VICTOR HUGO

Ao meu pai, que se chamava Paz

À minha mãe, que com ele esteve na guerra

Embora obra de ficção, este romance é inspirado em factos reais.

íis^p Parte Um


Paraíso

Há tal grandeza em ti, há tal pujança

DANTE


Quando o quarto e último filho do casal Branco nasceu, a coisa mais invulgar que a todos chamou a atenção foi que o bebé ostentava um pénis enorme.

"Está quase..."

A primeira pessoa a ser honrada com o privilégio de contemplar semelhante prodígio foi Beatriz, uma rapariga do campo contratada para ajudar na lida doméstica, moça franzina, respeitadora da moral e temente a Deus, vinte e cinco anos de vida difícil, parteira nas horas de aflição, como aquelas que a fecharam nesse sábado de 1936 no quarto mais soalheiro da casa, em plena parte alta de Penafiel.

"Já falta pouco."

Desde o final da manhã que Beatriz ajudava dona Amélia na sua agonia parideira, e só agora, já a tarde ia a meio, a parturiente se preparava para dar à luz, entre gritos e gemidos, encharcada de suor naquele dia fresco de Outono. Amélia sentia-se cansada, mas sabia que era chegado o momento que requeria mais energia, o instante final, e não era altura para desfalecimentos.

"Agora, minha senhora!", exortou a criada, a voz já rouca de fadiga. "Agora! Força! Força!"

A dona da casa correspondeu com um derradeiro e supremo esforço, berrando de dor, e a parteira sentiu a cabeça do bebé emergir das entranhas. Beatriz mergulhou as mãos nas profundezas dilatadas de Amélia, agarrou os ombros escorregadios do pequenito e puxou, puxou até o corpo minúsculo deslizar para fora, abandonando o calor protector da mãe e expondo-se enfim à agressão do mundo.

"Está tudo bem?", perguntou uma voz masculina, do outro lado da porta do quarto.

Era o capitão Mário Branco, que aguardava no corredor, com mal contida ânsia, notícias do parto.

Ignorando as perguntas angustiadas e insistentes do marido, Amélia ergueu a cabeça e viu a jovem parteira pegar no recém- nascido, cortar o cordão umbilical, pendurar o bebé pelos pés e sacudi-lo. Só descansou quando o escutou a chorar; era um miado fraco e desamparado, feito de desespero, a lamúria atormentada de um pequeno ser expulso do aconchego protector do útero e atirado para a imensidão fria do desconhecido.

"E menino!", anunciou Beatriz. "E menino!"

"Dê-mo!", gemeu a mãe, exausta. "Beatriz, dê-me o meu bebé!"

"É só um instante."


Vendo a criada limpar o seu filho, Amélia estendeu as mãos para o pedir mas depressa deixou tombar os braços, exausta; sabia que teria de aguardar ainda uns momentos até que a criança lhe fosse para o regaço.

Beatriz usava uma toalha húmida e quente. Enquanto passava o pano pela pele engelhada do bebé foi examinando o minúsculo corpo com prazer, como se apreciasse um troféu, até que o olhar se lhe franziu ao descobrir uma grossa salsicha pendurada entre as pernas do pequenito. Ainda julgou que se tratava dos restos do cordão umbilical e aproximou os olhos, arregalando-os de surpresa quando percebeu que afinal não era o cordão, mas a sua virilidade.

"Credo!", exclamou, pasmada, levando a mão à boca. "Ai que mingalha tão grande!"

"Está tudo bem?", insistiu o capitão Branco, impacientando-se para lá da porta.

Beatriz embrulhou o recém-nascido à pressa num manto amarelo, não fosse ele constipar-se, coitadinho, e depositou-o nos braços da extenuada mãe com um murmúrio carinhoso. Amélia acolheu a criança com alívio, acariciou-lhe a cabeça e espreitou- lhe o corpo; queria confirmar o sexo. Tal como a parteira, momentos antes, também ela ficou de olhos esbugalhados ao deparar-se com o apêndice monstruoso que o bebé ostentava no ventre.

"O que é isto?", perguntou Amélia, levemente assustada.

"E a mingalhinha dele, minha senhora", esclareceu Beatriz, mal contendo uma risada.

"A quê?"

"O pirilau, minha senhora. E o pirilauzinho do menino, coitadinho."

Amélia voltou a fixar os olhos na minhoca gorda, primeiro incrédula, por fim resignando-se à incrível evidência. Aquele monstro era o pénis do bebé.

E que pénis.

"Valha-me Deus!", foi tudo o que conseguiu balbuciar.

Beijou o filho na testa, como se assim o absolvesse dos pecados que aquele instrumento lhe augurava, e aninhou-o entre os braços, mantendo-o quentinho. Esgotada, deixou a cabeça abater-se pesadamente na almofada e, sem querer ralar-se com inquietações prematuras, respirou fundo e repousou.

Vendo o bebé confortado no abraço da mãe, Beatriz limpou as mãos ao avental e dirigiu-se à entrada do quarto, de onde vinham perguntas cada vez mais insistentes.

Abriu a porta e mirou o capitão Branco.

"Parabéns, senhor capitão", exclamou. "Já tem mais um filho."

"E... é menino?"

"Não, senhor capitão, não é menino", sorriu a parteira, corando. "É um homem, benza-o Deus!"

"Um homem?"

"Um homem, senhor capitão. E muito homem, se quer que lhe diga!"

O capitão irrompeu no quarto e foi dar com a mulher estendida sobre a enorme cama, o cobertor a subir e a descer ao ritmo leve da respiração. A luz que jorrava das vastas janelas voltadas para a rua iluminava-lhe o rosto sulcado de fadiga e projectava-lhe um halo resplandecente nos cabelos desmaiados sobre a almofada, fazendo de Amélia um anjo exangue.

Atraídos pelo súbito rebuliço e pelo choro fraco do recém- nascido, os outros dois filhos do casal Branco convergiram para o corredor e, num tropel desordenado, invadiram o grande quarto do fundo, acotovelando-se numa algazarra alegre.

"Pouco barulho!", ordenou o pai, sentado na borda da cama, adoptando a sua voz profissional de comando. "A mãe está cansada."

Os filhos calaram-se de imediato e puseram-se em bicos de pés para espreitar o irmão recém-nascido. A frente plantou-se o mais velho, António, um rapaz orgulhoso e falador, apesar dos seus cinco anos. Depois vinha a primeira das raparigas, Rosa, uma menina de três anos, de traços finos, sensível, e tão responsável pelos irmãos que passara a ser conhecida por Mana. A pequena Lourdes apareceu instantes mais tarde nos braços de Beatriz; era uma bebé de apenas um ano, que a criada inclinou na direcção do recém-nascido, como se Lourdes fosse capaz de discernir os acontecimentos de que era testemunha inadvertida.

"É menina?", perguntou Rosa, sem tirar os olhos do novo irmão.

"Vamos ver", disse o pai, inclinando-se sobre o bebé.

O capitão entreabriu o manto para espreitar o ventre do pequeno, mas Amélia, buscando força onde não sabia que a tinha, estendeu o braço para repelir o marido e voltou a cobrir a criança.

"Não!", disse, apertando o bebé contra o peito.

O marido olhou para a mulher, admirado.

"Então, querida?"

"E menino."

"Mas não podemos ver?"

"Não!", limitou-se a dizer. "Nem pensar em exibir o... o coisinho a toda a gente."

"A toda a gente, querida?", espantou-se o capitão, sem compreender tanto pudor. "Mas nós somos a família, que diabo! Além disso ele ainda é pequenino, não tem mal nenhum."

"Não."

Beatriz percebeu o dilema da patroa e inclinou-se para o patrão.

"Senhor capitão", sussurrou-lhe ao ouvido. "O menino tem uma mingalhinha de homem."

"Como?"

"O menino, senhor capitão. Tem uma mingalhinha de homem."

"Uma quê?"

"O pirilau, senhor capitão." Baixou ainda mais a voz, como se estivesse a blasfemar. "O

pirilauzinho do menino, coitadinho. O bebé tem um pirilau de homem e a senhora não quer que as crianças vejam."

O capitão observou o recém-nascido com ar perplexo.

"Ah!", exclamou sem entender, mas suficientemente perspicaz para sentir que, se a mulher levantava objecções num momento como aquele, lá teria as suas razões e ele não deveria insistir.

"Depois vejo isso."

As crianças debruçaram-se sobre o peito da mãe para espreitar melhor o irmão; o bebé exibia um ar tranquilo, mergulhado num sono satisfeito, mas tinha os olhos ainda inchados e o rosto avermelhado. Parecia um pato esfolado.

"Boa!", observou António, o mais velho, fazendo sinal para as irmãs. "Ainda bem que é menino!

Já estou farto de galinhas!"

"Galinha és tu!", devolveu Rosa, empertigando-se.

"Eu cá sou galo."

"Galinha!"

António empurrou a irmã.

"Não me chamas galinha!"

"Galinha!"

"Quietos!", ordenou o capitão. "Juizinho."

As crianças voltaram a calar-se e a redireccionar as atenções para o irmão.

"Como se chama?", quis saber Rosa.

O capitão hesitou; era uma boa pergunta. Olhou para a mulher com ar de quem ainda não tinha pensado no assunto, mas, ao ver o sorriso ténue de Amélia, percebeu que a questão já estava fechada.

"José", murmurou ela antes de adormecer.

O pequeno José Branco teve umas primeiras semanas difíceis. Nasceu frágil, muito debilitado, magro como um coelho assado; do seu corpinho raquítico apenas se destacava o umbigo, uma cicatriz ensanguentada que demorava a cicatrizar e o pénis enorme, que dona Amélia teve o cuidado de ocultar dos olhares indiscretos. Num esforço de o subtrair aos insistentes esgares coscuvilheiros de amigos e familiares, encobriu-o sob pudicas camadas de fraldas de pano, verdadeiros véus censórios a que recorreu com zelo maternal para resguardar aquele verdadeiro milagre da natureza.

O esforço revelou-se vão, como é bom de calcular, pois a fama do recém-nascido e de tão viril atributo era de tal modo grande, correu tanto e tão longe chegou, que em breve a família em peso assomou em romaria à porta de casa. Mesmo os parentes mais afastados de Passos de Sousa e Castelo de Paiva e Bragança e Alfândega da Fé fizeram peregrinação a Penafiel para contemplar tamanho fenómeno; semelhante predicado só podia ser dádiva dos céus, graça divina que merecia devida glorificação.

"É verdade que o menino foi abençoado por Deus?", chegou a perguntar-lhe uma prima beata.

A moça mal conseguia conter o frémito irrequieto que percorria um grupinho de familiares distantes acabadas de chegar de Trás-os-Montes e que lhe havia invadido a casa.

"Todos os meus filhos foram abençoados pelo Senhor", limitou-se Amélia a retorquir, fazendo-se despercebida.

"Claro, minha querida, claro", assentiu a prima de Bragança, contraindo os músculos faciais com um tique de excitação. "Mas, ainda no outro dia, disse-me a prima Dulce... ela'esteve aqui, não esteve? Pois ela disse-me que o bebé... o menino... tem... enfim... sabe, não é? Tem a... a coisinha assim a modos que... que escandalosa, não é?"

"Escandalosa?"

"Bem... escandalosa é modo de dizer..." Soltou um risinho nervoso e esboçou um gesto indefinido, como se buscasse a palavra certa. "Tem... tem atributos de homem, se me faço entender." Sorriu, satisfeita por se ter enfim explicado com suficiente clareza, mas dentro dos limites de pudor que se exigiam de senhora da sua condição. "É verdade?"

"E verdade o quê?"

"Isso, menina."

"Isso o quê?"

"Oh!", exclamou, encolhendo os ombros. "Os atributos de homem, prima, o que haveria de ser?

E verdade que o menino os tem?"

"Quem vos anda a dizer essas coisas?"

A prima de Bragança esboçou um gesto pelo ar, como se tal informação não viesse de ninguém em especial e fosse tão do domínio público quanto as notícias na telefonia sobre as sábias decisões do senhor presidente do Conselho.

"Oh, conta-se... Mas é verdade?"

Amélia puxou o bebé mais para si e encostou-lhe a face quente.

"O meu Zezinho é normal!"

Determinadas a contornar a relutância da mãe em dar uma resposta clara às grandes perguntas do momento, todas insistiam em levar o pequeno ao banho, oportunidade única para apreciar de perto tão grandes e badalados atributos. Dona Amélia a tudo resistiu durante alguns dias, ciosa do recato do seu menino, mas com o tempo e o cansaço foi baixando a vigilância e depressa o pequeno Zezinho se transformou num verdadeiro brinquedo; até vizinhas e amigas acorriam para ajudar a pobre senhora a dar banho à avantajada criatura.

"Não é preciso, vizinha. Eu cá me arranjo."

"Oh, valha-me Deus! Onde já se viu uma senhora como a dona Amélia estar assim ao abandono? Tem outros três filhos para criar e nenhuma ajuda. As vizinhas servem para estas ocasiões!"

"Mas eu tenho a Beatriz..."

"A sopeira tem mais que fazer! Sempre são três andares neste casarão, não é verdade? Como pode ela dar conta do recado, coitada, sempre para cima e para baixo? é evidente que o menino acaba por ser negligenciado!"

"Não é verdade. O meu marido ajuda-me."

"Ora, o que percebem os homens de bebés? Eles servem é para os fazer, não para cuidar deles!"

Por mais que Amélia insistisse que a ajuda não era precisa, o mulherio aparecia, persistente, insistindo que a recusa não passava de modéstia; onde já se vira uma mãe com tantos filhos e apenas uma criada em casa a prescindir do precioso auxílio que primas e vizinhas com tanta generosidade lhe ofereciam para esfregar o pirralho?

Todos os dias a romaria se repetia sem descanso. As primeiras vezes, as alcoviteiras subiam ao quarto e, após uma negociação implacável, lá logravam arrancar a criança do berço e carregá- la para a lavagem; ouviam-se gritinhos abrasados quando lhe retiravam a fralda de pano, ao que se seguia um verdadeiro burburinho carregado de comentários a comparar a virilidade do bebé "com a verga do meu homem"; havia até quem tivesse observado que, "se já é assim de tão tenrinha idade, imagine-se o cavalão que vai sair daqui dentro de mais uns aninhos", verificação que se tornou célebre por ter desencadeado uma sinfonia de risinhos e a muitas ter excitado a imaginação para além do recomendável.

Foi intensa e laboriosa, mas durou pouco esta romaria. O capitão Branco, homem de rigor e pose austera, estranhou tamanha excitação sempre que as obrigações no quartel o libertavam antes da hora prevista e chegava a casa mais cedo.

De início nada disse, convencido de que aquela efervescência era coisa própria de mulheres.

Mas à terceira vez, estranhando um comentário que captara à distância a propósito do "chourição do petiz", decidiu indagar o assunto e, ao perceber por fim do que se tratava realmente, mandou aferrolhar a porta a parentes afastadas, vizinhas e demais curiosas; o chefe da casa não estava para aturar poucas-vergonhas.

"Essas galinhas que fiquem nas suas capoeiras", vociferou ao encerrar o assunto. "Irra!"

Com o acesso vedado à casa da família Branco, o burburinho foi diminuindo, devagar, até acabar por tombar no silêncio das coisas que se vão esquecendo, a história do bebé com pénis de adulto transformada aos poucos numa memória que, com o passar do tempo, adquiriu nítidos contornos de fantasia e alucinação, exageros por certo de mulheres histéricas cujo mal o capitão havia a seu tempo diagnosticado sem margem para erro.

"Têm falta de homem."O vulto assomou à porta, cortando o halo de luz que flutuava à entrada do quarto, e aproximou-se da cama onde se encontrava o pequeno José. O corpinho de três anos encolhia-se entre as mantas num esforço para reter o calor, os olhos molhados pelas lágrimas que lhe escorriam abundantes pela face. Quando o vulto se inclinou e o beijou na testa, o menino sentiu-lhe o aroma familiar e percebeu que era o pai.

"Que foi, Zezinho? Porque choras?"

O filho choramingou.

"Tenho medo..."

"Medo de quê?"


"Do escuro. A mamã?"

O capitão Branco pegou-lhe na mão gelada, procurando aquecê-lo e confortá-lo.

"Está em Trás-os-Montes a ajudar a tia Joana. Sabes que o tio Luís foi para o Céu e a tia precisa de auxílio."

A criança voltou a choramingar.

"Quero a mamã!..."

O capitão Mário Branco era um homem de pose austera, voz de trovão e postura hirta, imagem dura que contrariava a brandura com que geria os assuntos de casa, em particular no que dizia respeito aos pequerruchos. É certo que entre pais e filhos não permitia intimidades nem carícias; desconheciam-se naquela casa abraços e beijos meigos. Os pequenos cumprimentavam os pais com um respeitoso beijo na mão; era esse o modo corrente e em vigor naquele lar de bons católicos.

Apesar de respeitar com desvelo convenções socialmentg aceitáveis, o oficial manifestava com as crianças uma atenção pouco habitual nos homens do seu tempo.

"Queres ouvir uma música?"

O filho mais novo assentiu com a cabeça e engoliu os derradeiros soluços, aprontando-se para o que aí vinha. Os serões musicais eram mágicos, apesar de não entender as palavras que os compunham; parecia-lhe que da boca do pai brotava a língua dos anjos, melíflua e encantada, e admirava-se por ver vocábulos tão misteriosos fundirem-se com tal perfeição nas modulações melancólicas com que ele o enfeitiçava.

José não o podia ainda saber, mas escutava música italiana. O pai era um amante de árias napolitanas, que devorava desde os seus tempos de cadete em Lisboa, quando frequentava o São Carlos. Foi pois com uma ária de ópera italiana, entoada com voz poderosa e o tom vibrante adocicado pela brandura da melodia, que nessa noite adormeceu o filho mais novo na penumbra nocturna que toldava os longos corredores desertos da casa de Penafiel.

Celeste Aida, forma divina. Místico serto di luce e fior, Del mio pensiero tu sei Regina, Tu di mia vita sei lo splendor.

II tuo bel cielo vorrei redarti, Le dolci brezze dei pátrio suol; Un regai sertã sul crin posarti, Ergerti un trono vicino al sol.

A canção melancólica parecia destinada à mulher ausente, um grito de saudade que o tempo decerto aplacaria. Mas o próprio tempo o desenganou. Quando Amélia regressou de Trás-os-Montes foi como se não tivesse voltado; a mulher que havia partido regressara uma pessoa diferente.

Desde que Joana enviuvara, Amélia tornou-se distante e encerrada nela mesma. Era como se tivesse morrido, isolada do mundo e remetida para uma outra existência; dava a impressão que se tornara uma figura espectral, pairando como uma sombra pelos cantos da casa.

Sem compreender o que se passava com a mulher, o marido assustou-se e levou-a ao doutor Reis. O médico viu-a e, após a consulta, emitiu o veredicto.

"Uma depressãozita sem importância."

"O que devo fazer, doutor?"

"Não faça nada. Isto passa-lhe."

Mas não passou.

A depressão de Amélia prolongou-se por vários meses, deixando o capitão perdido em mil conjecturas e incapaz de lidar com a questão. Achou a certa altura que o amor que sentia por ela poderia resgatá-la do abismo em que havia mergulhado, mas primeiro teria de entender o problema de modo a perceber como desbravar um caminho que a guiasse para a redenção.


Questionou-a com insistência, num esforço de quebrar o mutismo teimoso e persistente que dela se apossara, mas por mais que a interrogasse nada lhe conseguiu arrancar além das lágrimas silenciosas que lhe empalideciam o rosto.

Desesperou, pois o caso parecia-lhe perdido.

A inexplicável situação só se alterou numa manhã de domingo. Após a missa dominical na Igreja do Sameiro, e esgotadas todas as outras soluções, o capitão Branco foi ter com o padre Jacinto e apresentou-lhe o problema.

"Não come, não dorme, chora a toda a hora, já quase nem liga às crianças... Com franqueza, não sei o que lhe hei-de fazer!"

O pároco desviou os olhos para lá do ombro do capitão e cravou a atenção na mulher, que ficara sentada junto à porta, a cabeça a fixar os pés numa postura de tristeza lassa, como se a alma tivesse partido e o corpo não passasse de um invólucro desocupado.

"O senhor capitão vá para casa e volte ao meio-dia para a vir buscar, se faz favor."

O padre Jacinto acolheu Amélia na Igreja do Sameiro. Ouviu-a nessa manhã em confissão e prescreveu-lhe uma longa penitência. Quando o marido a levou para casa, notou nela uma transformação subtil. A mulher mantinha o olhar amargurado, mas havia algo de indefinível que se alterara, como se uma pequena luz se tivesse acendido naquela treva cerrada; era uma chama frágil, mas cintilante.

Essa impressão, para sua surpresa e alegria, confirmou-se nos dias seguintes. Amélia, antes à deriva num recanto da mente onde só ela entrava, tornou-se visita assídua do santuário. O capitão começou então a perceber que a mulher se agarrava à religião com a força do desespero, como se a cruz fosse uma bóia. Amélia passou a assistir a duas missas por dia e a benzer-se amiúde; expressões como "graças a Deus!" e "queira Nossa Senhora!" tornaram-se muletas permanentes das suas conversas. Era uma mudança radical, mas o marido não ficou inteiramente descontente.

Afinal viver com uma mulher devota era preferível a ter um espectro lacrimejante a assombrar-lhe a casa.

O problema é que a súbita devoção de Amélia não parou por ali. A Bíblia tornou-se a sua companhia de leitura permanente e a mulher pôs-se a dedilhar o terço sem cessar, rodando-o nas mãos ao ritmo de uma ladainha sussurrada que parecia não lhe largar os lábios trémulos. O fervor religioso revelou-se a certa altura tão intenso que o capitão, embora homem católico e respeitador da Igreja e dos bons costumes, começou a achar tudo aquilo de mais.

"Este padre Jacinto é diabólico", observou certo dia no quartel. "Transformou-me a patroa numa beata!"

No meio das mudanças súbitas e inexplicáveis operadas em Amélia, os filhos acabaram por ser negligenciados. Atento ao problema, o capitão redobrou o zelo protector em relação às quatro crianças e passou a acompanhá-las mais de perto. Mário Branco acreditava firmemente nas virtudes da educação; administrava a casa com a disciplina de um general e educava os filhos com a dedicação de um mestre-escola.

Tornou-se um homem muito paciente. Contrariamente à tradição do seu tempo, era raro bater nas crianças e mostrava-se sempre disponível para falar com elas e responder-lhes às perguntas, até para discutir as notas da escola ou do colégio. A sua voz de trovão intimidava, é certo, o mesmo acontecendo com a severidade que sabia imprimir ao olhar; bastava captar-lhe a expressão para se saber o que estava certo e o que era errado. O seu jeito atencioso, porém, tudo parecia compensar; não se tratava de homem de abraços nem de beijos, mas parecia ter o dom da palavra certa.


A bola vermelha rolou pelo fino tapete verde, ricocheteou no limite da mesa e foi direitinha para o buraco, por onde se meteu a rodar como um pião.

"Caramba!", exclamou o juiz Brandão, cofiando o bigode. "O senhor está hoje imparável!"

O capitão Branco lançou um olhar fugaz ao pequeno José, querendo certificar-se de que o filho mais novo admirara a jogada. Depois assentou o taco na vertical e esfregou um pouco mais de giz na ponta, desviando os olhos para a mesa de modo a estudar a jogada seguinte.

"Faz-se o que se pode, meu caro. Faz-se o que se pode."

Naquele final de tarde, e apesar de se encontrarem na reserva, os militares e o juiz haviam-se juntado como de costume no primeiro andar do clube dos oficiais, revoluteando como borboletas em torno da grande mesa de bilhar que ocupava o centro da sala. O jogo era seguido distraidamente pelo filho, que o capitão levara consigo para o retirar do bocejo em que se transformava a casa quando os irmãos iam para a escola e a mulher definhava em rosários e outras beatices. A sala de jogos do clube estava cheia àquela hora, embora os restantes oficiais se entretivessem sobretudo em partidas de gamão e de xadrez, que decorriam nas mesinhas dispostas em redor da mesa de bilhar. „

Mas o que tornou realmente memorável esse final de tarde foi a entrada de rompante de António, o funcionário dos Correios que àquela hora trazia sempre o jornal encomendado pelo capitão Branco. António vinha esbaforido e agitava na mão o periódico, que todos reconheceram pelo inconfundível cabeçalho, a identificar O Comércio do Porto.

"Ena, Tónio!", admirou-se o capitão Branco. "Que pressa é essa, rapaz?"

"Ah, senhor capitão!", exclamou António, ofegante. "Chegou O Comércio do Porto!"

O rapaz dos Correios fazia dançar o matutino entre uma mão e a outra, como se o papel queimasse. Os oficiais fixaram os olhos no jornal saltitante, sem entenderem toda aquela excitação.

Conseguiram perceber que havia um mapa da Europa desenhado no topo da primeira página, mas António abanava tanto o exemplar de O Comércio do Porto que não lograram captar- lhe os títulos.

"Pois isso já eu percebi, Tónio. E então? Vem aí a notícia de que as galinhas já têm dentes?"

Os oficiais riram-se, mas António permaneceu especado diante da mesa de bilhar, os olhos muito abertos.

"Não."

A risada morreu naturalmente.

"Então, rapaz?", perguntou o capitão Branco, sempre de ar bem-disposto. "O que foi?"

António pegou no jornal com as duas mãos e mostrou-lhes enfim a primeira página.

"São os Alemães, senhor capitão. Entraram na Polónia."

O almoço foi pesado e o capitão Mário Branco decidiu digeri-lo com a ajuda de um copo de vinho do Porto. Espreitou o relógio e constatou que era quase chegada a hora; foi para o sofá, girou a antena para a posição de onda curta, ligou o rádio e aguardou que as vozes distantes rasgassem a estática e lhe dessem notícias do mundo. Não teve de esperar mais de um minuto. O monótono

crrrrrrr do éter foi bruscamente interrompido por um sinal, parecia que alguém tinha apitado, e depois por uma pausa repousante; emergindo do súbito silêncio, como se um visitante falasse do fundo do corredor, ouviu-se uma voz ondulada e pausada.

"Daqui Londres. Esta é a BBC."

A escuta das emissões da BBC era um acto proibido em Portugal, mas o capitão Branco, embora católico obediente e patriota acima de qualquer suspeita, não queria saber de interdições absurdas.

Não eram os Ingleses os maiores e mais antigos aliados de Portugal? Não haviam estado, os nossos soldados e os deles, lado a lado em incontáveis batalhas e jamais em campos opostos como inimigos? Que disparate era aquele de não sepoder ouvir a voz de Inglaterra? Quem seria o inteligente que tomara tão insensata decisão?

Escutar a BBC tornara-se assim um acto de rotina naquela casa, as emissões em onda curta acompanhadas religiosamente duas vezes por dia, uma depois do almoço, outra após o jantar. Não se tratava de uma atitude de desafio; não era essa a postura do capitão. Ele pretendia simplesmente saber o que se passava no mundo, sabê-lo através de uma voz em que confiasse, e não conseguia entender qual o mal de ouvir o que dizia o velho aliado de Portugal. Um informador chegara a denunciar estas escutas ilegais do distinto oficial, mas a hierarquia encolheu os ombros e olhou para o lado; a verdade é que ninguém de bom senso se atrevia a incomodar o capitão Branco por causa de uma ninharia como querer saber as notícias, para mais estando ele já na reserva.

"A BBC fala e o mundo acredita", sentenciou a voz libertada pelo altifalante do rádio.

O oficial reconheceu a dicção pausada de Augusto Silva, o seu locutor favorito, e inclinou o ouvido para o altifalante. Entrou no ar o que parecia uma marcha; tratava-se do separador identificativo da estação britânica.

Foi nesse instante que o pequeno José se aproximou do pai com ar queixoso.

"Ó pai! O mano..."

"Está declarado o estado de guerra entre a Inglaterra e a Alemanha. O senhor Neville Chamberlain..."

"... escondeu o pau que eu..."

"Chiuuuu!", cortou o capitão, os olhos arregalados, mandan- do-o calar com tal veemência e fúria que José se assustou. "Silêncio!"

Fez-se um súbito vazio em toda a casa; não era hábito o capitão dirigir-se a alguém da família de modo tão brusco. No meio do abrupto mutismo geral, apenas a voz de Augusto Silva permaneceu imperturbável, reverberante no silêncio pesado que ali se instalara, jorrando autoritária do altifalante com notícias de provocar pasmo e medo.

"... leu esta tarde uma comunicação ao país a informar os súbditos ingleses de que o senhor Hitler não aceitou um ultimato entregue ontem de manhã pelo governo de Sua Majestade em Berlim, a exigir que as forças alemãs retirassem imediatamente da Polónia. Em consequência, disse o senhor Chamberlain, a Inglaterra está em guerra com a Alemanha."

O noticiário durou longos minutos, mas pareceram poucos perante o muito que havia para dizer. Apenas a voz de Augusto Silva soava na casa dos Branco, trazendo notícias do inferno mesmo ali às portas. Quando por fim o locutor se despediu, com a solenidade que o momento requeria, apenas se ouviu na sala mais um clique, provocado pelo capitão ao desligar maquinalmente o rádio.

Abateu-se nesse instante por toda a parte um silêncio pesado, aquele silêncio profundo e ensurdecedor que pousa sobre os homens nos momentos de grande gravidade. Era como se uma nuvem negra e densa tivesse assentado sobre o mundo, sinistra e maléfica, asfixiando a luz que o fazia viver, mergulhando-o numa vasta sombra; a vida era o Sol, mas a rádio fora o arauto do crepúsculo, esse efémero instante em que o dia se apaga no fio do horizonte e sobre todos se deita o manto escuro da noite, aos poucos, devagar, como uma chama que se extingue lentamente, até se instalar enfim por toda a parte uma treva opaca e nefanda.

Tlim-tlim-tlim.


O toque da sineta na porta fez Beatriz sair disparada da cozinha e descer as escadas para saber quem era. Instantes mais tarde a figura austera e pançuda do juiz Brandão irrompeu pela sala como se da sua intervenção dependesse o destino do mundo. Atrás dele vinha a sua protegida Joana, que voltara a acolher quando a pobre rapariga enviuvara.

"Ó Branco!", chamou o juiz. "Branco! Você ouviu as notícias?"

O capitão ergueu-se pesadamente do sofá, de onde não saíra desde que, uma hora antes, terminara o noticiário da BBC.

"Então não ouvi?!"

O juiz estacou diante dele e olhou-o com expectativa, como se esperasse que o oficial tivesse o poder de neutralizar um acontecimento tão grave.

"E o que me diz disto?!"

O capitão abanou a cabeça, a fronte carregada de preocupação.

"Olhe, tenho estado aqui a matutar no assunto..?

"E então?"

"Acho que isto é um grande sarilho."

"Acha mesmo?", disparou o juiz, alarmado com a impotência que lia no rosto do oficial.

"É como em 14-18. De um lado a Inglaterra e a França, do outro a Alemanha e a Áustria. Vai ser uma nova calamidade!"

"Mas este Hitler não tem juízo? O que quer ele afinal? Acabar com o mundo? Não chegou a Grande Guerra?"

"Ele é um homem agressivo, meu caro. Uma pessoa correcta, sem dúvida, mas muito agressiva.

Foi longe de mais e agora meteu toda a gente num grande sarilho."

A tensão era palpável devido à memória do que fora a Grande Guerra. Ainda a tentar refazer-se do choque, o juiz instalou-se no sofá e o anfitrião, conhecedor dos gostos do visitante, foi- lhe preparar um cálice de vinho do Porto.

Aproveitando a pausa na conversa entre os homens, Joana quebrou o seu mutismo.

"A minha irmã?"

"A Amélia está a descansar no quarto com o Zezinho e a Lourdes."

A cunhada meteu pelo corredor e foi ter com Amélia, deixando os homens a sós. Com a garrafa de porto na mão, o capitão Branco ficou a vê-la desaparecer para além da porta do quarto. Depois encheu o cálice e estendeu-o na direcção do juiz.

"Como vai a sua protegida?"

"Menos mal, menos mal", disse o visitante, pegando no cálece. "Sabe, o mais difícil parece já ter passado. Desde que ela voltou de Trás-os-Montes e se instalou de novo lá em casa que tem andado mais alegre, coitadinha. Depois do que aconteceu a moça não podia ficar sozinha, não é?"

"Além do mais, tem cá a irmã."

"Ah, sim!", concordou o juiz. "Isso é muito importante! Têm ido as duas à igreja e sem dúvida que isso lhes faz bem. Mas às vezes exageram um bocado, não acha?"

O capitão balançou devagar a cabeça, resignado às mudanças que se operavam na sua mulher.

"É melhor que nada."

A sineta voltou a soar no andar de baixo e Beatriz saiu mais uma vez da cozinha para atender.

Eram as crianças mais velhas que vinham da escola. As aulas haviam sido suspensas; ninguém se sentia com disposição para trabalhar numa ocasião daquelas. O dia estava a ser de afluência generalizada às igrejas e um rio de gente convergia para o santuário do Sameiro. As notícias da rádio eram demasiado graves e um clima de receio havia-se instalado por toda a parte. Uns buscavam refúgio nas missas, outros nas conversas sobre a situação".


As duas irmãs espantaram-se com tanto alarido e apareceram na sala. Amélia ajudou os filhos a arrumar as coisas da escola enquanto Joana, inteirada do que se passava nas distantes capitais que tão pouco interesse habitualmente lhe despertavam, se sentou ao lado do juiz.

"Ai, valha-me Deus!", disse ela. "Já viu isto? Está tudo maluco."

"Pois está."

"Já convenci a Amélia e vamos ali ao Sameiro rezar vinte ave- marias para que tudo se recomponha."

O juiz esboçou um trejeito impaciente.

"Isto não vai lá com ave-marias..."

"Ah, não diga isso que Nosso Senhor ainda o castiga!"

"Receio que Nosso Senhor tenha mais com que se preocupar do que andar a ver o que andamos ou não a dizer."

"Se rezarmos muito, Ele há-de ouvir-nos e há-de ter piedade de nós. Ele e Nossa Senhora de Fátima, que é uma santa. O padre Abreu, que dá a missa das onze na Igreja da Misericórdia, disseme no outro dia que..."

"O menina...", interrompeu o juiz. Aquela conversa enervava-o. "Vá lá ao Sameiro rezar umas ave-marias e deixe-me aqui a falar com o senhor capitão, está bem?"

Joana fez sinal a Amélia, que tinha acabado de tratar dos filhos.

"Ai mana, vamos já embora!" Voltou as costas e afastou-se, mas ainda virou a cabeça para trás e deixou um derradeiro anúncio. "Desde que ouviu as notícias na telefonia que o senhor está que não se pode. Vou rezar a Deus, Nosso Senhor, para que lhe perdoe..."

O calor de Setembro, denso e asfixiante, atirara o capitão Branco para o seu escritório do piso térreo, um dos pontos mais frescos da casa. O oficial embrenhara-se nas suas contas habituais; dessa vez, a contabilidade estava centrada no cálculo de todo o vinho que teria de armazenar nas adegas após a venda aos clientes do costume. Como os dois filhos mais velhos haviam ido para a escola e Amélia saíra com Lourdes ao colo e com a irmã, Joana, o capitão dera um pião ao pequeno José e levara-o para brincar no chão do escritório.

Quando estudava o orçamento de um novo abastecedor de barris, alguém bateu à porta da rua.

Mário Branco foi ver e deu com o rosto gasto do comandante do seu antigo regimento.

"Nosso capitão, dá licença?"

"Meu comandante... por aqui?"

"é verdade. Será que podemos falar um minutinho?"

"Com certeza."

O capitão abriu a porta e deixou o coronel Silvério entrar. Levou-o para o escritório, ofereceu-lhe um cálice de vinho do Porto e sentou-o na cadeira mais dura que ali tinha. O Zezinho continuava a brincar com o pião e o antigo comandante do regimento de Penafiel lançou um olhar à criança, como se pedisse que ela saísse dali. O anfitrião ignorou a sugestão.

"Então como vai o nosso regimento?", perguntou Mário Branco, mais por cortesia do que curiosidade. "A mudança de ares para o Porto fez-lhe bem?"

O comandante abanou a mão.

"Assim-assim."

"Não me diga que veio cá a Penafiel porque estava com saudades..."

O coronel Silvério tirou um maço do bolso e acendeu um cigarro. Uma nuvem de fumo cinzento-azulado ergueu-se do seu rosto e colou-se-lhe ao cabelo.

"Não foram as saudades que me trouxeram cá", disse. "Foi o trabalho." Tirou um papel oficial do bolso interior, passou os olhos por ele e estendeu-o a Mário Branco com um sorriso. "Apresente-se amanhã de manhã ao major Viegas."

O capitão mirou o documento com ar interrogativo.

"O que é isto?"

"É uma ordem do general Gomes. Ele ouviu falar das suas capacidades de organizador e quer que o nosso capitão fique encarregado do racionamento em Penafiel."

"Racionamento?"

"Sim, homem." O comandante riu-se. "Então não sabe que o mundo está em guerra? Os bens vão faltar, meu caro! Toda a economia ficará centrada no esforço de guerra e a produção e o transporte de bens serão gravemente afectados. Até já há submarinos alemães a atacar navios no Atlântico, veja lá! O governo decidiu por isso instituir planos para organizar racionamentos por todo o país, caso tal venha a ser necessário. O nosso capitão terá de ser discreto com isto, não queremos que se instale o pânico entre a população, até porque pode nem vir a ser necessário tomar estas medidas, claro... Mas o seguro morreu de velho, como dizia o outro."

"Desculpe, meu coronel, não percebo." Apoiou a palma da mão sobre o peito, com ar perplexo.

"Porquê eu?"

"É que o governo entregou essa operação ao exército e o general Gomes pensou em si para organizar a coisa aqui em Penafiel."

"Mas, meu coronel, eu já não estou no exército."

Silvério levantou-se pesadamente, dando a conversa por terminada. Antes de se afastar, contudo, inclinou-se para a frente e, apoiando a palma das mãos na secretária, cravou os olhos no seu interlocutor e abanou a cabeça.

"Não estava, meu caro capitão. Não estava."Naquela tarde de Setembro de 1940, e como era hábito sempre que o sol brilhava ameno e o tempo se apresentava agradável, o casal Branco instalou a mesinha na varanda das traseiras e acomodou-se para o lanche com vista para o quintal.

Amélia lia com inusitado interesse O Comércio do Porto que o marido acabara de lhe trazer do clube dos oficiais quando pousou o jornal sobre a mesinha e pegou na chávena de chá.

"Ó Mário", interpelou ela com ar pensativo, "será que aquilo é mesmo assim tão catita?"

O capitão tentava acender um cachimbo. Aspirou com força e pousou os olhos na página do jornal que a mulher acabara de ler. O título da notícia que dominava essa página mencionava o sucesso que estava a ter o grande evento do ano, inaugurado com vistosa pompa três meses antes.

A Exposição do Mundo Português.

"O quê? A Exposição?"

"Sim." Amélia fez um gesto para a fotografia do jornal a ilustrar a notícia. "O Gonçalves, aquele sacristão do Sameiro, esteve na semana passada em Lisboa e veio de lá maravilhado."A primeira nuvem de fumo aromático ergueu-se com lentidão pelo ar.

"O pessoal no clube dos oficiais diz-me o mesmo."

"Mas, se é coisa assim tão monumental, achas que isso faz algum sentido nestes tempos difíceis?

No fim de contas há uma guerra a decorrer..."

"Sabes, isto foi planeado há dois anos. A verdade é que em 1938 o Toninho não tinha modo de prever que a guerra iria rebentar..."

"De qualquer modo! Já viste? Tanta gente a sofrer e nós a festejar a lusitanidade!..."

O capitão voltou a concentrar-se no cachimbo.

"É verdade, querida." Aspirou e libertou nova nuvem perfumada. "Mas o que havíamos nós de fazer? Deitar abaixo a construção? Pois se o dinheiro já está gasto e a obra concluída não achas que o melhor é mesmo seguir em frente? Além disso, a exposição tem a vantagem de aumentar o moral do povo, cimentar o orgulho nacional e a confiança no futuro. Em tempos tão deprimentes, estas coisas ajudam-nos a encarar a vida, não te parece?"

Amélia bebericou o chá e pousou a chávena, pensativa.

"Talvez tenhas razão", concluiu. Pegou no bule e começou a deitar mais chá na chávena, mas interrompeu a operação a meio, o bule suspenso no ar, como se algo tivesse acabado de lhe ocorrer.

"Olha lá, e se nós também lá fôssemos?"

"Lá onde?"

"A exposição, Mário. Vamos à exposição!"

A mais antiga memória completa de José Branco, aquela em que pela primeira vez reteve os mais ínfimos pormenores de tudo o que viu e sentiu, incluindo cheiros e cores, foi justamente a da emocionante viagem que fez com a família a Lisboa, corria o mês de Setembro de 1940 e ia ele completar quatro anos daí a algumas semanas.

Na zona de Belém, entre o Mosteiro dos Jerónimos e o estuário do Tejo, Salazar mandara arrasar barracões e casas velhas para erguer o grande certame, uma gigantesca montra da lusitanidade, por ocasião dos oitocentos anos da fundação de Portugal e dos trezentos anos da restauração da independência.

O evento abriu portas em Junho, mas o começo não foi auspicioso; além de vários pavilhões ainda não estarem prontos, o dia da inauguração ocorreu vinte e quatro horas depois da capitulação da França e da chegada das tropas alemãs à fronteira espanhola. O ambiente em Portugal tornou-se pesado e temeroso; aproximavam-se os ventos de guerra, eram sinais de uma longínqua tempestade que se adensava no horizonte, imensa e ameaçadora, carregando o céu de sombria preocupação.

A depressão foi, porém, rapidamente enfrentada; em breve a grandiosa exibição de lusitanidade começou a ser encarada como uma ilha pacata naquele mar de tormenta, um fogacho de tranquilidade na noite agitada, uma luz de esperança que se acendera na treva. Organizaram-se grupos, fizeram-se excursões, primeiro algumas centenas de pessoas, depois milhares, a certa altura já dezenas de milhares, centenas de milhares... Chegou ao primeiro milhão o número de portugueses que se juntaram, vestiram as melhores fatiotas, prepararam o farnel e atravessaram o país para apreciar tão espantoso acontecimento.

Os ecos da magnificência da obra percorreram Portugal da costa ao Interior. Não havia jornal, nem rádio, nem café, nem taberna, nem esquina, nem casa, não havia sítio onde, além das notícias da guerra, não se comentasse coisa tão magnífica. Os que chegavam de Lisboa vinham deslumbrados, gabando "obra própria de país do progresso", e os encómios eram tantos e tão entusiásticos que inevitavelmente acabaram por mobilizar o casal Branco.

Toda a família seguiu para o Porto na barulhenta camioneta alugada por Mário Branco à Alberto Pinto. A bordo iam, além do capitão, a mulher e os filhos, Joana e ainda Beatriz, a jovem criada encarregada de vigiar o pequeno José. O juiz Brandão ficara para trás, dizia ele que a grande cidade lhe "fazia espécie", mas outras pessoas da terra aproveitaram a iniciativa e contribuíram com uns tostões em troca de boleia até à capital para visitar a tão badalada exposição.

O percurso de Penafiel ao Porto levou quase três horas, feitas à beira-rio em curvas e contra-curvas, com o fumo acre da camioneta a entrar pelas janelas e a enjoar as senhoras, o cheiro a gasóleo queimado a misturar-se com a brisa fresca que soprava pela manhã ao longo da margem norte. Cruzaram o Douro pela Ponte D. Luís, já perto do meio-dia, e meteram pela Nacional 1 até Lisboa.

Mas a viagem era demorada e incómoda, tão maçadora que depois de Coimbra, já noite dentro, decidiram estacionar na berma da estrada e pernoitar na camioneta. As marmitas foram abertas e José refastelou-se com o repasto trazido de casa; comeu língua afiambrada com bolinhos de bacalhau e carne assada, tudo bem acompanhado por regueifas e um verde tinto ácido que até as crianças degustaram.

Chegaram a Lisboa ao princípio da tarde do dia seguinte e instalaram-se na casa do Pires, um camarada de armas do capitão desmobilizado. Pires vivia em Campolide e certa vez zangara-se com Branco por causa de um tostão. A história tornara-se já lenda de família. Parece que o metódico capitão se recusara a emprestar um tostão ao amigo, alegando que ambos ganhavam o mesmo e que, se o soldo chegava para um, também teria de chegar para o outro; a Pires bastaria saber administrar o que recebia. O incidente ocasionara uma daquelas zangas que acabam numa amizade inquebrável. A reconciliação aproximou-os tanto que o velho companheiro de armas abriu as portas da casa de Campolide à multidão que lhe desaguou da fumegante camioneta da Alberto Pinto, como bárbaros à conquista da capital.

Os primeiros dias na cidade foram de grande espanto. Depois de se instalar em casa do Pires, a família Branco foi levada pelo anfitrião num passeio a pé até à Baixa, com intenção de conhecer o grande Rossio; no fim de contas, argumentou Pires, era o centro nevrálgico de Lisboa, o ponto onde a cidade se encontrava para dois dedos de conversa, o sítio onde tudo mexia e a vida palpitava.

"Ó Branco, você vai ver uma coisa incrível", avisou o amigo, caminhavam todos pela Avenida da Liberdade em direcção aos Restauradores. "Prepare-se, que é mesmo de pasmar!"

"O quê?"

"Tenha calma. Já lhe mostro." Olhou para trás e avaliou o resto do grupo. "Não sei é se é espectáculo aconselhável a senhoras e crianças..."

"Está à luz do dia?"

"Claro."

"É permitido pelas autoridades?"

"É pois."

"Então mostre lá isso, homem. Não há-de ser nada de mais!"

O dia nascera quente, tornara-se abafado até. Sentiam o suor crescer por baixo das axilas e correr em pingos pelas costas, mas não podiam fazer nada; camisas, casacos, saias compridas, lenços e chapéus eram requisitos imprescindíveis para as pessoas recatadas, respeitadoras da moral e da ordem, mesmo quando a canícula apertava.

Chegaram aos Restauradores e meteram para o Rossio. Ao entrarem na grande praça deram com uma novidade absoluta: havia mesas e cadeiras espalhadas pelos passeios e os clientes a exporem-se ao olhar dos transeuntes.

"O que é isto, Pires?"

O anfitrião sorriu, quase ufano por mostrar aquelas novidades ao amigo chegado da província.

"São esplanades."

"Espia... quê?"

"Es-pla-na-des" , repetiu quase a soletrar, afinando o sotaque francês. "Parece que Paris está repleta delas."

"Mas... e o recato? As pessoas exibem-se assim na rua, sem mais nem menos?"

"É o progresso, meu caro! É o progresso!"

Mário Branco e a família ficaram especados a observar a cena inusitada. O mais curioso é que a inovação parecia estar a ser um êxito; bastava ver como essas esplanades se encontravam apinhadas de clientes e observar o formigar irrequieto em torno das mesas soalheiras e dos balcões protegidos pela sombra fresca.

"Olhem ali para a Suissa", indicou Pires com um'sorriso malicioso, erguendo as sobrancelhas.

"Ora vejam bem os clientes!"

O capitão analisou melhor os homens que se sentavam à mesa da esplanade da Pastelaria Suissa, com cafés a fumegar e copos de whisky nas mãos, defendidos do sol pelas sombrinhas coloridas; tinham a pele muito pálida, os cabelos aloirados e os olhos claros, e vestiam com elegância, muito limpos e janotas; pareciam actores de uma fita americana.

"São estrangeiros?"

"Claro."

"Ingleses?"

Pires fez um gesto vago com a mão.

"Ingleses, americanos, alemães, italianos, franceses, holandeses, checoslovacos, polacos, eu sei lá! Vêm de toda a parte!"

O capitão esboçou um ar surpreendido perante o desfilar de nacionalidades.

"Mas o que está toda esta gente cá a fazer?"

"Ó homem, não sabe que há uma guerra a lavrar por essa Europa fora?" Fez um gesto teatral na direcção da esplanade. "A maior parte deste pessoal são refugiados. São milhares e milhares, o que pensa você? Vêm a fugir dos tanques alemães e querem ir para a América; vieram apanhar um barco ou o clipper. Estes são os mais endinheirados." Baixou a voz. "Mas há também uns que chegaram aqui com uma mão à frente e outra atrás. Muitos são judeus."

"Há judeus?"

"Ui, tantos! Parece que os Alemães não gostam deles, coitados. Não se vêem muito pela rua.

Ouvi dizer que se concentram ali na Cozinha Económica Israelita e estão todos a tentar seguir para a América, dê por onde der, nem que seja a nado."

O capitão contemplou pensativamente aquela gente e por momentos teve a inusitada sensação de ser testemunha de um acontecimento de relevância transcendente.

"Quem diria! Desgraçados, vêm a fugir da guerra!..."

"Bom, a maior parte são refugiados, mas nem todos! Há também por aí muito diplomata, e espiões, oh, parecem moscas! Dizem que o Hotel Aviz está cheio de espionagem, que aquilo é um verdadeiro covil de serpentes, todos a ver se sacam informações ou tramam o parceiro!"

"Como nas fitas americanas?"

"Isso." Pires soltou uma gargalhada. "Só cá falta o Clark Gable!"

Os estrangeiros mostravam um ar aparentemente descontraído, escondendo decerto o tumulto que lhes fervilhava na alma. Uns haviam-se embrenhado num burburinho de conversas, ora a comentar a política e a grave situação internacional, ora a queixar-se das saudades da família ou a lamentar as notícias que lhes chegavam de casa; outros permaneciam calados, metidos consigo, admirando com calma impaciente o rolar morno da lenta tarde lisboeta, talvez a pensar na terra que haviam deixado, quem sabe se a sonhar já com aquela para onde partiam.

"Ó Pires, já reparou que muitos não usam chapéu?"

O amigo riu-se.

"Caramba, Branco! Estava a ver que você não reparava nisso..."

"Mas isto agora é assim? Não se usa chapéu?"

"Parece que é moda lá fora andar de cabeça descoberta, o que quer que lhe diga?" Apontou para um homem sentado ao fundo, a ler um jornal francês. "Olhe para aquele. Olhe só."

O capitão localizou o homem e abriu a boca, surpreendido.

"Mas o tipo é careca!"


"Pois é."

"E não tem chapéu!" Fitou o amigo com ar incrédulo. "Já viu?" Voltou a mirar o homem, como se quisesse garantir que os seus olhos não o tinham enganado. "Não tem chapéu! O homem está a exibir a careca!"

"O Branco! E isto ainda não é nada..."

Ouviu-se um gritinho feminino lá atrás. Os dois homens voltaram-se e viram Joana a aproximar-se, afogueada, quase num tropel; vinha com ar de quem tinha visto o Demónio.

"O que é?", perguntou Amélia à irmã, alarmada por vê-la assim aflita. "O que foi?"

"Ai, valha-me Deus, nossa Senhora, Virgem santíssima!"

"O que foi, rapariga?"

"Ai, não me digas nada, mana, não me digas nada que até me falta o ar!" Pôs a mão no peito, como se assim conseguisse conter a violência dos pulos que o coração aí dava. "Ai Jesus!" Respirou fundo e, fechando os olhos, recuperou um pouco da compostura. "Isto é um escândalo!", exclamou por fim. "Um escândalo!"

"O quê? O que é um escândalo?"

Joana fez um gesto com a mão na direcção do outro lado do Rossio. Os rostos voltaram-se para lá e todos perceberam que havia ali uma outra esplanade, esta diante do Café Nicola. Olharam todos excepto a própria Joana, que apontava sem voltar o rosto, como se o que tivesse visto fosse demasiado horrível, demasiado obsceno para se atrever a observar de novo.

"Aquilo! Aquilo!"

Os olhos colaram-se à esplanade do Nicola, perscrutando-a à procura de mais alguma anormalidade.

"O quê?"

"Aquelas... mulheres", soltou Joana, quase com nojo, ainda sem olhar. "Vocês não vêem?"

Acompanhando o olhar do grupo, o capitão lobrigou, de facto, duas mulheres sentadas à mesa.

Observou-as melhor e a boca abriu-se-lhe; inclinou a cabeça para a frente e ficou de olhos esbugalhados, vendo e não acreditando.

"Co's diabos!", foi tudo o que conseguiu balbuciar durante momentos.

Amélia pestanejou, atordoada quando enxergou finalmente o que escandalizara a irmã.

"Valha-me Deus!", exclamou com estupefacção. "Vocês já viram aquilo?"

O capitão, ainda embasbacado, abanou afirmativamente a cabeça.

"Estou a ver, estou a ver."

"É incrível, não é?"

Branco voltou-se para Pires e deu com o amigo a mirá-lo com um sorriso malicioso, como se o maior espectáculo não fossem aquelas poucas-vergonhas, mas o choque de quem as via.

"Ó Pires, quem são estas mulheres?"

"Refugiadas."

"E são todas assim?"

"Todas."

"Andam sem chapéu?"

"Andam. Mostram a cabeça todinha. Até têm o cabelo solto."

"Caramba! E sentam-se sozinhas? Assim? Sem ao menos estarem acompanhadas por um cavalheiro?"

"Sim."

"Minha Nossa Senhora!" O capitão observou uma delas a levar um objecto fumegante à boca e quase ficou sem palavras. "Ora esta!", acabou por exclamar. "Elas fumam? As mulheres agora fumam?"

"Fumam, pois."

"Mas assim parecem homens..."

Pires encolheu os ombros.

"Isto faz espécie a toda a gente, mas elas andam assim, o que quer que lhe faça?"

O capitão abanou a cabeça, uma expressão desaprovadora no rosto.

"Está tudo perdido!"

"A princípio custa mais, é verdade", assentiu o amigo. "Mas com o tempo vamo-nos habituando..."

Joana atreveu-se a espreitar outra vez mas depressa tapou a cara, ainda mais horrorizada.

"Ai as pernas, Jesus!"

Branco procurou as pernas das estrangeiras e arregalou de novo os olhos, absolutamente incrédulo.

"Mas... mas elas não usam meias!"

"Pois não", confirmou Pires com o mesmo sorriso a bailar-lhe nos lábios. "A malta toda já reparou." Apontou para um grupo de homens portugueses que se aglomeravam em torno de um dos bancos do Rossio, todos eles de olhos sôfregos voltados para a esplanade do Nicola. "Olhe, está a ver aqueles? Passam o dia todo ali, a apreciar as pernas das estrangeiras. Então quando elas cruzam o pernil, ui!, fazem um alarido que só visto. Até batem palmas!"

"E imoral!", vociferou Joana, abanando a cabeça com incontida indignação. "Isto é imoral! Uma indecência!" Benzeu-se. "Se o padre Abreu visse isto, se ele visse a pouca-vergonha que para aqui vai, ele... ele... olhem, nem sei o que diria! Mas havia de dizer alguma coisa!" Arregalou os olhos.

"Muitas coisas! E das boas!"

Pires esfregou as mãos.

"Bem, é para que vejam como isto está." Fez um gesto largo que abarcou toda a esplanade. "E se aqui é assim, então nem queiram saber o que vai nas praias..."

"Nas praias?", quis saber Branco.

"Sim, nas praias. Aquilo no Estoril é uma verdadeira escandaleira. Você sabe lá! Vêem-se homens a andar de tronco nu na areia!"

"O quê?"

"Sim, sim. De tronco nu, digo-lhe eu!"

O capitão abanou de novo a cabeça; cada novidade lhe parecia ainda mais chocante do que a anterior.

"Onde isto vai parar..."

"E as mulheres?" Pires agitou a mão com violência. "Olé, as mulheres!"

"O que têm elas?"

"O que têm elas?", riu-se de novo o amigo. "Olhe, as estrangeiras andam com maillots que nem me atrevo a descrever. Para que tenha uma ideia, basta dizer que essas moças exibem as pernas até quase ao ventre." Mostrou com a mão todas as partes das pernas que ficavam a descoberto. "Vêem-se-lhes as coxas todas!"

"O quê? Isso é permitido?"

"Sei lá!", riu-se Pires. "Eu pensava que não, mas eles e elas andam assim..."

"Uma pouca-vergonha", insistiu Joana, sempre a abanar a cabeça com ar reprovador.

"Isto é realmente um bocado de mais", comentou Amélia, incapaz de tirar os olhos das duas mulheres sentadas na esplanada a fumar. "Mas se calhar é o progresso, o futuro..."

Joana mirou-a com expressão indignada.


"Ó Amélia! Como podes dizer isso? Valha-me Deus!"

Lá atrás, José pediu colo a Beatriz. A criada ergueu-o e o pequeno contemplou a esplanada, tentando perceber a causa de tanto burburinho entre os pais e de tantas risadinhas e comentários dos irmãos mais velhos. Mas nada descobriu de relevante, apenas gente sentada às mesas, por baixo de vastas sombrinhas, a beber um café, a trincar um pastel ou a saborear um cálice de whisky num dia de sol prazenteiro.Até o próprio capitão Branco, que conhecia bem Lisboa dos seus tempos da Escola de Guerra, se mostrou surpreendido com as mudanças que descobriu após palmilhar as ruas nos primeiros grandes passeios pela cidade.

Por toda a parte via construções e projectos a serem lançados; construíam-se pontes, estradas, viadutos, escolas, tribunais, hospitais, bairros sociais e cadeias. Pires começou por levá-los a ver a grande colina de Monsanto, obra que pelos vistos o enchia de orgulho. O espaço para além do vale, quase careca, fora coberto de árvores minúsculas, plantadas pouco tempo antes por ordens do governo.

"Vai nascer aqui uma grande floresta", anunciou o anfitrião, os olhos sonhadores presos à colina.

Mas a atenção de Mário Branco desviara-se para a imagem mais prosaica dos trabalhos que decorriam mesmo ali ao lado.

"E aquilo o que é? Uma ponte para a floresta?"

"Um viaduto", esclareceu Pires. "Vai ligar a cidade a Monsanto. O plano é abrir uma auto-estrada por aí fora, igual àquelas que o senhor Hitler mandou construir lá na Alemanha."O capitão assobiou, impressionado.

"Uma auto-estrada?", exclamou com admiração. "Chegou o progresso, não há dúvida!"

"E sabe o que o viajante vai encontrar no final desta auto-estrada?", perguntou Pires, sempre empolgado. "Um grandioso stadium de estilo helénico! Embora daqui não se veja, esses trabalhos também já começaram. Fui lá espreitar há duas semanas e aquilo vai de vento em popa! Olaré, uma maravilha! O nosso stadium vai fazer o Stadium Olímpico de Berlim parecer uma reles arena de touros!"

A capital dava ares de um imenso estaleiro, o que deveras impressionou os visitantes. Depois de Monsanto fizeram uma grande volta por Lisboa e por toda a parte avistaram construção civil a laborar. O Instituto Superior Técnico, quase pronto, era uma obra monumental, por todos gabada, tal como a magnífica fonte que decorava a Alameda Afonso Henriques. Na zona da Portela era construído, imagine-se, um aeroporto, coisa única, própria de país avançado, prova inequívoca de que Portugal trilhava com abnegação a senda do progresso. O Parque Eduardo VII começava a ser ajardinado e Pires insistia que ia ficar "uma beleza". O cicerone do grupo revelou-lhes que havia até planos para erguer um enorme hospital nuns baldios para lá da Praça de Espanha.

"No projecto chamam-lhe Santa Maria", esclareceu. "Mas pode ser que ainda lhe mudem o nome, nunca se sabe."

Todo este progresso se afigurava esmagador a quem acabava de chegar da minúscula Penafiel, mas havia alguns pormenores bizarros que acharam hilariantes. No cruzamento da Avenida da Liberdade com a Rua Alexandre Herculano, por exemplo, depararam com um poste que mudava de cores e tudo, coisa engraçada que a todos divertiu; o mais caricato é que os carros e as bicicletas lhe obedeciam como se estivessem diante de um polícia.

"Chama-se semáforo!", exclamou Pires com tal orgulho que se diria ser ele o inventor de tão cómico dispositivo eléctrico. "É o primeiro do país." Ergueu a mão com a eloquência de um oráculo a anunciar o futuro. "Mais virão, meus amigos. Mais virão!"

Outra grande emoção foi o Elevador de Santa Justa. Sempre que tinham de voltar para a casa do Pires em Campolide faziam um desvio e, por dois tostões, compravam os bilhetes que lhes permitiam subir ao topo e apreciar Lisboa ao pôr do Sol.

Mas havia mais.

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"O regime até tem planos, veja-se bem, para a maior obra de todas", anunciou o Pires. "Uma grande ponte sobre o Tejo."

A revelação a todos surpreendeu. Bem vistas as coisas, o projecto só podia ser ambição de sonhadores e poetas, utopistas que viviam no mundo da fantasia; era lá possível erguer uma ponte sobre tão grande estuário?

O pasmo percorria o rosto de cada adulto do grupo, e mesmo das crianças mais velhas, mas todos sabiam que o melhor daquele magnífico passeio ainda estava para vir. A grande exposição.

Os quatro guerreiros gigantes protegiam a entrada com o seu ar de sentinelas atentas, os dois pares de espada para baixo, escudo ao peito, cota de malha a descer pelo corpo e capacete enterrado até aos olhos. Tratava-se de reproduções enormes, em relevo, de um grande combatente medieval multiplicado por quatro. As figuras gémeas, alinhadas em colunas, guardavam com rigoroso zelo a Porta dos Cavaleiros, a majestosa passagem por onde se acedia à exposição.

"Quem são aqueles, pai?", quis saber José, apontando para os enormes guerreiros a crescer diante dele.

"E D. Afonso Henriques", revelou o capitão com ar paternal. "Foi o primeiro rei de Portugal, o homem que criou o nosso país, em 1140, faz agora oitocentos anos." Esboçou um gesto circular, englobando toda a entrada. "E por isso que esta porta, chamada dos Cavaleiros, também é conhecida por Porta da Fundação."

Compraram os bilhetes e cruzaram a Porta dos Cavaleiros justamente no ponto onde começava a recém-construída marginal para Cascais. Entraram no recinto da Exposição do Mundo Português e admiraram o arranjo ordeiro do complexo, a pureza das linhas, a elegância dos monumentos, a majestade da arquitectura, tudo tão perfeito e tão sólido que nada parecia erguido em estafe e gesso. Uma animada música de fundo ecoava por todo o perímetro; era uma ópera italiana, composição épica que tudo engrandecia.

Em frente, à esquerda, ancorada na marina, balouçava uma grande caravela, colorida, de varandas trabalhadas e alegres bandeiras a dançar em todos os mastros.

"Oh, que graça!", comentou Amélia. "É a Nau Portugal."

"Pois", hesitou o capitão, consultando a brochura que adquirira à entrada. "Chama-se Nau de São Vicente."

"Vamos lááá!", pedinchou o Zezinho. "Vaaamos!"

"Siiim!", concordaram os irmãos, num coro desafinado, dando saltinhos de excitação. "Vamos!"

Mário Branco leu a brochura com atenção.

"Ó meninos, a nau tem lá um restaurante." Levantou a cabeça e mirou os filhos. "Ainda é cedo para comermos, não acham? Vamos mas é dar uma voltinha por aqui e depois voltamos à nau, está bem?"

Não foi uma decisão popular; no fim de contas a Nau Portugal era a grande atracção da pequenada, mas pai era pai e capitão era capitão, pelo que ninguém se atreveu a contestar a ideia.

Admiraram à esquerda o Pavilhão da Formação e Conquista, com a curiosa Esfera dos Descobrimentos na esquina, e avançaram pela grande avenida, contemplando a nau e o Padrão das Descobertas do lado do rio, enquanto o outro lado se abria para a grande Praça do Império, com o seu jardim geométrico e magníficos repuxos de água, o belo rendilhado da longa fachada do Mosteiro dos Jerónimos a prolongar-se lá ao fundo.


"Finalmente Lisboa abraça o rio", comentou o capitão. "Já era hora!"

"O que queres dizer com isso?", quis saber Amélia.

"No meu tempo, quando andei aqui na Escola de Guerra, a cidade vivia de costas voltadas para o Tejo. Cresceu em todas as direcções de forma caótica e sempre a ignorar o rio." Apontou para o espelho azul cintilante que se estendia até à faixa de terra na margem longínqua. "Mas agora não.

Lisboa voltou-se enfim para o Tejo."

Ao fundo da avenida entretiveram-se a apreciar as Diversões Náuticas dentro da marina e depois foram passear pelo emaranhado das Aldeias Portuguesas. Contornaram o posto de informações e percorreram a Praça do Império até ao Pavilhão dos Portugueses no Mundo, onde, junto à grande estátua da Soberania, viraram à direita e passaram diante da fachada dos Jerónimos, o capitão à frente, a acelerar o passo com a autoridade de quem comanda um regimento.

"Vamos rápido, vamos rápido!"

"O homem, valha-me Deus", protestou Amélia, já afogueada de tanto caminhar. "Porquê tanta pressa?"

"Quero levar-vos a ver uma coisa que vos vai espantar."

"O quê?"

"Vou mostrar-vos África."

Caminharam entre a Porta Sul dos Jerónimos e o Pavilhão da Honra e de Lisboa e entraram enfim na Secção de Etnografia Colonial. Toda a área ultramarina havia sido erguida ao longo do Jardim Colonial e separada por secções. Passaram pela índia, caracterizada pelos aromas fortes de Goa, e cruzaram o pavilhão de Macau, abrilhantado por uma curiosa rua cheia de tabuletas com caracteres chineses que a todos divertiu.

"Olha, diz ali Alfaiataria Chan Cheong", riu-se António, o mais velho dos irmãos.

"E aquela?", perguntou Mana, apontando para outra tabuleta. "Que palavras tão esquisitas!"

A tabuleta assinalava o Iat Ut Seng e dizia que a loja vendia artigos de electricidade.

"Diabo de nomes!"

Desembocaram por fim no grande Pavilhão de Angola e Moçambique, protegido por dois hipopótamos que ladeavam a escadaria. Ao fundo viam-se umas palhotas e uma multidão curiosa formigava em torno delas.

Aproximaram-se do local e logo o capitão exclamou:

"Estão a ver? Estão a ver? Eu não vos dizia?"

Amélia e Joana abriram a boca de espanto quando espreitaram entre os ombros e as cabeças das pessoas que se acotovelavam em frente, e o mesmo aconteceu com a criada e as crianças.

"Credo!", exclamou Joana, horrorizada. "Ai Jesus!"

"Ora esta!", concordou a irmã. "Realmente, se eu não visse não acreditava!"

António, o mais velho dos filhos, lançou ao capitão um olhar receoso.

"Ó pai, eles comem a gente?"

"Não, que disparate!"

"Comem, comem!", insistiu Lourdes. "Comem que eu sei!"

"Não comem nada."

E ali ficaram todos, embasbacados, num misto de repulsa e fascínio, a contemplar o espectáculo que se desenrolava diante deles, a mirar aquela extraordinária atracção: um homem de tronco nu e tanga e pele escura como carvão, os cabelos encaracolados e o olhar enfastiado, sentado diante da palhota como se estivesse encarcerado numa jaula. Se era homem ou besta ninguém tinha realmente a certeza, o assunto estava aberto a discussão, mas o facto era que ali não passava de uma bizarria exibida em número de circo, apontado a dedo e motivo de grande espanto. Sucediam-se os "ah!" e os "oh!", exclamações que denunciavam o mais absoluto dos pasmos. Todos o viam e cada um o comentava.

Menos o mais pequeno dos espectadores.

"Beatriz! Beatriz!"

A criada, passado o torpor do primeiro impacto provocado pela espantosa cena, reparou no apelo do protegido, de braços erguidos como se pedisse colo, e inclinou-se para o ajudar.

"Anda cá, Zezinho."

Beatriz pegou em José e elevou-o para a posição mais alta que pôde, tão elevada que o pequerrucho conseguiu espreitar por entre o mar de cabeças e enxergar o fenómeno que todos admiravam; era realmente coisa única, prodígio da natureza, visão de assombrar.

"Olha", admirou-se o pequeno. "Um preto." •

Foi o primeiro que viu na vida.Puxado pela mão firme da mãe, José desceu a rua calcetada até à Igreja da Misericórdia, corria uma aragem gelada na manhã cinzenta de Outubro de 1943. Diante da Farmácia Oliveira aglomerava-se uma pequena multidão, barulhenta mas tranquila, e foi entre o magote de pessoas que mãe e filho passaram, esgueirando-se pela apertada e concorrida porta de um anexo ao lado da farmácia.

José galgou as escadas encostado à parede, a custo, esforçando-se por acompanhar a mãe.

Ultrapassaram os muitos homens e poucas mulheres que aguardavam nos degraus, pacientes, todos em fila à espera da sua vez de chegarem ao topo. Um cheiro azedo a vinho e urina seca impregnava as roupas imundas daquelas gentes do povo, eles com chapéus escuros e a barba por fazer, elas de lenços pretos na cabeça e saias largas até aos pés.

Ainda atrás da mãe, o pequeno alcançou o cimo da escadaria e entrou na sala.

"O seguinte!", chamou uma voz familiar.

Era o pai.O capitão encontrava-se sentado a uma velha secretária no centro da sala, no anexo instalado mesmo por cima da Farmácia Oliveira. Estavam na sede da Comissão de Racionamento de Penafiel, que Mário Branco chefiava, e José observou o pai a distribuir senhas à população, fardado a rigor e ajudado por uma ordenança que controlava a fila.

Uma mulher de idade, curvada e amparada numa bengala, aguardava sob a ombreira da porta e avançou quando o oficial chamou pela pessoa seguinte. Branco reconheceu Amélia e o filho e fez sinal com a cabeça de que esperassem; atendeu a idosa, assentou uma informação num caderno coberto de nomes, a lista de todos os que tinham direito às senhas de racionamento, e entregou-lhe as almejadas folhinhas de papel colorido. Quando a velhota se retirou, fez um gesto com a mão na direcção da mulher, pedindo-lhe que se aproximasse.

"O que é, minha querida?", sussurrou, levemente agastado por ver o trabalho interrompido pela família. Detestava misturas entre as funções militares e as questões domésticas. "Passa-se alguma coisa?"

"Passa, passa!", protestou Amélia. "Muita coisa."

"Então?"

"Então não temos açúcar, não temos arroz, não temos leite, não temos manteiga, não temos pão, não temos azeite, não temos..."

"Sim, querida, já sei", interrompeu o capitão com paciência, mantendo a voz baixa para não ser escutado pelos que aguardavam na fila. "E o que queres que te faça?"

Amélia fez um ar espantado.

"O que quero que faças? Ora essa!" Apontou para o filho mais novo. "Estás a ver aqui o Zezinho? Estás a ver? Anda escanzelado que nem um palito, coitadinho! Olha para ele! Olha!


Parece um cabrito esfaimado."

O capitão olhou, toda a gente olhou, e José encolheu-se, envergonhado por ser assim exibido em público, um vulgar bezerro exposto à devassa alheia.

"O Zezinho está magro, eu sei", admitiu Mário Branco, voltando a atenção para a mulher. "Mas nos dias que correm anda toda a gente magra, querida. Os tempos são difíceis, a Intendência Geral dos Abastecimentos faz o que pode, mas a verdade é que a guerra provocou esta carência de bens e não temos maneira de resolver o problema!"

"Eu não quero cá saber de coisas! O que sei é que falta comida lá em casa!"

"Faltam coisas, bem sei. Mas olha que estamos melhor do que a maioria das pessoas, uma vez que temos duas quintas."

"Ora, isso só dá vinho, repolhos e hortaliças! Eu estou a falar de bens variados! Eu estou a falar de..."

"Sim, já percebi", retorquiu o capitão. Encolheu os ombros, com uma expressão impotente. "Mas o que queres que te faça? Diz-me!"

Amélia fez um gesto largo com as mãos, girando-as em redor de modo a abarcar toda a sala da sede da Comissão de Racionamento.

"Homessa! Então não és tu aqui o chefe desta chafarica?"

"Sim..."

"Então resolve tu isso!"

"Resolvo como?"

A mulher inclinou-se para a frente, de modo a poder baixar a voz e ser na mesma escutada pelo marido.

"Ora!", sussurrou. "Dá mais senhas à família!"

Mário Branco revirou os olhos e suspirou, dominando a irritação.

"Ó querida, já te expliquei mais de mil vezes que não posso fazer isso! Nós recebemos aqui uma determinada quantidade de alimentos e produtos racionados e eles têm de chegar para toda a gente. Se eu puser mais senhas para a nossa família, estou a retirar senhas a outras famílias, estás a perceber? Achas isso bem? Achas?"

"Mas não és tu o chefe disto?"

"Sou."

"Então faz o que tens a fazer!", insistiu, sempre a sussurrar para não ser escutada pelas pessoas que faziam fila à porta. "Dá mais senhas à tua família!"

"Mas eu estou a dizer-te que não posso fazer isso! Teria de tirar senhas a outras famílias!"

"És mesmo ingénuo!", exclamou Amélia com a expressão de uma mãe a repreender o filho que deixa que os outros lhe bam à frente. "Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é tolo ou não tem arte."

"Não me venhas com provérbios!"

"Não são provérbios, é a verdade!", murmurou com intensidade, exasperada. "Então não sabes que há para aí muito chefe de serviços de racionamento que guarda sempre um pouco mais para si e para a sua família?" Ergueu o indicador de modo peremptório. "E, se queres que te diga, fazem eles muito bem!"

"Isso não sei e não ligo a conversa de pacóvios. O que sei é que tenho os meus deveres e cumpro-os o melhor que posso."

A mulher fez um trejeito nervoso.

"Olha lá, então de que serve seres o chefe desta coisa?"

"Bem... é o meu trabalho..."


Amélia ergueu a voz, a exasperação no limite.

"O teu trabalho? A tua família passa fome e tu, que és pai de filhos e meu marido, preferes dar alimentos aos outros? Então e nós?"

"Mas nós temos tanta comida como os outros, querida. Nem mais nem menos! Temos o mesmo que os outros."

"És um somítico! Vês-nos a passar fome e só nos dás a porcaria de umas senhas que quase não servem para nada! Irra!"

O capitão cerrou os olhos e esperou um instante até responder. Uma nova transformação havia-se operado na mulher e dava-lhe a impressão que Amélia não lhe poderia dar mais surpresas.

Parecia-lhe uma rapariga triste quando se tinham casado, depois ficara alegre, mais tarde distante, depois prostrada, a seguir tornara-se uma beata e nesse momento, com a guerra e o seu infindável desfile de dificuldades, transformara-se numa guerreira. E em nada era moderada.

"Amélia", disse por fim, a voz de trovão a denunciar uma falsa calma. "Vai imediatamente para casa! Falamos depois." Virou o rosto para a porta, dando a conversa por terminada. "O seguinte!"

"Mas isto não..."

"O seguinte!", trovejou Mário Branco ainda mais alto, ignorando ostensivamente a mulher.

Não eram dias fáceis para o capitão Branco.

O oficial, chamado da reserva quatro anos antes para preparar planos de contingência para a eventualidade de serem decretados racionamentos, não dispunha de um minuto de descanso na gestão dos parcos recursos alimentares postos à sua disposição para distribuir por toda a população de Penafiel. Quando regressou ao activo, em 1939, o coronel Silvério nomeou-o segundo comandante do regimento; era o mínimo que poderia fazer por um oficial tão prestigiado, que servira o país e se mantivera tão firme na defesa da honra do exército durante os delicados primeiros meses da guerra de Espanha.

Mário Branco começou por fazer um recenseamento da população da cidade, tarefa que lhe consumiu muito tempo e energia, mas, quando terminou a empreitada, os racionamentos não tinham ainda sido decretados. A verdade é que o regime resistiu o mais que pôde à decisão de os instaurar, apesar da permanente deterioração das condições de vida. O país dependia em grande parte das nações beligerantes para o abastecimento de matérias-primas e outros produtos essenciais, e a situação foi agravada quando os Aliados decretaram um bloqueio comercial a Portugal. A medida constituiu uma retaliação pela decisão tomada pelo governo de manter a mais estrita neutralidade, tratando as duas partes em conflito da mesma maneira e mantendo vínculos comerciais intensos com a Alemanha. Os Aliados queriam a neutralidade portuguesa, mas achavam que ela lhes devia ser benéfica, e, como isso nem sempre acontecia, fecharam a torneira ao país.

Os produtos começaram a faltar. Faltavam bens e os que havia eram demasiado caros, inacessíveis à generalidade da população; nas cidades e no campo, a fome espalhou-se, insidiosa primeiro, ostensiva depois. Os salários foram congelados para travar a inflação, mas isso não resolveu o problema da carência de bens de consumo. Surgiram protestos de rua, e depois greves, por fim revoltas de camponeses.

Foi então que Salazar decretou os racionamentos.

"É a única maneira de fazer com que haja produtos para todos", explicou o coronel Silvério quando chamou Mário Branco para que activasse a Comissão de Racionamento de Penafiel. "Se não houver racionamento, só os que têm dinheiro é que podem comprar comida."

Mas o capitão Branco não precisava de explicações; conhecia muito bem a situação e só se admirava por a ordem ter levado tanto tempo a chegar. Logo que saiu do gabinete do seu superior hierárquico foi buscar o livrinho do recenseamento e chamou uma ordenança. Em apenas alguns dias conseguiu actualizar a lista de recenseamento e instalar a sede da comissão no anexo por cima da Farmácia Oliveira. O trabalho foi completado com tal presteza que, no momento em que recebeu as primeiras senhas para distribuição, a comissão já se encontrava pronta para iniciar as operações.

Os pedidos para "facilitar" as coisas multiplicaram-se, sobretudo os que vinham das famílias mais abastadas da cidade, levando o chefe da comissão de racionamento a repetir à exaustão a mesma frase:

"Aqui não há cunhas!"

Que o marido não facilitava nas cunhas já o percebera Amélia. Pois se nem a própria família conseguia de Mário Branco mais senhas, quem o conseguiria?

Enervada com a intransigência do marido, Amélia desceu as escadarias da comissão consumida por um sentimento de revolta irreprimível. Trazia o pequeno José pelo braço, mas era como se o tivesse esquecido, o corpo todo ele um motim, a mente atormentada pelo problema de arranjar bens que alimentassem a família.

"Onde é que já se viu isto?", resmungava Amélia para si mesma, absorta no problema que não via como resolver. "Nem à própria família! Nem à própria família!"

Sempre a arrastar o filho, só despertou para o presente no momento em que, percorrendo a rua até à zona do tribunal, entrou na mercearia do Pacheco e se plantou na fila. Tinha três pessoas à frente. Suspirou com impaciência, mas fez um esforço para se acalmar. Desde que, meses antes, se apercebera de que havia menos comida no prato dos filhos que havia abandonado o mundo de missas, eucaristias e sacramentos onde se refugiara. Ainda sentia uma dor dilacerar-lhe o peito sempre que a mente lhe revolvia o passado, mas o luto por tudo o que perdera estava feito e percebeu que chegara a hora de reagir.

Enquanto deambulava pelos caminhos que a sua vida tomara, meteu a mão no bolso esquerdo e extraiu as três senhas que ainda lhe restavam do conjunto semanal a que tinha direito. Eram pequenos papéis rectangulares, picotados no derradeiro quinto para que fosse possível guardar um talão comprovativo do seu uso; pelo meio ostentavam, em maiúsculas e a negro carregado, o nome do produto a que se destinavam.

Uma das senhas que retirou do bolso dizia "batata", a segunda assinalava "carvão, lenha e petróleo" e a terceira "manteiga, queijo e outros lacticínios". Franziu o sobrolho. Tinha ideia de que lhe restava ainda uma senha que lhe dava direito a algo bem melhor. Vasculhou o bolso esquerdo, mas nada encontrou. Depois procurou no bolso direito, novamente sem sucesso. Abriu a mala de mão e esquadrinhou o interior até sentir um papelinho roçar-lhe os dedos.

"Ah!", exclamou em triunfo. "Está aqui o malvado!..."

"O que é, mãe?"

A vozinha relembrou a Amélia a presença do filho. Passou- -lhe a mão pelo cabelo, tranquilizadora.

"Não é nada, Zé. Era eu que andava à procura disto."

Extraiu da malinha de mão um talãozinho pequeno. Mostrou-o ao filho e depois virou-o para si mesma. Sentiu um baque. O talão não dizia o que ela esperava. O papelinho registava simplesmente "carta de racionamento de sabão".

"Meu Deus!"

Alarmada, quase em pânico perante a possibilidade de ter perdido o talão mais precioso de todos, procurou de novo na mala, revolveu o interior até roçar com os dedos num novo papel.


Extraiu-o com um movimento brusco, sôfrego até, e devorou com os olhos a referência ao produto a que tinha direito. "Bacalhau." Suspirou de alívio e sentiu um peso soltar-se-lhe do peito. Nesse domingo teriam direito a mais do que a habitual dieta de batatas com vegetais.

A fila entretanto ia avançando e Amélia constatou que só restava um cliente à sua frente. Voltou a passar os olhos pelas senhas e espreitou os bens guardados a granel nos sacos de serapilheira ou exibidos na vitrina atrás do merceeiro. O Pacheco tinha a melhor mercearia de Penafiel, um estabelecimento sempre bem apetrechado com os mais variados bens, incluindo requintes como bolachas, rebuçados e café do Brasil e de Moçambique, e ainda um espaço com brinquedos para a pequenada.

Mas foi ao ver os preços dos produtos que Amélia sentiu o coração dar mais um salto.

"Virgem Maria!"

"O que foi, mãe?"

Passou de novo a mão pelos cabelos do filho.

"Não é nada, Zezinho. Sou eu que estou a ficar cansada."

O que assustara Amélia fora a escalada de preços que via reflectida no preçário galopante que o merceeiro rabiscara nos sacos de serapilheira e nos produtos daquela vitrina. O custo do quilo de batatas havia duplicado e o da manteiga também. Espreitou para os sacos por baixo do armário e verificou que o mesmo acontecia com a fruta e o peixe. O bacalhau ia sair-lhe caro, constatou com desânimo enquanto afagava o talão correspondente. Outros bens essenciais haviam sofrido um forte aumento, como era o caso do arroz, do açúcar, do sabão e do azeite. Todos estes produtos estavam racionados, o mesmo sucedendo com as massas, os óleos alimentares, o leite, o café, o cacau, o grão, os cereais, o pão, as farinhas...

"O seguinte!"

A voz do merceeiro puxou-a para diante do balcão.

"Bom dia, senhor Pacheco."

"Ora viva, dona Amélia! Estou a ver que hoje trouxe o pequerrucho." Sorriu para José. "Então, pirralho, também vens às compras?"

O pequeno deu um passo em frente e colou-se ao balcão, indicando as senhas que a mãe tinha na mão.

"Hoje é bife do lombo."

O merceeiro soltou uma gargalhada.

"É minorca, mas já tem sentido de humor, hem?"

A freguesa fez uma careta resignada e estendeu as senhas ao merceeiro.

"O meu Zezinho é um brincalhão, senhor Pacheco. Haja alguém que se ria, porque as coisas não andam nada fáceis..."

"Lá isso é verdade."

O merceeiro pegou nas senhas que a cliente lhe entregou e inspeccionou-as. Vinham todas numeradas e carimbadas, como era regulamentar. Além disso, estavam destinadas ao chefe de família, com referência completa a morada, profissão e agregado familiar, mas Pacheco sabia que Amélia dispunha de poderes para levantar os produtos em nome do marido.O dono da mercearia pegou na cesta que a freguesa havia pousado sobre o balcão e voltou-se de costas. Tirou os produtos do armário atrás dele, carimbou o talão picotado, guardando-o como prova de que a senha tinha sido utilizada, e devolveu a cesta à cliente.

"Aqui está, dona Amélia! Dá para um banquete!"

A tensão em casa aumentou ainda mais no dia em que o coronel Silvério chamou Mário Branco ao seu gabinete e lfyp fez um anúncio inesperado.

"Como chefe da comissão de racionamento, o nosso capitão tem direito a uma regalia especial", anunciou-lhe. "Disporá doravante, e enquanto a comissão existir, de um automóvel com motorista."

A novidade colheu o capitão de surpresa.

"Para que preciso eu de automóvel com motorista, meu coronel? De minha casa até ao quartel são uns meros vinte minutos de passeio higiénico. E é menos ainda se caminhar apenas até à sede da comissão."

"E a dignidade do cargo, meu caro. O senhor é agora uma das pessoas mais importantes da cidade e tem de ter tratamento condigno com a sua posição."

O capitão não se mostrou convencido com a regalia, e as suas reticências não constituíam mera encenação, mas uma objecção de facto. Sempre achara que um dos problemas do país era a proliferação de pessoas "importantes" e, talvez por partida do destino, esse estatuto questionável era-lhe agora atribuído em todo o seu esplendor. Porém, se o comandante insistia, quem era ele para o contrariar?

A novidade foi, não com surpresa, bem acolhida pela mulher quando o capitão falou do assunto à mesa, no momento em que já digeria o jantar com o habitual cálice de vinho do Porto.

"Só agora é que nos contas isso?", questionou Amélia, um sorriso de satisfação a desmentir o tom melindrado da pergunta. "Onde está esse carro e esse chauffeur?"

"Vem amanhã buscar-me para me levar para o trabalho."

A mulher rebentava de orgulho. A regalia significava, na prática, que o marido atingia o estatuto até ali reservado ao presidente da câmara e ao comandante do quartel.

"Se queres saber, acho muito bem!", exclamou com incontida satisfação. "Depois de tudo o que te fizeram na altura da guerra de Espanha, já estava na hora de te tratarem com a dignidade a que tens direito!"

O aparecimento do automóvel e do motorista à porta de casa foi um acontecimento digno de ser registado nos anais da história da Rua Zeferino de Oliveira em Penafiel. Logo pela manhã Amélia mandou discretamente Beatriz alertar a vizinhança e deu o pequeno-almoço mais cedo aos filhos.

Sôfregos de excitação, os quatro irmãos engoliram o leite a correr e, ainda não eram seis e meia, plantaram-se na varanda do primeiro andar a espreitar todos os automóveis que passavam diante da casa.

"É este!", exclamou António no instante em que viu o primeiro carro aparecer na rua. "E este!"

"Não é nada, parvo", corrigiu Lourdes. "Este é o do doutor Reis, não vês?"

"E aquele! E aquele!"

As viaturas passavam e, apesar de um fracasso suceder a outro, a expectativa ia aumentando. O

único que se começou a sentir cansado foi o pequeno José, que depressa desviou a atenção para outros pontos da rua. Os vizinhos encheram também as suas varandas, já devidamente alertados por Beatriz e atraídos pela excitação dos pequenos.

O olhar de José caiu então sobre uma rapariguinha de cabelo castanho-claro aos canudos que aparecera à varanda dos vizinhos do lado esquerdo; era magra, com pernas altas e uma expressão traquina no rosto, onde cintilavam dois olhos de um verde-esmeralda refulgente. Deveria ter uns sete anos, como ele. Observou-a fixamente, mas desviou o olhar no momento em que ela o notou, a timidez mais forte do que a curiosidade.

"Ó p'rá'quele! Ó p'rá'quele!"

A atenção de José regressou ao que se passava lá em baixo. Viu os olhares convergirem para um

Ford negro com um soldado ao volante que fazia a curva ali à direita. A viatura reluzia de tão impecavelmente lavada, até os pneus brilhavam. Entrou na rua com um ronronar majestoso e, mesmo em frente, virou para o lado da casa dos Branco e estacionou tranquilamente aos pés dos espectadores.

Levantou-se todo um bruá nas varandas.

A porta de casa abriu-se e o capitão Branco, pálido de embaraço, dirigiu-se em passo lesto para o automóvel, cuja porta traseira havia sido aberta pelo solícito motorista. Uma salva de palmas reverberou pela rua, acompanhada por assobios e vivas, como se o próprio presidente do Conselho ali estivesse de passagem. Amélia acompanhou o marido com a sua melhor fatiota de domingo e fez tenção de entrar pela porta escancarada da viatura quando a mão do capitão a travou.

"Onde vais?", admirou-se Mário Branco.

"Ora", retorquiu ela, esboçando um trejeito de primeira- dama de Penafiel. "Tenho de ir à Pastelaria Brasil."

"Agora?"

"Pois claro! Se tens carro com cbauffeur, temos de usufruir dele, não é verdade?"

O capitão respirou fundo, num esforço para ocultar o ar contrariado. Sentia os olhares dos filhos e da vizinhança pousados neles, um factor de inibição para que tomasse uma atitude mais severa.

A verdade, porém, é que não podia deixar a coisa correr. Olhou para o motorista, que aguardava junto à porta do Ford que ambos entrassem, e indicou o volante.

"Vai andando", ordenou. "Hoje vou a pé."

"Sim, meu capitão!"

O motorista fez continência e meteu-se no automóvel perante o olhar embasbacado de Amélia e a surpresa da multidão que se juntara para testemunhar o grande acontecimento.

"O que estás a fazer?", perguntou a mulher, sem entender o que acontecera. "Porque o mandaste embora?"

O capitão deu-lhe o braço e puxou-a com suavidade, fazendo-lhe sinal de que o acompanhasse.

Forçou um sorriso e começaram a descer a rua de braço dado, obrigando os mirones a abrir alas para os deixarem passar. O oficial aligeirou o passo, a compostura em primeiro lugar, e só quando se sentiu longe dos ouvidos indiscretos abriu a boca.

"O carro que me entregaram é do estado e apenas se destina a funções do estado", murmurou sempre com um sorriso. Podia não ser escutado mas era decerto observado. "Só eu posso andar nele e apenas quando estou de serviço. Se eu for ao clube dos oficiais jogar bilhar, tenho de ir a pé.

Seria um abuso inaceitável usar esta viatura para fins pessoais, entendes?"

"Mas a Pastelaria Brasil fica em caminho", argumentou Amélia. "O carro não consome nem mais um mililitro de gasolina se me levares contigo..."

"O carro é só para deslocações de serviço."

"Levas-me durante essa deslocação de serviço. Vais à sede da comissão e largas-me a meio. O

estado não gasta nem mais um tostão só porque eu também vou lá dentro."

"Não é uma questão de gastar mais ou menos", devolveu o marido num tom quase pedagógico.

"E uma questão de princípio. Trata-se de uma viatura oficial e destina-se exclusivamente a uso oficial. Qualquer outro uso não é uso, é abuso."

"Mas toda a gente usa os carros oficiais para outras coisas, Mário. O presidente da câmara, por exemplo. Ainda no outro dia o vi na..."

"Nós não somos toda a gente, Amélia", cortou o capitão. "Este país não se endireita se não houver pessoas que dêem o exemplo. A liderança exerce-se dando o exemplo."

"Mas quem é que se importa com isso?", protestou Amélia, erguendo um tudo-nada a voz.


"Ninguém! Só tu! Toda a gente que tem carro do estado faz isso. Se tu fizeres, achas que alguém te condena?"

"Não sei se alguém me condenará, mas sei que eu próprio me condenarei e isso chega-me."

"Oh, que tolice!"

A montra da Pastelaria Brasil cintilava já ao fundo da rua, reflectindo a luz límpida do Sol que se erguia sobre os telhados fronteiros. O capitão ajeitou o casaco e o chapéu antes de se voltar de novo para a mulher.

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"Podes dizer o que quiseres, mas o facto é que a viatura que me foi atribuída é do estado e só pode ser usada em funções de estado. A apropriação de meios do estado para fins privados tem nome e esse nome é corrupção. Isso eu não faço."

Desde a famosa manhã do aparecimento do carro de serviço atribuído ao pai que José espreitava amiúde a casa dos vizinhos num esforço de vislumbrar de novo a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhar traquina, embora raramente com sucesso e sempre apenas de fugida. Tentava-o de novo nessa tarde, sentado na varanda a espreitar a casa vizinha, quando viu o Ford negro estacionar diante de casa, como se tornara habitual àquela hora, e o pai sair do interior e ir buscar à bagageira um pneu de automóvel.

A visão encheu-o de espanto e curiosidade, pelo que se pôs de pé num salto e se meteu de imediato em casa. Foi a correr até à cozinha, onde encontrou à volta do fogão a mãe e a tia Joana mais Beatriz e a sua irmã Lourdes.

"O pai chegou!", anunciou-lhes.

Como em confirmação, sentiram nesse instante os sons familiares dos passos do homem da casa a galgar as escadas e a calcorrear o soalho da sala de jantar, até que assomou à porta da cozinha e exibiu com ar matreiro o troféu que trazia debaixo do braço.

"Ora vejam lá isto!", exclamou o capitão, erguendo o pneu. "Adivinhem o que é."

Olharam as três mulheres e os dois pequenos para o grande objecto circular de borracha, já velho e gasto.

"Isso é um pneu", constatou Amélia, com o trejeito característico de quem acabou de expor uma evidência. "Ainda por cima imundo. Tira-o daqui!"

O marido riu-se.

"Que isto é um pneu já eu sei", disse, ignorando a ordem. "Mas adivinhem para que serve."

"Ora!", exclamou a mulher, abanando a cabeça e voltando as costas, mais preocupada com a panela ao lume. "Tens cada uma! Para que serve um pneu?"

"Diz lá", insistiu o capitão, fixando a nuca de Amélia.

"Para pôr nas rodas", devolveu ela, encolhendo os ombros. "Ora esta!"

"Pois estás enganada."

A mulher voltou a cabeça.

"Ai um pneu não serve para pôr nas rodas?"

"Não este pneu."

"Ai não? Então serve para quê?"

O capitão pegou na borracha preta, torceu-a e exibiu a câmara-de-ar escondida no interior.

"Quem quer azeite?", perguntou, dirigindo-se a todos os que o observavam na cozinha. "Quem quer azeitinho bom de Alfândega da Fé?"

"Azeite?" Inclinaram-se todas para o pneu, analisando a câmara-de-ar. "Qual azeite?"

"Estão a ver isto?", disse o capitão, apontando para as manchas de gordura no interior do pneu.

"Foi aqui dentro que os traficantes esconderam o azeite para vender no mercado negro. Na câmara-de-ar." Ergueu o sobrolho e sorriu. "Hã? Gente danada para a vigarice, não é?"

O pneu alimentou a conversa durante uma semana. A história espalhou-se por toda a parte e tornou-se uma admiração. "Vejam lá a imaginação desta gente!", dizia-se. Fizeram-se nas casas e pela cidade piadas e graçolas em torno dos "azeiteiros dos pneus", com profusos comentários à

"propensão para a aldrabice", episódio tão caricato que muitos serões alimentou de gargalhadas.

O capitão Branco, porém, sabia que o sucedido era o sintoma de um mal mais profundo. Com a guerra a apertar e a economia estrangulada, o país dava sinais inequívocos de asfixia.A infância de José Branco, em particular a idade crucial entre os três e os nove anos, foi passada em economia de guerra e vivida debaixo da severa austeridade que marcava os tempos.

Como qualquer criança que tudo encara com normalidade, o pequeno habituou-se ao rigor e à frugalidade deste período. Frequentava a Escola Primária Conde Ferreira, mesmo ao lado do quartel, onde o material era poupado até ao último pedaço. Para não gastar lápis nem papel os alunos rabiscavam as ardósias, a que chamavam "lousas", a giz. Foi o tempo em que José chegava a casa com as mãos secas e o pó branco entranhado nas unhas e nos dedos; tirá-lo no Inverno, com as mãos inchadas de frieiras e usando água gelada, revelou-se uma tortura diária.

Mas o maior suplício em casa eram as refeições à base de produtos alternativos. Como os bens alimentares escasseavam, cozinhava-se com barras brancas que vinham de África e que o merceeiro Pacheco pomposamente anunciava como "gordura de coco". Pela manhã, em vez do tradicional chá, comia-se canja. Já o café com leite foi substituído por uma farinha dissolvida em água, feita à base de banana e cacau, chamada "banacau"."Porcaria!"

José odiava o banacau. Beatriz, a criada sempre zelosa na protecção do mais novo da família, fazia questão de não consumir a sua ração semanal de açúcar. Poupava-a e oferecia-a depois ao seu protegido; sabia que sem açúcar não haveria maneira de o pequeno engolir o maldito banacau. Era com aquela ração poupada com tanto sacrifício pela jovem empregada que José conseguia adocicar a dose diária da estranha bebida.

A vida em Penafiel decorria numa pacatez assustada, pautada pelo ritmo austero e severo de um país voltado sobre si mesmo, transformado numa ilha triste e temerosa, intimidada pelo mar revoltoso do mundo. O ciclo de vida na pequena povoação duriense era marcado pelas intermináveis filas diárias diante da comissão de racionamento e pelo toque tranquilizador dos sinos das suas inúmeras igrejas; a todas as horas soava nas múltiplas torres espalhadas pela cidade um concerto desafinado de chocalhos, mas as batidas mais sonoras vinham do imponente santuário do Sameiro, afinal a igreja mais próxima de casa e aquela onde os Branco se habituaram a comungar.

Os domingos fizeram-se em Penafiel para celebrar missa. Estivesse frio ou chovesse sem interrupção, podia até o vento uivar e arrancar árvores pela raiz, nada disso importava porque Amélia obrigava toda a família a sair de casa com as suas melhores roupas e a abalar monte acima, na direcção da grandiosa estrutura da Igreja do Sameiro.

José assistia às homilias sem entusiasmo; tudo aquilo lhe parecia aborrecido e cansativo, uma interminável lengalenga incompreensível, criada com o objectivo exclusivo de lhe arruinar os domingos. Nos Invernos sentia os pés doerem-lhe com o frio exalado pelo piso duro do templo; era como se o chão de pedra fosse constituído por enormes blocos de gelo, húmidos e glaciais.

A coisa tornou-se, porém, mais interessante quando certo domingo vislumbrou numa das filas do meio da igreja a rapariguinha do cabelo castanho-claro aos canudos e olhos ver- de-esmeralda.

A partir daí as missas passaram a ser um ponto alto da semana, em particular quando as homilias acabavam e os fiéis começavam a dispersar. José recorria então aos mais variados pretextos para se afastar apressadamente da família e descer até casa sozinho, mantendo sempre a jovem vizinha debaixo de olho como um caçador no encalço da presa.

"Ó coiso!", chamou ela inesperadamente ao terceiro domingo, cravando os olhos no seu perseguidor. "Estás a seguir-me ou quê?"

Fora apanhado. O pior era que a interpelação lhe soara a acusação e José, enfim desmascarado, vacilou, indeciso entre responder e fugir. A cautela e um certo atrevimento acabaram por vencer.

"Não", devolveu, fechando o rosto como se se preparasse para o confronto. "Porquê?"

"É que já não é a primeira vez que te vejo a coisar-me no regresso da missa. És o meu vizinho, não és?"

Tinha uma voz de cristal, límpida e delicada, e um sorriso aberto que lhe coloria a palidez láctea do rosto.

"Acho que sim."

"Bem me parecia. Sou a Mimicas."

"Micas?"

A rapariga soltou uma gargalhada sonora e franca.

"Na verdade o meu nome é Mariana, mas desde pequenina, mesmo em África, que todos me coisam por Mimicas."

"Vieste de África?"

"Sim, nasci lá."

A referência às origens da vizinha despertou a curiosidade de José, sempre fascinado pelas coisas exóticas. Examinou a pele da rapariga com cuidado; era nívea, com pelinhos aloirados reluzentes. Tinha lábios finos e os cabelos, não sendo loiros, ostentavam um brilho luzidio que ao sol fazia lembrar a aura de um anjo.

Recuou um passo e contemplou-a, agora com cepticismo, comparando o que via diante dele com as imagens que enchiam os livros da escola e as revistas que consultara lá em casa e ainda com a lembrança do que observara anos antes na passagem memorável pelos pavilhões coloniais da Exposição do Mundo Português.

"Se nasceste em África", perguntou num tom desconfiado, "porque não és preta?"

Como se não bastasse a aventura dos domingos, a tudo se sobrepunha o magno imbróglio da catequese. O pequeno vivia todas as semanas um dilema permanente: tinha de confessar pecados.

Poderá parecer coisa de somenos, mas para José tratava-se de uma questão soberanamente grave, tão complexa que lhe chegava a roubar o sono.

É verdade que no sábado à noite se deitava animado pela alegria de saber que no dia seguinte ia ver Mimicas e talvez conversar com ela no caminho até casa. Achava-a cativante, com o seu divertido linguajar cheio de "coisos" e de "coisares", fruto da sua maneira distraída de falar, e sobretudo com as fascinantes histórias de África. A rapariga contou-lhe que havia nascido no Mindelo, algures no meio do arquipélago de Cabo Verde. O pai morrera numa deslocação à Guiné, vítima de uma doença cujo nome não conseguiu fixar mas que era transmitida por mosquitos, pormenor que não esquecera, e a mãe mandara-a para os tios de Penafiel enquanto reorganizava a sua vida.

"Ele morreu porque não havia médicos no sítio para onde foi", explicou ela.

"Não há médicos na terra dos pretos?"

"Não para onde ele foi."

José ficou a matutar no assunto, impressionado com o que escutara.

"Quando eu for grande vou resolver isso!"


Os passeios com Mimicas revelaram-se apaixonantes. O rapaz metralhava-a com as mais diversas perguntas relacionadas com a vida em África. As pessoas iam à igreja? Fazia-se sport em stadiums? Havia banacau? Os pretos comiam gente? Alguma vez um leão lhe entrara em casa? O

Tarzan existia mesmo?

O fascínio dos domingos era, no entanto, por vezes antecedido pela angústia de certas quintas-feiras. Acontece que a comunhão decorria na primeira sexta-feira de cada mês, pelo que os rapazes eram forçados a confessar-se na véspera. O embaraçoso engulho é que, a maior parte das vezes, não lhe ocorria nenhum pecado que pudesse apresentar com orgulho ao confessor.

Num dia de maior desespero, angustiado pela vergonha que seria apresentar-se diante do pároco sem nada a maculá-lo, aproximou-se do irmão mais velho, que permanecia de joelhos voltados para o altar, e murmurou-lhe ao ouvido:

"António, tenho vergonha de ir lá."

"Ir onde?"

José fez um gesto com a cabeça, indicando o cubículo de madeira à esquerda.

"Ao confessionário."

"Porquê? Qual é o problema?"

O pequeno encolheu os ombros.

"Não tenho pecados nenhuns."

"Não tens?"

"Não."

"Nada de nada?"

"Nada."

O irmão mais velho ponderou o problema. Assim à primeira vista a coisa parecia séria, mas era possível que ao pequerrucho lhe estivesse a falhar uma qualquer escapadela.

"Olha lá, não disseste nenhuma peta?"

"Não."

"Nem desobedeceste à mãe?"

"Uh... não." Hesitou. "Espera, noutro dia o pai mandou-me ir abrir a porta e eu demorei um bocadinho, assim de propósito." Arregalou os olhos, esperançado. "Achas que isso é pecado?"

António reflectiu um instante, mas acabou por fazer uma careta e abanar a cabeça.

"Não, não me parece." Passou a mão pelo cabelo. "Não fizeste mais nada?"

"Não, nada."

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