Nicole soltou uma risadinha comprometida e sacudiu o tronco como se dançasse, abanando os seios opulentos e desprendidos sob o tecido leve do vestido azul.

"Não havia The Beatles a cantar Ali You Need is Love, não havia a pílula, não havia o LSD..."

Sem que José se apercebesse disso, a imaginação escapou do seu controlo e deu por ele a imaginar como seria uma inglesa na cama. Nunca tivera uma estrangeira entre os braços e sentiu a curiosidade espicaçá-lo. Seria envergonhada ou extrovertida? Já era suficientemente experimentado para saber que entre os lençóis não havia duas mulheres iguais. Se era assim com as portuguesas, por que razão haveriam as bifas de ser diferentes? Analisou Nicole e ela não lhe pareceu ingénua. Mas qual a sua atitude perante um homem? Passiva ou activa? Gemeria? Teria facilidade ou dificuldade em alcançar orgasmos? E como seria em relação a...

Abanou a cabeça, num esforço para afugentar aqueles pensamentos. Era um homem casado e os dias de folia haviam terminado quando casara com Mimicas. Mesmo que assim não fosse, raciocinou, nada lhe garantia que a rodesiana se pudesse interessar por ele. Porém, apercebeu-se que era mesmo essa a impressão que Nicole começava a dar-lhe. Desde que se haviam conhecido, no final dessa manhã, que ela não parara de lhe sorrir. Pensou inicialmente que o fazia por mera cortesia ou até traço cultural. E certo que não lhe constava que os Ingleses fossem especialmente sorridentes ou calorosos, mas que conhecia ele desse povo além dos turistas sul-africanos que observara à distância na marginal de Lourenço Marques e dos rodesianos que vira ao longe na praia da Beira?

Agora que se encontravam ali à mesa do Zambe e falava com ela e a observava com mais atenção, apercebia-se de que raros eram os sorrisos que Nicole lançava na direcção de Martins. Fez um esforço de memória e tomou consciência de que a maior parte das perguntas que a rodesiana havia formulado durante a visita ao hospital não haviam sido dirigidas ao director, mas a ele. Ou talvez o tivesse feito porque achasse que José é que era o operacional e teria porventura mais respostas. Se calhar ela apenas sorria por simpatia e ele, tolo, já se pusera a imaginar coisas. O facto, porém, é que a rodesiana divagava sobre os seus antigos namorados portugueses e os homens mediterrânicos e sobre o amor livre dos Beatles e sobre a pílula e as drogas. Onde quereria ela chegar? Seria tudo aquilo inocente?

"Está todo o mundo bancando de silencioso outra"vez", protestou Nicole de novo, desta feita fazendo beicinho. "Ué, que é isso? Não estão gostando da companhia?"

"A companhia é óptima", apressou-se José a esclarecer. "Estamos talvez um pouco cansados..."

A rodesiana sacudiu o cabelo dourado para trás; não era longo, mal tocava os ombros, mas ondulava como seda, aveludado e abundante.

"Ah, compreendo. Isto da barragem significa que vem aí muito trabalho, não é?"

"Ui, nem imagina."

"Estive lendo informação sobre este projecto em Cabora Bassa e há uma coisa que não estou entendendo", disse ela, pensativa. "A barragem fica a uns meros duzentos quilómetros da Zâmbia, país amigo dos terroristas. Quando ela estiver pronta, a energia terá de ser transportada ao longo de oitocentos quilómetros por território moçambicano, o que exige a construção de uns seis mil postes que estarão vulneráveis a sabotagem. Além do mais essa energia mal poderá ser gasta em Moçambique, que não tem produção industrial que a justifique, nem sequer é indispensável para a África do Sul, que dispõe de fontes alternativas. Ou seja, é um investimento caro, não é imprescindível e está cheio de riscos. Por que razão, nestas condições, se vai construir a barragem?"

José e Martins entreolharam-se e riram-se.

"Tem toda a razão!", exclamou o director do hospital.

"Pois tenho. Mas não responderam à minha pergunta. Porque vão construir esta barragem?"

"Por razões políticas", atalhou José. "E só por isso."

Nicole esboçou uma expressão inquisitiva.

"Não estou a perceber. Que razões políticas poderá haver?"

O médico ajeitou os talheres diante dele, mais para ocupar as mãos do que para corrigir a sua disposição na mesa.

"O projecto de Cabora Bassa é uma espécie de ponta de lança da estratégia portuguesa para a guerra", começou por dizer, falando devagar, como se pesasse cada palavra. "O governo espera que o projecto atraia para o distrito de Tete cerca de um milhão de colonos brancos, alterando assim decisivamente toda a demografia da região. Se o Norte de Moçambique tiver muitos brancos, o inimigo terá dificuldade em movimentar-se." Largou os talheres e cravou os olhos na interlocutora.

"Mas o mais importante é que, com este grande investimento internacional, Portugal atrai para o seu lado a alta finança e os interesses do mundo ocidental. Os Estados Unidos têm apoiado os turras, mas terão dificuldade em continuar a fazê-lo se o interesse dos grandes grupos económicos ocidentais estiver do lado português."

"Está dizendo que Cabora Bassa só existe por causa da guerra?"

O empregado aproximou-se da mesa a equilibrar os pratos fumegantes nas mãos. Os comensais inclinaram-se para trás para deixar pousar os pratos, e antes que começassem a comer José deu a resposta.

"Nem mais."

Ao sair do Zambe após o almoço os médicos passaram pela mesa onde se sentavam os dois homens da PIDE e, por cortesia, apresentaram-lhes a sua convidada rodesiana. Aniceto Silva fez uma vénia a Nicole e beijou-lhe a mão, gabando-lhe a beleza com grandes floreados oratórios que arrancaram um sorriso da médica.

"Os homens dos serviços de inteligência sempre foram uns grandes galanteadores", observou ela.


"Serviços de inteligência não", corrigiu o inspector, sempre exigente no bom português. "No sentido dos serviços que presto à nossa causa, a palavra inglesa intelligence traduz-se em português por informação." Inclinou a cabeça, num aparte. "Não é que a inteligência seja despiciente no nosso trabalho, se me é permitido dizê-lo."

"Decerto que sim", assentiu a rodesiana. "Estou segura até que, com tanta gente inteligente, esta guerra está ganha."

"Não diria tanto, minha senhora."

A resposta desconcertou Nicole.

"Porque diz isso? Acha que será perdida?"

"De modo nenhum!", afirmou Aniceto Silva com um gesto enfático. "Os turras apenas nos estão a criar alguns problemas em Cabo Delgado e no Niassa. O resto está controlado."

"Aqui em Tete também, presumo."

"Com certeza. Nestes quatro anos que a guerra leva já houve um ou outro incidente aqui no distrito, mas em geral a situação em Tete permanece tranquila."

"Acha, portanto, que não vai haver problemas com a construção da barragem..."

O homem da PIDE esboçou uma careta, como se essa ideia lhe suscitasse reservas.

"Há quem pense assim, mas eu desconfio."

"Ai sim? Porquê?"

Aniceto Silva bateu com o indicador na ponta do nariz.

"É cá um faro que tenho", disse. "Os turras já anunciaram que vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para travar o desenvolvimento do vale do Zambeze. Consideram que Cabora Bassa é um grande perigo e disseram que travar a construção da barragem é agora a sua prioridade.

Portanto, é só fazer as contas." Baixou a voz, num tom de conspiração. "Temos informações seguras de que eles já se estão a movimentar na Zâmbia para meter homens aqui no distrito. Ou muito me engano ou, com Cabora Bassa em marcha, as coisas vão aquecer à séria por aqui. Eu não me chame Aniceto se isso não acontecer."

"Tenho a certeza de que os seus chefes estão sabendo isso..."

"Saber, sabem", assentiu o inspector. "Mas acho que se andam a fiar na Virgem, se é que me faço entender. Os tipos pensam que os turras vão meter aqui apenas uns grupinhos de guerrilha e que a coisa se resolve com a colocação de batalhões no Furancungo e no Bene, para travar as infiltrações da Zâmbia." Voltou a bater com o dedo no nariz. "Cheira-me, no entanto, que o inimigo vai enfiar neste distrito uma data de gente. Se travar a barragem é agora a sua prioridade e se forem verdadeiras as informações de que há grande movimento de homens pela Zâmbia, é melhor prepararmo-nos para o bailarico!"

A médica rodesiana pareceu ficar atordoada com estas afirmações, decerto porque elas lhe abriam a inesperada perspectiva de ir para Moçambique meter-se num vespeiro de guerra. José apercebeu-se da perturbação que aquelas informações lhe provocaram e, acenando em despedida aos dois homens da PIDE, indicou a porta a Nicole.

"Já se faz tarde", disse. "E melhor irmos andando. Até logo!"

Aniceto Silva travou-o com o braço.

"Espere aí, doutor!", exclamou. "Ainda não me comentou a grande novidade!..."

"Qual novidade?"

"Então!... A do... do director."

"Qual director? Está a falar de quê?"

Surpreendido com tanta ignorância, o inspector virou a atenção para o doutor Martins.

"Não lhe contou?"


José voltou-se igualmente para o seu superior hierárquico, percebendo que havia ali alguma coisa que lhe escapava.

"Contou o quê? Que se passa?"

Martins forçou um sorriso e passou os dedos pela barba.

"Vou voltar a Lourenço Marques", anunciou. "A minha transferência já foi autorizada."

"E quem o irá substituir?"

"O novo cirurgião será o Feitor, um colega que deverá chegar a Tete daqui a duas semanas."

Aniceto Silva franziu o sobrolho com uma expressão levemente reprovadora.

"Ó doutor", disse, interpelando de novo Martins. "Ainda não contou tudo. Ora desembuche lá o resto."

"O resto é consigo", devolveu o cirurgião. "No fim de contas, foi o senhor que deu a aprovação final, não foi?"

"Aprovação de quê?", quis saber José. "Do que estão vocês para aí a falar?"

O rosto do inspector da PIDE abriu-se num grande sorriso. Aniceto Silva estendeu a mão na direcção de José.

"Aperte aí o bacalhau, homem!", exclamou num tom efusivo. "Você vai ser nomeado director do hospital de Tete. Parabéns!"O pai ganhou o braço-de-ferro e o professor Pulga acrescentou Diogo a Angelino na sua lista de contratações. A vida dos dois rapazes do Rego da Agua tomou então um rumo inesperado.

Todos os dias, depois das aulas no Liceu de Gaia, os dois amigos metiam-se no autocarro ou apanhavam uma boleia, coisa muito comum nesses tempos na cidade do Porto, e lá iam até às Antas para o treino do fim da tarde. Regressavam a casa já de noite e Diogo juntava-se aos irmãos para as lições de Matemática e Física que o pai ministrava depois do jantar, ou de Química e Biologia na dona Detinha, a vizinha que era professora no liceu e que dava uma ajuda na educação dos cinco filhos do casal Meireles. O circuito infernal completava-se aos fins-de- semana com os jogos.

O esforço diário de Diogo adquiria facetas sobre-humanas, mas o facto é que a sua carreira no FC

Porto estava em fase ascendente. Ao segundo ano foi promovido aos seniores e em breve passou a fazer parte do seis-base do escalão superior, usando sempre nas costas o número 6. Formava com Angelino uma dupla formidável, o amigo no passe, Diogo no remate, umduo de ouro que valeu vitórias sucessivas à equipa e prometia aos dois craques um futuro triunfal.

A vida fintou, contudo, aquela parelha. Numa tarde em que aguardavam o autocarro a caminho das Antas, Diogo reparou que o amigo estava menos loquaz do que o habitual e questionou-o sobre o que se passava.

"O meu pai conseguiu lugar na Companhia dos Caminhos- de-Ferro da Beira", anunciou Angelino sem se atrever a encará- lo. "Partimos daqui a duas semanas."

O anúncio foi tão repentino que Diogo duvidou que tivesse ouvido o que lhe parecera ter ouvido.

"O quê?!"

Angelino, que mantinha o olhar baço perdido no fundo da rua, voltou então o rosto para o amigo e encarou-o por fim.

"Vou-me embora para Moçambique."

O universo do jovem craque do FC Porto alterou-se então radicalmente. A partida de Angelino constituiu uma profunda decepção e deixou-o órfão de amigos. Para compensar a perda, voltou-se ainda mais para os treinos e concentrou-se na actividade desportiva. As vitórias não pararam de aparecer e a sua carreira de voleibolista tornou-se meteórica.

Além de adversários como o Benfica e o CDUL, a equipa cruzou fronteiras para enfrentar formações como o Real Madrid, o Partizan de Belgrado, o Montpellier e o Galatasaray. A adolescência e as exigências do voleibol de alta competição moldaram o desenvolvimento do seu corpo, tornando-o alto e ainda mais elástico, mas também lhe trabalharam a mente, fazendo dele uma pessoa metódica e competitiva. O FC Porto sagrou-se campeão nacional em anos consecutivos muito à custa dos espantosos saltos e fortes remates de Diogo sobre a rede.

Em breve o novo craque do clube vestia a camisola da selecção nacional. A estreia ocorreu em Lisboa a abrir o Torneio da FISEC, a Federação Internacional dos Desportos Escolares Católicos, e o primeiro adversário foi o Líbano.

Essa primeira internacionalização mereceu celebrações com espumante até no Orfeão da Madalena e os ecos da façanha chegaram à distante Beira, cidade de onde Angelino enviou um postal com felicitações e um gracejo.

"Então agora o Líbano é um país católico?" XVII

O som do jipe a contornar o largo diante do hospital irrompeu pela janela do gabinete de José Branco. O médico auscultava nesse instante um idoso que viera do Moatize, mas ao aperceber- se da chegada da viatura largou o que estava a fazer e correu até à porta do edifício. O jipe verde tinha os pneus e a parte de baixo enlameadas e uma espessa camada de pó alaranjado a cobrir-lhe o

tablier.

O novo director desceu as escadas do hospital e avistou o vulto azul-claro da irmã Lúcia apear-se do grande Austin transformado em veículo-ambulância.

"Então? O nosso homem?"

O rosto da freira estava macilento e sulcado de olheiras. Toda ela tinha um aspecto fatigado.

"Muerto", anunciou a irmã Lúcia num tom desalentado. "Fizemos dez horas para lá e dez horas para cá. Para nada." Indicou displicentemente o jipe atrás dela. "Ainda estava vivo quando llegamos ao Fingoé, pero não resistiu à viaje aqui para Tete. A carretera estava muy mal e ele faleceu na zona do Songo."

O médico estacou e assentou as mãos na ilharga. Ficou a observar os enfermeiros que retiravam o corpo do interior do veículo.

"Porra."

A palavra pareceu ter despertado a irmã Lúcia do seu torpor. A freira pôs as mãos à cintura e lançou ao médico um olhar zangado.

"Dicer 'porra' não resolve nada, doutor!", exclamou com revolta mal contida. "Precisamos de espalhar hospitais por todo el distrito. No podemos continuar assim. Tenemos que hacer qualquer coisa!"

José suspirou, percebendo a fúria da enfermeira-chefe mas sentindo-se impotente para resolver o problema. Deu meia volta e regressou devagar ao seu gabinete para concluir as consultas. Logo que chegara a Tete havia percebido que o distrito era demasiado vasto para a capacidade da assistência sanitária de que dispunham e esse problema começou a pesar-lhe sobremaneira a partir do momento em que, semanas antes, assumira a direcção do hospital.

A responsabilidade inerente às suas novas funções fazia-o voltar uma e outra vez à mesma questão, em particular quando se perdia uma vida que se teria podido salvar se a assistência tivesse sido mais célere. A solução evidente seria aumentar a capacidade do serviço, mas o problema é que isso era incomportavelmente caro. Além do mais, onde encontraria ele pessoal com qualificações suficientes para reforçar os quadros e distribuir em número adequado por todo o distrito? Tudo isso lhe parecia irrealista. Porém, sentia que não tinha o direito de se conformar com aquela situação. Que fazer? Será que poderia...

"Docíor!?"

A voz num inglês nasalado arrancou-o das suas cogitações e trouxe-o de volta ao presente.

Encontrava-se no corredor do hospital e uma fila de pacientes aguardava o momento da consulta no seu gabinete. O homem que o interpelara estava a meio da fila de espera e tinha ar de rodesiano ou sul-africano, com cabelo branco e um chapéu à cowboy.

"Diga."

O homem dedilhava o chapéu com movimentos nervosos.

"Doctor, eu sou American e trabalho no Cabora Bassa", apresentou-se, num português trapalhão e com sotaque muito forte. "Apanhei um diarreia e preciso ser vista."

"Com certeza", indicou José. "Quando chegar a sua vez vamos ver isso com cuidado, está bem?"


O americano indicou a dezena de pessoas que se encontravam à sua frente na fila.

"Mas eles vão ser vistas primeiro que eu?"

"Chegaram antes de si?"

"Sim, mas... mas são niggers", exclamou, elevando a voz num crescendo de indignação. "Onde já se viu os brancos ficarem atrás dos niggers? Isto no América não é possible! Como podem vocês atender os niggers primeiro que um branco?"

José Branco revirou os olhos. Ainda instantes antes havia aguentado a fúria de Lúcia em luso-castelhano pela cobertura sanitária deficiente do distrito e agora tinha de aturar um camone em luso-bife que queria passar à frente dos restantes pacientes. Que mais lhe reservaria o dia?

Respirou fundo e, ignorando o americano, seguiu para o seu gabinete e sentou-se à secretária, de onde pousou o olhar subitamente fatigado no idoso cuja consulta havia interrompido minutos antes.

"Onde íamos nós?"

O calor na rua era uma constante em Tete e, como o interior dos automóveis se tornavam verdadeiros fornos durante o dia, desceu a janela e contemplou o Zambeze. A tomada de posse nas novas funções implicou várias alterações na sua vida, a mais agradável das quais foi a mudança de casa. O casal Branco largou o apartamento na esquina perto do Hotel Zambeze e transferiu-se para a residência do director, uma agradável vivenda no topo da colina onde fora erguido o hospital.

Diante da nova casa podia ver-se a cidade lá em baixo e apreciar uma deslumbrante vista sobre o rio.

Ligou o motor e pôs o Opel em movimento. Passou diante do hospital e desceu a rua até ao centro da cidade. O calor era insuportável, pelo que esticou a cabeça para fora. O vento da viatura em movimento bateu-lhe quente na face, como se fosse soprado pelo próprio Sol, mas sempre constituía um alívio para o ardor inclemente que parecia incendiar o ar.

Tinha nessa tarde uma consulta na PIDE, a cujos funcionários dava assistência médica regular, mas antes precisava de satisfazer um compromisso de última hora. Meteu pela Avenida Armindo Monteiro, a estrada junto ao rio, e dirigiu-se ao seu destino, os olhos atentos às direcções, a mente a divagar pelo problema dessa manhã. Havia perdido um paciente porque a assistência sanitária no distrito era uma boa porcaria. A questão obcecava-o, sobretudo desde que assumira a direcção do hospital, mas tinha plena consciência de que não havia solução para ela.

A imagem de um hangar à direita despertou-o dos seus pensamentos. Viu o portão aparecer de repente e enfiou o Opel por ali.

"Então, doutor?", saudou-o o engenheiro Pontes, que o esperava junto ao portão. "Não teve dificuldade em dar com o nosso aeroporto internacional, pois não?"

O médico reagiu à ironia com um sorriso e apeou-se do carro.

"Em Tete não é difícil dar-se com nada", disse, esticando-se para descontrair os músculos.

Depois varreu o hangar com os olhos, apreciando a dimensão dos edifícios. "Então é aqui que a Missão de Fomento esconde os seus tecotecos?"

"E verdade", anunciou o director da Missão. "Quer dar uma olhada às nossas instalações?"

"Presumo que o vosso doente tenha pressa de ser atendido..."

Era essa a razão pela qual José havia sido chamado de urgência ao hangar da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze. A pessoa que lhe telefonara para casa tinha falado em suspeitas de paludismo, mas o engenheiro Pontes não se mostrava particularmente preocupado naquele momento.

"O tipo pôs-se a dormir", disse, puxando pelo braço do médico. "Enquanto o gajo não acorda, venha daí! Ande ver a maravilha que são as nossas engenhocas voadoras."

O braço largo do rio descia ali perto, vasto e majestoso, reflectindo o Sol numa miríade trémula de cintilações, como se o espelho da água fosse coberto por um manto reluzente de jóias. Pisaram o alcatrão da pista e José contemplou vários aparelhos imóveis na placa. Havia dois helicópteros na berma e, mais adiante, dois aviões, um pequeno com um motor no nariz dentro do hangar e no exterior um maior, com dois motores; no seu silêncio e imobilidade pareciam cavalos a dormir de pé.

"Caramba", exclamou o médico. "Isto é que é uma frota! Qualquer dia a Missão de Fomento faz concorrência à DETA e aos táxis aéreos do Guerra, hem?"

"E isto não é tudo", disse o engenheiro. "Temos ainda um outro avião, mas agora está em Chicoa."

"Para que precisam vocês de tanta geringonça?"

Entraram no hangar e o engenheiro conduziu-o na direcção de um pequeno gabinete. Na parede havia um grande mapa a representar o distrito de Tete.

"Por causa das nossas brigadas", respondeu Pontes, aproximando-se do mapa. "Não sei se sabe, mas por causa de Cabora Bassa a Missão vai mudar de nome. Daqui a uns tempos passaremos a ser o GPZ, ou Gabinete de Planeamento do Zambeze. A nossa função é inventariar os recursos existentes no vale e, dada a situação de guerra, reorganizar o povoamento das populações do distrito."

"Não percebo. Que quer dizer com isso?"

"Quero dizer que vamos erguer aldeamentos por toda a parte e meter lá as populações. Os militares dizem que é para as proteger melhor, mas quer-me cá parecer que isso é conversa. O que eles pretendem é controlar o pessoal, está a ver? Mas, enfim..."

"E se as pessoas não quiserem ir para lá?"

O engenheiro encolheu os ombros.

"Isso é um problema dos militares", esclareceu. "A nós compete-nos apenas planear e construir os aldeamentos. Para fazer esse trabalho espalhámos brigadas por toda a parte. Temos malta no Furancungo, em Chicoa, no Chinde... em todo o lado. O chato é que o distrito é enorme, como já deve ter reparado. De modo que arranjámos esta frota para reabastecer as nossas brigadas. Uma vez que as estradas são péssimas e o território gigantesco, os aviões fazem o serviço na perfeição.

Levam mantimentos, entregam o correio e transportam todo o material de logística de que o pessoal precisa lá no mato."

Estavam os dois plantados diante da parede do hangar e, quase sem querer, José pôs-se a comparar aquele mapa com o que tinha pregado à parede do seu gabinete no hospital havia já quatro anos. Este era talvez mais pormenorizado.

"Isso é uma valente ideia", disse devagar, os olhos a passearem pelos pioneses espetados nos pontos do mapa onde a Missão de Fomento tinha instalado as suas brigadas. "Sabe uma coisa? Era exactamente disso que... que... que..."

Calou-se, os olhos arregalados a devorarem o mapa. Voltou a cabeça e olhou para o pequeno avião estacionado atrás dele e depois para o mapa outra vez e de novo para o aparelho.

"O que foi?", inquietou-se o engenheiro Pontes. "Que se passa? Aconteceu alguma coisa?"

A mente de José funcionava a grande velocidade, tentando digerir as implicações da ideia que lhe germinara na mente como o clarão de um relâmpago. Não era uma ideia, era uma grande ideia!

Grande, grande! E se?... e se?...

Encarou o director da Missão de Fomento e cravou nele com intensidade o olhar cintilante.

"Você usa estes aviões todos... todos os dias?"

A pergunta foi feita com uma dose inesperada de ansiedade, o que suscitou estranheza ao engenheiro Pontes.

"Todos os dias? Porra, claro que não! Temos muito pessoal espalhado por aí, mas a frota é grande e permite-nos fazer rotação dos aparelhos. Umas vezes voam uns, outras vezes voam outros. É consoante as necessidades de serviço."

"Acha que... que me poderia emprestar um destes aviões de vez em quando?"

"Emprestar-lhe um avião? A si? Para quê?"

"Não é a mim", corrigiu José. "Ao hospital, homem. Será que é possível emprestar um avião ao hospital?"

"Bem... quando é que vocês precisam dele?"

"Sei lá, de vez em quando. Quando puderem. Acha que é possível?"

O director da Missão de Fomento olhou para o aparelho estacionado dentro do hangar e voltou-se para o médico diante dele, ponderando a questão. José observava-o com ansiedade indisfarçável.

O engenheiro pesou as suas necessidades e os problemas que o pedido levantava, mas acabou por encolher os ombros e abrir os braços, num gesto de entrega.

"Iá", disse. "Não tem problema."

Ao ouvir estas palavras, José Branco não se conseguiu conter e deu um pulo no ar, um pulo tão grande quanto aquele que dera dois anos antes ao ouvir pela rádio o locutor a relatar o quarto golo consecutivo que Eusébio marcou à Coreia do Norte em pleno Mundial de Inglaterra. Pousou estrondosamente no chão e, com um largo sorriso, abraçou, comovido e efusivo, o seu estupefacto interlocutor.

"Ó engenheiro!", exclamou, "se você não fosse tão feio, dava- -lhe um chocho!"O piloto ajeitou os

Ray-Ban no rosto, mirou-se ao espelho e deu um toque na farda, alisando a pequena faixa com o seu nome, Teixeira, bordado a ouro. Satisfeito com o aprumo, desatou a ligar botões no painel de bordo, desencadeando uma sucessão de cliques e claques secos. Todos aqueles movimentos pareceram inconsequentes até que carregou num botão vermelho e o motor soluçou e se pôs a ronronar e a hélice começou a girar, primeiro devagar, depois mais depressa, num zumbido em crescendo.


"Torre, aqui fala Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo", disse para um intercomunicador, evidentemente o rádio. "Solicito autorização para taxiar."

O rádio estralejou e uma voz metálica respondeu.

"Sim senhor, está autorizado a rolar. Dirija-se à pista 130 e informe-me quando estiver pronto para descolar."

Teixeira verificou indicações e mostradores, destravou uma alavanca e, acto contínuo, o aparelho deu um pequeno salto para a frente, zunindo enquanto rodava pela pista em solavancos suaves.

Um olhar para a manga de vento confirmou-lhe quea brisa soprava de facto de norte, pelo que se posicionou no sentido de 130 graus, conforme instruído pela torre. Testou os motores a fundo e verificou o painel; parecia tudo normal.

O piloto olhou para o lado e no seu rosto ossudo e seco apareceu o esboço de um sorriso.

Mostrava assim ao passageiro que estava tudo sob controlo e não tinha razão para se sentir preocupado.

"Vamos a isto?"


Encolhido no assento, José Branco observava o que se passava com extrema atenção e curiosidade. O Piper Tripacer da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze era um aparelho minúsculo, com uma hélice no nariz e apenas dois lugares, o que transformava o passageiro numa espécie de co-piloto. Qualquer pessoa que se sentasse ali teria obrigatoriamente de se preocupar em saber se o piloto era saudável. O que faria se ele adoecesse de repente e perdesse os sentidos? Mas José, sendo médico, não se mostrava particularmente inquieto. Sabia muito bem como proceder em tal situação: não podendo pilotar o aparelho, teria de reanimar o piloto. Como era a primeira vez que tinha oportunidade de se instalar no cockpit de um avião, estava mais interessado em observar os procedimentos de descolagem do que apoquentado com a saúde de Teixeira.

"Força", respondeu José. "Vamos embora."

O piloto efectuou uma verificação final e imprimiu potência ao motor. O zumbido tornou-se intenso e deu até a sensação de que a hélice ia rebentar de tanto esforço. Satisfeito com a resposta do aparelho, Teixeira voltou a colar o intercomunicador à boca.

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo pede autorização para descolar."

"Delta-Charlie-Romeo-Tango-Echo está autorizado a descolar", foi a resposta imediata. "Boa viagem!"

O avião acelerou pela pista, rolou com velocidade e, em apenas alguns metros, Teixeira puxou a manche e o aparelho ganhou altitude com uma leveza surpreendente, estremecendo sob a crepitação do motor e sacudindo ao sabor caprichoso do vento, o nariz sempre apontado para o imenso e profundo céu límpido.

José espreitou pela janela e viu o rio curvar pela cidade e o batelão a cruzar o Zambeze no seu vaivém interminável e os pilares da ponte que era entretanto construída como um esqueleto de ferro a erguer-se a meio das águas e o casario a tornar-se mais pequeno e os embondeiros a perder de vista na terra alaranjada e o Matundo ali à direita e o horizonte recortado em montes e farrapos de nuvens a navegar no azul infinito... O vento ali em cima soprava forte e sacudia o pequeno Piper Tripacer de um lado para o outro, mas depressa o aparelho estabilizou em altitude, o motor deixou de zumbir em aflição e passou a zungar num tom monocórdico, tão monótono que se tornou até sonolento, e assentou enfim a direcção para norte.

O lugar do passageiro, na verdade um assento de co-piloto, era apertado, mas José sentiu-se surpreendido por estar a tirar prazer da viagem. Os imponentes Super Constellation ou até os grandes Dakota impressionavam-no, de tal modo que nunca se livrava do medo quando voava neles. O Piper Tripacer era uma formiga ao pé daqueles monstros e qualquer rabanada de vento o fazia bailar nas alturas, mas o que era estranho é que não sentia medo nenhum por voar naquela frágil caixa de fósforos.

Tratava-se de um sentimento difícil de explicar. Nos outros aviões tinha uma impressão permanente de que viajava em caixões voadores e a morte poderia ocorrer a qualquer momento, mas naquela autêntica folha atirada ao vento a sensação era que lhe haviam nascido asas e se tornara totalmente livre. Se o contasse a Mimicas, ela decerto não acreditaria. A verdade, porém, é que deixar-se levar naquela engenhoca delicada não lhe parecia façanha, mas puro entretenimento.

Aterraram numa pista de terra batida no Furancungo, uma povoação situada próximo da fronteira com o Malawi. Dois homens da Missão de Fomento esperavam-nos à porta do avião e, antes mesmo de ajudarem a descarregar os mantimentos e o material, agarraram-se ao correio e verificaram se havia alguma coisa para eles. Ambos tiveram sorte. Um recebeu uma carta da mulher e o outro desembrulhou um exemplar de A Bola que lhe vinha destinado.

"É para ver as notícias do meu Sporting", disse com uma gargalhada. "Aos lampiões nem os deixo cheirar o jornal, que é para aprenderem a não chatear!"

"Veja lá o que diz", atalhou José. "Olhe que sou do Benfica..."

O homem encolheu os ombros.

"Ninguém é perfeito!"

Os primeiros "clientes" do médico foram os funcionários da brigada do Furancungo da Missão de Fomento. Fez consulta a todos, mas os problemas que encontrou revelaram-se negligenciáveis.

A maior parte queixava-se de picadas de insectos, pelo que lhes distribuiu umas pomadas para resolver o assunto, e apenas um tinha algo de mais sério, embora nada de especial: uma gastroenterite que resolveu com as soluções adequadas para o caso.

"E agora", anunciou o médico, "a população."

"Qual população?", estranhou o chefe da brigada.

"Eu não sou o médico privativo da Missão", esclareceu José. "Vim aqui prestar assistência sanitária a todas as pessoas que dela necessitam. Onde as posso encontrar?"

Os homens da Missão de Fomento entreolharam-se, surpreendidos. O chefe da brigada esboçou um gesto de resignação, como se achasse o pedido bizarro mas não o quisesse discutir.

"Não sei se o senhor doutor vai encontrar o que quer", disse. "Mas se quer mesmo ir, eu levo-o lá."

O chefe da brigada guiou-o até ao aglomerado de palhotas do Furancungo. A manhã era agradável, como habitualmente naquela região, e os aldeãos sentavam-se à conversa diante das casas de adobe enquanto as mulheres transportavam água ou pilavam com os bebés atados por panos às costas. Havia uma panela de água sobre as pedras carbonizadas de uma fogueira que ardia brandamente no centro de uma clareira e os recém-chegados dirigiram-se ao local, atraindo a atenção dos moradores. Como sempre, José vestia as suas tradicionais camisa, calças e sapatos imaculadamente brancos, destacando-se assim do resto do grupo.

"Atenção a todos!", anunciou o chefe da brigada em voz alta. "Temos connosco um médico para ver as pessoas doentes. Quem tiver uma ferida ou uma dor ou alguma coisa de errado no corpo pode vir ter com ele. O médico é amigo e põe as pessoas boas."

Para garantir que a mensagem era correctamente entendida por todos, o chefe da brigada chamou o seu tradutor e o homem explicou as coisas em nhungué. Os aldeãos ouviram tudo com grande atenção e observaram José com curiosidade, mas quando as explicações terminaram e o médico ficou a aguardar os primeiros pacientes ninguém se mexeu.

O silêncio tornou-se embaraçoso e alguns aldeãos recomeçaram a conversar entre eles, como se tudo aquilo que haviam escutado não tivesse passado de uma interrupção das coisas realmente importantes. Preocupado com salvar a face do seu ilustre visitante, o chefe da brigada repetiu a mensagem e o tradutor também. De novo sem efeito.

"Peço desculpa, senhor doutor", disse o chefe da brigada, "mas, como vê, eles..."

José ergueu a mão.

"Não faz mal." Fez um gesto. "Venham comigo, por favor."

O médico começou a passear pelas palhotas, com o chefe da brigada, o tradutor e Teixeira no encalço. Descobriu uma criança com a perna inchada e ajoelhou-se diante dela para a observar, mas a mãe viu a cena e foi de imediato buscá-la.

"Diga-lhe que não faço mal", indicou ao tradutor. "Esta perna tem de ser vista porque senão ele pode ficar com problemas."

O homem traduziu para nhungué, mas a mãe da criança abanou a cabeça e deu uma resposta curta antes de desaparecer entre as cubatas com o menino.

"Ela diz que o filho não tem nenhum problema e que já vai ficar bom."

O médico suspirou e retomou o passeio pela aldeia. Encontrou mais dois casos que lhe pareceram requerer atenção, mas as pessoas voltaram a esquivar-se e sumiram-se rapidamente no emaranhado de palhotas. Percebeu que os aldeãos tinham medo por verem um estranho a deambular por ali com promessas de curar toda a gente, pelo que decidiu mudar de táctica.

Retomou o passeio pela aldeia, espreitando aqui e ali o interior das palhotas, até que numa delas se deparou com uma mulher estendida sobre uma esteira. O dono da cubata estranhou ver ali um grupo de brancos, e em particular um branco vestido de branco, e aproximou-se, zeloso da protecção da sua família e dos seus bens.

"O que tem ela?", quis saber José.

"Xi, patrão, está a morrer", respondeu o aldeão em português. "E melhor não incomodar."

O médico inclinou-se sobre a mulher e, apontando-lhe uma lanterna, analisou-a melhor. Tinha o corpo coberto de chagas e feridas diversas. O foco de luz desceu-lhe até às mãos e reparou que lhe faltavam alguns dedos. José recuou instintivamente.

"Lepra!"

O resto do grupo de visitantes, que se aglomerara à porta da palhota para ver a paciente, afastou-se de imediato. O médico, todavia, permaneceu no local e retomou a observação.

"Ó doutor!", chamou Teixeira. "Saia daí!"

"Não há problema", retorquiu o médico. "Ajudem-me a levá- la daqui para fora!..."

Os homens entreolharam-se, espantados com o pedido, e ficaram momentaneamente sem saber o que dizer. O primeiro a reagir acabou por ser o dono da cubata.

"Deixa a minha mãe", disse ele, quase implorando. "Deixa ela morrer em paz."

"Que disparate, não deixo nada!", devolveu José no tom de que essa questão nem se punha.

"Andem daí, pessoal. Vamos lá, ajudem-me a tirá-la daqui."

O grupo não sabia bem o que fazer e acabou por ser o chefe da brigada quem expressou o receio que se apossara de todos.

"Mas, doutor, ela tem lepra...", argumentou ele. "Isso é maningue contagioso, não é?"

Ao aperceber-se da resistência, o médico saiu da palhota e acocorou-se à entrada, abrindo no chão a malinha que o acompanhava sempre. Retirou do interior o que pareciam dois panos brancos e estendeu-os na direcção dos homens.

"Se estão com medo, ponham estas máscaras", ordenou. "Mas não se preocupem com nada. A lepra é provocada por um microrganismo que só se transmite pela saliva, e mesmo assim dificilmente. Isto significa que a doença apenas é contagiosa quando se vive muito tempo ao pé do paciente em condições de grande promiscuidade, estão a entender?"

Os três homens fizeram que sim com a cabeça, mas ninguém se mexeu.

"Não é o caso de nenhum de vocês, pois não? Alguém aqui partilhou a intimidade com a senhora? Alguém andou a beijá-la?" Apontou para a cubata com um gesto veemente. "Então levem-me imediatamente esta mulher para o posto, seus maricas! Ela tem de ser tratada."

"Mas a lepra tem cura, doutor?"

"Claro que tem. O bacilo da lepra mata-se. Nunca ouviu falar na palavra antibióticos?"

Ultrapassando as derradeiras hesitações, o chefe da brigada mandou buscar uma maca e dois empregados transportaram a leprosa pelo emaranhado de ruelas poeirentas da aldeia em direcção ao posto onde funcionava a Missão de Fomento no Furancungo.

O sol batia forte e Teixeira, que continuava a proteger os olhos com os Ray-Ban, aproveitou um momento em que viu o médico afastar-se um pouco mais para se aproximar discretamente dele.

"Ó doutor", murmurou o piloto, preocupado em assegurar- se de que ninguém mais os ouvia.

"O que vamos fazer com esta mulher?"

"Temos de a levar para Tete."

"Mas como?"

"Ora, no avião."

Desde o início que Teixeira suspeitava que era esse o plano, pelo que não mostrou a mínima surpresa. Tirou os óculos, lançou um bafo de humidade nas lentes escuras e pôs-se a limpá-las à camisa.

"E quem fica em terra?"

José franziu o sobrolho.

"O que quer dizer com isso?"

Aproximavam-se já do posto e via-se o aeródromo lá ao fundo, com o avião estacionado junto ao poste com a manga do vento.

"O Piper Tripacer só tem dois lugares, doutor", lembrou o piloto, reassentando os óculos no rosto. "Se ela vai lá dentro, quem fica cá? Eu ou o doutor?"

O médico estacou, desconcertado. Olhou para o avião lá ao fundo e depois para a maca transportada pelos homens, até se voltar enfim para Teixeira, que aguardava uma resposta.

"Vou ficar aqui a fazer um levantamento da situação sanitária", decidiu. "Leve-a imediatamente para Tete e venha buscar- -me amanhã de manhã."

As viagens subsequentes mostraram que a resistência da população do Furancungo não era uma excepção. Ao longo das semanas seguintes, José aproveitou a ocasional disponibilidade dos aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete para voar até Chicoa, Vila Coutinho e Chinde, onde também se confrontou com a desconfiança generalizada. As pessoas afastavam-se à aproximação do médico e tornou-se difícil ver mais do que um punhado de pacientes em cada viagem.

"São os feiticeiros", opinou Teixeira, os olhos sempre escondidos pelos Ray-Ban. "Metem-lhes medo e dizem que o doutor traz do céu maus espíritos."

A leprosa, que havia sido internada no hospital de Tete, dava entretanto sinais de grande melhoria. As manchas cutâneas desapareceram e a mulher, que até aí vivia num estado de constante debilidade, ganhou energia aos poucos e ao fim de algum tempo começou até a mostrar-se irrequieta; passeava pelo hospital a qualquer hora e pôs-se a perguntar com crescente insistência quando a iam mandar para a sua terra.


Numa manhã de inspecção das enfermarias, José Branco deu com ela a tentar trepar por uma maçaniqueira. Não lhe pareceu comportamento de uma pessoa gravemente doente e mandou que lhe fizessem uma baciloscopia. Quando os resultados vieram do laboratório tirou as últimas dúvidas.

"O leprae foi eliminado", constatou ao consultar o relatório das análises. "Vamos mandá-la para casa."

As reticências das populações locais a serem vistas por um médico branco haviam entretanto produzido o seu efeito junto do director do hospital. José tinha encarado os aviões da Missão de Fomento ou do Aero-Clube de Tete como a resposta perfeita para a cobertura sanitária do distrito, mas começava a ter as suas dúvidas. De que valia o esforço de voar até aos quatro cantos de um território tão vasto se ninguém se deixava tratar? Não seria melhor ficar em Tete? Se calhar devia restringir o uso dos meios aéreos ao transporte de casos urgentes, afinal a preocupação que originalmente o conduzira àquela solução.

Decidiu fazer uma nova tentativa e, por causa da leprosa, escolheu de novo o Furancungo. Se a viagem não servisse para mais nada, pelo menos serviria para se certificar do estado da mulher.

Duas semanas depois de lhe ter dado alta e de a ter devolvido à sua terra, voltou a voar com Teixeira até à povoação do planalto junto à fronteira nordeste.

A aterragem decorreu como de costume, com o Piper Tripacer a tocar na pista de terra batida do aeródromo e a dirigir-se aos solavancos para o local habitual de estacionamento. Teixeira desligou o motor e tudo foi ficando tranquilo, com o rumor estrepitante do aparelho a calar-se e o zumbido da hélice a abrandar até se impor o silêncio retemperador. Os dois ocupantes tiraram os cintos e, enquanto o piloto procedia às verificações finais de segurança, o médico abriu a porta e saltou para fora. Sentiu uma dor na região lombar, fruto da posição prolongada no assento, mas depressa o incómodo desapareceu e ele dirigiu-se ao jipe que entretanto os viera buscar.

"Bom dia!", saudou. "Está tudo bem?"

"Maningue naice", retorquiu o chefe da brigada. "Hoje isto anda animado!..."

José pôs o pé no jipe e alçou o corpo para o interior do veículo. Nessa altura reparou num burburinho junto ao portão do aeródromo e desviou o olhar para aquela zona. Uma pequena multidão de aldeãos acotovelava-se no local; era de certeza mais de uma centena de pessoas.

"Que se passa?", perguntou o médico. "Vêm aí os Beatles?"

O chefe da brigada tirou um maço de LM do bolso e acendeu um cigarro.

"O senhor doutor está tramado."

"Eu? Porquê?"

"Lembra-se da leprosa?"

O coração de José disparou. Encarou o interlocutor com uma expressão de alarme.

"O quê? Aconteceu-lhe alguma coisa?"

"Aconteceu pois."

"O quê? O quê?"

"Ficou boa, o diabo da mulher. Até já anda a machambar com a família. Havia de a ver, é um espectáculo!"

O médico ficou momentaneamente desconcertado.

"Então o que se passa?"

O homem aspirou o cigarro e deixou o bafo de fumo sair-lhe lentamente pelas narinas. Depois apontou na direcção da multidão que se acumulara junto ao portão do aeródromo e respirou fundo, quase contrariado.


"O que se passa é que agora toda a gente quer ser vista por si."O sucesso não foi instantâneo, mas seguiu um padrão que se repetiu por todos os lugares que José Branco visitou ao longo dessas primeiras semanas. A chegada do médico que vinha do céu suscitou inicialmente grande desconfiança, mas o tratamento bem sucedido de pacientes considerados pelos aldeãos casos perdidos foi desencadeando a afluência de doentes em massa a cada aeródromo onde o Piper Tripacer aterrava.

"O doutor já é um Beatle", gracejou Teixeira ao aterrar numa pista prestes a ser invadida por uma nova multidão. "Qualquer dia as miúdas começam aos berros e a arrancar cabelos e a mostrar as mamas só de o ver descer do avião..."

O médico revirou os olhos, mostrando um desagrado que não era sincero.

"Engraçadinho!..."

As multidões engrossavam a cada nova visita e mesmo em aldeias que antes pareciam desertas começaram a comparecer grandes massas de gente, como se as pessoas brotassem da própria terra.

Depressa se passaram a contabilizar mais de mil pacientes em determinados locais e foi nessa altura que o médicopercebeu que estava a ser vítima do seu êxito. Teria de fazer alguma coisa.

Pediu uma reunião com o director da Missão de Fomento e expôs-lhe a situação.

"É demasiada gente", concluiu José no final da exposição. "Não sou capaz de dar vazão a tanto doente."

O engenheiro Pontes esboçou um esgar de impotência. 9

"O doutor, eu percebo isso", disse, "mas o que quer o senhor que eu faça?"

O director do hospital tamborilou os dedos na madeira da secretária, sabendo que o pedido que ali o trazia seria de difícil digestão para o estômago do seu interlocutor.

"Preciso que me empreste o avião mais vezes."

"Mais ainda?", admirou-se o responsável da Missão de Fomento, o tom de voz a roçar o escandalizado. "O senhor doutor já se abotoou com a maquineta uma ou duas vezes por mês!"

"Não chega", afirmou. "Não posso visitar o Furancungo, por exemplo, quando o rei faz anos.

Tenho de ir lá todas as semanas. E quem diz Furancungo diz Chicoa ou qualquer das muitas terriolas onde ainda nem sequer pus os pés."

"E os gajos do Aero-Clube? Eles não o ajudam?"

"Claro que sim. Com os aviões deles e com os vossos consigo voar todas as semanas. Mas o serviço é muito procurado e preciso de maior disponibilidade da vossa parte."

Pontes abanou a cabeça.

"O doutor, por mais boa vontade que eu tenha, e tenho, há uma coisa que o senhor tem de perceber", disse num registo a roçar o pedagógico. "Ao ceder-lhe o aparelho uma ou duas vezes por mês já estou a correr alguns riscos. Mas se eu lhe der mais... meu Deus, como explico isso?

Além disso preciso do avião, não é? Por muito nobre que seja o seu trabalho, a Missão de Fomento também tem as suas obrigações e não pode deixar de as cumprir só para o ajudar." Abanou a cabeça com ênfase. "Não, isso não é possível."

"Não é para me ajudar a mim pessoalmente", contrapôs o médico. "É para ajudar as populações."

O engenheiro respirou fundo, a decisão já tomada.

"É muito louvável o que o senhor está a fazer. Mas, em consciência, não tenho modo de lhe emprestar o avião mais vezes do que já empresto, sob pena de prejudicar o nosso trabalho. Isso não posso permitir."

O médico preparou-se para esgrimir com aquela rejeição, mas conteve-se. Que poderia dizer que não tivesse já dito? Que argumentos haviam ficado por expor? Como conseguiria inverter aquela decisão? Estudou o rosto do seu interlocutor e percebeu nesse instante que já tinha ido tão longe quanto possível. Não era de facto razoável exigir mais do que já lhe era oferecido.

Empurrou a cadeira para trás e ergueu-se com lenta resignação.

"Tem razão", reconheceu, estendendo a mão ao interlocutor. "Agradeço-lhe de qualquer modo a ajuda."

O director da Missão de Fomento apertou-lhe a mão e acompanhou-o até à porta do gabinete.

"E agora, doutor? O que planeia fazer?"

O médico lançou-lhe um derradeiro olhar antes de meter pelo corredor para sair do edifício.

"Vou falar com o governador."

O governador de Tete era um homem baixo e de uma magreza quase cadavérica, conhecido pela parcimônia enquanto orador; tratava-se de pessoa que preferia ouvir a falar. Logo que teve conhecimento de que o director do hospital da cidade telefonara a solicitar uma audiência, acedeu a marcar uma reunião para essa tarde.

A hora combinada recebeu José e ouviu-o sentado no seu sofá predilecto, mesmo diante do aparelho de ar condicionado, de modo a apanhar em cheio o sopro frio que lhe refrescava o gabinete. O médico não alimentava grandes esperanças de obter o apoio das autoridades; sabia que havia outras prioridades e as preocupações sanitárias não se situavam no topo da lista, mas isso não o impediu de tentar. Pôs-se por isso a narrar as suas aventuras com Teixeira no Piper Tripacer pelas aldeias do distrito.

Como era seu timbre, o governador de Tete ouviu a exposição num silêncio impenetrável e só quando o seu convidado por fim se calou é que pronunciou as primeiras palavras.

"Já me tinham falado no grande sucesso em que se transformaram as suas visitas de João Semana", disse devagar, como se ponderasse cada palavra. "Isso é mesmo assim?"

"O senhor governador havia de ver", confirmou o médico com evidente orgulho, procurando por todos os meios contagiar o seu poderoso interlocutor com o entusiasmo que o fazia vibrar.

"Chegam a ser mais de mil pessoas. São tantas que às vezes nem sei para onde me virar..."

Um leve sorriso aprovador aflorou ao rosto do governador.

"Mil pessoas, diz o doutor?", perguntou, manifestamente impressionado. "Caramba, isso é mesmo maningue gente!"

"Pois é. É por isso que preciso da sua ajuda, senhor governador. Só com um voo por semana para todo o distrito não tenho maneira de dar resposta a todas estas necessidades."

"Acredito", assentiu o anfitrião, pensativo. Fez uma breve pausa e assentou as mãos nos joelhos, num gesto determinado, como se tivesse acabado de formar opinião sobre o assunto. "Sabe, o seu projecto interessa-me."

"Sim?!", exclamou José, sentindo a esperança espreitar, mas lutando contra o excesso de expectativas. "Está a falar a sério?"

O governador ergueu-se pesadamente do sofá e caminhou até um grande painel com um mapa muito detalhado do distrito de Tete; era a carta que usava para discutir com os chefes militares a situação no terreno.

"Nestas coisas nunca brinco", retorquiu. "Sabe, doutor, temos alguns sinais de que a guerra se poderá alargar aqui no nosso distrito. Os turras já se andam a infiltrar a partir da Zâmbia e espalharam uns quatrocentos homens por diversas bases neste triângulo aqui." Desenhou com a mão um triângulo imaginário entre três pontos a norte do Zambeze, que nomeou. "Chofombo, Cabora Bassa, Furancungo." Voltou-se para o seu convidado. "Os ataques ainda são pontuais, uma vez que estamos naquela fase de aliciamento das populações em que os gajos andam para aí numa grande actividade clandestina, a tentar fazer uma lavagem cerebral às pessoas. Mas eu acho que em breve isto vai mesmo aquecer. E porquê?" Apontou para um ponto no Zambeze. "Por causa de Cabora Bassa, claro. Ainda hoje me pergunto se terá sido boa ideia mandar construir o raio da barragem!" Respirou fundo e fez com as mãos um gesto vago, numa expressão de resignação. "Por isso eu diria que o seu trabalho pode ser de importância crucial. Vejo nele um grande potencial para ajudar a pôr as populações do nosso lado e assim travar a subversão. Como alguns dizem, para ganhar esta guerra temos de lhes conquistar o coração e as mentes."

Estas observações, tão eloquentes em pessoa habitualmente parcimoniosa em palavras, deixaram José inquieto.

"A minha preocupação, senhor governador", apressou-se a esclarecer, "nada tem a ver com a situação política e militar, questão em que entendo que os meus deveres de médico me impõem a neutralidade e na qual não quero nem me devo meter, mas com as dificuldades de assistência sanitária que existem e são estruturais no nosso distrito. As minhas responsabilidades começam e acabam aí."

O governador caminhou para o seu lugar e voltou a instalar- se no sofá.

"Bem sei, bem sei", assentiu ele num tom tranquilizador. "Mas uma coisa não atrapalha a outra, pois não? Que a sua ideia nos convenha é um problema nosso, não seu. Acho até que, se nos convier, melhor para si: mais facilmente obterá o que precisa."

O médico deteve-se a estudar o seu interlocutor, tentando ler- lhe no rosto as intenções."Pois, mas isso, em termos práticos, significa o quê?", quis saber, como se tacteasse às escuras. "Será que o senhor governador podia falar com os responsáveis da Missão de Fomento e convencê-los a emprestarem-me o avião mais vezes? Outra possibilidade seria disponibilizar meios através do Aero-Clube."

O governador sorriu mais uma vez e, inclinando-se para a frente, estendeu-lhe a mão, indicando assim que dava a reunião por concluída.

"Vou fazer mais do que isso", disse em tom de despedida. "Vou remeter o assunto para Lourenço Marques."

O vulto azul-claro com um lenço branco na cabeça assomou à porta do gabinete, espreitando para o interior.

"Doutor Branco?"

O médico ergueu a cabeça e reconheceu o rosto sulcado de rugas da freira.

"Sim, Lúcia?"

"Está aqui o bombre dos Correios", anunciou a enfermeira- chefe. " Tiene um telegrama para o

senor..."

A freira espanhola afastou-se para deixar entrar um rapaz fardado com as insígnias dos CTT. O

carteiro trazia um envelope na mão que estendeu de imediato ao destinatário. O médico pegou no sobrescrito e, em troca, entregou-lhe distraidamente uma moeda de 2$50.

"Toma lá uma quinhenta", disse. "E a bacera para ires tomar uma Coca-Cola."

Nem ouviu o carteiro agradecer. Sabia que raramente os telegramas eram arautos de boas notícias, pelo que, mal contendo a preocupação, rasgou o envelope pela borda e extraiu do interior a folha, que de imediato devorou com os olhos.

"C'os diabos!"

A exclamação e o franzir da sobrancelha provocaram um sobressalto na irmã Lúcia, que ficara a observá-lo para tentar adivinhar pelas feições dele o conteúdo da missiva.

"É grave, doutor?"


A expressão na face de José denunciava uma certa perplexidade, mas abanou a cabeça em resposta à inquietação da sua subordinada.

"Não, grave não é..."

Calou-se para reler o telegrama, o que não contribuiu para tranquilizar a freira.

"Doutor, que pasaV

O médico lançou um olhar na direcção do calendário das baterias Tudor que tinha pregado à parede.

"Caramba, só passou uma semana!", exclamou com pasmo. "Isto foi rápido!"

"O que foi rápido? No entiendo..."

José estendeu-lhe o telegrama.

"É uma convocatória", explicou, abrindo a malinha de mão para arrumar o estetoscópio. "Tenho uma reunião depois de amanhã com o governador-geral."

Lúcia passou um olhar inquisitivo pelo telegrama.

"Una reunion com o governador? Isso significa o quê?"

O médico fechou a malinha com um gesto rápido e pegou nela, dirigindo-se à porta do gabinete para sair.

"Significa que tenho de ir a Lourenço Marques."Quando as portas do Dakota da DETA se abriram e José Branco pisou as escadas e o ar doce de Lourenço Marques lhe acariciou a face, não deixou de se sentir levemente surpreendido por descobrir que existiam sítios onde a temperatura ambiente era amena. Sempre soubera isso, claro, mas após tanto tempo a viver no distrito de Tete tinha de certo modo acabado por interiorizar que o normal era a fornalha inclemente, não a brandura acolhedora.

Uma vez no terminal do Aeroporto Gago Coutinho, levantou a mala que viera nos porões do avião e seguiu na direcção da tabuleta a indicar "saída". A porta abriu-se e viu um ajuntamento diante dele; eram as pessoas que aguardavam a chegada de familiares e amigos que iam desembarcando dos voos sucessivos. Antes do seu tinha aterrado um avião de Porto Amélia e logo a seguir um aparelho da South African Airways proveniente de Joanesburgo, pelo que os passageiros se misturavam na zona de desembarque.

No meio daquela multidão anónima destrinçou um negro que exibia uma folha de papel com o seu nome rabiscado. Aproximou-se dele e identificou-se."Sou o motorista da Secretaria Provincial de Saúde, doutor", disse o homem, pegando-lhe na mala. "O carro está lá fora."

"Você veio-me buscar?", admirou-se José, sentindo-se lisonjeado mas ao mesmo tempo a achar que aquela atenção era talvez um exagero. "Caramba, não era preciso tanto!..."

O homem exibiu a fileira reluzente de dentes.

"E como ia o doutor para o hotel? De machibombo?"

O motorista conduziu-o pelas avenidas amplas de Lourenço Marques até passarem pelo gigantesco complexo do Liceu Salazar, onde formigavam revoadas de estudantes de bata branca, e desembocarem no Hotel Cardoso, um belo edifício de fachada creme situado na borda da colina.

Abaixo estendia-se a mancha azulada do Índico no seu abraço à cidade; de longe as águas pareciam tranquilas, sulcadas apenas por um cargueiro que se abeirava do porto.

O homem ajudou-o no check-in, marcou hora de encontro na manhã seguinte para o ir buscar à porta do hotel e com um aceno desapareceu de regresso à sua vida. "Tá-tá."

A tarde ia a meio e fazia um certo calor. O recém-chegado foi pousar a mala no quarto e, depois de arrumar a roupa nas gavetas, sentou-se à beira da cama e pegou no telefone. Consultou a agenda, procurou o nome de Domingos Rouco e digitou o número que tinha anotado, dois oito nove sete.

Ao terceiro toque atendeu uma voz feminina. Era Albertina.

"Estou sozinha aqui na minha flat", revelou a amiga depois de se cumprimentarem.

"Então o Domingos?"

Fez-se um súbito silêncio no outro lado da linha.

"Ao telefone não", acabou ela por dizer. "Temos de nos encontrar."

Estes cuidados deixaram-no desconcertado. Que mistério seria aquele que não podia ser conversado ao telefone? Teve vontade de insistir, mas presumiu que Albertina tivesse as suas razões e conteve-se.

"Estou no Cardoso. Podes dar um salto até aqui?"

"O Cardoso não pode ser, tem demasiada gente", observou ela. "Além do mais agora também não posso. Que tal às oito da noite no Kanimambo?"

Num gesto quase reflexo, José espreitou o relógio. Faltavam quatro horas.

"Combinado."

Percebeu que dispunha de quatro horas para preencher e hesitou sobre o que fazer. Poderia dar um passeio pela cidade, mas a verdade é que estava muito cansado e o que lhe apetecia era estender-se ao sol. Espreitou pela janela do quarto a piscina do hotel e achou-a incrivelmente convidativa, com a água azul- -turquesa cristalina a relampejar entre o edifício e o relvado. Em Tete não havia piscinas assim; a melhor era a do Aero-Clube e mesmo lá a água não tinha aquela transparência.

Despiu a roupa e pôs o fato-de-banho. Nunca fora grande entusiasta de andar de trajo de banho e uma miradela ao espelho recordou-lhe porquê: tinha um gigantesco chumaço entre as pernas que o tecido elástico do fato-de-banho avolumava ainda mais. Para dizer a verdade, era embaraçoso.

Mas que podia fazer? Deixar de ir à praia ou à piscina? Ir de calças? Havia situações em que não podia evitar o fato-de-banho e, apesar de se sentir complexado, a verdade era que, se quisesse gozar a piscina do hotel, teria de se submeter.

Desceu até à piscina e pediu um whisky, que depositou na mesinha ao lado da espreguiçadeira onde se alongou. À frente dele, o Índico estendia-se tranquilo aos pés da elegante urbe, resplandecente nas suas características águas azul-claras. De copo na mão, pôs-se a apreciar a magnífica vista sobre o mar, o porto e a Baixa da cidade.

Deu uns mergulhos nas águas tépidas da piscina, embora sem nunca sair da zona onde tinha pé, e secou ao sol até a tarde se aproximar do fim. Fazia ainda calor e, sentindo uma deliciosa languidez entorpecer-lhe os movimentos, ficou a contemplar o esplendoroso pôr do Sol que rasgava o céu com vigorosas pinceladas púrpura, entre clarões dourados e roxos; dizia-se que o crepúsculo no Cardoso era o mais bonito de Lourenço Marques e o soberbo espectáculo celeste que se desenrolava diante dos seus olhos parecia confirmá-lo.

"Puxa, vida! Legal encontrar você aqui!"

A voz feminina com o insólito sotaque anglo-brasileiro fê-lo voltar a cabeça. A fitá-lo estava o rosto sorridente de uma loira enorme, o corpo sardento desenhado como as curvas de uma viola e os seios desproporcionadamente grandes tão apertados no biquini azul que davam a sensação de querer a todo o momento pular para fora.

"Ah!", exclamou, reconhecendo-a. "Olá!"

"Lembra de mim?"

"Como poderia esquecer?", disse ele com um sorriso. Tentou recordar-se do nome, mas não conseguiu. "Você é a... a médica rodesiana."

A loira passou-lhe o olhar pelo corpo e ficou momentaneamente presa ao fato-de-banho dele, como se visse e não acreditasse, mas depressa se recompôs e a face retomou uma expressão luminosa.

"Eu também não esqueci você", murmurou com uma certa malícia. "José, não é? Veio de férias?"

"Trabalho", corrigiu ele. "E você?"

"Fiquei uma semana no Songo e estou indo agora para Salisbúria. Mas como passei por Lourenço Marques pensei para mim mesma: Nicole, cadê o seu espírito de aventura? Porque você não tira uns diazinhos de férias? Esse sítio é legal. E aqui estou eu!"

Chamava-se Nicole, lembrou-se José.

"Isto é realmente agradável", observou ele, exibindo com um gesto o espaço em redor. "Fica cá até quando?"

Nicole esboçou uma careta, como se fizesse beicinho.

"Vou depois de amanhã pegar um voo para a Rodésia", disse, evidentemente contrariada. "Mas quando as coisas arrancarem a sério em Cabora Bassa vou visitar com frequência o Songo. Acha que posso procurar você?"

"Sim, claro. Sempre que quiser."

"Jóia! Assim podemos discutir os... os problemas sanitários, né?"

"Com certeza."

A rodesiana espreitou o relógio.

"Puxa, vida! São quase sete horas!", exclamou. Pousou os olhos azuis no seu interlocutor. "Estou ficando com fome. Você não quer vir jantar comigo?"

A proposta arrancou uma hesitação de José, mas tomou um ar pesaroso.

"Não posso", disse. "Já tenho um compromisso."

Chegou mais cedo ao restaurante Kanimambo e foi instalar- se numa mesa, de onde ficou a vigiar a porta. Achara estranho o tom de mistério de Albertina ao telefone e presumiu que o amigo andava de novo metido em sarilhos com as autoridades. Quando a viu cruzar a porta e lançar-lhe um sorriso indisfarçavel- mente triste, porém, percebeu que dessa vez os problemas eram mais graves do que supunha.

"O Domingos está preso", anunciou-lhe ela logo que se sentou. "Meteram-no na Machava."

O anúncio apanhou-o com a força de um murro desferido de surpresa no estômago.

"Preso?", balbuciou, estupefacto. "Mas... porquê?"

Albertina revirou os olhos e suspirou com resignação.

"Ora, porquê? Pelos motivos do costume, claro. Os tipos da PIDE andavam a vigiá-lo e descobriram que o Domingos integrava o núcleo da Frelimo aqui em Lourenço Marques. Ele, o Craveirinha, o Honwana, o Malangatana e toda a malta. De maneira que os acusaram de subversão e prenderam-nos."

"Meu Deus!", exclamou, sem saber exactamente o que dizer. Era a primeira vez que tinha um amigo atrás das grades e não sabia como proceder numa situação dessas. "Como está ele?"

"Vai-se aguentando, considerando as circunstâncias." Esboçou uma careta. "Aquilo é maningue chato. A Machava está a abarrotar de detidos e há celas individuais onde meteram mais de dez reclusos. Parecem atum em conserva. Como nem sequer

têm cama para dormir, estendem-se numa manta de algodão."

"O Domingos também?"

"Felizmente não", murmurou ela. "Deixaram-no sozinho numa cela com cama, graças a Deus.

Tem um penico e come no chão, mas ao menos está bem melhor do que a maioria."

"Achas que é possível visitá-lo?"

Ela abanou a cabeça.

"Estás maluco? Claro que não!"


"E tu? Como te sentes?"

"Melhor do que ele", observou Albertina com um sorriso fraco. "Além da situação do Domingos, custa-me ver o trabalho destruído. Sabes, ao prender o Domingos e o resto do pessoal, a PIDE

conseguiu de uma assentada desmantelar todas as estruturas da Frelimo no Sul de Moçambique.

Não sobrou nada de nada."

O amigo fez uma expressão contemplativa enquanto considerava o que acabara de escutar.

"Há aí uma coisa que não percebo", murmurou. "Não achas estranho que o tenham separado dos restantes presos? Quer dizer, se o consideram um subversivo seria normal que..."

"Foi Salazar."

"Perdão?"

"O presidente do Conselho impediu que o maltratassem. Sabes que se encontraram os dois em Lisboa, não sabes?"

José arregalou os olhos, incrédulo.

"O Domingos esteve com Salazar?", perguntou, atónito. "Com o Toninho? Estás a gozar!..."

"Ai não sabias? Foi uns meses antes de a guerra começar. Depois daquela chatice convosco em João Belo, ele foi a Lisboa tratar de umas coisas e, quando quis regressar, a PIDE apreendeu-lhe o passaporte. Como não tinha nada a perder, o Domingos pediu para falar com o presidente do Conselho. Não que alimentasse maningue expectativas, mas pelo menos ficava com a consciência de ter tentado tudo. Agora hás-de imaginar a surpresa que ele teve quando foi chamado para uma reunião com o homem."

"A sério? O Toninho mandou-o chamar?"

"A vida tem destas surpresas", assentiu Albertina. "Salazar recebeu-o no gabinete e tudo."

"Isso é extraordinário! E o que aconteceu?"

"Nada de especial. O Salazar disse-lhe que falasse livremente e o Domingos propôs-lhe que fosse criada imediatamente uma comunidade de estados de língua portuguesa, um pouco como a Commonwealth, de modo a manter as nações que fazem parte do império dentro da esfera lusitana e impedir o"avanço do comunismo em África."

"E o Toninho? O que respondeu a isso?"

"Não se mostrou frontalmente contra a ideia, mas disse que o problema era que os movimentos africanos iam interpretar essa proposta como um sinal de fraqueza e exigiriam logo a independência, e isso não podia ser. Depois convidou o Domingos para ser deputado na Assembleia Nacional, coisa que ele recusou, claro."

Passaram o resto do jantar a falar sobre Domingos, mas depressa se tornou evidente que o tema era obsessivo e a conversa acabou por derivar para a vida em Tete e o projecto de José de usar um avião para levar a assistência sanitária a todo o distrito. O médico contou-lhe peripécias das suas aventuras no mato e Albertina apreciou especialmente o episódio da multidão que se juntou no Furancungo porque o feiticeiro branco tinha ressuscitado a leprosa.

Acabaram a refeição e combinaram reencontrar-se no dia seguinte para almoçar.

"Estou com saudades de ir ao Grego", disse Albertina. "O que achas?"

"Está combinado."

José pagou a conta e saíram do restaurante. No momento em que se despediram à porta do Kanimambo, ela agarrou-o pelo braço e fitou-o com intensidade.

"Quando amanhã te encontrares com o governador", pediu antes de entrar no seu carro, "podes perguntar pelo Domingos?"

"Com certeza", prometeu o amigo. "Farei o que puder."A manhã seguinte acordou amena, coisa a que já não estava habituado após tanto tempo submetido à severidade do clima escaldante de Tete. Saiu do Hotel Cardoso impecavelmente vestido de branco, quase como se fosse prestar assistência médica no mato, e à hora marcada apresentou-se no palácio do governo, onde pediu direcções para o gabinete do "senhor governador".

Mandaram-no aguardar numa salinha refrescada por uma grande ventoinha que rodava no tecto, onde se distraiu a ler o Notícias, o principal matutino de Lourenço Marques, e edições recentes de A Bola, que tinham acabado de chegar da Metrópole com novidades frescas sobre o sensacional apuramento do Benfica para mais uma final da Taça dos Campeões Europeus, desta vez para defrontar o Manchester United em Londres. Leu os artigos duas e três vezes, e ao fim de duas horas, quando já quase se sentia esquecido, ouviu o claque matraqueado de um par de saltos altos de sapatos de senhora a tamborilar pelo chão do palácio. Uma figura feminina, pequena e roliça, assomou à porta e fez-lhe sinal.

"Queira acompanhar-me, por favor."O gabinete do governador-geral da província de Moçambique era quase um salão. As paredes estavam cobertas de estantes com livros esmeradamente encadernados, belos quadros e soberbas estatuetas africanas em pau-preto, a maior parte de origem maconde. Havia uma grande bandeira nacional, um retrato do presidente da República e outro do presidente do Conselho, uma grande secretária de madeira exótica ricamente trabalhada e sofás elegantes sobre magníficos tapetes.

"Ora viva, doutor Branco!", trovejou uma voz. "Têm-me falado imenso das suas façanhas!"

Reconheceu o rosto que se aproximava dele de muitas fotografias que ao longo do tempo vira publicadas nos jornais. O governador-geral de Moçambique era um homem de meia-idade, com o corpo seco enfiado num fato manifestamente desajustado para o ambiente tropical. É certo que o dia nascera moderado, como era timbre do clima benigno de Lourenço Marques, mas mesmo assim fazia-lhe impressão ver alguém apresentar-se daquele modo.

"Senhor governador, agradeço-lhe a prontidão com que me recebeu..."

"Não tem de quê! Vai um whiskyzinho?"

"Com soda."

Foi só ao penetrar no gabinete que o visitante percebeu por que razão o seu interlocutor estava assim vestido. E que os aparelhos de ar condicionado encontravam-se na potência máxima e fazia ali dentro um frio quase polar. José sentiu a pele eriçar-se-lhe e esteve à beira de pedir um agasalho, mas conteve-se. Não ia dar parte de fraco.

O governador dirigiu-se ao bar e preparou dois copos de whisky com gelo, um regado a soda e outro a água, e entregou o copo borbulhante ao visitante, convidando-o com um gesto a instalar-se no sofá. Havia vários documentos espalhados pela mesinha, entre pratinhos de caju e um cesto com peças de fruta tropical variada.

"O senhor doutor vai-me desculpar o atraso com que o recebi", disse o anfitrião, acomodando-se ele próprio no sofá.

"A subversão de que estamos a ser alvo a partir dos nossos vizinhos do Norte consome-me muita atenção. Ainda há pouco tive uma reunião não agendada com o general Tomé e já estou atrasado para uma cerimónia de recepção de novas tropas marcada para daqui a pouco ali no porto, de modo que, se não vir inconveniente, vou directo ao assunto."

"Com certeza, senhor governador."

"O governador de Tete enviou-me uma exposição sobre o seu caso que muito me interessou. O

projecto de expandir a assistência humanitária a todo o distrito de Tete pareceu-me pertinente e oportuno. Sei que o senhor tem usado os aviões da Missão de Fomento e do Aero-Clube de Tete, mas que eles não chegam para as encomendas. Acontece que, como é evidente, não cabe à Missão de Fomento envolver-se na assistência sanitária. As suas responsabilidades são outras. O que nos traz à questão essencial: não haverá outro modo de resolver este problema?"

O médico pousou o copo na mesinha e respirou fundo.


"Haver há, senhor governador", indicou. "O que eu preciso é de um avião que esteja em permanência ao meu serviço. Considerando o volume de trabalho em todo o distrito, só assim poderemos dar resposta cabal às necessidades. Se o aparelho é da Missão de Fomento ou de outro organismo qualquer, isso pouco importa. O importante é que tenha capacidade para levantar voo e aterrar em picadas."

"O Aero-Clube de Tete não pode ajudar mais?"

"Eles já me ajudam e continuarão a ajudar. Mas não estão vocacionados para a assistência sanitária, dispõem de recursos limitados e, como calcula, têm outras preocupações."

O governador-geral pôs a mão no queixo e passeou os olhos pelo gabinete, pensativo.

"O que acha, por exemplo, da Força Aérea?", sugeriu. "Há decerto por aí uns aparelhos disponíveis..."

O médico fez um ar momentaneamente meditativo, enquanto considerava a ideia, mas acabou por esboçar uma careta de reprovação e abanar a cabeça.

"Não me parece, senhor governador", disse. "A Força Aérea é uma instituição envolvida em acções de guerra. Julgo que não é adequado associar um serviço de assistência sanitária a uma instituição dessa natureza. Os militares têm as suas prioridades e os médicos civis têm outras, porventura antagónicas. Além disso, que iriam pensar as populações? E como reagiriam os turras?

Não, não me parece adequado utilizar aviões militares."

"Então o que sugere o doutor?"

José encolheu os ombros, entre frustrado e impotente.

"Confesso que não sei", admitiu.

O governador manteve os olhos perscrutadores cravados nele, como se o desafiasse.

"Peça o impossível!"

O médico riu-se, quase desconfortável.

"O impossível? O impossível era comprar um avião, claro. Mas isso..."

Deixou a frase perder-se, consciente de que a ideia era absurda, mas surpreendeu-se ao ver o governador estreitar os olhos, como se levasse a sério a sugestão.

"Quanto custa uma engenhoca dessas?"

A pergunta deixou-o engasgado.

"Um... um avião? Sei lá... muito dinheiro."

"Quanto?"

"Bem... depende do avião, não é verdade? Eu tenho usado um aparelho muito pequeno, um

Piper Tripacer. Só tem dois lugares, mas é adequado para aterrar em picadas no meio do mato. Um

Piper Tripacer é coisa para uns seiscentos contos."

"Vá lá! Sempre é mais barato do que um Super Constellation..."

O médico soltou uma gargalhada nervosa ao ouvir o governador comparar o minúsculo Piper Tripacer com o gigantesco avião comercial usado pela TAP na carreira de África.

"Lá isso é, não há dúvida nenhuma."

"Portanto esse Piper Tripacer é o seu sonho para essa missão..."

José hesitou.

"Sonho, enfim... não direi."

"Ó doutor", exclamou o governador, como um forcado a atiçar o touro. "Peça o impossível!"

O médico engoliu em seco. Atrever-se-ia?

"Bem, o ideal mesmo era um... um Piper Cherokee. Noutro dia andei num avião desses lá no Aero-Clube e achei-o fantástico! Não sei se conhece, é um monomotor ainda suficientemente pequeno para poder aterrar em picadas, mas já dispõe de seis lugares. Nada mau. Além do mais os assentos traseiros são amovíveis, o que permite abrir espaço para transportar o que for necessário: sei lá, medicamentos, equipamento ou até duas macas com pacientes."

"Quanto custa?"

"E um pouco mais caro", retorquiu José, baixando a voz com medo de assustar. "Uns oitocentos contos."

O governador pegou no copo e começou a rodá-lo na mão, observando o gelo a girar no líquido dourado enquanto ponderava o problema. Deixou-se ficar em silêncio alguns segundos, período durante o qual o seu visitante se manteve calado, consciente de que não deveria interromper os pensamentos do anfitrião.

"Digamos que oitocentos contos me parece um valor acessível", sentenciou por fim o governador. "O Governo-Geral da Província pode entrar com trezentos. Acho que posso arranjar mais cem do BNU e outros cem do Montepio. Ficam a faltar os restantes trezentos, não é verdade?

Terá de ser o senhor doutor a arranjá-los."

"Eu, senhor governador?", admirou-se José. "Onde diabo vou eu desencantar trezentos contos?"

O governador inclinou-se para a frente e pousou o copo na mesinha com os olhos presos no seu interlocutor.

"O senhor doutor vai escrever uma carta muito bonitinha ao doutor Victor Sá Machado a expor a sua ideia", disse. "O projecto que o senhor quer erguer em Tete tem uma dimensão humana que decerto irá interessar o doutor Sá Machado."

"O doutor Machado?", interrogou-se José, tentando em vão visualizar um rosto. "Confesso que não estou a ver quem seja..."

O anfitrião espreitou o relógio e, vendo o adiantado da hora, ergueu-se com um movimento enérgico, assinalando assim o fim da reunião.

"Ó doutor, é a Gulbenkian!", exclamou. "A fundação é que lhe vai arranjar o dinheiro que falta!"

O governador acompanhou-o até à porta e estendeu-lhe a mão em despedida. O médico hesitou em apertá-la de imediiato; tinha ainda uma derradeira questão a apresentar-lhe.

"Senhor governador", disse, enchendo-se de coragem para suscitar o assunto. "Se me permite, queria-lhe falar sobre um amigo meu que está detido na Cadeia Central da Machava. Trata-se do..."

"Doutor Rouco", atalhou o governador, antecipando o assunto. "Eu sei."

José olhou desconcertado para o anfitrião.

"Sabe?"

"Sei que são amigos e que ele está na Machava", disse. "Mas não posso fazer grande coisa. O

doutor Rouco infelizmente envolveu-se em actividades subversivas graves e teve de ser preso.

Parece até que já andou a criar problemas na Machava e a incitar outros reclusos à revolta."

Suspirou. "Enfim, é uma coisa desagradável."

"Há alguma possibilidade de... de garantir que ele, ao menos, não é maltratado?"

O governador fitou o médico com uma expressão indecifrável.

"O que vale ao doutor Rouco é ter bons amigos", sentenciou, enigmático. "E, com o devido respeito, não estou a falar do senhor. O doutor Salazar tem-lhe dado uma certa protecção e parece que também o professor Marcello Caetano, que foi professor dele na universidade, anda a tentar protegê-lo. Com este tipo de amigos, nada lhe acontecerá." O anfitrião voltou a estender a mão para se despedir. "Fique descansado que ele vai sair em breve da Machava."

A notícia arrancou um grande sorriso a José, que desta feita devolveu o cumprimento e apertou quase efusivamente a mão que lhe era estendida.

"Ainda bem, senhor governador!", exclamou com evidente alívio. "Ainda bem! Não imagina como fico contente."


O governador voltou-se e deu um passo para regressar ao gabinete, mas deteve-se e lançou um olhar ao visitante, despedindo-se com uma derradeira informação.

"O doutor Rouco vai ser transferido para a Metrópole", revelou. "Ficará detido em Peniche."

E fechou a porta.A primeira coisa que José fez quando abandonou o palácio foi descer até ao centro da cidade, entrar no Café Scala e pedir um telefone. Ligou a Albertina para lhe dar a novidade, mas ninguém atendeu e percebeu que a amiga não estava em casa. Saiu do café e foi ter com o motorista que a Secretaria Provincial de Saúde tinha posto ao seu dispor.

"Leva-me à Costa do Sol."

O automóvel percorreu a grande marginal em ritmo de passeio, as janelas abertas para deixar entrar o ar revigorante do mar. A longa mancha azul do Índico enchia o horizonte à direita, apenas recortada pela longínqua ilha da Inhaca. O areal das praias começava junto ao alcatrão e estava semeado de árvores, sobretudo ao lado da marginal. Viam-se revoadas de mulheres que aproveitavam a sombra das copas para se protegerem do calor e venderem capulanas coloridas, enquanto alguns rapazes andrajosos acenavam com sacos de caju e homens fardados de branco aguardavam ao lado de enormes frigoríficos motorizados da Esquimó que lhes comprassem os sorvetes.A marginal desembocou num grande parque de estacionamento onde já havia poucos lugares. O médico saiu do carro, tirou os sapatos e calcorreou o areal da praia até molhar os pés à borda da água. Deu alguns passos com o mar sempre rasteiro e viu cem metros adiante pessoas que tinham a água apenas pela cintura, mas José nunca aprendera a nadar e preferiu voltar para trás e instalar-se à sombra de um pinheiro.

Quando a hora chegou calçou os sapatos e caminhou até ao restaurante, um edifício longo em Art déco, branco como se fosse de cal e com a vasta varanda entremeada por colunas azuis que sustentavam o primeiro andar. O estabelecimento chamava-se Restaurante Costa do Sol, mas todos o conheciam por O Grego, devido à nacionalidade do proprietário. Varreu a varanda com o olhar e não a descortinou. Ainda pensou em voltar mais um bocado para a praia, mas verificou que já havia poucas mesas livres e achou que o mais prudente seria ocupar uma delas.

Albertina chegou atrasada. Não explicou os motivos e o amigo presumiu que houvesse política pelo meio, ou talvez apenas esforços mais ou menos confidenciais para chegar ao marido, pelo que nada lhe perguntou. Pediram um prato de camarões grelhados, especialidade da casa, e duas

Laurentinas, e quando o empregado se afastou José deu-lhe a novidade de que o marido ia ser transferido para uma cadeia da Metrópole.

"Não me surpreende nada", disse ela com o rosto fechado. "Fizeram uma lei a permitir transferências de reclusos entre a Metrópole e o Ultramar. Sempre suspeitei que essa lei foi feita a pensar exclusivamente nele."

"Vê a coisa pelo lado positivo", sugeriu o amigo. "Isso significa que se querem assegurar de que nada lhe acontece e é bem tratado. O governador confirmou-me que até o Toninho o protege."

Conversaram sobre o encontro que José tivera nessa manhã e só mudaram de tema quando os camarões foram servidos. Estavam deliciosos, como de costume no Grego, e perceberam que era impossível continuar a falar de desgraças enquanto se lambuzavam com semelhante iguaria. O tom tornou-se assim mais ligeiro.

O médico estava preocupado com a mulher do amigo e sentia uma certa responsabilidade para com ela, em particular naquelas circunstâncias, pelo que a acompanhou todo o dia. Depois do almoço foram passear na Baixa e ver uma fita americana no Cine Varietá.

No fim decidiram ir jantar ao local mais fino de Lourenço Marques. Como era seu hábito, a melhor sociedade laurentina juntara-se no ambiente requintado da esplanada do Hotel Polana.


Entre copos de whisky e champanhe servidos por empregados impecavelmente fardados, os frequentadores da esplanada discutiam a vivenda com que sonhavam no magnífico bairro vizinho de Sommerschield, com jardim e piscina azul- turquesa, ou o fim-de-semana espectacular que iriam passar à Ponta do Ouro, ao Bilene ou à ilha da Inhaca, a mesma ilha cujas luzes ténues cintilavam na mancha escura do Indico diante do hotel; pareciam dançarinas a seduzir os refinados frequentadores da esplanada do Polana.

"As pessoas aqui em Lourenço Marques não fazem ideia de que há uma guerra a ser travada em Moçambique", observou Albertina, após uma pausa em que escutaram a conversa numa mesa vizinha. "Acham que existem uns problemazitos de bandidagem lá no Norte e é tudo. Algumas chegam a dizer que é um exagero mandar tanta tropa para lá!..."

Depois de deixar a amiga em casa, José voltou para o Cardoso e combinou com o motorista que o recolhesse logo pela manhã para o levar ao aeroporto. O dia havia sido longo e foi com alívio que chegou diante da porta do quarto. Estava cansado e só queria atirar-se para a cama e dormir.

Meteu a chave na fechadura e abriu a porta.

A cama estava feita, como seria de esperar, mas estranhou ver umas jeans dobradas em cima da cadeira. Não usava calças de ganga e estacou, num instante de total perplexidade, até perceber o que acontecera: tinha-se enganado no quarto! Recuou um passo e voltou para a porta, mas ao girar o corpo viu uma mala pousada no chão e reconheceu-a. Era a sua mala. Ou pelo menos tratava-se de uma mala igualzinha à sua. Ficou momentaneamente desconcertado, sem saber o que pensar nem como proceder. Estava ou não no seu quarto? Olhou para o número da chave, 206, e para o número da porta, 206.

"Oi!", exclamou uma voz atrás dele. "Você já chegou?"

O sotaque anglo-brasileiro era inconfundível. Virou-se e viu Nicole aparecer do quarto de banho no meio de uma nuvem de vapor e envolvida numa toalha do hotel; o cabelo loiro molhado parecia palha que lhe descaía sobre os ombros nus e os olhos azuis expressivos apresentavam-se dilatados, como berlindes gigantes.

"O que está aqui a fazer?"

A rodesiana esboçou uma expressão fingidamente infeliz.

"O meu banheiro quebrou", lamentou-se. "Não tinha água e tive de vir aqui tomar um banho.

Você não se importa, pois não?"

José olhava-a com incredulidade, ainda sem perceber o que sucedia.

"Mas... mas como?", gaguejou. "Como entrou no quarto?"

"Falei com o mocinho e banquei de distraída. Disse para ele que tinha perdido a chave e que você era o meu namorado e que precisava muito de entrar. Aí ele abriu a porta."

O médico manteve o olhar preso nela enquanto raciocinava. O quarto de banho de Nicole ficara sem água e ela viera para o dele tomar banho? Aquela história não batia certo. Aliás, bastava vê-la enrolada na toalha, descontraída e sorridente, para perceber que nada daquilo tinha sido um acaso.

Teve vontade de a mandar vestir-se e sair, mas apercebeu-se de que o seu corpo vibrava de excitação, alheio à sua vontade. Foi como se a mente se tivesse dividido. Uma voz prudente lembrou-lhe que era um homem casado e que o tempo para aquelas folias já passara, mas depressa outra sublinhou que ele nunca tinha tocado numa estrangeira e que aquela se oferecia toda e Mimicas não estava ali e que teria de ser mesmo um grande tolo e um totó do tamanho da Torre dos Clérigos se não aproveitasse aquela ocasião única para saborear uma mulher tão invulgar quanto esplendorosa.

Sentia-se dividido. Foi como se a rodesiana tivesse intuído o seu conflito interior porque, mesmo no auge da dúvida, quando o dilema o dilacerava e ele procurava ver claro na névoa entorpecedora do desejo, Nicole deixou tombar a toalha aos pés e revelou o corpo sinuoso e os seios desproporcionadamente grandes adornados por mamilos largos e rosados, como chupetas gigantes, e a púbis dourada como José nunca tinha visto nem sabia existir.

"Tenho frio", murmurou ela.

Com um movimento inesperadamente rápido e descarado, apalpou-o entre as pernas e ronronou, obviamente agradada com o que sentia na mão. Aproximou o rosto devagar, os olhos expectantes e a boca entreaberta numa expressão lasciva de gata com cio, e com um novo gesto súbito esticou a língua ardente e lambeu-lhe os lábios. Foi o golpe de misericórdia.

Incapaz de se controlar mais um segundo que fosse, a vontade derretida pelo calor da sedução, José abandonou-se ao monstro que lhe tomou conta do corpo.A vida desportiva de Diogo Meireles adquiriu tons triunfais com a gloriosa camisola azul e branca no corpo. Os campeonatos pelas cores do FC Porto sucediam-se e as internacionalizações também. Num só ano foi juvenil, júnior e sénior, vencendo todas as competições nacionais que disputou.

Assumiu-se como a vedeta da equipa e as suas conquistas, impressionantes nos campos de voleibol, estenderam-se de repente a outras modalidades. Graças ao seu olhar terno e às longas patilhas à Beatles de cabelo castanho rebelde, tornou-se a principal atracção das espectadoras.

É verdade que as raparigas do Liceu de Gaia, com uma ou outra excepção, nunca lhe suscitaram grande interesse; as batas escolares tornavam-nas banais, quase assexuadas. No entanto, as espectadoras dos jogos eram diferentes. Muitas aperaltavam- se para assistir às partidas do FC

Porto, exibindo profundos decotes e vestidos justos que lhes acentuavam as formas. No final das partidas, algumas aguardavam-no à saída dos balneários para pedir um simples autógrafo ou até a querer tirar fotografias ao lado dele."Gosto muito de te ver jogar", disse-lhe uma morena, pestanejando os olhos verdes, uma das primeiras vezes que Diogo se viu assediado à porta do balneário. "Tens muito estilo."

Voltou a vê-la no jogo seguinte e, vencendo a timidez, arrancou-lhe o nome.

"Chamas-te Julieta?", admirou-se Diogo, que viu ali pretexto para um piropo. Sentiu-se ruborizar, sem saber se teria coragem para o lançar. "Eu... sabes o que gostaria?"

Ela fitou-o com expectativa, o verde dos olhos a luzir de emoção.

"O quê?"

Atrever-se-ia?

"De ser o teu Romeu."

Não era dos piropos mais originais que Julieta alguma vez ouvira; na realidade o nome de Romeu tendia a vir à baila sempre que ela se apresentava a alguém, mas já se resignara àquela sina shakespeariana e a frase infinitamente batida em nada diminuiu o seu interesse pelo rapaz de olhar sonhador e cabelos revoltos.

Palavra puxa frase e daí a pouco estavam ambos a tomar um cimbalino num dos cafés mais frequentados da zona das Antas. O cimbalino no Café Bom Dia transformou-se numa francesinha para o lanche no Café Velasquez e a sobremesa veio quando Diogo venceu enfim a timidez e lhe saboreou os lábios trémulos e a língua escaldante que lhe soube a doce e lhe abriu o apetite para outras sobremesas.

O pavilhão das Antas estava nessa noite encerrado, mas com a cumplicidade do roupeiro o craque da equipa de voleibol levou a sua Julieta para o balneário das equipas adversárias, onde se sabia à vontade, e entre gemidos e suspiros descontrolados perdeu a virgindade sobre a marquesa das massagens.


A relação com Julieta parecia promissora, até porque se tratava de rapariga meiga e divertida, mas logo três semanas depois uma tal Margarida pediu-lhe um autógrafo à saída do pavilhão de Espinho. A Guidinha, como fez questão de ser chamada, também era morena, mas de olhos castanho-claros e um peito que fez o rapaz sonhar com a Gina Lollobrigida.

Não resistiu à força da dupla argumentação e, após uma refrega intensa no banco traseiro do

Vauxball Viva dos pais dela, num recanto escondido entre pinheiros junto à praia de Espinho, decidiu trocar de namorada. Isto, claro, até conhecer a Laura da boca marota no intervalo de um jogo com o Leixões, a meio do mês seguinte.

A verdade é que nenhuma destas relações sucessivas teve consequências duradouras; as moças queriam romance e estabilidade, ele preferia ficar-se pelo sexo e pela novidade. O que lhe valia é que, atrás de cada rapariga vinha sempre uma nova para fruir, elas atraídas pelo esplendor que o galã da equipa irradiava, ele garantindo à custa disso que as experiências novas prosseguiam sem cessar.

As coisas corriam, pois, de feição a Diogo. Até ao dia em que, em vésperas de uma deslocação à Argélia para defrontar a selecção local, chegou a casa e ouviu a mãe chamá-lo da cozinha.

"Diogo?! És tu?"

"Sim, mãe. O que é?"

"Chegou correio para ti."

Pensou que fosse uma carta de Angelino, o amigo não lhe escrevia havia já algum tempo, e apressou o passo até à cozinha. Mas quando cruzou a porta e surpreendeu os olhos húmidos e avermelhados da mãe desconfiou. Tinha estado a chorar. Desviou de imediato a atenção para o envelope que lhe dançava entre os dedos nervosos e sentiu um baque cortar-lhe o ar. Más notícias, percebeu. Teria havido uma tragédia? Teria alguém morrido? Um turbilhão de hipóteses aflorou-lhe à mente em catadupa, cada uma mais terrível do que a outra, como se tivesse mergulhado numa cascata de medos.

"O... o que foi? De quem é essa carta?"

A mãe estendeu-lhe o sobrescrito com uma expressão triste a toldar-lhe o olhar.

"É das Forças Armadas."A rua inclinava-se para cima mas a rapariga não desanimou e continuou a correr em passadas largas, a mente fixa na hora a que terminavam as visitas. Não completou muitos passos porque a inclinação ascendente começou a pesar-lhe nas pernas; as coxas tornaram-se tão pesadas que lhe pareciam cimento e os pulmões ardiam com o ar quente.

"Tenho de chegar antes das três", murmurou de respiração entrecortada, num esforço para se motivar e buscar energias onde as perdia. "Às três fecha." A respiração era já um resfolegar intenso.

"Força! Tenho de conseguir!"

A rua parecia inclinar-se ainda mais e a rapariga, olhando para a curva que não parava de subir, sentiu-se desanimar.

"Não posso mais!", expirou. "Não posso..."

Esforçava-se por continuar a correr, por lutar contra o desfalecimento iminente, mas as pernas deixaram de lhe obedecer e, já insensíveis, como pedras que escapam ao controlo, enroscaram-se uma na outra e a rua começou a rodopiar e a rapariga viu-se de repente no chão e a mente num torvelinho e os pulmões exangues e o corpo dorido.Uma dor raspada nasceu-lhe dos joelhos.

"Ai!", gemeu.

Ofegante, ficou um longo instante a tentar regularizar a respiração. Quando sentiu as forças voltarem, olhou em redor e fixou o corpo. Começou a perceber que se estatelara no passeio. Mexeu as pernas e a dor nos joelhos recrudesceu.

"Ai, ai, ai!"


Levantou devagar um joelho e viu-o esfolado, as peles de chocolate rasgadas e o sangue a pingar num vermelho-escuro. Caíra mal. Tentou erguer-se, mas uma pontada no outro joelho fez-lhe ver que teria dificuldades.

Ouviu o som surdo de uma porta a bater e voltou a cabeça. Um Opel branco de capota azul imobilizara-se na berma da rua. Viu uns sapatos brancos a aproximarem-se.

"Então? Caíste, miúda?"

Era uma voz de homem e falava português como os da Metrópole. A rapariga levantou a cabeça e fitou o desconhecido. O homem vestia todo de branco e inclinava-se na sua direcção, os olhos castanhos a avaliarem os joelhos ensanguentados.

"Dói-te muito?"

A rapariga gemeu e assentiu com a cabeça. Depois de estudar a posição do corpo, o recém-chegado pôs-lhe as mãos nos braços e levantou-a com cuidado.

"Anda, vou-te levar ao hospital."

Ao sentir o movimento, a rapariga gemeu com mais força. "Dói!"

O desconhecido de branco suavizou os gestos, mas continuou a erguê-la.

"Eu sei, miúda. Já vamos tratar disso, não te preocupes."

O homem segurou-a bem e encaminhou-a devagar para o Opel. Abriu a porta, instalou-a no assento do passageiro e, contornando a viatura pela frente, foi ele próprio sentar-se no lugar do condutor. Ligou a ignição, fez marcha atrás, posicionou o carro e começou a subir a rua.

"Então? Estás melhor?"

A rapariga cerrou os dentes, num esforço para controlar a dor, e fez que sim com a cabeça.

"Como te chamas?"

"Sheila."

O homem de branco mantinha os olhos na estrada, mas uma vez por outra olhava-a para se certificar de que ela se encontrava bem.


"Onde ias tu com tanta pressa?"

"Ao hospital."

Intimidada pelo desconhecido, Sheila respondia por monossílabos. Não estava habituada a lidar com brancos da Metrópole, que habitualmente apenas via à distância e que a deixavam pouco à vontade quando por acaso se aproximavam.

"Bem, para o hospital vais tu agora", disse ele. "Mas o que ias lá fazer, não me dizes?"

"Ia ver a vovó."

O condutor olhou-a de relance com um brilho levemente intrigado.

"A tua avó está no hospital?"

A rapariga confirmou com um gesto rápido da cabeça.

"O que tem ela?"

"Bilharziose."

O homem de branco cerrou o sobrolho enquanto a mente processava a informação.

"Bilharziose, hem?", murmurou, embora fosse claro que a observação era retórica, formulada mais para ele próprio do que para ela. Como se a mente lhe tivesse fornecido a resposta, arregalou os olhos. "Não me digas que a tua avó é a senhora da cama 14..."

Ao ouvir a referência, o olhar da rapariga iluminou-se e assumiu uma expressão admirada.

"lá", confirmou. "Como sabe?"

O homem de branco sorriu.

"Sou o director do hospital", identificou-se.

Sheila carregou as sobrancelhas, desconfiada. Já ouvira inúmeras referências ao director do hospital e com certeza não era aquele.

"O senhor é o director do hospital?"

Formulou a pergunta numa voz desconfiada, deixando claro pelo tom que sabia muito bem quem era o responsável pelo hospital e que não se deixaria ludibriar pela primeira patranha que lhe contassem.

"Sou pois."

A rapariga abanou a cabeça, desaprovadora. Não gostava que se divertissem com ela.

"Oh, está a brincar! Toda a gente sabe que o director é o doutor Branco."

O homem ao volante voltou o rosto para a frente e, com a rua já a nivelar-se na horizontal, pôs o pé no travão e abrandou diante do portão do hospital.

"E quem pensas tu que eu sou?"

A irmã Lúcia esticou o adesivo, cortou uma faixa e assentou-a sobre o algodão. Repetiu o gesto instantes depois, mas colou a nova faixa de adesivo na perpendicular, em cruz. Apesar de estar ajoelhada perante a jovem paciente, recuou e contemplou o curativo com uma expressão aprovadora.

"Está feito!"

A freira ergueu-se e ajudou a rapariga a descer da marquesa.

"Ainda dói um bocadinho", constatou Sheila.

"Já pasa", disse a irmã Lúcia no seu português espanholado, habituada que estava a coisas bem piores. " Puedes ir para casa."

A rapariga fez beicinho.

"Mas eu quero ver a minha vovó..."

"La hora de las visitas já acabou, minha nina", anunciou a freira. "Vais ter de voltar mariana."

Sheila suspirou, resignada, e andou com cuidado em direcção à porta. A irmã Lúcia ficou a observá-la, tentando perceber se ela estava em condições de fazer caminhadas. O ar dorido da rapariga deixou-a na dúvida.

"Escucba, onde vais?"

"Para casa, claro." "A pé?"

Sheila pareceu embasbacada.

"Pois... iá, claro."

A freira fez uma careta e, vencendo uma hesitação, esticou a cabeça em direcção ao corredor.

"Doutor Branco!"

"Sim, Lúcia? O que é?"

A voz do director viera do gabinete no fundo do corredor.

"La nina vai para casa, pero mal puede andar."

O médico emergiu da porta e aproximou-se; tinha o estetoscópio ao peito e um semblante interrogador.

"Então, Sheila? Já não queres ver a tua avó?"

A rapariga olhou para a freira espanhola, atrapalhada, e baixou a cabeça.

"A irmã Lúcia disse que a hora das visitas já acabou..."

José Branco parou diante da jovem paciente e passou-lhe os olhos pelos joelhos para se certificar de que os curativos estavam devidamente aplicados. Precaução inútil, sabia muito bem. A minúscula irmã Lúcia era conscienciosa nos seus deveres.

"E disse maningue bem", afirmou. "Mas acho que desta vez podemos abrir uma excepção." Fez um sinal com a cabeça. "Anda daí, vamos lá ver a tua avó."


Sheila arregalou os olhos negros.

"A sério?"

"Ficas cá o tempo que quiseres e, quando tiveres de te ir embora, avisas aqui a irmã Lúcia, ouviste?" O médico virou-se para a freira. "O Lúcia, o Luís depois que a leve a casa."

"Muy bien."

O director abandonou o edifício principal com a rapariga atrás dele, atravessou o pátio e entrou numa enfermaria. Percorreu as camas até se imobilizar aos pés da 14. Uma velha de cabelo branco e corpo engelhado fitou-o com curiosidade.

"Dona Aissa, tenho aqui uma visita para si."

Os olhos da velha deslizaram para a figura delgada que apareceu atrás do médico.

"Sheila! O que estás aqui a fazer?"

"Vim visitá-la, vovó."

"A esta hora? O que tens nos joelhos?"

Alheando-se da conversa entre neta e avó, José Branco pegou no relatório clínico da paciente pregado ao gradeamento da cama e estudou-o. O documento era assinado pelo doutor Feitor e referenciava o diagnóstico de bilharziose em Aissa Mussa. Estava-lhe a ser ministrado Ambilhar, medicamento adequado para aquelas situações, mas o director do hospital sabia que aquele fármaco produzia perturbações no sistema nervoso central. Fez um esforço de memória e lembrou-se que tinha sido ele próprio quem dera ordem de baixa à paciente após um episódio em que ela nem a família reconhecera.

Arrumou o relatório e pigarreou, interrompendo a conversa entre as duas.

"Então, dona Aissa? Como se sente hoje?"

A paciente virou o rosto macilento para ele.

"Vai-se andando, senhor doutor. Às vezes tenho umas dorzinhas, mas aguenta-se."

"Ainda deita sangue quando tosse?"

Acto contínuo a idosa tossiu, provavelmente sugestionada pela pergunta. Depois respirou fundo.

"Um pouquinho, sim. Mas já está melhor."

"E as fezes?"

A palavra extraiu uma expressão opaca de Aissa.

"Como diz, senhor doutor?"

"O cocó", esclareceu ele. "Apareceu algum sangue no cocó?"

A mulher olhou de relance para a neta, talvez melindrada por abordar diante dela um assunto tão embaraçoso.

"Também está melhor, senhor doutor", murmurou. "O sangue aparece menos vezes."

"Quando foi a última vez?"

"Ontem depois do almoço. Iá. Mas foi só um pedacito."

O médico aproximou-se da mesinha-de-cabeceira e pegou na pequena embalagem branca de

Ambilbar ali pousada.

"Tem-se dado bem com o remédio?"

A mulher fez uma careta.

"Às vezes fico um poucochinho baralhada."

"Não há-de estar assim tão mal", observou José com um sorriso amigável. "Ainda há instantes não teve qualquer dificuldade em reconhecer a sua neta..."

Aissa voltou o rosto para a rapariga, estendeu a mão fraca para lhe tocar no braço e sorriu, exibindo a boca desdentada.

"Hoje não, graças a Deus. Reconheci a minha Sheila maningue bem. Alá é grande!"

"E o resto da família? Tem reconhecido toda a gente quando a vêm visitar?"

"Qual resto da família, senhor doutor?"

Os olhos desconcertados de José dançaram entre Aissa e Sheila, como se procurassem resposta para a pergunta inesperada.

"Bem... sei lá", gaguejou. "Os pais da sua neta, por exemplo. Não vieram ver a senhora?"

A mão fria de Aissa cravou-se com mais força no braço da rapariga a seu lado.

"A Sheila é órfã, senhor doutor. A minha filha morreu quando a Sheila tinha cinco anos e depois faleceu o meu genro. Agora sou eu quem trata dela, coitadinha. Dela e dos irmãos mais novos, o Maomé e o Malaquias. Estão todos ao meu cuidado."

O director do hospital coçou a cabeça.

"Então e agora que a senhora está internada quem cuida dos seus netos?"

Aissa suspirou pesadamente.

"Ai, senhor doutor! Nem me fale nisso! Eles estão entregues a si mesmos, coitadinhos! Ando maningue ralada com isto! Nem imagina!" Fez um gesto vago indicando a cama onde estava deitada. "Mas que posso eu fazer, senhor doutor? Estou aqui internada e não tenho modo de os ajudar..."

"Os seus netos estão entregues a si mesmos?"

"Alá é grande e cuidará deles."

O médico apoiou-se noutra perna, incomodado e repentinamente impaciente.

"Oiça, não é que eu queira duvidar dos poderes de Alá, mas parece-me que isso não chega."

"Que posso eu fazer, senhor doutor?", perguntou ela num queixume. "Foi o senhor mesmo que me internou, sabe muito bem que não posso sair daqui..."

José olhou pensativamente para a rapariga. Sheila era uma moça bonita de pele trigueira, estranha mistura de português e negro, mas com o indiano a dominar; tinha um rosto bolachudo, longos cabelos negros e um olhar vivo.

"Olha lá, Sheila", interpelou-a. "O que sabes tu fazer?"

A rapariga quase se encolheu quando percebeu que era a ela que o director do hospital se dirigia.

"Eu, senhor doutor? Estou a aprender costura."

"E gostas?"

Sheila baixou a cabeça e manteve-se calada, como se tivesse vergonha de falar sobre o assunto.

Foi a avó que respondeu no seu lugar.

"Ela não gosta, mas tem de ser. Precisamos que faça uns tostões lá para casa, senhor doutor."

O médico cravou o olhar na rapariga, que se mantinha cabisbaixa, e sentiu uma inexplicável piedade dela.

"Não queres ser costureira?"

Sheila abanou a cabeça quase imperceptivelmente.

"Então o que gostarias tu de ser?"

Ela respirou fundo, como se ganhasse coragem, e olhou timidamente em redor. A enfermaria recortava-se sob a meia-luz metálica do início da noite; um clarão ténue fluía pelas janelas e desenhava com as sombras bizarras figuras espectrais que se estendiam no chão e trepavam pelas paredes. No exterior tinham sido ligadas lâmpadas amarelas, atraindo insectos zumbidores e projectando um halo irreal nos corredores. Alguns pacientes tossiam e outros gemiam de mansinho, os movimentos quebrados sob os lençóis, se calhar alheios, talvez atentos à conversa que se rumorava na cama 14 e que por momentos ficara suspensa.

Vencendo a timidez, Sheila ergueu por fim a cabeça e encarou o director do hospital.

"Enfermeira."

, *

Havia já algum tempo que José Branco sentia necessidade de ter uma enfermeira oriunda da zona onde operava. Além das freiras, as enfermeiras que serviam no hospital eram portuguesas ou cabo-verdianas e não entendiam nhungué, o dialecto de Tete. Precisava por isso de recrutar uma pessoa da terra.

Além do mais, as necessidades de serviço iriam em breve sofrer um incremento significativo. O

BNU e o Montepio tinham aprovado o donativo solicitado pelo governador-geral e a Gulbenkian aceitara entrar com o dinheiro que faltava para comprar o avião. A fundação mostrara-se de tal modo entusiasmada com a ideia que até se comprometera a pagar os dois primeiros anos de manutenção do aparelho. O dinheiro não dava ainda para contratar um piloto, e por isso ele próprio já começara a ter lições no Aero-Clube de Tete e esperava tirar o brevet daí a pouco tempo.

Por outro lado, as responsabilidades de José haviam sido alargadas. Fora recentemente nomeado delegado de saúde e ainda presidente da Cruz Vermelha de Tete.

As coisas avançavam depressa, pelo que precisava de compor um quadro de pessoal sanitário adequado. Aquela rapariga falava fluentemente português e nhungué e queria ser enfermeira.

Qual a dúvida?

Depois de ponderar a situação, pediu a Lúcia que mandasse Sheila ir ter com ele quando aparecesse no hospital para ver a avó. Isso aconteceu logo na tarde do dia seguinte. O médico acompanhava um paciente à porta quando viu a rapariga sentada diante do seu gabinete; mandou-a entrar e sentar-se na cadeira habitualmente reservada aos doentes.

"Queres vir trabalhar aqui para o hospital?", propôs-lhe. "Temos uma vaga para recepcionista."

O olhar da rapariga incendiou-se.

"Está a falar a sério, senhor doutor?"

"Tenho por acaso ar de brincalhão?", perguntou o médico, fingindo uma expressão severa.

"Claro que estou. Queres ou não o lugar?"

"Quero, pois!", aceitou ela apressadamente, quase com medo de que a proposta fosse retirada, mas de imediato esboçou uma expressão inquisitiva. "O que faz uma recepcionista, senhor doutor?"

"Uma recepcionista recebe os pacientes", explicou ele. "Preciso de alguém que fale nhungué e que faça com que as pessoas se sintam bem acolhidas. Dentro em breve é possível que tenhamos um avião que traga doentes que se encontram no meio do mato e que nem português falam. Vais ter de falar com eles, traduzir o que dizem e o que lhes dizemos e fazer com que não estranhem em demasia o ambiente que vão aqui encontrar. Achas-te à altura dessa tarefa?"

Sheila sentia-se tão excitada que não conseguiu permanecer no seu lugar. Ergueu-se por isso de um salto, como se tivesse sido impelida por uma mola, o entusiasmo a fervilhar-lhe no corpo.

"Quando começo?"

O director do hospital sorriu ao vê-la tão excitada.

"Segunda-feira."

A tarefa serviu para testar as capacidades da rapariga. Sheila respondeu com empenho, abraçando as suas funções com a força de quem sabe que a vida é um jogo de oportunidades.

Abandonou de imediato o curso de costura e a sua existência passou a ser dedicada quase exclusivamente ao hospital, onde passava o dia a acompanhar os doentes e a servir de intérprete das suas variadas maleitas.

Algum tempo depois, no final de um dia particularmente cansativo, José Branco deu com a nova recepcionista sentada num banco do varandim do hospital, os olhos a errarem algures pelo pátio interior.

"Então, Sheila? Cansada?"

"Puf, senhor doutor! Nem me diga nada! Apareceu aí uma família inteira com varíola e tive de ajudar o doutor Feitor a falar com eles. Foi a tarde toda nisso!"

O médico calcorreou o varandim e instalou-se no banco ao lado da rapariga.

"Isto é mais duro do que parece", suspirou, também ele fatigado. "Ainda queres ser enfermeira?"

Sheila, que languescia ao calor do final da tarde, ganhou súbita energia, como se nesse instante alguém a tivesse ligado à corrente.

"Então não quero, senhor doutor?! E o meu sonho!"

"Olha que esta vida é difícil!...", observou, a voz arrastada. "Exige força mental, física e espiritual. Uma enfermeira lida com a miséria humana mais degradante e é preciso ser forte para aguentar isso. Este trabalho não é pêra doce, menina! Isto não é vestir a bata e pôr o cup na cabeça e andar por aí a abanar o rabo. Isso é nos filmes, não é a realidade. A realidade é muito dura e requer um grande espírito de sacrifício. Não é qualquer pessoa que pode ser enfermeira."

"Isso já eu percebi, senhor doutor. Basta ver o que se passa neste hospital para entender."

"E então?"

"Continuo a querer ser enfermeira. Já lhe disse que é o meu sonho e nada me fará mudar de ideias."

José Branco contemplou o perfil escurecido de um embondeiro recortado pelo céu avermelhado do pôr do Sol e voltou a suspirar; desta feita, contudo, o suspiro era o de quem acabara de tomar uma decisão.

"Que idade tens tu?"

"Dezassete anos, senhor doutor."

O médico levantou-se do banco com esforço e endireitou-se, alongando o tronco como se o exercitasse.

"Muito bem!", disse. "Vou falar com Lourenço Marques e submeter o teu nome a candidatura."

O mais difícil foi convencer a avó. Aissa nem queria ouvir falar em deixar a neta sair de casa para ir a uma cidade longínqua lá no Sul, ainda por cima com reputação de urbe licenciosa, submeter-se ao exame de candidatura ao curso de Enfermagem.

"Xi, patrão! Aquilo não é sítio para a minha Sheila!"

Confrontado com a intransigência da idosa, que entretanto já tivera alta e regressara à sua palhota para criar os três netos, José moveu influências e conseguiu convencer as autoridades sanitárias da província a voarem até Tete para fazerem o exame à jovem candidata.

No dia do teste, Sheila entrou na sala a tremer de nervosismo. Começou a responder às perguntas com o coração na boca, a garganta apertada e as mãos a tremerem, mas ao fim de alguns minutos sentiu que dominava a situação e foi-se acalmando. A experiência que já acumulara a trabalhar no hospital revelou-se decisiva e, para sua própria surpresa, deu-lhe respostas para todas as questões que lhe apresentaram.

Quando semanas depois vieram os resultados dos exames a todas as candidatas de Moçambique, aguardava-a uma novidade. Ficara em primeiro lugar. Tratava-se de uma vitória, mas também de um problema. É que o curso de Enfermagem era ministrado em Lourenço Marques e não havia ginástica nem jogo de influências que resolvesse isso.


"Não, não!", disse Aissa peremptoriamente, ao ouvir expor a ideia. "Nem pensar!"

José Branco já aguardava aquela resposta, mas sabia que teria de ser persistente e inteligente.

"Oiça, eu pago os estudos."

"Não é isso, senhor doutor! Eu não quero a minha neta lá em Lourenço Marques! Aquilo é terra maningue depravada!"

"Que é isso, Aissa? Não há depravação nenhuma!"

"Então não há, senhor doutor?! Então eu não sei?!"

"Ela vai com a minha protecção e estará à guarda de amigos meus. Pode ficar tranquila quanto a isso."

"O lugar da Sheila é aqui comigo e com os irmãos."

"Eles também podem ir com ela. Eu pago os estudos de todos."

"Não, não, não!"

O médico inclinou a cabeça, o olhar reprovador.

"O Aissa, veja a sua idade. E se lhe acontece alguma coisa? O que vão fazer os seus netos? Ficam na miséria, entregues a si mesmos?"

A velha muçulmana permaneceu um longo momento a fitar o médico; o problema, na verdade, horrorizava-a. Sabia que a qualquer momento poderia morrer, por mais misericordioso que fosse Alá a idade era o que era e não havia modo de lhe escapar. Que aconteceria aos seus netos? Como se desembaraçariam eles? Tantas vezes pensava nisso antes de adormecer e agora aquela possibilidade era-lhe apresentada assim, sem mais, desígnio da Providência. Seria Alá a lançar-lhe um aviso pela boca daquele branco?

Sentindo-a hesitar, José percebeu que a porta se entreabrira; faltava desferir a estocada final.

"O curso é uma garantia. Deixe-os ir para Lourenço Marques. Eu pago-lhes os estudos e eles ficarão com uma enxada que os ajudará na machamba da vida. Essa é a maior prenda que a Aissa lhes pode oferecer."

Levou ainda mais meia hora de conversa mole, mas Aissa estava conquistada muito antes de dar a luz verde final.

"Trate então deles, senhor doutor", concedeu por fim. "Dê- lhes a enxada para a vida."

Os irmãos de Sheila, porém, nem queriam ouvir falar na ideia. Irem para Lourenço Marques estudar? Maomé rejeitou a proposta liminarmente e Malaquias foi ainda mais rápido. A surpresa, porém, veio de Sheila. Embora não recusasse a sugestão, a sua manifesta falta de entusiasmo surpreendeu o médico.

"Eu não sei, senhor doutor."

"Como, não sabes? Então tens esta oportunidade para realizares o sonho de ser enfermeira e estás agora a dizer-me que não sabes?"

Ela baixou a cabeça, acabrunhada e incapaz de o olhar.

"Pois, não sei..."

"Então para que te candidataste ao curso? Para que foste fazer o exame de candidatura? Para não ires?"

A rapariga fechou-se em si mesma e, após balbuciar umas respostas sincopadas e em monossílabos, o director do hospital sentiu-se exasperado. Incapaz de extrair o sim dela, desistiu e abandonou a palhota em direcção ao carro. Sheila acompanhou-o, cabisbaixa, mas quando sentiu que estava suficientemente longe dos ouvidos da avó murmurou:

"Tenho um namorado."


José arregalou os olhos.

"O quê?"

Ela olhava para todos os lados excepto para o médico, tão embaraçada se sentia com a confissão.

"Chama-se Ismael. Se eu for para Lourenço Marques, não o vejo mais."

O médico fitou-a um longo momento, primeiro atónito, depois com um sorriso a formar-se no rosto.

"Ah, já estou a perceber!", exclamou. "E por isso que não queres ir? Por causa do teu namorado?"

Ela fez que sim com a cabeça.

"O que faz ele?"

"Foi agora para a tropa."

José ponderou a situação e tentou achar maneira de contornar o problema. O facto é que o hospital tinha falta de enfermeiras moçambicanas que comunicassem com os pacientes que não falavam português e Sheila parecia-lhe perfeita para o lugar.

Nem que revolvesse o céu e a terra, ela iria tirar o curso de Enfermagem e ajudá-lo a melhorar a assistência no hospital. Para isso precisava apenas de desatar aquele nó.

"E se eu arranjar maneira de o transferir para Lourenço Marques? Achas que isso resolvia a coisa?"

Sheila ergueu a cabeça e encarou-o pela primeira vez, os olhos a brilharem de esperança. Estava encontrada a solução.Primeiro foi um zumbido. A multidão pareceu despertar da letargia e as cabeças puseram-se a girar pelo firmamento azul, voltando-se de um lado para o outro em busca da fonte do barulho. Uma voz gritou "ali!" e logo um e outro braço se ergueram a indicar a direcção, comandando os olhares para um pequeno ponto que cortava o céu como uma varejeira distante.

O avião perdeu rapidamente altitude e aproximou-se da multidão que enchia a placa do Aero-Clube de Tete. O comandante Trovão mandou os seus homens afastarem algumas pessoas que deambulavam pela pista, de modo a viabilizar a aterragem, mas o aparelho, em vez de se enquadrar com a faixa de terra batida para pousar, virou-se directamente para a multidão. Um clamor de "ah!" e "oh!" encheu o aeródromo do Aero-Clube e algumas pessoas assustaram-se e desataram a correr para tentar escapar à máquina voadora que apontara na sua direcção e crescia sem cessar. Deixara de ser uma mosca inofensiva e transformara-se numa ameaçadora ave de rapina metálica.

Um fragor infernal encheu o ar quando o Piper Cherokee sobrevoou as cabeças em voo rasante e voltou a ganhar altitude.Um alarido excitado percorreu a multidão. Parecia que uma corrente eléctrica unia os espectadores, cruzando comentários e observações em clima de grande agitação.

"Viram? Viram?"

"E ele! É mesmo ele!"

"lá!"

Não foi tanto a emoção da razia que emocionou os presentes, embora aquela passagem temerária tivesse desempenhado o seu papel, mas a mera visão do aparelho que os sobrevoara. O

avião cintilava no céu, pintado de branco com uma faixa azul e ostentando enormes cruzes vermelhas nas asas e na cauda, a matrícula CR-AKS inscrita na carlinga, o que eliminou as dúvidas que pudessem restar quanto à sua identidade.

O Piper Cherokee enquadrou-se enfim com a pista e, balouçando no ar, acabou por tocar na terra, levantando súbitas nuvens de pó alaranjado, e abrandou em apenas alguns metros; rolou aos soluços para fora da pista e aproximou-se da placa com o motor a arfar de mansinho e a hélice a levantar torvelinhos de poeira como uma ventoinha zangada.


A multidão abriu alas e o aparelho imobilizou-se diante do casinhoto que funcionava como torre de controlo, onde o aguardavam as entidades oficiais, encabeçadas pelo governador do distrito, pelo bispo, pelo director da Missão de Fomento, pelo comandante da PSP, pelo chefe distrital da PIDE e pelo director do Aero-Clube.

O motor engasgou-se e morreu de repente, como se alguém o tivesse esganado. As hélices imobilizaram-se com um suspiro e um silêncio absoluto impôs-se no aeródromo. Acto contínuo, as portas do avião abriram-se e José, espreitando para o exterior, acenou às várias dezenas de pessoas que ali se haviam deslocado para o acolher.

Uma ovação prolongada eclodiu nesse momento, recebendo o agora médico-aviador, que descia já do aparelho em pose triunfal: parecia um descobridor a desembarcar no Novo Mundo. As palmas foram apenas quebradas pelos primeiros acordes do hino nacional tocados pela banda da PSP. A multidão pôs-se então em sentido e cantou com ímpeto, a garganta e os pulmões a darem o máximo, os versos que glorificavam os heróis do mar.

Logo que o coro de vozes berrou "marchar, marchar!" e a banda emudeceu, o governador tirou várias folhas de papel do bolso, ajeitou os óculos e, aproximando-se do microfone improvisado diante do casinhoto, afinou a voz com o bmm-bmm da praxe e lançou-se no discurso com o verbo inflamado que a ocasião impunha.

Começou por citar o poeta "nas suas imortais palavras" e disse "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce", momento em que apontou para o avião e esclareceu ser aquela a obra, logo acrescentando que "Deus quis que a terra fosse toda una, que o ar unisse, já não separasse". Os mais versados em poesia estranharam a referência ao "ar", sabiam que o verso mencionava antes o

"mar", mas atribuíram a alteração à natureza da obra, o avião, e fizeram bem porque essa era realmente a intenção do ilustre orador, homem parco em palavras que terminou o discurso a apontar para a multidão e a citar novamente o poeta, "quem te sagrou criou-te português", e logo concluiu com um brusco e sentido "viva Portugal!", exclamação imperial que se perdeu na oscilação indiferente do capim ao longo da savana africana.

Depois das palmas, o bispo aproximou-se do avião devidamente paramentado e acompanhado por dois acólitos, ergueu a cruz e pronunciou umas frases em latim que um dos presentes bichanou para o lado a informar com erudição que o bispo fazia o Urbi et orbi, observação prontamente desmentida por um ouvido mais atento, "disparate, o Urbi et orbi é a bênção do papa na Páscoa e no Natal!", mas logo o bispo mudou para português, disse "em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo", e a cada referência a cada elemento da Santíssima Trindade lançou água benta sobre o aparelho e arrancou novas palmas da multidão.

Falara o estado e benzera a Igreja; faltava a consagração pagã. No seu tradicional fato branco, agora ornamentado no peito com insígnias douradas a exibirem um círculo alado com Moçambique no centro, que ele próprio concebera e desenhara e a mulher bordara, José Branco pegou na garrafa de champanhe que a irmã Lúcia lhe estendeu e entregou-a a Mímicas, nomeada

"madrinha do avião". A mulher do médico aproximou-se do aparelho, alguém gritou "força com isso!", ela ganhou balanço e atirou a garrafa com toda a gana e esmigalhou-a contra a carlinga do

Piper Cherokee branco de faixa azul, molhando as cruzes vermelhas com as lágrimas chiques e adocicadas de Dom Pérignon.

Foi assim inaugurado, naquele final de manhã de 1968, o Serviço Médico Aéreo, obra criada em Tete para "que o ar unisse, já não separasse".

Uma tabuleta de madeira assinalava "Fingué" ao lado da pista. José acabara de aterrar e guinou o avião para a direita, apro- ximando-o do jipe estacionado diante de uma multidão. Desligou o motor, percorreu os olhos pela check list para a verificação final, e encarou a irmã Lúcia, sentada no lugar ao lado.

"Vá por dentro", disse, indicando-lhe o interior do aparelho. "Preciso que me ajude a descarregar o correio e os medicamentos."

"St, doutor."

Abriu então a porta do avião e saltou para fora. Todos os olhos estavam pousados nele.

"Prepare-se, doutor", gritou uma voz proveniente do jipe. "Clientes é mato."

Contemplou a multidão que se concentrara ali perto. As pessoas pareciam agitadas, como se a mera visão da aeronave tivesse desencadeado uma corrente nervosa que a todos percorria.

Consultou o relógio; o horário era apertado, tinha reservado pouco tempo de atendimento para a população do Fingué e não havia nem um minuto a perder. Contornou a asa até à traseira do aparelho e fez sinal para o pessoal do jipe.

"Trouxe o correio", anunciou. "Venham buscá-lo."

Abriu a porta traseira do avião e deu com a irmã Lúcia a empurrar duas caixas de medicamentos na sua direcção. Pegou nelas e pousou-as sobre o capim rasteiro. Depois retirou uma sacola com a sigla C.T.T. impressa nas faces laterais e vasculhou no interior até extrair três envelopes e uma pequena encomenda endereçadas a destinatários no Fingué. Os homens já se tinham abeirado do avião e espreitavam-lhe sobre os ombros; viviam uma semana inteira à espera daquele momento.

"Essa é para mim, doutor?"

Várias mãos ansiosas estenderam-se na direcção do médico, que lhes entregou os sobrescritos e a encomenda.

"Deve ser, não sei. As cartas têm os nomes."

Um dos homens agarrou um envelope e, logo que passou os olhos por ele, pôs-se a dançar.

"Ena, é mesmo para mim!"

José ajudou a irmã Lúcia a apear-se e fez sinal aos homens a quem acabara de entregar o correio.

"Mandem avançar o pessoal."

O pedido gerou esgares de admiração.

"Mas, ó doutor, não vai antes um cafezinho?"

O médico ergueu o braço e bateu com o dedo no relógio.

"Só tenho duas horas", anunciou. "Preciso de estar às três no Zumbo para voltar a Tete às seis.

Vamos lá, despachem-se!"

Sentou-se na abertura da porta e ficou a ver a multidão encaminhar-se num tropel na sua direcção. A irmã Lúcia cortou o caminho aos pacientes e, com a autoridade de um sargento, gritou

"façam bicha!" e em alguns segundos as pessoas formaram uma longa fila que se estendia para lá da saída do aeródromo.

José olhou para o tamanho da fila e quase desfaleceu; era demasiada gente para apenas duas horas. Percebeu que precisava de arranjar um método mais expedito de lidar com tantos pacientes e, na pressão do momento, teve uma ideia. Sabia quais as doenças mais comuns nas populações que viviam no mato e era só uma questão de proceder a uma triagem eficiente. Pôs-se de pé e juntou as mãos como uma concha à frente da boca, à maneira de um megafone.

"Quem tem sangue no chichi forme bicha!", gritou, apontando a seguir para o sítio para onde queria que se encaminhassem. "Ali à esquerda!"

Alguns aldeãos que percebiam português formaram logo uma segunda fila no local indicado e puseram-se a chamar outros que sabiam padecer do mesmo mal. Seguiu-se um burburinho e um movimento tumultuoso, mas depressa tudo acalmoy e culninou em duas filas de gente ao lado do avião.

"Esta é a malta da bilharziose", murmurou o médico para a freira. Indicou uma das caixas de medicamentos que havia pousado no capim. "Ó Lúcia, distribua-lhes Ambilbar e dê-lhes as instruções adequadas, está bem? Eu vou começar com o resto do pessoal. Quando acabarmos fazemos uma nova triagem para a doença do sono. A irmã distribui os medicamentos enquanto eu verifico os da tuberculose. Assim apressamos o serviço e partimos logo a seguir. Parece-lhe bem?"

A espanhola pegou na caixa de Ambilbar e dirigiu-se para a fila que acabara de se formar.

"Muy bien, doutor."

José voltou a sentar-se na abertura traseira do avião e ultimou os preparativos da tarefa que tinha pela frente. Depois levantou o olhar para a fila diante dele e fez sinal à mulher que se encontrava em primeiro lugar, com um bebé ao colo e duas meninas agarradas à capulana.

"Olá!", saudou-a. "Então o que se passa?"

Começara a maratona.

A vida de José Branco mudou radicalmente. O avião alargou- lhe a autonomia e os horizontes, mas também lhe trouxe novas responsabilidades e desafios. Embora acumulasse as funções de director do hospital de Tete, presidente da Cruz Vermelha da cidade e delegado de saúde, dando ainda assistência sanitária a várias instituições e organismos que operavam na capital distrital, as suas atenções passaram a centrar-se no Serviço Médico Aéreo, uma vez que era este serviço que lhe permitia estender a acção a todo o distrito e chegar a populações até aí ignoradas.

Todas as semanas o pequeno Piper Cherokee branco com a cruz vermelha nas asas e na cauda descolava do Aero-Clube de Tete pelas sete da manhã e voava para os mais diversos pontos do distrito, do Zobué ao Mazoi, passando por Fingué, Boroma, Chicoa, Chipera, Magoe, Furancungo, Vila Coutinho, Estima, Zumbo e outros destinos espalhados pela vasta savana da região. Até o Songo, onde se erguera entretanto uma vila para albergar o pessoal que estava a construir a grande barragem de Cabora Bassa, se tornou ponto de passagem obrigatório no itinerário semanal do minúsculo aparelho.

As paragens eram breves, um par de horas ou pouco mais antes de o avião descolar rumo ao destino seguinte onde nova multidão o aguardava. Com a rotina, todavia, José conseguiu desenvolver processos de triagem que lhe permitiram tratar com eficiência um grande número de pessoas.

"Bilharziose para a esquerda!", era uma frase que nele se tornou habitual. "Paludismo para a direita!"

Sabia por experiência que as doenças dominantes na região eram o paludismo, a bilharziose, a doença do sono, a tuberculose, a poliomielite e a varíola, e recorreu a técnicas específicas a cada problema para lidar com essas maleitas mais comuns. Nos primeiros tempos preocupou-se sobretudo com medicar os doentes, distribuindo por exemplo Resoquina a quem tinha paludismo e

Ambilhar às vítimas de bilharziose.

No segundo ano, contudo, começou a interrogar-se sobre a eficácia da sua acção.

"Ó Lúcia", disse no final de uma paragem em Vila Coutinho particularmente cansativa. "Assim não vamos lá!..."

"Ay, doutor! Porque diz isso?"

"Eles são sempre muitos! Já viu?"

"Es verdad" , assentiu ela. "Mas olhe para o lado positivo: já conseguimos curar muchos pacientes."

"Sim, mas o problema é que logo a seguir eles voltam com as mesmas doenças..." Revirou os olhos. "É exasperante!"

A pista era uma faixa cortada no capim, salpicada por estranhos pontos escuros. Olhando lá para baixo, José Branco apercebeu-se de que se tratava de gado a pastar e que teria de ser ele próprio a resolver o problema.

"Olhe para aquilo", disse à freira, apontando para os animais que lhe bloqueavam a aterragem.

"Isto não é um aeródromo, Lúcia. É um vacódromo."

Empurrou a manche e o avião picou sobre a pista. A terra cresceu depressa diante do cockpit e no último instante o médi- co-aviador endireitou o aparelho e fez uma razia ao descampado antes de voltar a ganhar altitude. Flectiu para a esquerda, de modo a posicionar-se de novo no enfiamento da faixa de verdura, e estudou os efeitos da sua manobra.

"Já está", constatou com um sorriso de satisfação ao ver o gado fugir. "Limpámos a pista!"

A aterragem dessa manhã em Chipera, minutos depois, foi o primeiro acto de um processo que iria culminar no final do dia na ideia que tudo mudou.

Como sucedia habitualmente quando dos seus périplos semanais, logo que estacionou o Piper Cherokee no aeródromo da povoação José estabeleceu o posto médico no próprio avião, fazendo da porta lateral do aparelho o seu gabinete de consulta. Acomodou-se aí e começou a atender os doentes que faziam fila à entrada da pista.

O primeiro paciente era um homem já de idade, desdentado e com o corpo ligeiramente curvado, que se arrastou com uma certa dificuldade até junto do Piper Cherokee.

"Tem diarreia, doutor", disse o idoso, pousando a mão no estômago para reforçar a ideia. "Comi maningue maçanica."

Era um diagnóstico simples e de solução expedita.

"Então durante dois dias não vai tocar em fruta, ouviu?", recomendou o médico, estendendo o braço para uma caixa de medicamentos. "Come arroz e bebe maningue água fervida. A única fruta é banana." Entregou-lhe uma embalagem branca e azul a assinalar Ultralevur. "E toma este remédio."

O homem olhou para o médico e depois para a embalagem e de volta para o médico.

"Só isso?"

"Sim. Amanhã já está bom."

José lançou o olhar ao paciente seguinte, convidando-o a avançar, mas o homem que sofria de diarreia permaneceu plantado no mesmo sítio, no rosto uma expressão ao mesmo tempo decepcionada e desconfiada.

"Não tem mais?"

"Come arroz e banana, bebe maningue água fervida e toma esse medicamento", repetiu José cheio de paciência. "Amanhã já está bom."

"Não leva injecção?"

"Não é preciso", insistiu o médico, a tentar despachá-lo porque o tempo urgia; ainda mal começara e já o primeiro paciente o estava a atrasar. "O seguinte!"

O homem afastou-se com relutância, manifestamente pouco convencido com a receita que lhe fora passada. Acontece que o caso seguinte era o de uma mulher acompanhada de dois filhos com conjuntivite. O médico passou-lhe para as mãos os cremes adequados e mostrou-lhe como os deveria aplicar nas crianças, mas a mulher não lhe pareceu muito satisfeita e protestou num nhungué ruidoso enquanto apontava para uma seringa e indicava os braços das crianças.


"Não é preciso injecção!", garantiu José. "Os cremes chegam."

Desde que havia começado a trabalhar no hospital de Tete que estes episódios eram frequentes, mas nunca fizera caso deles. Dessa vez, contudo, achou de tal modo intrigante tanta insistência nas seringas que mencionou o assunto pouco depois, quando terminou as consultas e o chefe do posto administrativo de Chipera veio ter com ele à pista para se despedir.

"O doutor nunca havia reparado nisso?", riu-se o homem. "Eles adoram injecções! Na Metrópole ninguém sai contente de uma consulta se o médico não lhe passar uma receitazinha com uns medicamentos para aviar, não é verdade? Pois aqui são as injecções. Tratamento que não envolva picas não é tratamento para eles. Adoram injecções! Ui, isso é que é ser tratado!"

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As palavras do chefe do posto de Chipera acompanharam José Branco durante o resto do dia. O

que o homem dissera encaixava-se na perfeição na sua experiência de médico e director do hospital de Tete. A ideia começou assim a germinar-lhe na mente, seguindo um caminho lento mas seguro.

Se eles gostavam tanto de injecções, porque não tirar partido disso?

Na verdade, apercebeu-se com crescente entusiasmo, as peças encaixavam-se de modo inesperado, uma vez que os meios existiam e era seu dever fazer pleno uso deles. Quanto mais considerava o assunto, mais a ideia lhe parecia fazer sentido, até concluir que a única coisa realmente espantosa é que não tivesse pensado em tudo isso havia mais tempo. Como pudera ser tão distraído?

O que José precisava era de um plano estratégico de saúde e foi isso o que desenvolveu logo que no final desse dia chegou a Tete. Sentia-se de tal modo excitado que, em vez de ir para casa, correu directamente para o hospital. Fechou-se no gabinete, contemplou o mapa que mantinha pregado na parede e, de bloco de notas na mão, estimou a população do distrito e calculou a diferença entre as doses que possuía em stock e as necessárias para pôr em prática o plano.

Com as contas feitas, sentou-se à secretária diante de uma máquina de escrever e dactilografou uma carta. Depois assinou-a e meteu-a num envelope, que selou com uma lambidela rápida. Meteu a cabeça pela porta do gabinete e espreitou o corredor.

"Lúcia?!", chamou. "Pode vir aqui, por favor?"

A freira apareceu em poucos segundos.

"Que pasa, doutor?"

"Entrega-me esta carta ao Luís?", pediu, estendendo-lhe o sobrescrito. "Ele que a leve aos Correios. E urgente."

A espanhola pegou no envelope e espreitou a entidade rabiscada no lugar do destinatário. Era a Secretaria Provincial de Saúde e Assistência de Moçambique, sedeada em Lourenço Marques.

"St, doutor. Vou já hablar com ele."

"O Luís que tenha cuidado", aconselhou o médico. "Isso é maningue importante, ouviu?"

A recomendação foi feita como se o envelope contivesse ouro. Vendo o superior hierárquico rodear o sobrescrito de tantos cuidados, a irmã Lúcia estreitou os olhos e fez um ar entendido, quase cúmplice.

"Muy bien, doutor. Já vi que está a pedir mais dinero para o serviço. Bem que precisamos dele!..."

"Não é dinheiro nenhum, Lúcia", corrigiu o director do hospital, pegando na malinha e preparando-se para ir enfim para casa. "São vacinas. Muitas vacinas."

José Branco mostrava-se plenamente consciente de que sozinho não seria capaz de levar a cabo toda a campanha de vacinação que tinha em mente. O que faria quando chegassem milhares e milhares de vacinas? Passaria o dia num aeródromo perdido no meio do mato a inocular populações inteiras? Sozinho ou apenas com a ajuda da irmã Lúcia? Não era possível.

Passou por isso de imediato à segunda fase do programa que havia delineado. No planeamento da primeira viagem a fazer depois de ter escrito essa carta estabeleceu que iria a menos locais num único dia e gastaria mais tempo em cada um deles.

"Ai, doutor, no entiendo!", estranhou a irmã Lúcia quando estudou o plano de viagem. " Así não teremos modo de visitar todo o sítio..."

"Tenha calma, já vai perceber."

O primeiro poiso do périplo dessa semana foi o Mazoi. Depois de prestar a assistência habitual à população que enchia os acessos ao aeródromo à sua espera, José pegou numa caixa e dirigiu-se aos dois funcionários que operavam o posto administrativo local.

"Então, senhor doutor?", exclamou o chefe, um transmontano de meia-idade que se tinha amancebado com a fifha do régulo local. "Já vai andando, não é verdade?"

"Calma, que ainda há uma coisa que quero tratar convosco", disse. "Podemos ir ao posto?"

O pedido suscitou um esgar de surpresa dos dois homens, habituados a ver o médico aterrar, entregar-lhes o correio, tratar de umas centenas de pacientes e partir duas horas depois rumo ao destino seguinte. Era a primeira vez que o viam mostrar interesse em sair do aeródromo e ir ao posto.

"Porquê, senhor doutor? Passa-se alguma coisa?"

"Passa, pois. Vocês por acaso sabem dar vacinas?"

Os dois homens entreolharam-se, como se se interrogassem mutuamente.

"Quer dizer... não."

José ergueu a caixa, sugerindo que o seu conteúdo tinha a solução para o problema.

"Então vou ensinar-vos."

Pôs-se assim a dar formação aos funcionários que operavam os postos administrativos em cada terriola, mostrando-lhes como preparar as vacinas e inoculá-las nas pessoas.

Quando chegaram enfim de Lourenço Marques milhares de doses, a formação estava já completa e encontrava-se tudo pronto para a campanha. O médico não perdeu mais tempo. Meteu as caixas de vacinas no avião e distribuiu-as por todos os postos para onde voou nas duas semanas seguintes.

A campanha começou em força pelo distrito inteiro. O ponto de arranque foi o Furancungo. O

médico deixou as caixas no posto local e, após dar as últimas instruções, seguiu de imediato para Vila Coutinho, depois para o Zobué e assim sucessivamente até percorrer numa semana todos os pontos do itinerário do Serviço Médico Aéreo, por toda a parte a distribuir correio e a espalhar caixas com doses de vacinas.

Quando na segunda-feira seguinte voltaram pela primeira vez ao Furancungo, primeira etapa do périplo semanal, José e a irmã Lúcia estranharam ninguém ter comparecido no aeródromo para ser tratado. Isso contrariava tudo o que havia acontecido nas viagens mais recentes.

"Passar-se-á alguma coisa?", admirou-se o médico num tom fingidamente casual, esforçando-se por esconder a preocupação; aquilo não era normal. "Que estranho!..."

A freira encolheu os ombros.

"Pues, não sei!"

A situação deixou José estarrecido. Era verdade que já no passado lhe sucedera ser ignorado pela população, mas isso só tinha ocorrido no princípio, quando havia iniciado no ano anterior aquelas visitas no Piper Tripacer com Teixeira e as populações se mostravam desconfiadas. Desde que essa desconfiança fora ultrapassada, no entanto, cada visita era um dia de festa na terra. Assim sendo, como explicar que a sua chegada fosse tão ostensivamente ignorada?

Meteram a pé pela picada e caminharam até ao posto administrativo. Quando se aproximaram da lomba antes do posto ouviram um clamor que os intrigou. Apressaram o passo e, no momento em que atingiram o alto da lomba, depararam com uma multidão concentrada diante do posto administrativo; era uma enchente como nunca tinha sido vista naquela terra.

"Mas que raio!..."

Abriram caminho entre as pessoas e, no meio de um calor infernal e do fedor a suor, conseguiram penetrar no posto. Os populares faziam fila da porta até duas cadeiras onde vários funcionários administrativos as inoculavam com surpreendente presteza, os movimentos já automatizados. O paciente mostrava o braço, o funcionário limpava-lhe o ombro com algodão e álcool, espetava-lhe a seringa, injectava a vacina, tirava a seringa, colava-lhe o algodão à pele e, sem levantar os olhos e já a preparar outra seringa, chamava:

"O seguinte!"

Desconcertados, os dois recém-chegados saíram do edifício sem assinalar a sua presença e voltaram à lomba da estrada, de onde contemplaram o espectáculo da multidão que se comprimia para entrar no posto administrativo. José estava boquiaberto e pelo rosto da irmã Lúcia serpenteavam grossas lágrimas. Ambos viam e quase não acreditavam.

Apesar da comoção que a sufocava, foi a espanhola a única que conseguiu falar.

"Esta campana es um milagre!"Os rapazes alinhavam-se no pavilhão em filas sucessivas e o espectáculo não era bonito de se ver. Havia algo de profundamente inestético na imagem de um macho nu e Diogo não conseguia sequer decidir-se sobre o que achava mais feio: se ver um homem despido de frente, com o emaranhado peludo de onde pendia um apêndice mirrado, se observá-lo de costas e ter de suportar as nádegas felpudas e borbulhentas, os quadris quadrados e as pernas desengonçadas. Que contraste com os corpos harmoniosamente ondulados e lácteos da Guidinha tetalhuda ou da Laura da boca marota!

"Diogo Meireles!", chamou a voz do militar.

Imitando o procedimento que observara nos casos anteriores, correu para a frente e plantou-se em sentido diante do homem que o chamara.

"Presente, meu sargento!"

O militar ficou um momento a verificar a lista que tinha nas mãos, mas acabou por levantar o olhar e pousá-lo entre as pernas do mancebo."Isso é pila que se apresente?", perguntou com um semblante sisudo.

Quando aguardava a sua vez, Diogo já o ouvira tecer comentários jocosos a propósito de outros mancebos, pelo que ignorou a pergunta e manteve-se calado.

"Vinte flexões!"

Atirou-se ao chão e em menos de quinze segundos completou as flexões com grande rigor, o corpo devidamente esticado, os braços a subir e descer como molas hidráulicas. Depois levantou-se e pôs-se de novo em sentido, arrancando uma expressão interrogativa ao sargento.

"Cinquenta abdominais!"

Dessa feita deitou-se de costas e, o corpo distendido, ergueu as pernas alto e baixou-as sem tocar no soalho, erguendo-as de novo e baixando-as sempre em ritmo acelerado e com os dois dedos grandes colados um ao outro numa simetria perfeita. Levou menos de dois minutos a completar o exercício e a erguer- se de novo, a respiração inalterada, o corpo hirto.

"Eh, pá!", observou o sargento, impressionado. "Acho que temos aqui o Super-Homem. Siga!"


Fez um gesto a indicar dois médicos de bata branca numa secretária e a atenção regressou à lista que tinha em mãos para identificar o nome seguinte.

"José Paulo Cardoso!"

Diogo foi ter com um dos médicos, que o examinou da cabeça aos pés e lhe auscultou o coração e registou a pressão arterial. Depois tirou-lhe sangue e entregou-lhe um pequeno frasco de plástico para as mãos, com a recomendação de que urinasse nele.

O procedimento foi relativamente simples e completou nessa manhã a inspecção sanitária na junta de recrutamento. Umas semanas depois apareceu-lhe em casa um novo envelope das Forças Armadas, que abriu diante dos pais.

"Então?", quis saber a mãe, dedilhando nervosamente o avental. "O que dizem eles?"

Diogo respirou fundo, consciente de que aquele ofício mudaria a sua vida.

"Deram-me como apto."

O curso de miliciano foi tirado no quartel das Caldas da Rainha. Tudo se alterara de repente na existência de Diogo. Teve de sair de casa e abandonar o liceu, embora o facto de o mesmo estar a acontecer a outros colegas o levasse a encarar essa mudança com uma certa naturalidade, se não mesmo fatalismo.

Mas se houve um choque provocado pelo desenraizamento, o mesmo não se pode dizer das exigências físicas da instrução militar. Para um atleta de alta competição como Diogo, a ginástica e todos os exercícios envolvendo o corpo, penosos para os restantes mancebos, eram embaraçosamente fáceis. De novo o curso apenas lhe deu a formação teórica e noções sobre o Regulamento de Disciplina Militar.

Apesar da incorporação no serviço militar e de todas as mudanças que isso acarretou, o novo recruta manteve-se como jogador do FC Porto e da selecção. Enquanto os jogos se limitaram às competições internas, como os campeonatos regional e nacional ou a Taça de Portugal, foi fácil obter dispensa das autoridades militares.

O problema surgiu no dia em que se apresentou perante o comandante com um pedido diferente.

"O Porto tem uma deslocação ao estrangeiro, meu coronel", anunciou com o corpo muito hirto no gabinete do comandante. "Solicito autorização."

O superior hierárquico arregalou os olhos.

"Ao estrangeiro?"

"Sim, meu coronel."

"Ó diacho!", exclamou o comandante, coçando a cabeça. "Contra quem?"

"O Olimpiakos do Pireu, meu coronel. É a primeira eliminatória da Taça dos Campeões Europeus e a primeira mão está marcada para Apenas daqui a quinze dias."

O comandante recostou-se no assento, ponderando as implicações daquele pedido.

"Bem, se fosse na União Soviética ou num desses países comunistas, não tinhas a mínima hipótese", começou por dizer. "Mas sendo na Grécia... enfim, vou pensar nisso."

A hesitação do comandante surpreendeu Diogo. Como atleta de alta competição habituara-se a gozar de um estatuto especial no quartel e jamais uma solicitação de dispensa por razões desportivas lhe havia sido negada. O que tinha aquela de diferente? Uma avalancha de interrogações perpassou-lhe pela mente, mas manteve-se silencioso; sabia que não podia questionar o superior hierárquico, embora ao mesmo tempo não conseguisse entender as dúvidas que ele dava sinais de alimentar.


O comandante apercebeu-se da perplexidade do recruta e ponderou mandá-lo embora sem quaisquer explicações, mas acabou por condescender.

"Estas deslocações ao estrangeiro são sempre um problema", suspirou. "Aqui há uns tempos houve uma situação semelhante devido a um jogo em Paris. A autorização foi concedida e o filho da puta, quando se apanhou em França, desertou. Estás a ver o engulho, não estás?"

A observação quase indignou Diogo.

"Nunca me passaria pela cabeça fugir, meu coronel", exclamou com intensa convicção. "Na minha família a palavra tem força de lei. Se me conceder a autorização, eu vou a Atenas, jogo e volto com a equipa. Isso nem tem discussão!"

O comandante afagou o queixo enquanto avaliava o recruta.

"Voltas, dizes tu?"

"Pode estar seguro, meu coronel."

"Olha que não quero cá chatices, ouviste? Vinte por cento dos mancebos fogem à tropa. Esses cabrões saem do país ou entram no que chamam a «clandestinidade». Tens consciência de que é um risco deixar-te ir, não tens?"

"Deixe-me e não se arrependerá."

A autorização foi dada dois dias depois e Diogo seguiu para Atenas com a equipa. Regressou na semana seguinte e apresentou-se no gabinete do comandante com uma pequena ânfora que comprara numa loja perto do Parthenon, antiguidade decerto feita na hora.

"É para si."O habitual almoço dominical na casa do director do hospital, na colina sobranceira ao Zambeze, teve nesse dia como convidados o comandante da PSP e a mulher. A vida em Tete era relativamente monótona. Não havia grande coisa para fazer a não ser trabalhar, dormir a sesta para fugir ao calor da tarde e organizar umas patuscadas com os amigos, modo de vida em que o casal Branco se integrou.

A ementa do almoço nesse dia era cabrito assado, mas António Trovão viera da Beira com novidades explosivas. Tinha ido participar num encontro provincial da PSP e os comandantes da polícia no Niassa e em Cabo Delgado haviam aparecido na reunião com notícias sensacionais.

"O Kaúlza tomou posse em Março e já se pôs a inventar", revelou Trovão perante a curiosidade dos seus anfitriões. "Lançou uma operação à americana lá em Cabo Delgado e deu-lhe um nome todo pomposo. Nó Gordio, vejam só. O tipo acredita que vai mesmo desatar o nó górdio da guerra."

O assunto acabou rapidamente por tomar conta da conversa à mesa."Isso é o que eles dizem sempre", observou José num tom céptico. "Ainda no ano passado ouvi o inspector Silva garantir que a guerra estava quase ganha e ela ainda aí anda."

"Iá, mas dá a impressão que agora é mesmo a sério", insistiu o amigo. "Os gajos fizeram uma limpeza geral ao longo de toda a fronteira com a Tanzânia. Disseram-me que o Kaúlza deitou mão aos grandes meios, com operações de searcb and destroy e outros palavrões que ele aprendeu lá com os camones. Parece que a coisa mete helicópteros, aviões, napalm, desfolhantes, carros blindados, milhares de magalas, vários grupos de comandos, pára-quedistas... eu sei lá!" Riu-se. "O

tipo julga que está no Vietname!"

"E essa operação, como está a correr?", quis saber José, que de guerras não percebia grande coisa a não ser os feridos que via chegarem-lhe ao hospital. "Obteve alguns resultados?"

O comandante da PSP fez um trejeito condescendente com a boca.

"Parece que sim", admitiu. "Dizem-me que os turras estão mesmo em debandada para a Tanzânia. Mas não tenho a certeza de que isso signifique o fim da guerra. O Kaúlza mandou queimar aldeias onde estavam os turras e lançou napalm e desfolhantes nas machambas para lhes negar os meios de subsistência. O gajo deve achar que vence a guerra se matar toda a gente, mas não me cheira que um conflito desta natureza se possa ganhar assim."

O diálogo à mesa, como tantas vezes sucedia, derivou para opiniões sobre como estavam as coisas a decorrer. Aproveitando uma pausa na conversa, cujos pormenores sangrentos lhe desagradavam, Mímicas deu um salto à cozinha e reapareceu instantes depois com uma travessa coberta por um doce amarelo- -torrado que todos reconheceram.

"Quem quer coisar um pudim Araújo?"

Foi um fecho de almoço em verdadeira apoteose. O pudim Araújo era a sua especialidade mais gabada. Tratava-se de um doce espumoso, feito de claras batidas com açúcar derretido; o sabor a nozes estava igualmente muito presente e compensava a doçura do caramelo. O assalto ao Araújo foi imediato e em dois minutos a travessa ficou vazia, apenas com um fio dourado de caramelo líquido a boiar nas bordas.

"Ai, comi de mais!", queixou-se Mímicas ao encarar o prato sujo que tinha diante dela. "Estou tão arrependida!..."

Depois de observar que já chegava de falar na "porcaria da guerra", José sentou-se ao piano e, com um copo de whisky com soda pousado junto ao teclado, pôs-se a dedilhar um dos seus temas favoritos, a música do filme Limelight, a velha fita que todos em Portugal conheciam como Luzes da Ribalta.

"Tararararãã... dez mil camisas!", entoou ao ritmo da melodia, o que divertiu os Trovão.

Um súbito zumbido entrou pela casa, primeiro distante, depois enervante e persistente. Todos reconheceram o som de um helicóptero, mas como se tratava de um ruído familiar para quem vivia junto ao hospital não fizeram caso e o anfitrião prosseguiu com a sua interpretação do tema musical do filme de Charles Chaplin.

O problema é que, logo que o primeiro zunir se afastou, indício seguro de que o helicóptero levantara voo, uma nova zoada se fez ouvir, indicando um segundo aparelho em aproximação, e a este seguiu-se um terceiro. Isso, sabiam todos, já não era normal. Como os zumbidos pareciam incessantes, os dedos de José imobilizaram-se no teclado, impondo assim um silêncio súbito na sala. O médico trocou um olhar intrigado com os convidados.

"Que raio!..."

A atenção de António Trovão, o comandante da PSP, estava havia algum tempo já fixada naquele som.

"Passa-se qualquer coisa."

Saíram para o jardim e voltaram os olhos para o espaço da colina diante do hospital, a uns duzentos metros de distância. Viram então os Alouettes alinhados no ar, como se estivessem envolvidos numa ponte aérea ou a fazer um exercício de grandes dimensões. Como gafanhotos gigantes, os aparelhos arredondados giravam sobre o Zambeze e, à vez, faziam-se à pequena pista circular que havia sido construída em pleno coração do hospital.

"Parece grave", observou Mimicas, a mão na boca. "Que terá acontecido?"

Dali era impossível obter respostas, mas o médico apenas precisou de alguns segundos para tomar uma decisão.

"Desculpem", disse, voltando-se para os convidados. "Tenho de ir ver o que se passa."

Regressaram para dentro de casa. O comandante Trovão agarrou-se ao telefone para ligar para o quartel e pedir informações e José foi ao quarto buscar a sua malinha de médico. Pôs o estetoscópio ao pescoço como se fosse um colar e, com um derradeiro aceno de despedida dos convidados, meteu-se no automóvel. O movimento de Alouettes não dava sinais de abrandar, era ainda um vaivém contínuo, e nesse instante teve a certeza de que o esperava uma tarde intensa.

A confusão no hospital era indescritível. Havia gritos, gemidos e manchas de sangue espalhadas pelo chão e pelas paredes, como nos talhos. Os feridos eram depositados nos corredores ou encaminhados para a sala de operações. O director inspeccionava os corpos, alguns terrivelmente mutilados. Percebeu pelo tipo de feridas que eram vítimas de explosões.

Os enfermeiros do hospital afadigavam-se em torno dos feridos e José foi ajudá-los a fazer pensos, preparar transfusões e meter tubos de soro. Alguns casos pareceram-lhe requerer amputação; hesitou, porém, antes de proceder ele mesmo à operação. O hospital tinha um cirurgião, mas não o via por ali.

"O Feitor?", perguntou à irmã Lúcia, que tinha a bata salpicada de sangue. "Onde está ele?"

"Não sei, doutor. É domingo, verdad? Entonces o doutor Feitor está de folga."Olhou à sua volta na enfermaria e tentou localizar o cirurgião, mas apenas vislumbrou os enfermeiros e os feridos.

Espreitou pela janela e viu o motorista a ajudar o enfermeiro Mendonça a transportar uma maca.

"Luís!", chamou. "Vai procurar o doutor Feitor! Ele que venha o mais depressa possível!"

Observou o motorista a meter-se no carro e calculou que levaria uma boa meia hora até o cirurgião chegar. Olhou para o ferido mais grave e ponderou o que fazer. Apesar de lhe ejtar a ser aplicada uma transfusão, a condição do homem tornava urgente a operação. Tinha a perna empapada de sangue; teria de ser decepada o mais depressa possível. Avistou um enfermeiro militar que viera num Alouette e fez-lhe sinal com a cabeça.

"Meta-me este ferido na sala de operações", ordenou. "Vou ter de o amputar."

O rosto transpirado do enfermeiro carregava-se de sulcos de fadiga, mas o olhar pareceu acender-se quando deu com o médico.

"Sim, doutor."

O enfermeiro pegou na maca com o ferido e assentou-a num carrinho, que começou a empurrar em direcção à sala de operações. José apressou o passo e caminhou ao lado da maca.

"O que aconteceu?"

"Uma emboscada", disse o enfermeiro. "Veio uma carga crítica para a barragem e a tropa estava a fazer-lhe a escolta desde a Rodésia. Já perto do Songo a rapaziada achou que o perigo tinha passado e facilitou nas medidas de segurança. Puseram-se todos na brincadeira. Correu mal... Os turras estavam emboscados e mandaram uma bazucada que atingiu a carga crítica em cheio." O

enfermeiro respirou fundo. "Parecia um terramoto, doutor, havia de ter visto. Quando chegámos ao local estava tudo em fanicos. Morreram pelo menos dez homens e temos uns quarenta feridos. O

doutor Coutinho ficou no Songo a tratar os casos mais graves, aqueles que não tinham condições para viajar, e mandou trazer estes aqui para Tete."

Viraram numa porta a meio do corredor e entraram na sala de operações. O ambiente estava climatizado e o ronronar suave do ar condicionado quase tornava a sala agradável. O ferido foi depositado na mesa que ocupava o centro da sala e o médico foi lavar as mãos. A irmã Lúcia apareceu entretanto com os instrumentos e pôs-se a esterilizá-los, enquanto o enfermeiro militar dava uma anestesia ao ferido. José atou a máscara ao rosto, calçou as luvas, pôs a touca e começou a inspeccionar a ferida, tentando decidir por onde proceder ao corte. Pareceu-lhe que o mais seguro seria amputar por cima do joelho.

A irmã Lúcia aproximou-se da mesa e estendeu-lhe a serra. O médico contemplou uma última vez a perna do ferido, como se quisesse certificar-se de que não havia mesmo alternativa, e suspirou com resignação.

"Vamos a isto."


Pegou na serra e fez sinal ao enfermeiro militar de que segurasse a perna com força, de modo a facilitar a amputação, mas quando ele próprio agarrou a coxa do ferido e assentou o instrumento para começar a serrar a carne e o osso sentiu uma mão travar-lhe o braço.

"Você é cirurgião?"

Olhou para trás e, apesar da bata, da touca no cabelo e do pano que ela trazia no rosto, reconheceu a figura da médica.

"Nicole!", exclamou, surpreendido. "O que está aqui a fazer?"

"Estou indo para o Songo e vim dar uma mãozinha para tratar dos feridos", disse ela, desviando o olhar para o paciente sobre a mesa de cirurgia. "Estou vendo que vai operar. Você é cirurgião?"

"Bem... não, mas o nosso cirurgião ainda não chegou e este caso é urgente. Vamos ter de amputar depressa."

Nicole inclinou o tronco para a frente e espreitou a ferida de perto, avaliando o caso.

"Estou vendo", murmurou, como se aprovasse o diagnóstico. "Você costuma fazer amputações?"

"Já fiz algumas, claro. Aqui em África temos de ser polivalentes, não é? Mas confesso que a minha especialidade não é esta..."

Com um movimento suave, Nicole arrancou-lhe a serra das mãos e ocupou-lhe o lugar.

"Mas a minha é", disse no tom de quem nem admite discutir o assunto. "Deixa para lá que eu faço isso, tá? Você vá tratar dos outros feridos."

Como previra ao sair de casa, essa tarde no hospital revelou- se particularmente difícil. O

doutor Feitor aparecera entretanto e ajudara Nicole na cirurgia, enquanto José e as enfermeiras se concentravam nos paliativos e nos casos que não requeriam amputação. Tiveram também a ajuda do doutor Arroz, que estava de passagem por Tete a caminho do Zobué.

Ao cair da noite, o director recolheu-se ao gabinete com a irmã Lúcia para prepararem o dia seguinte. As cirurgias tinham terminado e a situação parecia controlada, com os feridos a convalescerem nas enfermarias. José distribuiu as tarefas de modo a ter em conta as necessidades do hospital e também do Serviço Médico Aéreo, que, como era hábito, ia partir em missão na madrugada seguinte, mas a freira não aprovou a planificação.

"Yo não posso ir esta semana", disse a irmã Lúcia, abanando enfaticamente a cabeça. "Nz hablar!

mucho trabajo para hacer! O doutor vá sozinho!..."

O director endireitou-se na cadeira

"Que é isso, Lúcia? O doutor Feitor está cá, ainda vão chegar os médicos militares para acompanhar os feridos e além disso temos o resto do pessoal. Dá perfeitamente para fazermos o serviço aéreo."

"Tenemos médicos suficientes", admitiu a freira, " pero não enfermeiros. Yo fico cá. O doutor vá sozinho."

"Sozinho? Sozinho como? Isso não é possível, mulher! Preciso de ajuda para fazer o serviço.

Onde já se viu uma única pessoa tratar da saúde de toda a população do distrito?"

"Tiene os enfermeiros que o senor colocou nos postos administrativos."

"Ó Lúcia, sabe muito bem que a preparação deles é demasiado rudimentar."

A freira manteve o olhar fixo no seu superior hierárquico, percebendo o problema e ponderando o que fazer.

"Tiene razão, doutor", concedeu, sentindo-se dividida perante os seus deveres. " Pero aqui também há mucbo trabajol... Como vamos hacer isto?"

"Cada um tem de dar o máximo, é a única maneira", disse José. "Lembre-se de que estes feridos ainda têm aqui o doutor Feitor e o resto dos enfermeiros para tratar deles, mas quem trata da população? Ninguém. Eu sozinho não dou conta do recado, como a irmã muito bem sabe. Preciso da ajuda de pelo menos mais uma pessoa qualificada. Se a Lúcia não vier comigo, quem vai?"

A espanhola baixou a cabeça, à beira da derrota.

verdad, doutor", reconheceu. "O problema é que o serviço é muy grande e tenemos pouco pessoal. Se ao menos fuese possível mandar vir de Louren..."

Um toque na porta interrompeu-lhe o raciocínio. Os olhares do médico e da freira voltaram-se para a entrada do gabinete e os dois viram uma cabeça loira espreitar.

"Dá licença?"

Era Nicole.

"Entre, entre", convidou o director, hesitando entre os deveres de hospitalidade e o receio de que a rodesiana fizesse ou dissesse algo de inconveniente. "Está tudo bem?"

"Tudo legal", devolveu a médica, as mãos escondidas atrás das costas. "Vim lhe dar uma prenda."

"Uma prenda?", admirou-se José. "Para mim?"

Nicole mostrou as mãos e exibiu-lhe um chapéu de aba larga e voltada para cima, como os usados pelos cowboys nos filmes.

"E um chapéu que usamos nas farmes da Rodésia. Você gosta?"

O director pegou no chapéu e observou-o com atenção. Tinha uma faixa de pele de leopardo em redor. Assentou-o na cabeça e voltou-se para as duas mulheres.

"Fico bem?"

"Muy guapo!", elogiou a irmã Lúcia.

"Parece o Clint Eastwood", disse Nicole. "Promete que você vai usar quando estiver no mato."

"Garantido."

A rodesiana esboçou uma súbita expressão inquieta.

"Estou com um problema", revelou. "Os helicópteros se foram e vou precisar de pegar uma carona para voltar para o Songo."

José tirou o chapéu e coçou a cabeça.

"Uma boleia para o Songo? Oh, diacho!" Considerou a questão e teve uma ideia. "Se calhar é melhor falar com a tropa", disse, pegando no telefone. "Acho que eles vão organizar uma coluna para depois de amanhã..."

A rodesiana inclinou a cabeça e respirou fundo, como se não aprovasse a sugestão.

"Você não vai fazer o seu serviço aéreo essa semana?"

"Iá. Saio amanhã pela manhãzinha."

"O seu avião não passa pelo Songo?"

Com o telefone ainda na mão, José hesitou, começando a perceber onde ela queria chegar.

"Quer dizer... iá. Mas só na quarta-feira. Vou começar amanhã pelo Furancungo, depois sigo para Vila Coutinho e por aí fora."

"Então me leva!"

O médico ainda abriu a boca para rejeitar a sugestão, nem pensar naquela ideia, mas viu um enorme sorriso desenhar-se no rosto da irmã Lúcia e não teve coragem de dizer que não.

"Está a ver, doutor?", perguntou a freira espanhola com uma expressão triunfante. " Dios nos ajuda quando necesitamos. Aqui a doutora vai consigo y yo fico a tratar dos feridos."

A armadilha fechara-se.Quando o Piper Cherokee levantou voo da pista do Zobué, José temia o pior. O primeiro dia havia decorrido com absoluta normalidade, como de resto seria de esperar considerando que traziam mais um passageiro. O doutor Arroz também aproveitara a boleia do Serviço Médico Aéreo e acompanhara-os ao longo de toda a jornada de segunda-feira, com paragens no Furancungo e em Vila Coutinho, até aterrarem ao anoitecer no Zobué para pernoitar.

Arroz estava colocado num posto especialmente criado nesta povoação para combater a tripanossomíaze, pelo que ficou por aí.

Na madrugada seguinte José e Nicole entraram no avião e acharam-se sozinhos pela primeira vez desde a inesquecível noite no Hotel Cardoso.

"Onde vamos hoje?", quis saber a rodesiana.

O médico-aviador tinha o mapa aberto no cockpit e apontou para uma localidade no Oeste do distrito.

"O destino final é o Fingué", indicou. "Mas no caminho vamos parar em Cazula e Bene."

"E quando chegamos ao Songo?""Sexta-feira. Normalmente seria amanhã, mas planifiquei a viagem de modo a deixar o Songo como última escala da semana, para que você me possa ajudar em todas as povoações onde aterrarmos. É muita gente para ver e sozinho não consigo dar conta do recado."

Um brilho de aprovação perpassou pelo olhar marinho de Nicole.

"Legal."

O aparelho ganhou altitude e rumou para oeste, em direcção a Cazula. Um imenso azul iluminava o céu, suave e translúcido, interrompido apenas aqui e ali por trapos isolados de nuvens.

A terra seca estendia-se lá em baixo como uma ampla manta alaranjada salpicada de minúsculos pontos castanhos; eram os embondeiros que ali de cima se assemelhavam a pequenas bolotas espalhadas pelo chão.

Visto daquela perspectiva o mundo parecia sereno e imperturbável. Não fosse o ronronar monótono do motor e dir-se-ia que a paz abraçava o céu. Como tantas vezes lhe sucedia quando voava, o médico foi assaltado por uma doce e reconfortante sensação de bem-estar. Teve vontade de desligar o motor e deixar o avião planar em sossego, entregando-se àquela vasta placidez benigna como um bebé que se rende ao peito acolhedor da mãe, mas sabia que isso não passava de uma fantasia e fez um esforço para não se deixar embalar por aquela ilusão e concentrar-se nos comandos do aparelho.

Foi Nicole quem quebrou o silêncio.

"Você alguma vez experimentou?"

"O quê?"

Ela lançou-lhe um olhar cheio de segundas intenções.

"Fazer amor no céu."

José sentiu um rubor subir-lhe ao rosto e engoliu em seco.

"Vamos lá, não comece."

Um sorriso maroto formou-se na face da rodesiana. A mão dela deslizou para a perna do piloto, carregada de provocação.

"Estou vendo que a ideia já lhe ocorreu..."

José sacudiu-lhe a mão.

"Quieta!"

Ela esboçou uma expressão contrafeita, como uma menina mimada a quem acabaram de privar de uma boneca.

"Ai! Que ruim! Naquela noite no Cardoso você não me mandou ficar quieta, se lembra?"

"O Cardoso foi há dois anos", retorquiu o médico-aviador com secura. "Desde então nunca mais nos vimos."

"Mas, acredite, eu não esqueci!" Fez um esgar nostálgico e suspirou, como se a simples lembrança do que acontecera fosse uma emoção demasiado forte. "Meu Deus, nunca imaginei que existisse homem com um... uma... enfim, assim tão grande. Minha nossa, o que tenho pensado naquela noite!"

José abanou a cabeça em desaprovação.

"Estivemos dois anos sem nos vermos e agora você chega aqui e quer brincadeira outra vez?

Pensa que isto é o quê?"

"Não nos voltámos a ver porque me mandaram regressar a Salisbúria", retorquiu ela em tom justificativo. "Que poderia eu fazer? Mas agora, com as obras de Cabora Bassa a avançar em força, vou ficar colocada no Songo, bem pertinho de você. E aí vamos nos ver mais vezes, né?"

"Vai ficar no Songo? Porquê? O Coutinho não serve?"

"E muita gente para um médico só. O doutor Coutinho é legal, mas os engenheiros que falam inglês precisam do apoio de um médico que domine a língua na perfeição, você entende?"

Vê-la assim ao seu lado, de camisa desabotoada o suficiente para deixar ver o peito sardento e o rego dos seios, e sobretudo a língua molhada na boca entreaberta e o olhar oferecido, foi de mais para José. Parecia que alguém lhe tinha ligado um botão entre as pernas, porque com um clique inesperado o monstro despertou.

"Oiça", tentou argumentar, num esforço desesperado para combater o desejo que lhe atiçava já o corpo, "eu sou um homem casado e tenho de respeitar a minha mulher."

Nicole revirou os olhos azuis, como se dispensasse a lição.

"A vida aqui em Tete é um saco!", exclamou. "Não tem televisão, não tem praia, não tem nada!

O que vamos fazer para nos entreter? Crochet?" Voltou a deslizar com a mão para a perna dele.

"Porque não tiramos partido do maior entretenimento que a natureza nos deu? Há algum mal nisso? Sua mulher não precisa de saber nada..."

"Mas isso não pode ser assim!"

Protestou, mas dessa vez não retirou a mão que lhe afagava a perna direita, pormenor que não escapou à rodesiana.

"O que pensa você que todo o mundo faz em Tete ou no Songo?", murmurou a loira com infinita doçura. "Eles andam metidos com elas e elas com eles. E só joguinhos, meu bem. Ué, e qual o problema? É uma maneira legal de a gente se entreter..."

"Eu não sei o que os outros fazem", ripostou José, as palavras mais firmes do que o tom em que as pronunciou. "Sei que nós temos de..."

Calou-se porque a mão de Nicole se desviara da perna para o monstro e, exercendo pressão com os dedos, sentia-lhe o volume em crescimento. Com um sorriso oblíquo, a rodesiana intuiu nesse instante que tinha a partida ganha.

"Essa droga não tem piloto automático?", quis saber, indicando o painel do cockpit.

"Tem, claro."

Já totalmente senhora da situação, ela correu-lhe o fecho das calças e, com um movimento esfaimado, puxou-lhe o monstro para fora.

"Liga ele."

Foi a última coisa que a rodesiana disse antes de mergulhar nele e José, pairando naquele firmamento infinitamente azul de sensações inebriantes, perceber que só havia uma coisa a fazer antes de o corpo tomar totalmente conta da sua vontade e deslizar para as profundezas escaldantes daquela mulher.

Ligou o piloto automático.

Vistas do ar, as palhotas pareciam fundir-se com a terra e o capim, e apenas os telhados cónicos de colmo e dois fios de fumo que serpenteavam para o céu, ateados evidentemente por fornos de cozinha, tornavam evidente a José que se escondia ali uma aldeia.

"Cazula."

Lançou um olhar para os mamilos rosados e erectos de Nicole, sugerindo-lhe que se vestisse, e manobrou os comandos de modo a preparar a aterragem. Verificou o sentido do vento e a posição da faixa de capim que funcionava como pista e posicionou o avião, enquadrando-o frontalmente com o rectângulo rasgado na terra. O Piper Cherokee balouçou ao vento como uma folha e perdeu altitude aos solavancos, como se descesse os degraus de uma escada invisível. O médico-aviador carregou num botão e ouviu-se o claque seco do trem de aterragem a abrir.

Uma figura apareceu lá em baixo a correr e posicionou-se no meio do rectângulo do capim, pondo-se a agitar os braços num frenesim, como se fizesse sinais desesperados para o avião.

"Que é isso?", admirou-se a rodesiana enquanto apertava o soutien com as mãos atrás das costas

"Quem é esse cara?"

Depois de uma hesitação, José puxou a manche do avião.

"Não querem que aterremos."

O motor do Piper Cherokee rugiu e o aparelho ganhou de novo altitude, abortando a aterragem.

Nicole estava intrigada com o que acabara de acontecer e questionou o amante, mas José não respondeu. Recolheu o trem de aterragem e manobrou o aparelho de modo a completar uma curva completa, posicionando-se de novo contra o vento e enquadrado com o rectângulo. Voltou a perder altitude, mas desta feita não desceu o trem de aterragem e passou em voo rasante sobre a pista de maneira a observar o que se passava lá em baixo.

Viu alguns homens a escavarem a pista e apercebeu-se de um deles a extrair um disco metálico da terra.

"Minas!", exclamou. "A pista está minada!"

A informação atingiu Nicole com a força de uma bofetada.

" What? ", admirou-se, colando os olhos incrédulos ao vidro do avião para tentar analisar melhor o que se passava lá em baixo, mas a pista já ficara para trás e tudo o que via nesse momento eram embondeiros. "Minas? Tem minas na pista?"

"Às vezes acontece", assentiu o médico-aviador com um encolher indiferente de ombros.

"Algumas pistas de aterragem aparecem minadas, sobretudo nas zonas por onde andam os turras.

É a guerra."

Ela pôs a mão sobre a boca e virou a cara para o amante, os olhos azuis arregalados de terror.

"My God! E agora? Vamos embora, né?"

José abanou levemente a cabeça.

"Esperamos."

"Esperamos? Esperamos o quê?"

"Esperamos."

A rodesiana emudeceu, sem entender o procedimento mas presumindo que o médico-aviador sabia o que fazia. O Piper Cherokee voltou a ganhar altitude e pôs-se a completar círculos sobre Cazula, como uma ave de rapina gigantesca à espera do momento para cair sobre a presa. O piloto manteve a atenção colada às figuras minúsculas que formigavam na pista, atento ao seu comportamento.

Ao fim de uns dez minutos viu as figurinhas afastarem-se do rectângulo e uma delas fazer com os braços novos sinais para o céu. Nesse instante posicionou mais uma vez o aparelho contra o vento e, no enfiamento do rectângulo de terra, começou a perder altitude e voltou a baixar o trem de aterragem.

"Que está fazendo?", inquietou-se Nicole. "Vai aterrizar?"


"Claro."

"Você está biruta?", alarmou-se, elevando a voz. "Essa pista está minada. Ninguém pode aterrizar nessas condições! Não tem como! Vamos embora!"

Ignorando os protestos da rodesiana, José manteve a direcção e os procedimentos e o avião continuou a descer. Nicole começou a gritar, desesperada, e só se calou quando, instantes mais tarde, o aparelho estremeceu com violência perante o impacto duro das rodas na terra e ela foi confrontada com a realidade.

Tinham aterrado.

A consulta em Cazula decorreu bem, apesar do evidente nervosismo da população e dos homens que administravam o posto. Tinha sido assinalada a presença da guerrilha na zona e dois dias antes um grupo de comandos fora largado ali perto para dar caça ao inimigo. Nessa noite havia sido escutado tiroteio e algumas explosões à distância.

"Tivemos de minar a pista", explicou o chefe do posto, limpando com as costas da mão a transpiração que lhe escorria pela testa sob o sol ardente da manhã. "Foi para impedir que os turras entrassem por este lado durante a noite." Respirou fundo e desviou o olhar ansioso para os embondeiros que se alinhavam no horizonte para lá da pista, como sentinelas silenciosas. "Não ganho para isto, doutor. As coisas estão a ficar maningue más. Qualquer dia pego na minha preta e pisgamo- nos para a Beira."

Considerando que a pista estivera minada e os receios que vislumbrava no rosto das pessoas, José achou que poderia haver mais gente a necessitar de cuidados médicos e que não se tinha atrevido a aproximar do avião. Já em ocasiões anteriores havia constatado que a presença do perigo tornava as populações mais tímidas, pelo que fez sinal a Nicole de que o seguisse.

"Ande", disse, pondo o chapéu rodesiano. "Vamos dar uma volta por aí."

"Para quê?", espantou-se ela, relutante em abandonar o avião. "Não temos de continuar a viagem?"

"Temos, pois. Mas primeiro vamos certificar-nos de que não há mais ninguém a precisar de ajuda."

Abandonaram de jipe o pequeno aeródromo improvisado na savana e foram até à povoação.

José andou de palhota em palhota e localizou de facto alguns velhos e mulheres que requeriam assistência e não se tinham atrevido a ir até à pista onde se encontrava o avião.

Quando ia sair de uma das derradeiras cubatas, aprestando-se a regressar ao aeródromo para retomar viagem, o médico apercebeu- se de um vulto que apareceu de repente a cortar-lhe o caminho.

"Doutor Branco", interpelou-o o homem. "Pode vir connosco?"

O indivíduo era barbudo, tinha gotas de suor a'deslizar-lhe com abundância pelo rosto negro e vestia uma farda caqui que a transpiração colava ao corpo no peito e por baixo dos braços. O que mais se destacava nele, porém, era o objecto que trazia na mão, uma mistura de um engenho metálico com um apoio rudimentar feito de madeira.

Uma Kalashnikov.

O grupo imobilizou-se no lugar onde se encontrava, paralisado de medo. José olhou para os funcionários do posto administrativo em busca de informação, mas estes pareciam tão surpreendidos como ele. Nicole, que já tinha percebido o que se passava, encolheu-se atrás dos funcionários, como se tentasse fundir-se com a terra e desaparecer.

O médico virou-se para o homem armado.

"O que deseja?"

"Precisamos da sua ajuda", disse o desconhecido, fazendo sinal com a cabeça para um trilho aberto na cortina de capim, a indicar assim a direcção que deviam tomar. "Faça o favor de me acompanhar."

José pegou na mala e, sem hesitar, começou a andar na direcção apontada pelo homem.

"Doutor", chamou o chefe do posto administrativo. "Não vá!"

Sem parar, o médico virou a cabeça para trás e depois pousou os olhos na Kalashnikov que balouçava na mão do guerrilheiro; a arma não estava numa posição ameaçadora, mas nem isso parecia necessário porque a sua simples presença era ameaça suficiente.

"Não me parece que tenha alternativas pois não?"O trilho aberto no capim prolongou-se talvez uns dois quilómetros. Logo à saída de Cazula um punhado de homens armados e também vestidos de caqui, embora algo esfarrapados, juntou-se ao médico e ao guerrilheiro barbudo. O grupo percorreu o trilho em fila indiana e em silêncio, o barbudo à frente a indicar o caminho, José logo a seguir, os restantes atrás.

O médico sentia-se nervoso e o coração batia-lhe a um ritmo acelerado, mas tentava ocultar o medo que lhe transformava as pernas em gelatina. É verdade que não era a primeira vez que lidava com guerrilheiros; acontecia-lhe com frequência encontrar feridos em aldeias que, embora não o confessassem, eram evidentemente elementos do inimigo. Tratara-os a todos, mas aquela que era a primeira vez que o raptavam e interrogava-se sobre o destino que lhe iriam dar. Decerto não o levaram para o matar, tentou convencer-se, meio esperançado, meio ansioso. Se o quisessem fazer não lhe falariam naquele tom cortês; além do mais, já o teriam abatido. Mas se não planeavam matá-lo que lhe queriam eles?A caminhada terminou numa clareira rodeada de palhotas. O

guerrilheiro barbudo conduziu o médico para uma delas e fez-lhe sinal de que entrasse. José tirou o chapéu rodesiano da cabeça, curvou-se e cruzou a entrada escura. A cubata estava fresca e um forte odor a suor e urina impregnava o ar. Apercebeu-se de um vulto deitado numa esteira, mas levou alguns instantes a habituar-se à escuridão e a destrinçar as formas com clareza.

Era um ferido. O olhar do médico foi atraído para a coxa do homem, envolvida em ligaduras ensanguentadas. Sabia que teria de ver isso com cuidado. Desviou a atenção para a face do ferido.

Tinha os olhos fechados e a testa banhada de gotículas de transpiração; a respiração era irregular e o homem parecia mergulhado num sono agitado. José pousou-lhe a mão na testa e sentiu-lhe a temperatura; estava quente, mas não a ferver.

"Então, doutor?"

O médico olhou para trás e viu o guerrilheiro barbudo inclinado sobre o seu ombro a espreitar o ferido.

"Tem febre, mas não me parece maningue alta", respondeu. "Vou ter de lhe ver a perna. O que aconteceu?"

O barbudo fez uma careta.

"Foram os comandos. Atacaram de surpresa e mataram-nos dois camaradas. Quatro ficaram feridos. Três já voltaram à Zâmbia, mas aqui o Ernesto, coitado, como foi atingido na perna, não conseguia andar. Tentámos tratá-lo, mas desconseguimos." Lançou uma espreitadela à porta da palhota, como se receasse a entrada de alguém. "Temos de ir embora, é maningue perigoso ficar aqui, mas não sabíamos o que fazer ao Ernesto. Aí vimos de repentemente o seu avião e pensámos: o doutor Branco já tratou guerrilheiros da Frelimo. Ele vai ajudar o pobre do Ernesto. E fomos buscá-lo." Endireitou o corpo, como se a missão estivesse enfim cumprida. "Agora vamos embora."

O médico olhou para as ligaduras ensanguentadas na perna do ferido e voltou-se de novo para o guerrilheiro barbudo.

"Vão-se embora, como? Que quer dizer com isso?"

"Não podemos ficar aqui, doutor." Indicou a luz que jorrava pela entrada da cubata. "O


guerrilheiro tem de estar sempre em movimento. Os comandos podem voltar, ainda por cima depois de termos ido lá buscar o doutor. Agora que o senhor aqui está, podemos partir."

"E quem fica com o ferido?"

"Fica o doutor."

José olhou de novo para o homem estendido na esteira e abanou a cabeça.

"Não, não pode ser assim", disse, enfático. "Ajudem-me a levá-lo até ao aeródromo. Temos de o meter no avião."

O guerrilheiro pareceu estupefacto com a sugestão.

"O avião, doutor?"

O médico indicou uma espuma amarelada na orla do sangue que sujava as ligaduras.

"Está a ver isto?", perguntou. "É pus. A ferida está infectada. Este homem tem de ser imediatamente transportado para o hospital. Não sei se vamos a tempo de lhe salvar a perna, mas quero pelo menos tentar." Fez um gesto a indicar a cubata. "Aqui é que ele não pode ficar."

"Mas nós não podemos ir até ao aeródromo, doutor. Isso vai dar maningue chatice."

José ponderou a observação.

"Então levem-no ao menos até à aldeia", sugeriu. "Depois eu trato do resto."

O guerrilheiro foi chamar os seus homens e o grupo improvisou uma maca, onde instalou o ferido. Minutos depois médico e guerrilheiros retomaram a picada de regresso a Cazula, com um batedor à frente. O sol ardia a pique e José ordenou que um dos homens fosse buscar folhas de palmeira e fizesse o caminho ao lado da maca, usando as folhas como guarda-sol para proteger o ferido.

Era uma estranha fila, com homens de caqui a transportar a maca e uma figura de branco a acompanhar o grupo, tão diferendado como uma pomba rodeada por um bando de corvos.

Daquele bando emergiu o guerrilheiro barbudo, que apressou o passo para se pôr ao lado do médico.

"O doutor também trata os comandos?", quis saber o guerrilheiro.

"As vezes", retorquiu José. "Trato de toda a gente que precisa de tratamento."

"Mas os comandos são animais", insistiu o guerrilheiro. "E os piores são os pretos. Três quartos dos comandos portugueses são homens negros. Essa gente é maningue má. Não presta." Inclinou a cabeça. "Estou a pedir não trata eles."

"Não trato de quem? Dos comandos negros?"

"Sim. Estou a pedir não trata eles."

O médico ajeitou o chapéu, inclinando a aba para melhor se proteger do sol. Sobre a linha do capim, onde o ar ondulava com o calor, já se avistavam os primeiros telhados de colmo das palhotas de Cazula, indício seguro de que a pequena aventura estava perto do fim.

"Você tem de perceber uma coisa", disse José com uma voz suave. "Eu sou um médico e tenho deveres. Traga-me aqui o assassino da minha mãe e eu cuidarei dele."

Aconteciam por vezes estes imprevistos que obrigavam a alterar a planificação das viagens semanais do Serviço Médico Aéreo. José Branco encontrava num local alguém a precisar de transferência imediata para um hospital e mudava o roteiro de voo. Em vez de seguir para o destino inicialmente previsto, voava até Tete para internar o paciente no hospital e só então retomava a viagem em direcção ao destino que ficara em suspenso.

Foi o que sucedeu dessa vez. Os guerrilheiros largaram o médico e a maca com o ferido na orla de Cazula. Já em liberdade, José foi chamar o pessoal do posto administrativo e pediu ajuda para transportar o guerrilheiro para o Piper Cherokee. Uma vez no avião, removeu duas cadeiras, de modo a abrir espaço na traseira do aparelho, e encaixou a maca com o ferido.

"Quem é esse cara?", quis saber Nicole quando se acomodaram no cockpit, manifestamente nervosa com a presença daquele passageiro atrás dela. "é turra?"

O médico-aviador verificava o painel de bordo, mas não conseguiu conter uma gargalhada.

"Não te metas com ele", recomendou. "Olha que vai já desatar aos tiros."

A rodesiana cravou os olhos receosos no homem deitado na maca, observando-o com um fascínio atemorizado.

"My God! É terrorista!"

Imerso no painel de bordo, José terminou o check e iniciou os procedimentos para ligar o motor.

"Não", disse. "é um paciente."

De Cazula deveriam seguir para Bene e terminar o dia no Fingué, mas a presença do ferido, e sobretudo o estado em que ele se encontrava, obrigou o médico-aviador a alterar o plano de voo.

Logo que descolou, e em vez de prosseguir para noroeste, o avião completou uma larga curva no espaço vazio e rumou para sul, a caminho da capital distrital.

Apanharam pouco depois uma vasta faixa de água a cortar a savana; era o caudal majestoso do Zambeze que serpenteava na sua longa viagem do coração de África até às águas quentes e translúcidas do Índico. O Piper Cherokee baixou de altitude e José, preocupado em manter distraída a enervada rodesiana, mostrou-lhe as manadas de elefantes que brincavam nas margens do rio, ao pé de grupos de hipopótamos e de alguns antílopes; viam-se mesmo duas girafas e várias zebras.

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