do sucedido e celebrar o fim do conflito com o tradicional cálice de vinho do Porto erguido por toda a família logo que a notícia irrompeu da telefonia. Desde que tinha consciência de si que o mundo vivia em permanente estado de guerra, pelo que sempre supusera que ela fazia parte da ordem natural das coisas. A revelação de que as hostilidades haviam acabado deixou nele uma estranha incerteza; não imaginava ser possível respirar sem os noticiários vomitarem novidades envolvendo figuras misteriosas como Hitler, Churchill, Roosevelt ou Estaline e locais exóticos como o Vístula, o Reno, as Ardenas ou monte Cassino.

Restavam, claro, os Japoneses. A guerra prolongou-se ainda algum tempo no Pacífico, estendendo-lhe a ilusão de que continuava a ser a norma. Tudo se desfez no dia em que o pai chegou mais tarde do quartel com uma grande novidade.

"Parece que os Americanos têm uma bomba que pode destruir o mundo", revelou de ar apreensivo. "Atiraram um desses engenhos e os Japoneses renderam-se."

Uma bomba que pode destruir o mundo? A notícia pareceu-lhe aterradora; sobrepunha-se de longe à informação da rendição dos Japoneses. Caramba, e se eles se põem a despejar essas bombas na primeira ocasião? Será que o mundo vai acabar?

José viveu vários dias com medo até de sair à rua, mas como não havia meio de o fim do mundo chegar e inúmeras coisas exigiam entretanto a sua atenção lá fora, designadamente as aulas na escola e as missas ao domingo, a preocupação foi-se desvanecendo.

Os sintomas de mudança tornaram-se gradualmente visíveis a vários níveis. As habituais discussões em casa dos Branco, suscitadas pela falta de batatas ou pela má qualidade do escasso azeite, começaram a espaçar-se no tempo até desaparecerem por completo.

Amélia deu consigo a gerir com eficiência o pouco que havia; era como se, por artes mágicas, tivesse passado a conseguir com facilidade o que antes lhe parecia impossível.

"Para fazer muito com pouco, não há como eu", exclamou, orgulhosa, à mesa do jantar, numa noite fresca da Primavera de 1947. "Até com uma alfacezita arranjo um rico manjar!"

No entanto, meses depois, a desmobilização do capitão Mário Branco foi o sinal inequívoco de que afinal o mérito não era todo seu. Se calhar, alvitraram as que a ouviam, nem nenhum mérito tinha. Pois não se via já mais comida por toda a parte? A verdade é que por essa altura passou a haver produtos variados no mercado. A situação evoluiu de tal modo que as comissões de racionamento foram extintas pelo governo e o Regimento de Infantaria de Penafiel deixou de ter necessidade dos serviços do marido. O oficial voltou para casa.

De facto, as coisas estavam mesmo a mudar e bastava ler nas entrelinhas de O Comércio do Porto para perceber porquê. O governo tinha pegado no ouro e nas divisas acumuladas nos negócios com os Aliados e os Alemães e pôs-se a adquirir bens de consumo importados do estrangeiro, que depois espalhou em postos de venda a preços tabelados. Quase sem se dar por isso, até porque a evolução para melhor se nota menos do que em sentido contrário, acabou-se o açambarcamento e o mercado negro, ao mesmo tempo que a política de racionamento deixou de ser necessária.

A vida regressou por fim à normalidade, um conceito abrangente para José, capaz de abarcar tudo o que a vida lhe dava; até as dificuldades, que tanto perturbavam os adultos, lhe pareciam naturais. Bem vistas as coisas, é uma prerrogativa das crianças; só elas revelam a surpreendente capacidade de aceitar até o inaceitável. Afinal não conhecem melhor e a tudo se habituam depressa. O mais novo dos Branco não passava ainda de uma criança, é certo, embora desse já os primeiros passos na adolescência.

O fascínio que nutria por Mimicas tornou-se devagar uma paixão. Era como se a sua personalidade se dividisse em duas: havia o José tranquilo, metido nas suas coisas e atento às conversas dos adultos como se o instinto lhe dissesse que tudo o que acontecia no exterior podia ter reflexos na sua vida e por isso devia ser seguido com atenção, mas existia um outro José, o adolescente apaixonado, que vivia para os passeios dominicais com Mimicas e as suas conversas sobre África e o seu cabelo claro aos canudos e o linguajar feito de "coisos" que o divertia e o olhar traquina que o desarmava.


"Já viste isto da bomba cómica?", perguntou logo que a topou num domingo à saída da missa.

"É um estouro, hã?"

Desde que ouvira o pai mencionar a notícia da bomba que fizera o Japão em fanicos que ardia de excitação por tagarelar com Mimicas sobre o assunto. Na verdade falava mentalmente com ela todos os dias e chegava por vezes a convencer-se de que o diálogo assim entabulado era real, mas no fundo tinha consciência de que a única conversa que valia era aquela"que ambos travavam aos domingos a caminho de casa.

"Qual bomba? A que os Americanos coisaram no coiso?"

"Essa. O que me dizes disso?"

A amiga encolheu os ombros, como alheia ao magno problema.

"Nada."

"Nada?", espantou-se José. "Eles agora podem destruir o mundo, Mimicas. Não tens medo?"

Mimicas abanou a cabeça, com aparente indiferença, o que o deixou decepcionado. A vizinha era por norma uma rapariga espevitada e armada de opiniões sobre tudo, mas nessa manhã parecia estranhamente ausente, como se tivesse a cabeça noutro sítio. José já havia surpreendido aquele olhar vazio no rosto da sua própria mãe. Parecia que o corpo se encontrava ali mas a mente tinha partido de viagem, pelo que presumiu que se tratasse de coisa típica de mulheres e não fez grande caso.

Caminharam assim em silêncio, algo pouco habitual entre eles, e foi só quando chegaram à porta de casa que Mimicas quebrou o mutismo.

"Vou-me embora."

"Está bem", suspirou José, acenando em despedida. "Vemo- -nos no próximo domingo."

Mas Mimicas não se mexeu.

"Vou voltar para Cabo Verde."

José caminhava já para casa, mas imobilizou-se a meio de uma passada, como se tivesse embatido numa parede invisível. Virou-se e fitou-a numa interrogação.

"O quê?"

Uma lágrima corria pelo rosto suave da rapariga, grossa e reluzente, como se a saudade a queimasse já com gotas incandescentes de ouro fundido.

"A mamã chamou-me", disse, a voz embargada e um sorriso forçado. "Parto amanhã."

A súbita partida de Mimicas foi um choque de que José talvez nunca se tenha refeito. Foi como se tivesse ficado órfão. Derramou por ela as suas primeiras lágrimas de amor, sem perceber ainda que, a partir daquele instante, seria Mimicas a medida pela qual avaliaria todas as outras.

Passado um primeiro momento de reclusão interior, em que caíra deprimido pelo desaparecimento da amiga, começou aos poucos a emergir do torpor e a canalizar as suas energias para os talentos e interesses que até aí haviam permanecido sublimados. Os primeiros foram os das histórias aos quadradinhos. Começou por ler o suplemento dominical de O Primeiro de Janeiro, que a tia Joana lhe levava para os almoços de domingo, depois da ida à missa, e a seguir passou para O

Mosquito, onde brilhava Luis Ciclón, e O Gafanhoto, cujo principal herói era Cuto.

As histórias aos quadradinhos pareciam um interesse exclusivo de José, mas o mesmo não se podia dizer da escuta da telefonia. A rádio era uma antiga paixão da família, com o pai permanentemente sintonizado na BBC. Quando a estação britânica não estava no ar, no entanto, as preferências de toda a gente em casa voltavam-se sobretudo para a Emissora Nacional, embora, aqui e ali, experimentassem a Rádio Porto ou o Rádio Clube Português.

Amélia e as duas filhas, às quais se juntava ainda Beatriz, consideravam sagrada a hora em que passava mais um episódio de As Pupilas do Senhor Reitor; já os rapazes preferiam a galhofa dos

Diálogos da Lelé e da Zequinha e de A Parada da Paródia, sem esquecer, claro, o velho O Senhor Doutor, que brilhava no Rádio Clube Português aos domingos e seguia o êxito da revista juvenil. O

ponto alto deste programa eram os diálogos entre o menino Tonecas e o professor, conversas repletas de absurdos que desencadeavam gargalhadas em cascata por toda a casa.

"Menino Tonecas", começava a voz que jorrava pela rádio. "Diga o que descobriu Cristóvão Colombo."

"Descobriu um ovo, senhor professor."

Foi também pela rádio que José se tornou um apaixonado do fado. Na altura as grandes estrelas eram Amália, Hermínia Silva e Ercília Costa, embora o mais novo dos Branco, devido à influência do irmão mais velho, que suspirava por estudar em Coimbra, apenas se interessasse pelo fado cantado por vozes masculinas. Talvez por afinidade etária, a verdade é que começou por apreciar sobretudo o estilo de Fernando Farinha, o Miiído da Bica, embora depressa a sua atenção se tivesse transferido para o grande Alfredo Marceneiro e o seu desconcertante fado castiço.

Começou por ouvir Marceneiro na telefonia; interessou-se por aquela voz atrevida e passou a segui-la, acompanhando os comentários nos jornais e nas revistas e vendo alguns imitadores do estilo que por vezes apareciam em Penafiel para um espectáculo. Empenhado em emular o seu ídolo, José vestia-se de preto e apertava um lenço colorido ao pescoço; era assim arranjado que se punha, às escondidas, diante do grande espelho do armário do quarto dos pais e, de mãos nos bolsos e estilo gingão, cantava A Casa da Mariquinhas e outros grandes êxitos do momento.

E numa rua bizarra A casa da Mariquinhas Tem na sala

uma guitarra E janelas com tabuinhas.

Ouvia as letras e a melodia na telefonia, começava por trauteá- las baixinho e, mal ganhava confiança, punha-se a cantá-las em voz alta. A verdade é que decorava tudo com facilidade espantosa.

Numa tarde de preguiça, vivida na cadência pachorrenta das longas horas cinzentas em que tudo parece adormecido, o pó flutua no ar e o passar do tempo é pautado pelo tranquilo tiquetaque cadenciado do grande relógio da sala, José foi atraído por estranhos sons vibrantes que de repente rasgaram o silêncio e encheram de vida a pasmaceira. Ergueu a cabeça e localizou a sua origem; vinham do quarto das irmãs. Eram tlins titubeantes e tlãos que cambaleavam, sons trôpegos que aparentavam ir numa direcção e depois paravam, indecisos, até darem mais um passo noutro sentido e voltarem a tropeçar, num gaguejar hesitante, irresoluto, como se estivessem ébrios e caminhassem aos trambolhões.

Aproximou-se, intrigado, e encontrou a Mana sentada numa cadeira, as pernas cruzadas, de guitarra na mão e uma pauta diante dos olhos. Aprendia a tocar guitarra. O rapaz parou por ali, encostado à porta, debaixo da ombreira, a observar a irmã com atenção, perscrutando a estranha pauta, namorando as curvas voluptuosas da guitarra sensual, sentindo os sons que vibravam nas cordas e lhe ressoavam no peito, sofrendo com a dor suportada pelo instrumento em mãos tão inexperientes, a dimensão da angústia a estremecer no fluxo vacilante das notas musicais que a rapariga arrancava com hesitação. Permaneceu assim a observá-la, calado, mergulhado num misto de placidez e tumulto, o coração a pulsar ao ritmo vertiginoso de sensações contraditórias, fascinado pelas delícias dos timbres, agastado pela forma crua como a guitarra era maltratada.

Sentiu ganas de interrompê-la, mas não se atrevia a fazê-lo.


"Que queres?", perguntou enfim a rapariga com irritação, após falhar mais duas notas. Fixou nele o olhar, numa expressão de censura. "Não vês que me estás a desconcentrar?"

"Desculpa."

Mana suspirou e pousou a guitarra no regaço, enchendo-se de paciência.

"Então o que queres tu? Passa-se alguma coisa?"

José encolheu os ombros.

"Nada, Mana. Estava só a ouvir-te."

"Ah", corou. "Achas que toco bem?"

O mais novo sorriu.

"Nem por isso." "Oh!"

"Uh... não tocas mal", apressou-se a esclarecer, diplomático, preocupado em não ofender a irmã.

"O problema é que a Mimi é muito melhor."

Mana riu-se. Mimi era uma pequena cantora do programa infantil do Rádio Clube Português, um verdadeiro êxito junto da pequenada.

"Pudera! A Mimi é... é uma artista."

"Eu era capaz de tocar como a Mimi."

A irmã voltou a rir-se.

"Pateta! A Mimi não toca, só canta. Quem toca são outros, percebes? Estão atrás a tocar viola e a Mimi acompanha-os com a voz."

"Então eu toco como os outros. Eu toco e tu cantas. Que tal?"

"Mas tu alguma vez tocaste?"

"Eu não."

"Então como sabes que tocas?"

"Sei."

Mana fez um gesto com as mãos, a chamar o irmão.

"Anda cá", disse. Bateu com a palma da mão no joelho, convidando-o a sentar-se ao seu colo.

"Vamos lá a ver se tocas ou não tocas."

José acomodou-se sobre a perna da irmã e começou por dedilhar as cordas da guitarra. Ao fim de alguns minutos a ensaiar sons, arrancou da guitarra a primeira sequência melódica, um extracto da banda sonora de E Tudo o Vento Levou, o filme que fizera furor poucos anos antes, no tempo da guerra, com Clark Gable e Vivien Leigh. O efeito foi tão surpreendente que Mana desatou a bater palmas.

"Ena!", exclamou. "Temos artista!"

A irmã passou uma hora a ensinar-lhe acordes, e em particular a forma como devia pegar na guitarra. Quis mostrar-lhe como ler as pautas, mas essa parte não lhe interessava. A exemplo da generalidade das pessoas naturalmente talentosas, José era preguiçoso; apenas se empenhava no que o divertia, e ler ou escrever pautas não constituía, definitivamente, a sua ideia do que seria uma tarde bem passada.

Começou a procurar música por toda a parte onde ia. Além de se interessar pelas canções na telefonia, acompanhava a família nos passeios de Verão até ao centro da cidade. A banda de Infantaria 6 juntava-se às quintas e aos domingos para um concerto animado no coreto. José não perdia uma sessão, mas preferia os ternos de fanfarra das quintas-feiras, sobretudo fascinado pelo espectáculo dos corneteiros e dos bombos a tocarem a recolher. Em casa, e uma vez que Mana monopolizava a guitarra, agarrou-se a um velho bandolim do pai, que aprendeu a tocar sozinho.

Depois lançou-se num novo desafio, o de um desafinado piano guardado no escritório sob uma fina camada de poeira. Ignorou a sujidade e atacou as teclas com entusiasmo, cantando em altos berros sentidas árias napolitanas, muito populares na Emissora Nacional, em particular a mais velha e romântica de todas.

Ma riatu sole Cchiu' bello, ojè O sole mio Sta

'nfronte a te!

O sole, o sole mio Sta 'nfronte a te! Sta 'nfronte a

te!

Quando deu por ele, já tinha toda a família em redor, embasbacada com aquele talento emergente a cantar O Sole Mio. Não havia dúvidas, o rapaz tinha ouvido para a música.

"Um artista!", concluiu o pai.

José Branco até podia ser um artista, mas com o tempo revelou-se sobretudo um artista da paródia. Depois da primária foi fazer o secundário para o Colégio do Carmo, onde se tornou amigo de outro folião, o Justino. Passavam as tardes juntos a inventar brincadeiras, em particular as relacionadas com os grandes eventos desportivos da época.

Vivia-se o período dos emocionantes duelos sobre rodas entre José Maria Nicolau, do Benfica, e Alfredo Trindade, do Sporting, cuja acérrima rivalidade era acompanhada através dos relatos galvanizantes da rádio. Recorrendo ao seu talento natural, José desenhava os ciclistas em folhas de cartolina, que Justino recortava com uma tesoura e pintava, de vermelho ou riscas horizontais verdes e brancas, consoante as equipas dos velocipedistas; as figurinhas eram depois dobradas pela base, de modo a aguentarem-se em pé, e serviam para fazer corridas pelo soalho do sótão, José com a bicicleta de Nicolau, Justino com a de Trindade. Tanto se ligaram às duas figuras que, inevitavelmente, o mais novo dos Branco se tornou adepto do Benfica, enquanto o amigo ficou simpatizante do Sporting.

Como é bom de ver, a rivalidade e as brincadeiras estenderam-se ao futebol, embora, por estranho que possa parecer, no início se tenham interessado mais pelos clubes brasileiros. O que tem uma explicação. O tio de José, irmão do capitão Branco, havia emigrado para o Brasil aos quinze anos e tornara-se atleta do Clube de Regatas Vasco da Gama, a agremiação dos portugueses que viviam no Rio de Janeiro. Chamava-se Adão, mas todos o conheciam por Tuja, e entrou na história do futebol brasileiro por ser o primeiro jogador a marcar um golo com as cores do Vasco da Gama, feito que enchia de orgulho todos os parentes de Penafiel. Ciente do seu estatuto de estrela desportiva da família, o tio Tuja enviava regularmente jornais cariocas com informações sobre o futebol brasileiro, em particular sobre o glorioso Vasco da Gama, e também cromos onde figuravam as principais vedetas da bola - entre as quais ele próprio, claro.

Os dois rapazes pegaram nesses cromos e colaram-nos em cartolina para os recortar de seguida, segundo o mesmo método que utilizavam para as bicicletas. Depois de assim fabricarem os jogadores, passaram aos jogos, sempre disputados no sótão, o lugar mais quente da casa. Todas as tardes estendiam uma grande cartolina verde no chão, as linhas do campo de futebol desenhadas a rigor, e disputavam emocionantes partidas entre os dois, com um botão a servir de bola.

As estrelas do Vasco da Gama, cujas cores José defendia sempre com galharda valentia, eram o guarda-redes Barbosa e o temível avançado Ademar, embora a principal figura da equipa fosse, como parece inevitável, o grande Tuja, o maior goleador do campeonato brasileiro que se disputava na casa dos Branco, em Penafiel. Justino, por seu turno, assumia o comando do Olaria, clube que contava com uma mão-cheia de craques de nomes bizarros, entre os quais pontificavam Juraci, Marmurato, Bilulu, Sula, Januário e Adalto, todos eles correspondentes a futebolistas que de facto alinhavam por aquele clube - pelo menos a acreditar nos cromos enviados do Rio de Janeiro pelo tio Tuja.

Mas não eram só as estrelas brasileiras que alimentavam as paixões futebolísticas do miúdo.

Iniciado neste desporto pelos cromos remetidos pelo tio Tuja, o mais novo dos Branco começou a interessar-se também pelos clubes da terra. Havia dois em Penafiel, o Sport, que alinhava de preto e vermelho e era o emblema dos comerciantes e dos doutores, e o União, a equipa de verde e branco, que colhia a preferência das camadas mais populares. Uma vez que o Sport ostentava vermelho na camisola, José pendeu para este lado, enquanto, pelo mesmo motivo, Justino preferia o União.

Como não podia deixar de ser, esta paixão pelo futebol rendeu a José mais uns pecaditos para confessar ao padre Augusto, benefício que não era de desprezar. A maior parte das vezes, os pequenos delitos que ia amealhando paulatinamente no seu pecúlio pecaminoso tinham a ver com palavras exaltadas que, no calor da refrega, o rapaz dirigia aos jogadores adversários e até, pasme-se, ao distinto árbitro, incluindo referências despresti- giantes às respectivas mães, senhoras cuja reputação e idoneidade moral o pequeno ocasionalmente punha em causa.

Mas houve uma vez que o delito saiu desta esfera relativamente inocente e se tornou assunto de conversa indignada entre as mulheres da família e as beatas que frequentavam a missa. Jogava-se num domingo de Março um muito esperado Sport- União, partida que a equipa de vermelho se mostrava ansiosa por disputar: afinal tinha de se vingar de uma recente humilhação aos pés do eterno rival. O problema é que Amélia proibiu o excitado José de assistir ao grande embate do ano, com o enervante pretexto de que o filho não podia faltar ao terço.

"Deus é mais importante do que a bola", argumentou a mãe, pondo um ponto final nas súplicas insistentes do pequeno. "Está decidido e não se fala mais nisso!"

José lá partiu para a igreja com ar contrariado. Uma hora depois, Amélia saiu à rua para subir, também ela, ao Sameiro; queria oferecer uma esmola para pagar uma promessa que fizera dias antes. Cruzou-se no jardim, na ponte sobre o lago, com dona Idalina, que cumprimentou de modo acalorado; eram velhas conhecidas da igreja.

A dado ponto da conversa, quando indagada sobre o que fazia ali por essas horas, dona Idalina explicou que vinha do terço, o que levou Amélia a questioná-la sobre o filho, bom rapaz, que também para lá fora em cumprimento das suas obrigações religiosas.

"Ai sim?", admirou-se Idalina com malícia. "Não o vi por lá."

"Pois", devolveu Amélia. "Devia estar no meio da multidão, coitadinho."

"Qual multidão? A igreja estava vazia..."

"Vazia?"

"Sim."

"E não o viu?", admirou-se Amélia. "Ele é muito piedoso, vai sempre para a primeira fila..."

"Pois não estava lá."

"Homessa!"

Acossada por um súbito e terrível sentimento de desconfiança, Amélia despediu-se apressadamente da beata e acelerou o passo escadaria acima. Chegou à igreja e foi de imediato depositar a esmola na respectiva caixinha, após o que se dirigiu ao pároco. O padre Jacinto abençoou-a junto à sacristia e, após algumas palavras de circunstância, confirmou não ter visto o filho por aquelas paragens.

Balbuciando um adeus abreviado, a senhora saiu em fúria e veio monte abaixo a bufar, abespinhada, interrogando-se sobre o que diabo acontecera para o seu José lhe ter desobedecido.


Entrou em casa e quis logo saber do pequeno; responderam-lhe que ele ainda não havia chegado.

Dez minutos volvidos, ouviu a porta de entrada bater e sentiu-o trepar as escadas; vinha esbaforido, as faces coradas, o olhar excitado.

"Olha lá, ó malandro!", interpelou-o, sem o cumprimentar. "Por onde andaste tu?"

José estacou, atrapalhado. Era evidente que não esperava ser questionado sobre o seu paradeiro e a expressão de culpa denunciou-o irremediavelmente.

"Eu?"

"Sim, tu! Por onde andaste tu, pode saber-se?"

Corou, indeciso. Sabia que devia dizer a verdade, mas havia verdades e verdades e aquela parecia-lhe gratuita por natureza e potencialmente devastadora nas consequências. Não ouvira já numa missa o padre Jacinto falar nas mentiras piedosas?

"Eu fui... fui ao terço."

"Não foste nada!"

"Fui, fui!"

"Mentiroso, tu não foste ao terço! Por onde andaste tu? Vá, diz!"

O rapaz quase se engasgou de atarantação.

"Ó mãe, eu fui ao terço, fui", balbuciou. "Não s'acredita?"

"Mentira!"

"É verdade!..."

"Ninguém te viu lá! Ninguém!" José abanou a cabeça, confuso. "Mas eu fui."

"Como, se ninguém te viu?" "Eu fui, mãe." "Não foste!"

"Fui, fui", titubeou, a desorientação a tomar conta dele. "Fui direitinho para lá. E verdade. Só que, quando lá cheguei, já estava 3-0."Foi no balneário do Colégio do Carmo, após uma aula de ginástica, que o franzino José Branco percebeu que tinha um pénis consideravelmente maior que os dos colegas. Na altura a descoberta não o encheu de orgulho, como seria legítimo e natural em qualquer macho cioso da sua masculinidade, mas antes de espanto embaraçado, de vergonha até.

Seria, aliás, o seu amigo Justino o primeiro a reparar nesse pormenor quando, voltado para o urinol, captou pelo canto do olho um enorme volume que balouçava nas mãos do companheiro e não resistiu a uma fugaz espreitadela.

Ficou abismado.

"Eh, pessoal", gritou em pleno balneário, atraindo as atenções gerais. "Já viram a verga do Zé?

Isto não é uma pila, camano. Isto é um chourição!"

Assim postas as coisas, pode imaginar-se a algazarra que se desencadeou naquele balneário logo que palavras tão explosivas foram proferidas. Os miúdos atropelaram-se na disputa da melhor posição para verificar se era mesmo como o Justino dizia, se o tanso do lingrinhas tinha de facto uma verga da grossura deum chourição. O assustado e embaraçado José viu-se de repente arremessado para um canto do balneário, as calças e as cuecas arrancadas das pernas e a virilidade exposta aos olhares indiscretos dos colegas, entre os comentários e as gargalhadas mais inconvenientes.

"Porra!", gritou um com uma risada boçal. "Ó p'ra isto!"

"Que g'anda mangalho!", comentou outro. "Parece um boi, carago!

O pequeno sentiu-se uma bizarria, um enjeitado, transformado numa atracção de feira. O beiço pôs-se-lhe a tremelicar e as lágrimas inundaram-lhe os olhos; chorou de vergonha por se ver assim tratado, por verificar que era diferente dos amigos, por transportar tamanho monstro entre as pernas, por todos já o saberem e por a escola inteira o comentar entre gargalhadas grosseiras, tornando-o o alvo infeliz de todos os olhares, de todas as troças, de todas as brincadeiras.

Porquê eu?, interrogou-se mil vezes nesse dia.

Porquê eu?

Foi para casa vergado pela humilhação. Não disse palavra à hora do jantar e nessa noite, no quarto do sótão, quando as lâmpadas se apagaram e a casa mergulhou no sono, José ajoe- lhou-se ao lado da cama e rezou a Nossa Senhora, rezou como nunca tinha rezado. Rogou à Virgem que o fizesse como os outros, implorou que a sua verga minguasse, que se tornasse tão pequena e tão normal e tão insignificante quanto as dos amigos. O seu horizonte de sonhos reduzira-se à simples ambição de um dia ter uma pilinha pequerrucha, discreta, uma minhoquinha humilde, jamais um canhão daquele calibre.

No domingo seguinte, quando subiu ao Sameiro para a missa da manhã, passou toda a homilia de joelhos nus sobre a pedra, em sofrimento, a rezar e a implorar, a fazer promessas a Nossa Senhora, sempre com solenidade e fervor piedoso. Jurou que não voltaria a roubar amêndoas às irmãs, afiançou que não mais diria um palavrão na vida, comprometeu-se a ir todas as quartas-feiras à missa, chegou até a assegurar que jamais assistiria de novo a uma partida do Sport. A tudo se mostrou disposto, mesmo aos mais duros sacrifícios, desde que Ela, a bondosa e compreensiva Nossa Senhora, lhe consentisse a Sua Graça e lhe concedesse o milagre de uma virilidade modesta como a de todos os outros. As promessas foram tantas e feitas com tamanho fervor e devoção que José acabou por se convencer de que Maria, Nossa Senhora e Mãe de Deus, não teria outro remédio que não fosse aceder às suas humildes súplicas e minguar-lhe o pirilau.

A vida de José tornou-se, durante um mês, um verdadeiro ritual. O seu primeiro acto ao acordar era erguer a manta e espreitar por baixo das calças do pijama para verificar se a graça lhe fora ou não concedida nessa noite. Recuperava rapidamente da decepção, recriminando-se a si próprio por não ter sido suficientemente devoto nas orações e assumindo o solene compromisso de ser ainda mais fervoroso da vez seguinte. Logo tudo recomeçava, com novas promessas de fidelidade beata e juras renovadas de rejeição do pecado e da tentação.

Chegou ao ponto de ir todos os dias à missa, um zelo tão súbito e rigoroso que levantou as suspeitas de Amélia. A mãe tanto estranhou tamanha piedade que até se plantou de vigia; cheirava-lhe que havia por ali artimanha. Mas não, concluiu depois, compadecida; o rapaz ia mesmo à missa, o vigário confirmava-o diariamente entre profusos encómios ao espantoso despertar daquela devoção. Moço pio mais pio nunca se vira em parte alguma de Penafiel desde que o padre Américo dali abalara para fundar a Casa do Gaiato.

"Ainda acaba papa", gracejou o padre Jacinto, erguendo o indicador para o céu. "Papa, digo-lhe eu!"

A mãe, porém, não interpretou este comentário inocente como um gracejo, um mero dito espirituoso, mas como o arauto de coisas grandes, imensas, maiores do que a imaginação. Essas palavras, achou ela, constituíam uma premonição! A verdade é que a devoção manifestada por José era tanta e tornara-se tão intensa que Amélia começou a alimentar uma hipótese acima de todas as outras. Desde que a irmã perdera o marido que Amélia, num acto em que todos viam a prova da mais zelosa das amizades e solidariedades fraternais, se recolhera ao mundo espiritual. Procurou na alma a resposta para o enigma do sofrimento e pareceu-lhe então que a graça de Deus se manifestava na luz que guiava os passos do seu mais novo até ao altar do Sameiro.

Foi assim que, em segredo, Amélia se pôs a olhar para José e a ver um sacristão. Depois o sonho cresceu e já ali estava um padre, um bispo, um cardeal, ou até... até... quem sabe se o pároco do Sameiro não teria acertado em cheio? Talvez algo de verdadeiramente grandioso, um... um...


atrever-se-ia ela a pronunciar a palavra? Sim, um... um papa. Um papa! Ah, suspirou Amélia, embevecida. Como eram misteriosos e belos os desígnios do Senhor!

Amarga foi a decepção.

Tantos sonhos, imensos projectos acalentados, tamanhos desejos de glória, tanta coisa em vão; nenhum milagre se materializou. Nem José se tornou padre, nem Nossa Senhora lhe minguou o pirilau.

Apesar da contrariedade, Amélia soube superar o desapontamento com dignidade louvável e resignação estóica, mas o mesmo não se pode dizer do filho. José Branco não conseguia perceber por que razão Nossa Senhora, vendo-o sofrer tanto e rezar com tal fervor, não se compadecia das suas amarguras. Seria possível que Ela não o tivesse escutado? Era admissível pensar que a Mãe de Jesus, tão poderosa e bondosa, não quisesse resolver- lhe tão minúsculo problema? Seria birra da Virgem? A pequena dúvida, insidiosa e traiçoeira, corroeu-lhe por momentos o espírito, mas depressa a escorraçou, quase indignado. Não, não era possível tal coisa. Quem era ele para duvidar dela? Nossa Senhora estaria certamente a testar a sua fé, a ver até onde ele se manteria fiel na sua devoção. Se ele Lhe desse a prova final, raciocinou com inabalável certeza, o milagre produzir-se-ia inevitavelmente.

O mais pequeno dos Branco escolheu a Páscoa para apresentar a Nossa Senhora a prova da sua devoção e assim colher como prémio o milagre do pirilau minguado. Logo que as festividades começaram, o rapaz multiplicou-se em actividades. Eram tantas e tão variadas que se diria ser ele, e não Ele, o omnipotente e omnipresente. Integrou grande número das procissões que palmilhavam a cidade e percorreu várias igrejas, sempre a acompanhar os serviços pascais que decorriam desde Sexta-Feira Santa. Absteve-se até de se alambazar com os tradicionais doces da Páscoa, substituindo-os antes pelas insonsas hóstias das igrejas, decerto menos saborosas, mas sem dúvida mais puras.

Fez o que pôde para demonstrar a sua devoção a Nossa Senhora e foi tão sincero no seu piedoso compromisso que, na segunda- feira seguinte, ao levantar a manta para inspeccionar o resultado de tantos trabalhos e privações, não lhe ocorreu sequer que o milagre não se tivesse concretizado, tão grande era a sua fé na infinita bondade de Maria; a única dúvida que o corroía naquele supremo instante de realização era saber qual o novo tamanho que a Santa Mãe de Jesus havia escolhido para o pirilau.

A sua fé não resistiu ao devastador embate com a realidade. Quando espreitou para debaixo do cobertor e constatou que o milagre não se produzira, tomou a decisão de não voltar a pôr os pés numa igreja nem a confiar na Virgem Maria.

Por ironia do destino, foi justamente uma rapariga chamada Maria, por sinal já desvirginada, quem restituiu a fé a José. Tudo aconteceu no Outono de 1950, tinha o rapaz acabado de completar catorze anos e começado a experimentar, com inusitada frequência, um crescente e insuportável ardor entre as pernas. Sobretudo à noite.

Tinha dificuldade em adormecer, tão incómodo se revelava aquele ardor, e acordava de manhã com um verdadeiro chumaço dentro das calças do pijama; despertava tão rijo e monstruoso que precisava de aguardar uns bons cinco minutos até poder ir urinar ao quintal. Descobriu que conseguia aliviar o ardor com umas massagens, que fazia vigorosamente com a ponta dos dedos ou despejando álcool entre as pernas, o que lhe provocava uma sensação quente que o descontraía.

Mas esses remédios eram temporários, truques para enganar aquela fome inexplicável, formas pecaminosas de lidar com a vontade incontida de explodir entre as pernas e que, no rescaldo do alívio, o'deixavam a roer-se de culpa.


Acontece que Beatriz, a empregada da casa que servira de parteira no seu nascimento, teve nesse Outono de se ausentar um mês para ir à terra tratar de um familiar que adoecera. Ao fim de três dias, Amélia queixou-se ao marido de que não dava conta do recado. Não era criada nem nascera para aquilo, nunca na vida lavara tantos pratos. Onde já se vira uma senhora da boa sociedade penafidelense ser obrigada a limpar a cozinha e a encerar o chão? Tudo isso para dizer que precisava de alguém que substituísse temporariamente a fiel empregada. Tão massacrado pela mulher foi o capitão Mário Branco que lá deitou contas à vida e concluiu que, bem vistas as coisas, apertando um pouco ali e cortando acolá, sempre sobrava um dinheirinho para ir buscar uma nova rapariga.

A escolha recaiu em Maria Imaculada, uma moça do campo, dezoito anos de frescura, pele clara e faces avermelhadas. Parecia um pimentão saudável. A jovem camponesa ficou no quarto habitualmente ocupado por Beatriz, e Amélia, sem talvez ponderar o caso com a devida atenção, atribuiu-lhe de uma assentada todas as responsabilidades que pertenciam por hábito à empregada ausente. Ora uma dessas responsabilidades era justamente levar água quente para o banho mensal das duas filhas e do rapaz mais novo. Por fatal coincidência, o primeiro banho ocorreu poucos dias depois da entrada ao serviço da nova empregada.

Maria Imaculada desempenhou as suas funções com presteza e eficiência. Pôs as vasilhas ao lume, no fogão a carvão da cozinha, e, logo que a água ficou quente, desceu por ali fora, a bufar, para a levar ao pátio interno do rés-do-chão, onde as raparigas se juntaram para o banho. Depois de Mana e Lourdes completarem a higiene, foi a vez de José ser chamado pela mãe à ablução mensal, ritual que o rapaz desempenhava sempre com manifesta má vontade e apenas depois de o pai, movido pelos queixumes da mulher, soltar um aviso ameaçador. "Zéééé!..."

Instado pela severa advertência paterna, o mais novo lá seguiu, contrariado mas obediente, para o pátio interno onde habitualmente se tomava banho. Quando sentiu a empregada descer as escadas com a água a fumegar na vasilha, o rapaz despiu-se e meteu-se na banheira de alumínio. O

problema é que a criada, sendo nova na casa, desconhecia os pormenores relativos à virilidade inata do menino José, pormenor afamado já até entre os colegas de escola. Não admira por isso que, quando entrou no pátio interno, e ao observar distraidamente o moço na banheira, a rapariga quase tivesse deixado tombar a vasilha. Os seus olhos haviam pousado no que jamais imaginara ver.

"Ah!", exclamou, pasmada. "Meu Deus!"

A empregada corou e procurou recuperar a compostura, disfarçar a surpresa, desviar a atenção; esforçou-se por olhar para a frente, para o chão, para a vasilha, para aqui, para acolá, para qualquer lado, para tudo, tudo, tudo menos para ali. Ali. Porém, o esforço revelou-se inglório; era como se o rapaz tivesse pendurado entre as pernas um magneto potente, um poderoso íman a que os seus olhos não queriam, não podiam, não sabiam resistir.

Nessa noite, conhecendo já o hábito do rapaz de ir à cozinha para beber um copo de água antes de se deitar, Maria Imaculada permaneceu um longo tempo sentada na cama, à escuta, atenta aos ruídos provenientes do andar de cima. Logo que sentiu o movimento abafado de José a descer as escadas, entreabriu a porta do quarto e despiu a camisola de lã, deixando os seios lácteos e arredondados à vista. Pegou na camisa de noite e fingiu que se preparava para a vestir.

Para sua decepção, porém, o rapaz passou de largo e seguiu para a cozinha sem sequer espreitar pela porta entreaberta. Não se dando por vencida, porque não era rapariga para tal e porque a maravilhosa visão dessa manhã lhe ateara o desejo e lhe incendiara as entranhas, a empregada manteve-se sentada na cama de tronco nu, a camisa de noite nas mãos, a luz bruxuleante da lâmpada de petróleo a bailar-lhe no corpo curvilíneo. Num assomo de inspiração, pôs-se a tfautear com fingida inocência uma canção que se habituara a entoar com as raparigas do campo.

Ao passar a ribeirinha, Pus o pé, molhei a meia Pus o pé,

molhei a meia Pus o pé, molhei a meia.

Não casei na minha terra, Fui casar em terra alheia Fui

casar em terra alheia Fui casar em terra alheia.

O engodo funcionou.

Atraído pelo som melodioso da voz da rapariga, José espreitou pela porta no caminho de regresso ao quarto. Era para ser uma mirada rápida, mero olhar de circunstância, mas o que viu pela porta entreaberta deteve-o e deixou-o paralisado, sem respiração. Maria Imaculada remexia a camisa de noite, como se pretendesse vesti-la, mas entre o veste e o não veste exibia o tronco nu, as curvas dos seios desenhadas com perfeição, opulentas, a pele tenra colorida de laranja-avermelhado pelo clarão luminoso que a chama da lâmpada de petróleo emitia num pestanejar nervoso. José sentiu o ardor voltar em força, na verdade com uma energia que nunca tivera, dilatando-se como um balão, prestes a explodir diante da primeira mulher desnudada que os seus olhos tiveram o privilégio de ver.

A criada voltou o rosto e esboçou um sorriso ao apanhá-lo a espreitar. Tolhido pela surpresa de passar de mirone a mirado, José recuou, horrorizado, prestes a fugir escada acima. Queria escapar naquele instante, desaparecer antes que ela fizesse um escândalo.

"Olá, Zezinho", murmurou Maria Imaculada num tom quase musical. "Fazes-me um favor?"

A voz tranquila da rapariga travou-o naquele assomo de pânico. Ela falou-lhe como se o tivesse encontrado no corredor, nem parecia ter-se apercebido de que era espiada com os seios à mostra.

Na ilusão de que a empregada nada tinha notado, o rapaz forçou-se a um sorriso.

"Sim... o que... o que é?"

"Vais-me buscar um copinho de água?"

José baixou os olhos e voltou à cozinha, afogueado, o coração a ribombar no peito, o espírito mergulhado numa turbulência de sentimentos, sem compreender bem o que se passava, sem saber como reagir, o que dizer, para onde olhar. Pegou num copo, encheu-o de água e regressou ao corredor. Estacou diante da porta do quarto, os olhos colados ao chão de embaraço.

"Está aqui", anunciou, baixinho.

"Entra."

José hesitou, envergonhado. Olhou furtivamente em redor, como se estivesse prestes a ser apanhado a roubar as amêndoas das irmãs; sabia que o passo era interdito, que pisava terreno proibido, mas mesmo assim, quase a cambalear, impulsionado por uma força desconhecida, o corpo a obedecer a ordens que não tinham saído da sua cabeça, deu esse passo em frente, empurrou a porta, entrou no quarto e estendeu o copo, sempre com mil cuidados para não pousar os olhos nos seios tentadores que a criada exibia com despudor.

Maria Imaculada pegou no copo e bebeu um gole. Sentindo- se a mais, a coragem já a desvanecer-se, receando ser visto onde não podia ser visto, José fez tenções de sair, mas a empregada refreou-o com um gesto. Continuou a beber e deixou a água escorregar-lhe pelos cantos da boca e pingar-lhe sobre o peito. Esvaziou o copo e endireitou-se. Sem tirar os olhos do rapaz, passou a mão direita pelos seios, espalhando a água pelos mamilos, fazendo a pele nívea reluzir à luz dançante da chama, como se sobre a textura suave do veludo escorressem lágrimas douradas de mel.


"Nunca viste umas maminhas?"

José abanou a cabeça num gesto mecânico.

"Não", disse, a voz muito sumida, os olhos colados ao chão.

A empregada apalpou o seio esquerdo, espremendo-o como um fruto fofo e sumarento.

"Gostavas de mexer?"

Fez-se um silêncio profundo; José não sabia o que dizer.

"Gostavas de mexer?", repetiu ela, a voz melada.

O rapaz reuniu toda a coragem, todo o atrevimento e, sentindo o rosto enrubescer e o corpo cruzar mais uma barreira proibida, balançou a cabeça afirmativamente.

"Então mexe", disse ela, inclinando o tronco para a frente. "Vá. Mexe! Aperta!"

José ergueu a mão, hesitante, e aproximou-a lentamente do peito arfante da criada. Tocou na pele ebúrnea com a ponta dos dedos, sentiu-lhe a superfície sedosa, quente, ganhou-lhe o gosto e encheu a mão, apanhou-a com a palma toda e contraiu os dedos, apalpando-a com volúpia, espremendo o saco gelatinoso e aveludado. Uma erecção colossal quase lhe irrompia das calças do pijama, crescendo sem parar, como um balão em expansão.

Sentindo a mão a explorar-lhe gulosamente o seio e vendo o volume descomunal agigantar-se diante dela, a rapariga não se conteve mais e apalpou-lhe o inchaço. Cada vez mais excitada, o fogo a arder-lhe no ventre como jamais lhe sucedera, puxou-lhe as calças de pijama para baixo e quase desfaleceu quando se deparou com o gigante; o monstro emergia do seu esconderijo com altivez, um colosso de dimensões tais que teve naquele instante a intuição, a promessa, a certeza de que iria finalmente conhecer o paraíso na Terra.

E que de imaculada aquela Maria apenas tinha o nome.Foram as mulheres que fizerem José perceber que o monstro que transportava entre as pernas não era castigo divino, mas uma bênção dos céus. A descoberta reconciliou-o com Deus e reabriu-lhe os caminhos para as igrejas. A sua mente, contudo, povoava-se de outros destinos.

Durante aquele mês em que Maria Imaculada ali permaneceu a cobrir a vaga temporária aberta por Beatriz, o benjamim da família teve a sensação de viver um corrupio de emoções. Ora o corpo alcançava o paraíso dos sentidos, ora a alma se despenhava no inferno da culpa. Imaculada revelou-se uma jovem ardente, a fogosidade e a imaginação excitadas pela perspectiva do pleno usufruto de tão volumoso atributo masculino.

Todos os dias José jurava a si mesmo que dessa vez seria forte e não voltaria a pecar, que não cederia à tentação e permaneceria puro e imaculado, que a virtude se imporia aos instintos da carne. No entanto, à noite, quando toda a casa dormia, não resistia ao impulso e deslizava silenciosamente pelo soalho, contornando o ocasional ranger inoportuno da madeira para se abrigar por uma deliciosa meia hora entre os braços quentes e as pernas escaldantesda criada, os gemidos e os arfares abafados de preferência pela boca sôfrega da amante, e, quando isso não era possível, pela almofada ou pelo cobertor.

No primeiro domingo ainda considerou seriamente a possibilidade de confessar tudo ao padre Jacinto, mas a vergonha foi mais forte e no confessionário limitou-se a balbuciar uns pecados irrelevantes, coisas de tal modo menores que se expiaram com apenas três ave-marias e dois pai-nossos. Saiu nesse dia da Igreja do Sameiro fazendo a jura solene de que no domingo seguinte é que seria, quando chegasse a hora da confissão iria mesmo prostrar-se perante o pároco e derramaria sobre ele toda a enxurrada de pecados mortais que o maculavam.

Com o andar do tempo, porém, o sentimento de culpa foi diminuindo, como se o corpo ganhasse aos poucos a batalha à alma, e no domingo seguinte mais uma vez nada confessou sobre as depravações com Maria Imaculada. Depressa deixou de se contentar com as noites e passou a agarrar todas as oportunidades adicionais que se lhe foram oferecendo. Bastava Amélia chamar os filhos para irem com ela comer um bolinho à Pastelaria Brasil ou darem um passeio para ver a tia Joana que José, contendo com dificuldade a excitação, fazia cara de enterro e, quase penitente, abatia a cabeça.

"Tenho de ficar em casa, mãe."

"Ai sim?", espantou-se ela quando pela primeira vez ouviu tal recusa. "Porquê?"

"Preciso de estudar."

Amélia admirou-se com o empenho do seu mais novo, nunca o havia visto tão dedicado aos estudos, mas o facto é que não tinha objecção a levantar a tão louvável comportamento e chegou mesmo a fazer dele um exemplo para os irmãos.

"Estão a ver o Zezinho?", passou a perguntar aos outros filhos sempre que com eles saía à rua.

"A estudar assim, ainda há-de ser alguém na vida!"

José estudava, é verdade, embora a matéria se centrasse exclusivamente nas animadas sessões de anatomia feminina.

Foi com a fogosa criada que o adolescente descobriu alguns dos mais importantes segredos do corpo humano e se iniciou na vida adulta. Embora ainda doce, a paixoneta juvenil por Mimicas não passava já de uma lembrança, de um passado de inocência que a voragem do tempo enfim tragara.

A pureza de José partira com a sua amiga dos cabelos aos canudos, deixando-lhe a alma entregue ao monstro que Maria Imaculada despertara.

"Já sabem da novidade?"

A pergunta foi feita por Lourdes certa manhã, quando os irmãos saíam de casa para as aulas.

Como António seguira já para a universidade, José preparava-se para ir sozinho para o Colégio do Carmo e as raparigas para caminhar de mão dada até às soeurs, umas freiras que durante a guerra de Espanha haviam fugido para Portugal e aberto uma escola numa grande vivenda atrás do Sameiro.

"O quê?"

"A Beatriz chega hoje."

O anúncio deixou José tão consternado que as irmãs julgaram que lhe ia dar qualquer coisa em plena rua. Cambaleou e teve de se sentar no passeio diante de casa. Pensaram que fosse a comoção pelo regresso da criada, longe de imaginarem a verdade desconcertante. Apenas José sabia que, se o coração fraquejara, não fora de alegria pela fiel Beatriz, mas já de saudades da infiel Maria.

As novidades confirmaram-se logo nessa tarde, quando José regressou do colégio e constatou que Beatriz estava já ao serviço. Espreitou o quarto ao lado da cozinha e, com o coração em sobressalto, verificou que eram agora as roupas da antiga empregada que ocupavam as gavetas.

Procurou sinais da sua amante secreta, mas não os encontrou. Angustiado, de olhar perdido, imaginando o pior, arrastou-se até à mãe e, esforçando-se por aparentar a maior das indiferenças, indagou por Maria Imaculada.

"Foi ao Pacheco buscar arroz", foi a resposta apática de Amélia, que tricotava umas malhas junto à lareira. "Porquê?"

Não era decididamente a resposta de que o rapaz estava à espera.

"A... à mercearia do Pacheco? Quer dizer que... que não se foi embora?"

"Por causa do regresso da Beatriz? Não, fizemos as contas e decidimos mantê-la. A casa é muito grande e a Beatriz não dá conta do recado, coitada. Está agora encarregada da cozinha e das roupas e a Imaculada fica com as limpezas e as compras." A mãe parou por momentos de tricotar e ergueu o olho desconfiado. "Mas porquê?"


Sentindo-se subitamente dissecado por aquele olhar penetrante, José afastou-se de imediato, num esforço para ocultar o rubor de alívio que lhe coloria as faces.

"Era só para saber."

Os algarismos brancos rasgavam a superfície negra da ardósia, pareciam pinceladas secas de pó, e José suspirou de frustração. A conta não dava certo. Passou a mão irritada pela lousa e desfez os algarismos num borrão esbranquiçado; teria de recomeçar o exercício de matemática do princípio e só quando a computação batesse bem é que a transcreveria para o caderno. Pegou no giz e rabiscou os números e o símbolo da raiz quadrada.

Quando começou a acrescentar à equação os dados seguintes ouviu o soalho ranger e voltou-se para trás. Destrinçou uma sombra a esgueirar-se pelas escadas em direcção ao rés-do-chão, como se um espectro líquido se derramasse pela casa, e percebeu que era Maria Imaculada a descer para o quarto que lhe fora destinado desde o regresso de Beatriz. A imagem excitou-lhe a imaginação, sobretudo depois do susto que fora a possibilidade de a perder. Vê-la baixar para os aposentos fê-

lo ansiar pelo calor dos seus lábios trémulos, pelo veludo da sua pele palpitante, pelo ofegar alvoroçado da respiração quando colava o corpo ao dele, pela humidade quente das suas entranhas femininas, pela sensação trémula de transgressão do proibido.

Tinha de a possuir. E quanto mais depressa melhor.

Foi por isso que nessa noite, mal sentiu a casa aquietar-se, saltou da cama e calcorreou os degraus literalmente em bicos de pés, deslizando pela escadaria até ao rés-do-chão. Lançou a manobra talvez um pouco cedo de mais, antes fazia-o mais tarde para garantir que o sono da família era profundo, mas sentia-se consumido pela impaciência e pela ânsia de soltar a tensão que o estrangulara durante o dia. Afogado em desejo, não conseguiu aguardar todo o tempo que a prudência aconselhava.

O chão do piso térreo não era um soalho de madeira, como acontecia nos andares superiores, mas granito. Estava escuro em toda a casa e foi quando sentiu sob os pés nus a superfície fria da pedra polida que soube que havia chegado. Da esquerda veio-lhe o aroma a mosto da adega, mas José meteu à direita pelo corredor, a mão a deslizar pela parede até sentir a primeira porta. Era o quartinho situado ao lado do escritório do pai e para onde Maria Imaculada fora enviada.

Empurrou devagar a porta e mergulhou a cabeça naquela treva opaca que o envolvia como um manto denso e impenetrável.

"Maria", chamou. "Estás aí?"

Sentiu a cama ranger com um movimento.

"Menino Zezinho?"

Já a tiritar de frio, o rapaz deslizou para a cama e foi acolhido pelos braços quentes da empregada. Um cheiro intenso a lixívia e sabão impregnava Maria Imaculada, mas José ignorou o odor forte e deixou-se envolver pela pele sedosa e pelo calor acolhedor de mulher. Mergulhou nela com ímpeto, incapaz já de se conter, mas deteve-se ao fim dos primeiros impulsos, quando escutou um barulho suspeito.

"Que é isto?"

"É a cama", sussurrou ela de volta. "Chia."Riram-se baixinho. A cama, ao contrário da que antes lhes sustinha as refregas amorosas, tinha molas enferrujadas e chiava a cada movimento. Mas os amantes sentiam-se demasiado empolgados para se preocuparem com esses pormenores e recomeçaram a sua dança, unindo-se num movimento sincronizado, enlaçados um no outro, tão esfaimados e gulosos que perderam toda a noção de quem eram e de onde estavam e libertaram os sentidos numa explosão lasciva descontrolada. "Zé!?"


Não conseguiam parar, eram como uma composição em marcha, a locomotiva a acelerar num movimento cadenciado, o taquetaque dos carris transformado no tumba-tumba dos corpos, a chaminé a exalar gemidos e suspiros em vez de fumo, a carne a arder no lugar do carvão. "Zé!"

À segunda vez que a voz cortou o ar, os amantes estremeceram e imobilizaram-se. José viu sombras a bailar na parede e apercebeu-se de que o clarão azulado de um candeeiro de petróleo balouçava no quarto. Foi só nesse instante que registou a voz de homem que atrás deles chamara o seu nome. Estavam a ser observados. Sentiu a rapariga esticar o pescoço, espreitar-lhe sobre o ombro na direcção da voz e soltar um grito de pânico. José virou então a cabeça e reconheceu o rosto que os observava da ombreira da porta.

"Pai!?"

O tiquetaque hipnótico do relógio de parede, tranquilo e pendular, pontuava o ambiente morno e sereno que envolvia o escritório. Rostos a preto e branco enquadrados em molduras e eternizados a sépia no clichet esmerado da Foto Anthony contemplavam a cena com expressões justiceiras, como testemunhas silenciosas a vigiá-los do passado. O pó pairava com preguiça diante dos clarões de luz, tão suspenso como o ar, e apenas o pirilampejar agitado da lamparina de petróleo, cuja chama azulada projectava silhuetas irrequietas nas paredes, conferia vitalidade nervosa àquela salinha perpetuada no tempo.

Havia já alguns anos que o capitão Mário Branco não chamava um filho ao gabinete para lhe passar uma reprimenda. Afinal todos eles já tinham crescido, António tirava Direito em Coimbra e as raparigas terminavam os estudos nas soeurs. Sempre acreditara que os valores que lhes inculcara desde crianças garantiam que os filhos saberiam estar à altura das suas responsabilidades enquanto cavalheiros e senhoras de bem, mas ainda assim tinha a consciência de que poderiam ocorrer situações que requeressem a sua intervenção, e o facto de ter o mais novo sentado naquele instante diante dele era prova disso.

"Costumas pôr o anel?"

A pergunta do capitão fez José erguer o olhar envergonhado e lançar na direcção do pai uma expressão interrogadora.

"Perdão?"

O capitão levantou a mão esquerda e indicou o anel de ouro que lhe cintilava no dedo.

"Lembras-te de uma vez te ter dito que a prova de carácter de uma pessoa é feita através do teste do anel?", perguntou. "Torna-te invisível e faz o que farias se ninguém te pudesse ver. E assim que se pode avaliar o carácter de alguém. Tens posto esse anel?"

O filho remexeu-se na cadeira, inquieto, e voltou a baixar os olhos.

"Não fiz nada de mal", murmurou. "Não roubei, não enganei, não faltei a nenhum dever."

"Então porque estás com ar envergonhado?"

"Porque o pai me apanhou com ela", retorquiu com um leve tremor do corpo, como se o sucedido naquele instante fosse demasiado penoso para ser discutido. "Mas o que estávamos a fazer não era mal nenhum. Tratava-se de uma coisa entre mim e ela, feita de livre vontade. Em que é que isso prejudica quem quer que seja?"

"Achas que não foi nada de mal? Aqui em nossa casa? Com a empregada? Como pensas que eu e a tua mãe nos sentimos?"

José voltou a estremecer, assaltado pela memória do embaraço que vivera naquele momento de suprema humilhação, e encolheu-se ainda mais na cadeira.

"Se calhar devia ter tido mais cuidado, admito-o. Insisto, no entanto, que não quis prejudicar ninguém. Posso ter sido descuidado, mas não fiz por mal. Além do mais, o que faço com o meu tempo livre é comigo e não tem relação com as outras coisas."


"Achas que não?"

"Claro que não."O pai tamborilou pensativamente os dedos na secretária, como se acariciasse as teclas de um piano invisível para lhe arrancar as notas lhe soavam em pensamento.

"Diz-me, Zé: o que é ser uma pessoa boa?"

O filho pestanejou, tentando coordenar os pensamentos e entender o verdadeiro alcance da questão. Maria Imaculada havia sido sumariamente despedida e esperava que também a ele lhe fosse aplicada uma sanção, mas aquela pergunta não parecia encaminhá-lo nesse sentido. Concluiu que talvez o melhor fosse deixar-se guiar pelo pai.

"É alguém que pratica o bem, suponho."

"Sim, mas o que é o bem?"

Onde quereria o pai chegar?, interrogou-se. Intuiu que as perguntas levavam uma direcção, mas como não a conseguia descortinar com rigor preferiu jogar pelo seguro e manter-se à defesa.

"É... é ajudar os outros, é ser honesto...", titubeou, as palavras a faltarem-lhe. "Enfim, é... é uma série de coisas."

O rosto do capitão abriu-se num sorriso surpreendentemente suave e amigável, mas sempre a evitar a condescendência.

"Todos nós conseguimos reconhecer o bem com facilidade", observou. "Mas já viste como é difícil defini-lo? O que é o bem? E incrível como um conceito tão simples se revela tão difícil de expressar, não é?"

"Bem... sim."

O pai olhou em redor e fixou a atenção numa fotografia pousada no canto da secretária, perpetuando a imagem granulada de um homem de bigodes e ar austero e de uma mulher com expressão serena e o cabelo apanhado sobre a nuca.

"Estás a ver esta fotografia antiga dos meus pais? O que tem ela de comum com... com..."

Apontou para um livro com a capa desbotada que se encontrava na estante ao lado da porta. "Com este livro antigo? A resposta é: são ambos antigos." Indicou o soalho e depois a sua própria secretária. "O que têm de comum o chão de madeira e esta mesa de madeira? A resposta é: são ambos de madeira." Inclinou-se para a frente, sinalizando assim a importância da pergunta seguinte. "E o que têm de comum um bom livro, um bom sapato, um bom vinho e uma boa pessoa?"

Deixou a pergunta marinar na mente do filho.

"São todos bons, acho eu", devolveu José.

"Sim, mas o que é isso de serem bons? São bons da mesma maneira que o chão e a mesa são de madeira?"

"Bem... não."

"Claro que não. A dificuldade em definir o que é uma coisa boa é enorme. O que é uma coisa boa? O que é o bem? O que é o mal? Como sabemos que uma coisa está certa e outra está errada?

Por que razão mentir é errado? E é sempre errado, em todas as circunstâncias? E tu andares a... a ter contactos carnais? E errado? Se não é errado, isso quer dizer que está bem? Quem define o certo e o errado?"

As perguntas foram metralhadas em catadupa, cada uma tão insolucionável quanto a outra, todas tão simples e tão estranhamente complexas que José teve dificuldade em decidir a qual deveria responder primeiro, e duvidou mesmo que houvesse respostas a dar. Sentiu uma súbita vontade de conhecer depressa a sua punição e sair dali, mas conteve-se. Se o pai lhe falava assim, lá teria as suas razões. Matutou por momentos nas perguntas que lhe foram feitas.

"Talvez seja Deus", arriscou. "Só Ele pode definir o que é o bem e o mal."


Ao escutar a referência a Deus, o pai sorriu com um toque de amargura a manchar-lhe a expressão.

"Isso é o que diria a tua mãe!...", observou. "Há muita gente, como por exemplo ela, que acredita que a moral tem origem em Deus. Não foi o Senhor que nos deu os dez mandamentos? O que são os mandamentos senão regras de boa conduta? Não matarás, não roubarás, não cobiçarás a mulher do próximo... Quem negará que estas ordens apontam o caminho do bem? Uma pessoa que não mate, que não roube, que não engane, que ajude o próximo, que defenda os oprimidos é de certo uma pessoa boa. Ser bom é então comportar-se de acordo com os mandamentos de Deus. Ser mau é actuar de forma contrária a essas ordens. Assim sendo, dirias que o teu comportamento com essa rapariga foi correcto?"

Então era ali que o pai queria chegar, pensou José. Na verdade nunca tivera dúvidas sobre isso.

Não fora afinal por causa do incidente da noite anterior que para ali havia sido chamado? Mas o pai era sábio, percebeu. Em vez de usar a força bruta, confrontava-o com os seus actos.

"Incorrecto não foi", argumentou, disposto a dar luta. "Não matei ninguém, não roubei, não cobicei a mulher de outro..."

"Olha que um dos dez mandamentos de Deus é não pecar contra a castidade", lembrou o capitão. "Mas, mesmo aceitando que não pecaste contra a castidade, porque se calhar já nem eras casto, e ela também não, achas que o teu comportamento foi correcto?"

O filho respirou fundo, incapaz de responder directamente à pergunta. Apesar de o mandamento mencionado pelo pai existir realmente, sentia que não havia sido incorrecto. Mas seria isso sinónimo de que tinha sido correcto?

"Se Deus me fez com desejo de mulheres é decerto porque quis que eu desejasse as mulheres", retorquiu, contornando de novo a questão. "Aceito que tenha desobedecido a uma convenção social, mais nada."

"É interessante que não consigas dizer explicitamente que o teu comportamento ali no quarto foi correcto", notou o pai. "O que mostra que a moral de Deus está em ti. De qualquer modo, é verdade que há pessoas que nem acreditam em Deus e, no entanto, são boas e correctas. Isso prova que a moral está para além de Deus. Mas, se a noção de bem e de mal não vem de Deus, vem de onde?"

Era uma boa observação e deixou José pensativo. O pai tentava mostrar-lhe que se comportara de forma indigna, mas disso não tinha ele a certeza.

"Não acha que isto é tudo um pouco relativo?"

"Claro que é relativo", concordou o pai, levantando o dedo para acrescentar mais um adjectivo.

"A moral é relativa e subjectiva. Se eu matar uma galinha para comer, isso é bom para mim e mau para a galinha. Ou seja, uma coisa pode ser boa e má ao mesmo tempo de um ponto de vista relativo." Apontou para o livro que se encontrava na estante e que mencionara minutos antes. "Por outro lado, eu posso achar que aquele livro é muito bom e tu que ele é muito mau. Isto é outra maneira de uma coisa ser boa e má ao mesmo tempo, embora aqui de um ponto de vista subjectivo.

Portanto, o conceito de bom e de mau é ao mesmo tempo relativo e subjectivo."

"Isso mostra que não há um bem absoluto."

"Não necessariamente", corrigiu o capitão. "O facto de a moral poder em certas circunstâncias ser relativa e subjectiva não quer dizer que seja arbitrária. Há uma certa universalidade em determinados preceitos. Não matarás, por exemplo. Este mandamento divino pode ser encontrado em todas as culturas, mesmo nas mais pagãs. O assassínio é errado na nossa cultura cristã, mas também na cultura de uma tribo de índios da Amazónia ou entre os bosquímanos da Africa do Sul.

O mesmo se passa com a proibição de fornicar."

A referência implícita ao sucedido na noite anterior envergonhou José, que baixou a cabeça.


Passou a mão pelo cabelo e coçou a nuca, como se isso o ajudasse a limpar-se.

"O pai acha que estou possuído pelo mal?"

"Não tenho respostas finais para o problema do bem e do mal", disse o capitão, sorrindo com a pergunta. "A única coisa que te posso dizer é que te deves guiar pela consciência. Não te quero julgar pelo que aconteceu ontem à noite ali no quarto nem tenho a certeza de que tenhas realmente feito algo de mal. Quero apenas explicar-te que, ao longo da tua existência, espero que sejas uma pessoa boa. Na vida vais decerto encontrar situações difíceis e dilemas dolorosos. Nem sempre a solução mais fácil é a melhor. Por vezes temos de escolher entre um mal que nos facilita a vida e um bem que nos dificulta tudo. Escolhe sempre o bem."

"Mesmo que isso me prejudique?"

O capitão Mário Branco apoiou os cotovelos na mesa e juntou as palmas das mãos, colando os lábios às pontas dos dedos numa pose judiciosa, como um juiz a ponderar uma sentença.

"Se o bem fosse fácil, meu filho, só haveria homens bons."

A frase foi proclamada num certo tom final, como se aquilo fosse tudo o que o pai tinha para lhe dizer sobre o assunto, e José depreendeu que lhe havia sido dada a deixa para se retirar e quase suspirou de alívio. Não tinha sofrido nenhum castigo, mas o pai pusera-o a pensar. Empurrou a cadeira para trás e fez tenções de se levantar.

"Se me dá licença, pai, eu ia então..."

O capitão endireitou-se com um movimento rápido.

"Onde vais?"

O rapaz imobilizou-se, percebendo que talvez se tivesse precipitado.

"Bem, eu... enfim, ia a... a..."

"Senta-te."

José voltou ao seu lugar e ficou a ver o pai desdobrar uma folha de papel que extraíra de um envelope. O capitão passou os olhos pelo conteúdo da folha e torceu a boca de uma forma característica, como fazia sempre que se sentia desagradado com algo. Que mais viria aí? Um castigo? Teria toda aquela conversa sobre o bem e a necessidade de tomar as decisões certas sido apenas um prelúdio a algo de bem pior? A mente do rapaz encheu-se de possibilidades terríveis enquanto o pai não abria o jogo.

O capitão Branco suspirou, como se se preparasse para ir enfim directo ao assunto, e estendeu-lhe o papel.

"Estás a ver isto?"

Com as mãos quase a tremer, o filho pegou na folha e leu as primeiras linhas.

"São as minhas notas!..."

"E não são bonitas", atalhou o pai. "Foste varrido a dez e onze, com um oito a Francês."

"Mas tenho dois dezoitos..."

"Ora, a Música e a Desenho! Não tenho nada contra as artes, mas que eu saiba neste país ninguém vive delas." Voltou a suspirar, como se se sentisse impotente. "O que vamos fazer de ti, rapaz?"

"Não se preocupe que eu cá me desenrasco."

"Antes fosse assim. Mas a vida não é uma paródia e o mundo é um sítio difícil." Exalou um suspiro longo e resignado. "Estive a falar com o doutor Matias, lá do banco, e ele disse-me que estava justamente à procura de alguém que o ajudasse ao balcão. Penso que é uma excelente oportunidade para..."

"O pai quer trancar-me num banco?", cortou José.

O capitão Branco não estava habituado a ver um filho interrompê-lo quando falava, mas condescendeu. Considerando a importância e a delicadeza do assunto, era natural que o rapaz se sentisse nervoso.

"Olha-me para essas notas, Zé", sugeriu, indicando a folha de papel. "Não vais a lado nenhum com classificações destas."

"Mas para um balcão não quero ir."

"Então vais para onde? Que queres tu fazer?"

O filho fitou por momentos a chama azulada que dançava no topo do candeeiro a petróleo, como se estivesse hipnotizado e o baile do lume bruxuleante encerrasse o oráculo do futuro, embora fosse por uma promessa do passado que a sua mente deambulava - a promessa que um dia fizera à sua amiga do cabelo aos canudos quando soube que o pai lhe tinha morrido porque não havia um médico na zona de Africa para onde fora.

"Quero tirar Medicina."

A afirmação pareceu tão extraordinária que o pai se engasgou e foi assaltado por um ataque de tosse repentino. Levou alguns segundos a recuperar a compostura.

"Deves estar a brincar", disse quando recobrou o fôlego. "Tu? Médico?"

"Sim."

"Mas tens a noção do trabalho e do nível de exigência que envolve o curso de Medicina?" Voltou a indicar a folha com as classificações. "Se no liceu já é esta... esta desgraça, imagina o que seriam as tuas notas a Medicina! Nem pensar! Seria uma pura perda de tempo e de dinheiro!"

"Mas o pai não quer que eu seja uma boa pessoa e dê uma direcção produtiva à minha vida?"

O capitão hesitou ao ver posta assim a questão, sobretudo à luz de tudo o que havia dito desde o início da conversa.

"Quero, claro."

José dobrou cuidadosamente a folha e estendeu-a na direcção do pai, a face a irradiar um sorriso luminoso e confiante.

"Então deixe-me inscrever em Medicina", exclamou. "Prometo-lhe que serei um homem bom."Os nove estudantes acercaram-se da cama onde o lençol escondia o corpo debilitado do paciente, um velho de rosto ossudo e olhar macilento. Toda a enfermaria exalava um odor característico a éter, mas apesar disso mantinha um certo ar alegre, talvez devido ao sol que invadia as grandes janelas e espalhava pelo chão geometrias luminosas, quadrados de luz que se recortavam como um gigantesco tabuleiro de xadrez.

O professor aproximou-se do paciente com movimentos titubeantes e os estudantes abafaram risadinhas antecipadas.

"Coitado do velho", alvitrou alguém ao ouvido de José. "Acho que não vai entender patavina!..."

O "velho" era o doente que se preparava para enfrentar o professor Ribeiro, cujas aulas de Neurologia e Infecto-Contagiosas eram famosas na Faculdade de Medicina pela dificuldade com que o docente se exprimia, sempre em busca de palavras que lhe escapavam e substituindo-as amiúde por gestos de impotência.

Como a confirmar a expectativa de que se seguiria um diálogo absurdo ao nível da pantomina das aulas, o professor encheuo peito de ar para falar mas só lhe saiu um grunhido, acompanhado por um movimento inconsequente dos braços, e logo algumas risadinhas, antes abafadas, se tornaram audíveis. Ignorando o burburinho, o professor Ribeiro voltou à carga e após um novo esforço lá saiu a pergunta.

"De que se queixa?"

Novas risadinhas; tanto esforço para soltar pergunta tão simples era de facto cómico.

"Ó sô'tor", disse o paciente num cerrado sotaque portuense, "fico à rasca p'ra mijar, carago."


As risadinhas tornaram-se gargalhadas, cortadas pelo olhar fulminante do professor. Os alunos reprimiram o riso e o docente voltou a concentrar-se no velho.

"Tem dores nas costas?"

"Ai, teinho teinho, sô'tor. É uma arreliaçon. Às bezes até me cust'a andar, c'um caneco. Ainda onte beio cá a minha Graziela, 'tadinha, traz-me sempre o farnel, é uma sánta aquela mouça, e um pito 'inda por cima, e atão ela biu-me assim com'um tinhoso e disse: ó home, bê s'andas como gente, canudo, pareces o estafermo d'um marreco!"

O professor encarou o grupo de alunos.

"Diagnóstico?"

Os esgares divertidos morreram e os olhares dos estudantes pareceram ficar desfocados. José ainda considerou a possibilidade de inventar uma infecção na bexiga, afinal estavam numa aula prática de Neurologia e Infecto-Contagiosas, mas não vislumbrou qualquer relação entre a bexiga e as dores nas costas e, prudente, optou por permanecer calado.

O professor fez um novo gesto grandiloqüente, encetando novos esforços para falar, mas nada saiu da sua boca além de uns quantos sons incompreensíveis. Dessa vez, porém, ninguém se riu.

Todos queriam saber como se poderia extrair um diagnóstico válido apenas daqueles dois sintomas.

"Este homem", conseguiu por fim o docente balbuciar, "tem um carcinoma da próstata com metástases na coluna."

O diagnóstico deixou toda a gente embasbacada. Como se poderia saber tal coisa a partir de tão poucos elementos? O professor fez notar, com visível dificuldade em pronunciar as palavras certas, que a idade do paciente era um elemento decisivo na sua análise, mas mesmo assim permaneceram os olhares cépticos.

Chamou-se então a enfermeira para que ela mostrasse as radiografias e explicasse o quadro clínico do paciente. Para surpresa geral, ela acabou por confirmar a conclusão preliminar.

"O gajo pode ser um tonho a falar", observou José com um sorriso de admiração, "mas o diabo do homem tem um olho danado para os diagnósticos."

A vida de estudante no Porto, marcada por uma liberdade que embriagou José, ampliou-lhe a visão do mundo para horizontes que não sabia existirem. Longe do ambiente provinciano de Penafiel e dos olhares sempre vigilantes da família, o novo aluno de Medicina sentia-se na grande cidade um pássaro selvagem, as asas livres para cruzar a seu bel-prazer o imenso espaço azul da independência.

Por especial insistência da mãe, que se informara junto do pároco do Sameiro sobre o local mais recomendável para acolher o seu menino, instalou-se na Juventude Universitária Católica, uma residência de estudantes em plena Rua de Cedofeita. Todas as manhãs, quando a luz despontava no limiar dos telhados e a cidade despertava para um novo dia, José vestia invariavelmente a capa e batina negras e abalava para a faculdade, situada para os lados do Hospital de Santo António.

O primeiro ano do curso foi passado em grandes anfiteatros apinhados com mais de uma centena de alunos e onde decorriam as aulas, que não se revelaram muito do seu agrado; eram só conversa e teoria. Depois veio o horror dos cadáveres no teatro anatómico e as brincadeiras macabras dos estudantes mais experientes com os caloiros; a José chegaram a esconder uma mão decepada na mala. O curso não era bem o que idealizara, o que contribuiu para semear nele as primeiras dúvidas. Estaria de facto talhado para médico?

Quando no segundo ano o professor de Neurologia e Infecto- Contagiosas os levou para as primeiras aulas práticas nas enfermarias do Santo António, porém, as coisas mudaram. A medicina deixou de ser um arrazoado de palavrões incompreensíveis e de esquemas que tinha de decorar e adquiriu de repente um rosto humano. O velho que o professor Ribeiro havia interpelado naquela primeira aula prática, por exemplo, tornara viva a imensa abstracção a que na sua mente até então se reduziam os carcinomas.

"O segredo da medicina", proclamou o docente no seu característico discurso vacilante, "está no diagnóstico."

A profissão que tinha escolhido, apercebeu-se José nessas aulas práticas, não se limitava a um desfilar de nomes estranhos que era forçado a empinar; revelava-se um verdadeiro trabalho detectivesco, com o aluno, ou o médico, a procurar nos sintomas dos pacientes pistas que lhe permitissem desvendar os mistérios do corpo humano. Haveria trabalho mais apaixonante?

Das cadeiras teóricas, apenas Deontologia Médica lhe interessou. O essencial da matéria incidia na ética enunciada por Hipócrates na Grécia antiga e reproduzida com grande fulgor teatral pelo professor Pina num anfiteatro enxameado de alunos semiadormecidos.

"Por Apolo, médico, por Asclépio, Hígia e Panaceia e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo minhas testemunhas", proclamou o docente de Deontologia Médica a abrir a primeira aula da disciplina, "juro cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue."

A promessa constante nas palavras iniciais do juramento de Hipócrates foi escalpelizada ao longo de todo o semestre, e em particular os deveres de cada médico de jamais recusar ajuda a alguém, estar sempre disponível para ir em socorro de um necessitado fosse qual fosse o local ou a hora do dia ou da noite, nunca fazer mal ao doente, não lhe dar medicamentos que o prejudicassem mesmo que ele os pedisse e até a preocupação de cobrar honorários tendo sempre em atenção as possibilidades económicas dos pacientes.

"A história da ética é, de certo modo, uma busca incessante de resposta a perguntas sobre o bem", explicou o professor Pina. "O que é o bem? O que é uma pessoa boa? A ética 4á-nos referências que nos orientam e dá-nos força que nos permite enfrentar dilemas e trabalhar para o bem comum. Aristóteles dizia que uma coisa é boa quando atinge o objectivo a que se destina. Se um livro é escrito para ser interessante e se as pessoas que o lerem o acharem interessante, então o livro é bom. Se uma pessoa quiser ajudar outra e a outra beneficiar desse acto, então podemos dizer que essa pessoa é boa. Mas, atenção, esta definição de Aristóteles levanta alguns problemas.

Olhem, por exemplo, para as notícias que apareceram nos jornais e na telefonia sobre a matança dos judeus pelos Alemães. Um alemão tem intenção de matar muitos judeus e mata-os com eficiência, o que leva a que a sua acção atinja o objectivo. Isso faz dele uma boa pessoa e do seu acto um bom acto?"

Para a maior parte dos estudantes a disciplina não passava de uma espécie de aula de moral, bem-intencionada mas risivelmente condescendente e paternalista, quase como se estivessem de regresso aos bancos da catequese. A excepção era José. O aluno de Penafiel sentia-se fascinado por estes temas, talvez por eles entroncarem nas conversas que ao longo de muitos anos mantivera com o pai sobre o que era o bem e o mal. Pareceu-lhe, aliás, que a questão do bem, embora de certo modo sempre presente nessas aulas como um espectro que tudo envolvia mas não se materializava, nunca foi frontalmente encarada pelo professor, como se o pudor o reprimisse.

A inquietação quanto a este tema era água que fervilhava nas entranhas de José, até ao dia, já perto do final do semestre, em que a pressão da curiosidade apertou e se tornou insuportável. Quis então questionar o professor a esse propósito a meio da aula, mas sentiu-se intimidado com a forma jocosa como os colegas lidavam com a matéria e optou por uma abordagem mais discreta.

Quando o docente deu essa lição por concluída e a turma dispersou, José foi no encalço do professor Pina e, já ao abrigo dos olhares indiscretos, interpelou-o à entrada do seu gabinete, questionando-o sobre os motivos pelos quais falava sempre em ética mas nunca no bem.

"A deontologia está directamente relacionada com a prática do bem", observou o docente enquanto inseria a chave na fechadura. "Repara, as regras que eu enuncio nas aulas não se destinam a manter-nos a nós, médicos, livres de sarilhos. Pelo contrário, podem até meter-nos neles." Abriu a porta, mas voltou-se para trás e encarou o estudante, exibindo o punho fechado. "A ética destina-se a mostrar-nos um caminho recto e a dar-nos força para o seguir, custe o que custar.

A ética cria força interior, cria força nas relações entre as pessoas e cria força nas comunidades.

Uma pessoa ética é uma pessoa que tem força e uma comunidade ética é uma comunidade que tem força."

"Professor", argumentou José, "Hitler tinha força, mas não me parece que fosse uma pessoa lá muito ética..."

"Estou a falar de força moral", explicou, entrando por fim no gabinete. "Anda cá, rapaz." Fez-lhe sinal de que o seguisse e apontou para uma cadeira diante de uma secretária. "Ora senta-te aí!" Ele próprio deixou-se cair na cadeira do outro lado da secretária, as costas voltadas para uma janela suja. "Estás bem instalado?"

"Sim."

"Ora bem", bufou, claramente entusiasmado por encontrar enfim um estudante que mostrava pela matéria o mesmo interesse apaixonado que ele. "O espírito humano procura sobretudo três coisas na vida: verdade, beleza e bondade. E como se não pudéssemos viver sem elas, como se cada uma fizesse parte integrante do nosso ser. Mas quando tentamos definir estes três elementos centrais da nossa espiritualidade as palavras falham-nos. O que é a verdade? O que é a beleza? O

que é a bondade?"

O aluno franziu o sobrolho, o olhar carregado de cepticismo.

"O senhor professor não consegue definir a verdade?"

"Tu consegues?"

"Bem, verdade é... é dizer uma coisa que corresponde a rialidade, acho eu."

"O que nos remete para o problema da realidade", apressou-se o professor a dizer. "Diz-me, a que espécie pertences tu no reino animal? És um insecto, um gato, um homem... és o quê?"

José riu-se.

"Que eu saiba, sou um homem."

"Ai sim? Imagina então que acordas amanhã e descobres que afinal és um gato que estava a sonhar que era um homem. Quantas vezes não nos acontece, enquanto sonhamos, acreditarmos piamente que o sonho é a realidade? E quem nos garante que não estás agora a sonhar?"

A pergunta intrigou o estudante.

"Quer dizer... acho que não estou." Apercebeu-se de que não tinha parecido suficientemente convicto e corrigiu: "Aliás, tenho a certeza."

"A certeza que tens agora é, presumo eu, a mesma certeza que tens de que, quando estás a sonhar, o sonho é a realidade. Vá lá, sê sincero..."

"Bem...", atrapalhou-se o aluno, "sim, é verdade."

"Então não conseguimos definir a verdade, pois não? Verdade é o que corresponde à realidade.

Mas qual realidade?" Fez uma pausa, para deixar a ideia assentar. "O mesmo se passa com a beleza ou com a bondade." Virou-se para trás e indicou uma árvore para lá da janela. "Estás a ver aquele castanheiro? De que cor são as folhas da copa?"

"São verdes."

"Agora imagina que eu sou cego de nascença e tenta explicar-me o que é o verde."


O estudante passou as mãos pelo cabelo, tentando coordenar os pensamentos.

"Quer dizer... o verde é... enfim, não sei bem como explicar..."

"Exacto!", exclamou o professor, quase a saltar na cadeira. "O verde é uma propriedade elementar, mas é impossível de explicar a quem nunca o viu. O mesmo se passa com o calor... ou com a bondade." Fez um gesto largo, englobando todo o seu gabinete. "Há certas coisas na vida que, apesar de existirem, não é possível enclausurar ou exprimir em palavras. São, se quiseres, propriedades intuitivas. Existem, apesar de não podermos descrevê-las com rigor. A sua definição exacta escapa-se-nos e, quando tentamos formulá-la, nunca é pela positiva, mas pela negativa."

José sacudiu a cabeça, sem entender.

"Pela negativa? Que quer dizer com isso?"

O professor Pina apontou-lhe o dedo, à maneira de um acusador na barra do tribunal.

"Não matarás!", ditou, como se ele próprio detivesse as tábuas da lei. "Não roubarás! Não cobiçarás! Não isto e não aquilo!" Abriu os braços, no gesto de que a demonstração estava feita. "É

tudo pela negativa, estás a ver?"

"Então não há uma definição positiva para a bondade..."

"A bondade existe, todos sabemos o que é, mas, tal como quando falamos da verdade ou da beleza, não conseguimos captar por palavras a sua essência." Fez com as mãos um movimento vago no ar. "Aristóteles dizia que todos os seres humanos buscam a felicidade. Eu diria que a bondade é o esforço que cada um de nós faz para que todos alcancem a felicidade."

"É a sua definição?"

O professor Pina encolheu os ombros.

"Pode não ser perfeita, mas é a minha", assentiu. "Claro que depois se cria o problema de definir a felicidade, não é? E lá voltamos ao ponto de partida."

"Então não há definições satisfatórias."

"Pois não." Hesitou. "Quer dizer, existe uma outra que também acho curiosa. Não é directa, mas roça a verdade. Queres ouvi-la?"

"Quero pois."

O docente de Deontologia Médica girou na cadeira e contemplou pela janela os estudantes que lá em baixo deambulavam entre as árvores no seu vaivém incansável, como se a simples imagem da faculdade a palpitar de vida fosse por si só uma inspiração.

"Um homem bom gosta das pessoas e usa as coisas", enunciou. "Um homem mau gosta das coisas e usa as pessoas."

Depressa se percebeu que o jovem José Branco gostava de pessoas; era brincalhão e bem-disposto com os colegas, sempre pronto para a farra, mas não havia dúvida de que as suas preferências iam para as criaturas do sexo oposto.

Apesar de os rapazes estarem albergados na residência da Juventude Universitária Católica, o tema de conversa nos tempos livres era, a qualquer hora do dia, "as gajas". Cada um tinha a sua favorita, normalmente uma qualquer paixão platónica alimentada nos corredores da faculdade, mas isso não os inibia de estabelecer comparações entre esta e aquela, sempre com abundantes referências aos seus louváveis "atributos", sendo que por esta palavra, e apesar de se tratar de estudantes de uma residência católica, ninguém se referia propriamente aos predicados espirituais das moças.

Com o tempo José foi ganhando a noção clara de que lhe faltava alguma coisa. Tanto assim foi que se pôs à procura de rapariga para uma relação mais séria; o problema era saber onde encontrá-

la.


Apercebeu-se de que a solução poderia estar no seu talento para as artes. A meio do primeiro ano inscrevera-se no Orfeão, onde brilhava a dedilhar a sua guitarra ou a arrancar notas de um piano. Sem nunca largar a capa e a batina, que começavam a ficar roçadas de tanto uso, passou também a escrever textos numorísticos para várias revistas universitárias. Tanta e tão notável actividade artística granjeou-lhe alguma notoriedade e inevitável popularidade entre as estudantes.

Alinhavou várias candidatas e a sua escolha acabou por recair numa morena escultural que também frequentava Medicina, embora um ano atrasada em relação a ele, e com quem se Cruzava muitas vezes nos corredores da faculdade. Inquiriu a identidade e disseram-lhe que se chamava Juliana.

Conheceu-a na Confeitaria Suave, em plena Cedofeita, que ela frequentava para se alambazar com uns pastéis enquanto estudava. Com a eficiência de um caçador a estudar as rotinas presa, começou por lhe identificar os hábitos.

Certa tarde, e quando considerou completa a fase de estudo, Passou à acção e montou-lhe uma espera na confeitaria. Ela aPareceu à hora habitual e sentou-se no lugar costumeiro, perto do balcão. José aguardou que o estabelecimento se enchesse. No momento que considerou propício, foi ter com ela e, a pretexto de não haver mais lugares disponíveis, pediu-lhe licença para se Sentar.

Apanhada de surpresa, Juliana acedeu.

Foi uma tarde agradável. O rapaz disse umas graçolas, ela achou piada, José "descobriu" que ambos estudavam Medicina, observou que o estudo em conjunto era mais eficaz e, quase no mesmo fôlego, convenceu-a a ir ao cinema. Os encontros na Confeitaria Suave tornaram-se assim uma rotina, e as idas ao cinema também, de tal modo que, à terceira vez, e tirando Partido oportuno do adequado ambiente romântico criado pela trama emocionante da fita, um melodrama delicodoce com Audrey Hepburn e Gregory Peck, arrancou-lhe o primeiro beijo na escuridão.

Tornaram-se oficialmente namorados. O que José não sabia é que a coisa seria de curta duração, como uma etapa que se cumpre a caminho de um outro destino.O ambiente dentro da Confeitaria Suave era nesse dia abafado, quase asfixiante, e Juliana sentiu que já não aguentava mais. A rapariga acordara maldisposta, devido aos rigores próprios das mulheres na sua altura do mês, e a atmosfera carregada no interior da pastelaria, onde o tabaco se desfizera numa neblina prateada, ténue mas baça, agravara-lhe a indisposição.

"Zé, vamos embora."

O namorado lia um O Primeiro de Janeiro emprestado pela mesa do lado e queria ficar mais um pouco, mas apercebeu-se da palidez da rapariga e nem discutiu. Largou um tostão sobre o balcão para pagar o café que haviam partilhado, devolveu o jornal e fez sinal para saírem.

O ar na rua pareceu-lhes fresco e revigorante, enchendo-os de renovada energia, e apeteceu-lhes um passeio para namoriscar as lojas. A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava nas fachadas e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras a rua mais comercial da cidade. A Cedofeita fervilhava de gente que acabara de almoçar e seguia nesse momento para os empregos, mas mesmo assim uma importante parte dos transeuntes eram clientes que haviam aproveitado a tarde tristonha para espreitar as concorridas boutiques da Baixa do Porto. As vitrinas exibiam as primeiras novidades desse Outono de 1955, inspiradas directamente nos modelos que faziam a moda em Paris, ou promoviam ainda os saldos das roupas que haviam sobrado do Verão.

Juliana seguia de mão dada com o namorado, distraída a contemplar as vitrinas, quando uma voz interpelou o par.

"Às compras?"

Os dois olharam e viram um rosto conhecido dirigir-se-lhes em plena Cedofeita.


"Ludovina!"

Tratava-se de uma das raparigas do Orfeão e vinha acompanhada por uma amiga. Com um gesto casual, José desviou os olhos para a amiga e ela olhou-o também. Estreitou as pálpebras, perturbado. A acompanhante de Ludovina era uma rapariga alta, de cabelo castanho liso e um olhar provocador por detrás de uns óculos de aros pontiagudos que, enquadrando uns olhos verdes líquidos, lhe concediam uma beleza inesperadamente sofisticada, como a das mulheres inalcançáveis.

Não se lembrava de alguma vez a ter visto, embora se apercebesse de que havia algo de estranhamente familiar naquele rosto; ou a conhecia de algum sítio ou ela fazia-lhe lembrar alguém.

Tentou situá-la, procurando contextualizar-lhe a face em ambientes diferentes, mas a identificação escapava-lhe, como uma palavra que se busca e nunca se alcança. Desviou o olhar e aquele rosto delicado ficou a brilhar-lhe na retina, parecia o clarão do Sol que ainda nos encandeia depois de o termos mirado por um breve momento.

"Vimos ali atrás um vestido que era um encanto", observou Ludovina, indicando uma loja no outro lado do passeio. "Mas e o preço? Ui, um horror!"

"Ah, já se sabe como é", concordou Juliana. "Bom e barato não há!"

José esforçava-se por manter a atenção presa em Ludovina, mas a imagem da face da amiga era já um fantasma que se recusava a desaparecer e ele voltou a desviar os olhos na direcção dela, como se a rapariga fosse um poderoso magneto, e tentou freneticamente situá-la nos arquivos da mente. A sensação de que a conhecia não o largava.

Ludovina apercebeu-se desse olhar inquieto e voltou-se, fazendo sinal à sua acompanhante de que se aproximasse.

"Vocês já conhecem aqui a minha amiga?", perguntou. "É uma colega de Farmácia."

A rapariga sorriu e acenou na direcção do par de namorados.

"Olá!", saudou. "Sou a Mariana. Mas lá em Cabo Verde todos..."

José arregalou os olhos, identificando-a por fim.

"... me coisam por..."

"Mimicas?!"

A rapariga desviou para ele o olhar, observando-o pela primeira vez com atenção, estudando-lhe o rosto quadrado, os grandes olhos castanhos, as sobrancelhas que lhe conferiam uma expressão de mau, à Frank Sinatra, e, como se nesse instante tivesse sido atingida por um relâmpago, reconheceu-o também. "Zé?"

Ficaram ambos um longo momento a fitar-se, incrédulos e quase chocados, a estudar traços e a compará-los com as imagens gravadas na memória, cada um a descortinar no outro a pessoa com quem partilhara tantos passeios dominicais da Igreja do Sameiro até casa.

"Vocês já se conhecem?", admirou-se Ludovina. "Valha-me Deus, Zé! Já me tinham dito que te davas com toda a gente, mas sempre pensei que era maneira de falar..."

José achou a sua velha amiga, na verdade a sua primeira paixão, estranhamente igual e familiarmente diferente da rapariga que numa manhã de domingo se despedira dele à porta de casa com uma lágrima grossa a correr-lhe pela face, talvez a imagem mais clara que dela lhe imprimira a memória. O olhar verde maroto ali permanecia, a pele nívea e os lábios bem desenhados também. Mas o corpo era já o de uma mulher, sinuosa e de busto vasto. Os óculos de aros pontiagudos constituíam igualmente uma novidade e o rosto tornara-se mais doce, parecia uma Elizabeth Taylor. Estendeu o braço e, quase sem consciência do que fazia, tocou-lhe no cabelo e experimentou-lhe a textura.

"Tens o cabelo diferente", observou, quase como se estivesse em transe. "Está mais escuro e já não tens os canudos."

Ela ergueu também a mão e passou-lhe o dedo pelo rosto, como se o desenhasse.

"E tu? Perdeste a inocência..."

Tocavam-se assim em plena Cedofeita, como dois escultores a acariciarem as suas criações, maravilhados pelo seu próprio génio, encantados com a obra que as suas mãos haviam concebido, ambos criadores e criaturas.

"Zé, vamos embora!"

A voz de Juliana transmitia uma urgência que José intuía não ser verdadeira. Que ele soubesse não tinham pressa de ir a lado nenhum, nem na verdade era pressa o que a voz da namorada transmitia. Era medo. Mas medo de quê?, admirou-se. Foi quando deu os primeiros passos para a acompanhar e voltou o rosto para trás para se despedir de Mimicas que tudo ficou enfim claro e percebeu o tremor que sentira na voz de Juliana.

Era medo de Mimicas.

O encontro com a antiga paixoneta de infância despertou em José uma avalancha de lembranças que julgara esquecidas e de emoções que pensara ultrapassadas. Descobriu com espanto que não estavam. Encontravam-se era recalcadas e mal resolvidas. Ao soltar inadvertidamente aqueles demónios até ali escondidos da sua consciência, o reencontro com Mimicas revelou-se um momento de epifania, porque tudo trouxe à tona, e também de magia, como se constatava pelo feitiço que dele se apossara.

"Então, meu caro?"

A interpelação trouxe José do mundo da fantasia para a realidade da aula. Recentrou a atenção e o rosto delicado de Mimicas esfumou-se, dando lugar às barbas do professor Pina, que o fitava com intensidade. "Hã?"

"Estamos no mundo da Lua, ora estamos? Pois faria melhor em regressar aqui à sala!"

Mas era mais forte do que ele. A emoção do reencontro revelou-se demasiado intensa; era como se tivesse embarcado numa viagem inesperada ao passado. Mergulhou num estado de permanente melancolia, em que cada situação se transformava numa oportunidade para se afogar em sentimentos de quase dolorosa nostalgia, como se tudo fosse um pretexto para regressar aos tempos de inocência perdida com Mimicas, quando o mundo era simples e as escolhas claras e o corpo obedecia ao coração e não ao monstro que lhe enchia as calças.

Acordava com memórias mágicas dos passeios desde a Igreja do Sameiro, estava nas aulas e apenas se lembrava das conversas com a rapariga do cabelo castanho-claro aos canudos, falava com as pessoas e procurava em todos os rostos o olhar malandro e rebelde da amiga de infância.

Ao cabo de alguns dias sem ser capaz de sair desta letargia percebeu que teria de fazer alguma coisa. Ou melhor, uma coisa. Delineou um plano e deu um salto à faculdade de Farmácia para consultar as listas de alunos e os horários das aulas. Já na posse das duas informações de que precisava, e sentindo-se bem melhor desde que passara à acção, deu início à segunda fase do plano.

A emboscada.

Uma chuva leve, prenúncio de um Outono mais agreste, descia sobre a cidade naquele fim de tarde sombrio quando Mimicas saiu da faculdade e se cruzou com José no portão.

"Por aqui?", espantou-se ele.

"Isso pergunto eu", riu-se Mimicas. "O que estás a coisar na minha faculdade?"

"Vim procurar uma sebenta farmacêutica para a minha cadeira de Farmacologia. Não sei se sabes, mas os médicos também lidam com medicamentos..."


A rapariga revirou os olhos.

"Não me digas!", ironizou. "A sério?"

José olhou-a com uma expressão pensativa, como se tivesse acabado de lhe ocorrer uma ideia.

"Mas para que quero eu uma sebenta se te tenho a ti? Importas-te de me dar uma ajuda?"

"Eu? Mas vou agora para casa!..."

O rapaz aproximou-se dela e fez um gesto para a rua, convidando-a a seguir caminho.

"Eu acompanho-te", disse. "Se não te importares, claro."

Mimicas encolheu os ombros, como se a sugestão não a incomodasse, e começou a andar.

"Olha que vou a pé e ainda vai ser uma boa caminhada..."

"Ainda bem. Contigo gosto de conversar a caminhar. Estranho seria se fosse de outra maneira."

A rapariga sorriu perante a referência implícita aos passeios que ambos davam em Penafiel depois da missa no Sameiro; era um facto que todas as conversas da sua infância haviam decorrido da igreja até casa.

"Portanto", observou ela, "parece que estamos de volta aos bons velhos tempos."

"Ora nem mais!", exclamou ele com evidente agrado por Mimicas nada ter esquecido. "Onde vives?"

"No coiso."

"Onde?"

"Ai... na Boavista."

"Tens lá casa?"

Ela soltou uma gargalhada.

"Uma casa na Boavista? Isso queria eu!" Abanou a cabeça. "Não, estou na Casa das Doroteias. É

um lar para raparigas ali no Largo da Paz, mas está-se lá muito bem."

Caminhavam os dois lado a lado, já embrenhados na conversa; falavam e nem se apercebiam por onde andavam, guiados por uma espécie de piloto automático.

"Tens saudades de Cabo Verde?"

"Algumas", confessou ela. "Mas a Europa é outra coisa. O que me encanta aqui na Metrópole são as ruas e as estradas. Ai, são tão boas!" Apontou para a rua. "Olha para isto! Que maravilha de pisos! Lá não se coisam estradas assim. É tudo em terra batida e muito poeirento. Puf, um horror!"

José contemplou o empedrado da rua, típico do Porto e da Região Norte. Nunca lhe ocorrera que alguém pudesse apreciar daquele modo algo tão simples como o piso de uma estrada. Não havia dúvida de que só se valoriza o que não se tem.

"Porque te matriculaste em Farmácia?", perguntou. "Queres assim tanto ser farmacêutica?"

Ela corou.

"Na verdade queria era ser médica", murmurou em jeito de confissão. "Mas só de imaginar que tinha de coisar num teatro anatómico!... Valha-me Deus! Nunca vi um morto, nem quero ver!"

Virou a cara para ele. "E tu? Não te faz impressão?"

José torceu os lábios.

"Nem por isso."

"Nem um bocadinho?"

"Não", disse com uma expressão condescendente, como se lidar com a morte fosse para ele coisa quotidiana. "E um pouco como entrar no talho..."

"Ai que horror!", exclamou Mimicas, tapando a cara com as mãos. "Como é que consegues?"

"É canja."

"Pois eu não sou capaz! Gostava de ser médica, mas nunca conseguiria fazer Anatomia e foi por isso que me matriculei em Farmácia. Ao menos ali não temos de lidar com cadáveres."


"É a única coisa que fazes aqui no Porto? Estudas Farmácia e mais nada?"

"Ora! Já não é pouco! Que mais querias que estudasse?"

"Não digo estudar, mas podes fazer outras coisas. Por exemplo, eu ando no Orfeão. Não gostavas de te inscrever também?"

"Não sei coisar nenhum instrumento."

"Podias cantar..."

A rapariga soltou uma gargalhada.

"Eu? Cantar? Mas não tenho voz nenhuma, Zé. Ia cantar o quê? O fado da esganiçadinha?"

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