Mimicas entoou umas notas. A voz, habitualmente cristalina, desafinou de imediato e fraquejou por completo quando as notas subiram dois tons, o que fez o amigo rir.
"Está bem, cantar foi uma má ideia", admitiu. "Temos de pensar noutra coisa. Que tal se escreveres? Nós temos agora um jornal humorístico, O Lamiré, e precisamos de textos novos. Como tu és uma pessoa com graça..."
Ela abanou a cabeça.
"Receio não ter jeito nenhum para as artes. Música, escrita, desenho... sou um zero à esquerda.
Adoro ler, não perco um coiso da Agatha Christie, mas a minha escrita é uma nódoa."
"É pena..."
"Tu, para compensar, és um verdadeiro artista", lançou-lhe Mimicas num tom jovial. "Mas quer-me cá parecer que o teu verdadeiro talento está nas artes musicais."
"Achas?"
"Claro", exclamou com uma ponta de veneno na voz. "Desde que nos encontrámos que não tens parado de me dar música!"
"Oh! Porque achas isso?"
"Porque vieste ter comigo a dizer que tinhas umas dúvidas de Farmacologia e ainda não me fizeste uma única pergunta sobre o assunto. Afinal que dúvidas são essas?"
Apanhado de surpresa, o amigo enrubesceu e desviou o olhar para um ponto indefinido na rua.
Havia pensado em tudo, mas esquecera-se desse pormenor. Que diabo precisava ele de saber para a cadeira de Farmacologia?
"Eu... enfim, fica para a próxima vez, está bem?"
O olhar dela tornou-se ainda mais provocador que o habitual.
"Primeiro vais procurar a tal sebenta?"
"É isso."
A pressa e o alívio evidente com que José agarrou a deixa arrancaram a Mimicas um novo sorriso.
"Não há dúvida", murmurou a rapariga, falando mais para ela própria que para o amigo. "és um músico."Uma nova rotina instalou-se na vida de José. Quando as aulas acabavam, Mimicas saía da faculdade e, com a pontualidade que decerto herdara do pai, o rapaz cruzava-se "por coincidência" com ela e cumprimentava-a com um sorriso "surpreendido".
"Olá!", dizia invariavelmente. "Por aqui?"
A farsa tornou-se divertida. Se Mimicas vinha acompanhada por uma ou duas colegas, José seguia em frente e desaparecia ao fundo da rua, alheio às risadinhas das raparigas. Mas se por acaso saía sozinha, ao cumprimento seguia-se uma frase que se tornou ritual nessas circunstâncias.
"Oh, não me digas que estás abandonada! Não te apoquentes, eu faço-te companhia até às Doroteias."
Foi como se os passeios dominicais em Penafiel tivessem sido retomados, agora numa outra cidade, com um itinerário novo e um pretexto diverso. O facto é que os giros dos dois da faculdade até à Praça da Paz, onde se situava o lar, eram sempre animados. Nunca lhes faltava tema e, embora fossem pessoas diferentes, pareciam partilhar interesses e um olhar bem-humorado sobre a vida.
As conversas abordavam os mais variados assuntos, mas curiosamente, ou talvez não, a matéria constante em Farmacologia nunca foi um deles.
Ao fim de duas semanas, e numa altura em que já nem sequer fingia que a encontrava por mero acaso à saída das aulas, José achou que o terreno estava suficientemente sólido para dar o passo seguinte. Num dos passeios subsequentes, e quando caminhavam lado a lado já perto da Boavista, encostou a mão à dela. Mimicas não reagiu. Encorajado, fez novo encosto uns passos mais adiante e dessa vez tentou enlaçar-lhe os dedos. A rapariga retirou de imediato a mão, mas teve o cuidado de não mencionar o assunto, como se tudo fosse comunicado sem nada ser dito. Ele percebeu que teria de ser mais paciente e refreou a primeira ofensiva.
Os acontecimentos, todavia, em breve se precipitaram. Num dos passeios a meio da semana seguinte cruzaram-se com Ludovina à saída da faculdade. Trocaram sorrisos e cortesias, mas a amiga, embora mantendo um trato polido, lançou-lhes um olhar desconfiado.
Três dias depois, e num outro ponto do itinerário, voltaram a dar de caras com a mesma Ludovina e dessa vez mal conseguiram ocultar o embaraço por se verem de novo apanhados na companhia um do outro em tão pouco tempo.
"Mau, mau", resmungou Mimicas quando se afastaram. "Já não estou a gostar disto."
"E aborrecido", reconheceu o rapaz. "É a segunda vez que a Ludovina nos apanha juntos."
"Isto vai dar falatório. Se calhar é melhor acabares de me coisar à porta da faculdade."
A sugestão quase o indignou.
"Ora essa! Não vejo porquê!..."
"Mas vejo eu!", cortou ela, ainda irritada por terem sido avistados pela amiga. "É melhor pararmos com isto."
Parar era a última coisa que ocorria a José, que quase entrou em pânico ao ouvi-la falar assim.
Seria possível que aqueles passeios na sua companhia lhe fossem indiferentes?
"Porquê? Qual é o mal?"
Mimicas deteve-se à esquina e rodou sobre os calcanhares, fitando-o com uma expressão penetrante.
"Porquê? é preciso ter lata!", exclamou num tom inesperadamente acusador, espetando-lhe o indicador com força no peito. "Tu sabes muito bem porquê!..."
"Não, não sei."
"Porque tu tens um problema que precisas de resolver", vociferou Mimicas, elevando a voz quase em protesto por ter de lhe explicar o que a ela parecia óbvio. "E enquanto não o resolveres não vale a pena vires ter comigo, ouviste?"
Deu meia volta e arrancou em passo apressado, deixando assim claro que não desejava ser acompanhada. José ficou plantado a meio do passeio, tentando perceber se havia dito ou feito algo de errado, e abriu os braços num gesto de perplexidade e impotência.
"Mas que problema?"
Ela estacou e olhou para trás.
"O problema a quem davas a mão quando eu e a Ludovina te encontrámos em Cedofeita."
Retomou a marcha e desapareceu ao virar da esquina.
A interrupção daqueles passeios era mais do que José podia suportar. Pela segunda vez na sua vida fora apartado da companhia de Mimicas e a verdade é que se sentia definhar sem ela. Era surpreendente e aterrador, mas percebeu que não podia passar sem a amiga de infância. Chegou a ir esperá-la de novo à porta da faculdade, mas quando ela lhe perguntou se já tinha resolvido "o problema" e ele baixou os olhos a rapariga ignorou-o e seguiu caminho sem lhe prestar mais atenção.
Doeu de tal forma que, ao fim de alguns dias, José chegou à conclusão de que não tinha mais espaço para protelar o que era inevitável. Sentindo-se encostado à parede, reuniu a coragem que habitualmente falta aos homens nos momentos de ruptura e teve com Juliana a conversa a que não havia modo de escapar. Como seria de esperar, a namorada reagiu mal, com lágrimas em abundância e recriminações cuja justeza ele não podia negar, pelo que foi com um sentimento de alívio e alguma culpa que por fim se separou dela e saiu à rua, agora um homem já descomprometido.
Voltou a aguardar Mimicas à saída da faculdade, o espírito leve e a resolução enfim tomada, e logo que a viu, felizmente sozinha, cortou-lhe o caminho.
"Olá", cumprimentou-a. "Queres ir dar um passeio?"
A rapariga lançou-lhe um olhar perscrutador.
"Sabes bem qual é a minha resposta..."
"Vem e não te arrependerás."
O ar estranhamente confiante de José convenceu-a. Concordou com um aceno de cabeça e deixou-se guiar por ele até a um autocarro que os levou pelas ruas do Porto até à Foz.
Acolheu-os o murmúrio cavado do mar. As ondas eram fortes nesse dia, fustigando as paredes do passeio e babando-as de espuma fervilhante. Os salpicos de água sucediam-se ao deflagrar apoteótico das ondas e enchiam o ar de um aroma salgado a mar, borbulhante e quase picante, um odor tão intenso que lhes penetrava nas narinas como um perfume exótico.
"Está bravo", observou José. "Tens frio?"
"Um bocadinho..."
O rapaz indicou um café do outro lado da rua.
"Anda ali ao Caravela."
O café estava quase vazio, como seria de esperar àquela hora naquele local, pelo que puderam instalar-se à janela num lugar com vista privilegiada para o mar e pediram dois galões com torradas em pão de forma.
"Tenho uma novidade para te dar", anunciou ele logo que se viram a sós. "Acabei o namoro com a Juliana."
Mimicas soergueu o sobrolho.
"Isso quer dizer o quê?", perguntou com cautela. "Que vais voltar a esperar-me ao fim das aulas e coisar-me até casa?"
O rapaz respirou fundo. Tinha passado a véspera a ensaiar o discurso, mas, como sempre sucedia naquelas ocasiões, de repente a garganta havia-lhe secado, o coração disparara e a memória atraiçoava-o. Nos ensaios as palavras escorriam como mel, parecia que fluíam por um ribeiro gorgulhante e límpido, mas nesse momento, em que chegara a hora da verdade, encravavam e encavalitavam-se umas nas outras, transformando o seu discurso num arrazoado hesitante e trapalhão. O melhor, concluiu, era manter a coisa simples.
"Podia dizer-te o que planeei para esta ocasião", balbuciou, engolindo duas vezes em seco e afastando os olhos, talvez demasiado envergonhado para a fitar. "Que sonhei contigo e que quando acordei descobri que estava apaixonado. Podia dizer-te isso e muito mais, e sempre com palavras bonitas. Mas a verdade é que isso não aconteceu." Neste ponto o discurso tornou-se mais escorreito e o olhar deixou de fugir para se cravar nela. "Ou melhor, não aconteceu agora. A verdade é que foste a minha primeira paixão. Avistei-te um dia na varanda de tua casa e foi como se me tivessem roubado o ar. Não descansei enquanto não te voltei a ver e de cada vez que te via tinha mais e mais vontade de te ver outra vez. E quando partiste foi como se tivessem arrancado uma parte de mim.
Não o sabia ainda, mas levaste-me o coração. Partiste para África e, sem que eu mesmo o soubesse, o meu coração partiu contigo." Voltou a engolir em seco. "Sempre tive a consciência de que foste a minha primeira paixão. Mas o que eu não sabia, e só agora soube, é que foste também a única." Pôs a mão sobre a mesa, como se pedisse autorização para a aproximar dela, e sentiu o suor brotar-lhe inadvertidamente do topo da testa. "O que eu queria... o que eu quero saber é se... se aceitas que eu... enfim, que nós nos tornemos namorados."
Quedaram um longo momento a fitar-se, ele expectante e nervoso, ela com a expressão marota a bailar-lhe nos olhos, deixando prolongar a dúvida até aos limites do suportável, até ao instante em que o tempo se suspendeu e por fim o sorriso lhe aflorou aos lábios e o braço pousou na mesa para lhe tocar a mão com a mão. Não foi um "sim", mas foi como se fosse.A tarde adormecia cinzenta, embalada pela luminosidade metálica que o céu de cobre projectava na cidade e pelas nuvens carregadas que deslizavam baixas, tingindo de sombras as ruas do Porto. Logo nesse fim de tarde foram os dois avistados no eléctrico sentados lado a lado, comportamento reservado aos casalinhos, e de imediato a notícia se espalhou pela Casa das Doroteias, pelas duas faculdades e pelo Orfeão.
José e Mimicas namoravam.
A novidade não caiu muito bem. A rapariga foi acusada de "roubar o namorado" à pobre da Juliana, moça de grandes virtudes e por todos estimada. A acusação doeu a Mimicas, que clamava inocência e repetia a quem se dispunha a ouvi-la sobre o assunto, e sempre sem faltar à verdade, que não, que ele é que se aproximara, que ela lhe dissera que não achava bem aquela aproximação tendo ele uma namorada, que ele é que acabara com a namorada, que ele estava livre quando ela lhe disse que sim, embora na verdade nunca lhe tivesse dito que sim, limitara- se a sorrir e a consentir quando ele a pedira em namoro no Café Caravela e ao lado o mar, ele sim, soprara que sim."Ora querem lá ver isto?", queixou-se ao namorado. "Agora sou vista como uma ladra!..."
O falatório, porém, não incomodou José, cuja mente se ocupava já com o problema seguinte.
Desde que Maria Imaculada o despertara para os prazeres da carne que sabia que tinha de alimentar o monstro a quem as suas calças davam apertada guarida. E certo que era Mimicas a verdadeira dona do seu coração, e que os assuntos do coração lhe pareciam de certo modo dissociados dos da carne, mas isso não fazia dela a Virgem Maria, até porque ele se chamava José e tinha responsabilidades bíblicas.
Neste capítulo, contudo, Mimicas revelou-se particularmente difícil. Começou por resistir aos beijos, intimidade que aliás nesse tempo era reservada aos mais afoitos ou às relações mais amadurecidas, o que deixou José consternado. Pois se ela montava tão acirrada resistência a uma coisa tão simples quanto um mero beijo, como seria com o resto?
Para lhe aguçar o desejo adoptou outras tácticas, como abraçá-la de modo que ela sentisse o volume que ele escondia entre as pernas. Depois passou a andar com calças de tal modo apertadas que lhe acentuavam as já de si avantajadas formas masculinas, na esperança de lhe acicatar o interesse.
No entanto, a namorada não pareceu reagir a esses incentivos, o que o deixou deveras intrigado. Estaria ele a perder qualidades? Haveria algo de errado com ela? Porque não se sentiria atraída por toda aquela virilidade que a tantas outras seduzia? Estaria alheada dos prazeres da carne? Com o tempo foi concluindo que a resposta certa a esta última pergunta era a afirmativa, e por uma razão muito simples: Mimicas mantinha-se virgem. Como nunca explorara aqueles territórios da geografia do corpo e do assunto apenas fazia uma pálida ideia, não se sentia tentada.
Pior que isso, reagia mal às investidas que ele lhe lançava com crescente despudor.
"Deixa-te dessas coisas", rematava após cada rejeição. "Vai mas é estudar!"
A noite havia sido de festa na Casa das Doroteias e, como sempre nessas ocasiões, cabia às próprias estudantes internas a responsabilidade de, no dia seguinte, proceder a limpezas e arrumações. O regulamento proibia a entrada de rapazes nas instalações, como aliás era de bom-tom e adequado a uma instituição tão respeitável quanto aquela, mas esse dia era uma excepção, até porque havia certos trabalhos que requeriam o músculo masculino.
Foi assim que, nessa ocasião, José acabou por ver-lhe abertas as portas do lar. Perguntou por Mimicas e, seguindo as indicações, foi dar com ela na cozinha.
"Deixaram-te entrar?", admirou-se a rapariga quando o viu.
"Disse-lhes que te vinha ajudar", explicou o namorado. "Foi boa, a festa?"
"Uma maravilha", exclamou com um sorriso alegre, que depressa se transformou numa expressão de comiseração. "Mas comi de mais. Estou tão arrependida..."
"O que estás a fazer?"
A moça exibiu a coluna de pratos sujos que se erguia do lavatório num equilíbrio periclitante, como uma rudimentar Torre de Pisa.
"Estou a coisar a loiça, não vês?"
"Queres ajuda?"
A pergunta suscitou espanto em Mimicas, que lhe atirou um ar desconfiado.
"Tu? Ajudares a lavar os pratos? Desde quando?"
"Desde que tu queiras. Queres ou não?"
"Claro que quero."
Mimicas deu um passo para o lado, abrindo espaço para ele também lavar a loiça, mas o comportamento do namorado deixou-a desconcertada. Em vez de se aproximar, deu meia volta e sumiu-se no corredor. Reapareceu menos de um minuto mais tarde com uma guitarra nas mãos.
Pegou numa cadeira da copa e arrastou-a até ao centro da cozinha. Depois pôs um pé sobre o assento à maneira de um conquistador, arregaçou as mangas e, em soberba pose de trovador, começou a tocar.
Eu voooou
Cantaaar
.
O Hilário,
Fadinho...
"Olha lá", interrompeu-o Mimicas, as mãos nas ancas em postura indignada. "O que estás a fazer?"
Com o tronco inclinado sobre a guitarra, uma melena castanho-escura a descair sobre a testa e os olhos colados às cordas que dedilhava com mestria, José parou de tocar e alçou até ela a expressão de surpresa que lhe acendia a face, como se a pergunta não fizesse sentido e a resposta fosse por demais evidente.
"Estou a ajudar-te a lavar a loiça."
Cedo Mimicas percebeu que José era um homem do seu tempo e, no que à cozinha e aos deveres domésticos dizia respeito, as suas responsabilidades começavam e acabavam na parte em que fazia de comensal ou se estendia no sofá. Não era pessoa para sujar nem desarrumar, mas também não limpava nem arrumava.
Não que isso incomodasse a namorada, também ela uma rapariga do seu tempo. As divisões de tarefas em função dos sexos revelaram-se um assunto consensual. Ambos se consideravam pessoas modernas e desempoeiradas, mas havia áreas em que a tradição se impunha. As lidas domésticas eram uma delas e neste particular Mimicas não conseguiu mudá-lo. Nem aliás o tentou ou sequer quis.
Se houve influência que exerceu em José foi sobretudo na prioridade dada ao curso. As manhãs de preguiça, as tardes de paródia e as noitadas de fadinho, copos e farra chegaram ao fim, assim como o desleixo nos estudos. E tudo de um momento para o outro, conduzido por Mimicas com pulso de ferro.
O sinal de que neste capítulo as coisas iam mudar foi dado logo na primeira tarde que combinaram passar juntos para estudar. O local acordado foi o Ancora de Ouro, o café preferido dos estudantes do Porto, por ser, segundo se dizia, o melhor sítio da cidade para se "rever a matéria", expressão cujo real sentido parecia diferir em função de ser escutada na boca de um rapaz ou de uma rapariga.
O Âncora de Ouro estava nesse dia, como aliás sempre, repleto de estudantes, tantos que pareciam piolhos, o que de resto valera ao café a alcunha de "O Piolho". Uma nuvem de fumo pairava sobre as mesas, tal como um burburinho incessante, e os dois recém-chegados tiveram de aguardar dez minutos até encontrarem uma mesa livre, no canto junto à parede e ao lado do quiosque, lugar habitualmente reservado aos estudantes de Medicina. Os de Ciências aglomeravam-se à entrada, como era seu hábito, enquanto os de Engenharia e os de Economia se sentavam no outro extremo, próximo do espelho.
Mimicas depositou uma pilha de livros sobre a mesa e logo que o namorado pediu os cafés pegou no primeiro exemplar e começou a folheá-lo com um lápis na mão para as anottações.
"Sabes aquela do Zequinha das Campainhas?", perguntou José.
"Hmm"
"O menino Zequinhas queria muito ser conhecido rno seu prédio por Zequinhas das Campainhas. Vivia no terceiro andar e todos os dias, quando descia para ir para as aulas, tocava à campainha do vizinho do segundo, do primeiro e do rrés-do- chão. Quando voltava à tarde..."
"Zé..."
"... tocava à campainha do vizinho do rés-do-chão, ddo primeiro andar e do segundo andar. À
tarde, à hora de ir pôr o lixo, descia e tocava à campainha do vizinho do segundo andar, do primeiro..." "Zé!"
O tom peremptório da namorada e o seu olhar severo obrigaram José a interromper a anedota.
"Não queres ouvir? Olha que tem graça!..."
"Contas-me à hora do lanche." Voltou a pegar no livro. "Vá, agora está na hora de estudar."
O rapaz ficou uns segundos a vê-la sublinhar palavras no volume que tinha em mãos.
"Não conheces a história da cigarra e da formiga?", quis saber. "Para que a formiga trabalhe é preciso que a cigarra a anime..."
"Já te armaste em cigarra no outro dia, quando eu estava a coisar a loiça. Agora é hora de te transformares em formiga." Fez sinal para os livros. "Vá, estuda."
O silêncio voltou àquele recanto. Mimicas recomeçou a ler e a sublinhar o seu livro, enquanto José tamborilava com os dedos na mesa à procura de algo que o distraísse. Passeou os olhos pelo Piolho e admirou o empregado que ziguezagueava nervosamente entre as mesas a equilibrar em cada mão duas bandejas repletas de chávenas de café.
"Já viste o..."
"Estuda!"
E foi assim, a toque de caixa e com rédea curta, que Mimicas o foi domesticando nos estudos.
Quase proibido de falar nas horas em que a namorada estudava, José percebeu que teria de ocupar esse tempo morto, sob pena de ter de aguentar tardes insuportavelmente monótonas, e passou a fazer-se acompanhar das sebentas e dos compêndios de Medicina.
"Qualquer dia", resmungou entre dentes enquanto folheava um manual de Anatomia, "até aprendo a porra do mastoideu!..."
O facto é que a fórmula funcionou e em pouco tempo José adquiriu a disciplina de trabalho que lhe faltava e que o ajudou a ganhar embalo nos estudos. Não que se tenha tornado um aluno exemplar, mas o facto é que os doze e treze valores se tornaram mais comuns do que os anteriores dez e onze, além de que deixou de ter negativas. Por outro lado, transformou-se numa espécie de papa-disciplinas. De apenas sete disciplinas passadas nos dois primeiros anos saltou para as vinte nos dois últimos anos, recuperando completamente o atraso. E certo que as cadeiras eram agora sobretudo práticas, o que ia mais de encontro aos seus interesses, mas isso não impediu que a mudança tivesse sido mirabolante.
O problema é que Mimicas teimava em recusar-lhe os avanços da carne, por mais persistentes que fossem os seus argumentos e imaginativas as suas tentativas.
"Vá lá, só desta vez", dizia sempre que passava mais uma disciplina. "E um premiozinho..."
"O prémio é o curso que vais tirar à custa do estudo."
A resposta de Mimicas tornou-se exasperante e o namorado já não sabia o que havia de fazer à frustração que se lhe acumulava no corpo. O monstro que escondia entre as pernas exigia-lhe aquilo a que se habituara com Maria Imaculada e não reagiu bem à dura provação, sendo que
"dura" é decerto a palavra mais adequada para descrever a situação que vivia.
"Mas porquê? Porquê?"
"Já te disse", repetiu ela vezes sem conta. "Essas coisas só depois do casamento."
José já percebera que a namorada era tão inexperiente que parecia ter apenas uma vaga ideia do que a expressão "essas coisas" significava exactamente. Mas isso, longe de o consolar, desesperava-o ainda mais. Ninguém deseja o que desconhece, pelo que não tinha modo de lhe demonstrar que o fruto que naquele instante ela desdenhava era daqueles capazes de levar à loucura qualquer outra.
Como fazer-lhe entender isso?
Foi a meio do quinto ano, quando sentiu que já não suportava mais tempo a longa abstinência, que tomou a decisão. Decorria o Inverno e José tinha ensaio no Orfeão durante toda a tarde, pelo que ficou combinado que depois das aulas Mimicas iria ter com ele.
Tudo correu normalmente à hora marcada, com a rapariga a entrar na sala de concertos e a sentar-se num canto do fundo enquanto os orfeonistas terminavam de ensaiar uns fados de Coimbra. A fase final do ensaio não excedeu a meia hora. Mimicas mantinha os ouvidos na música e os olhos na sebenta, espreitando ocasionalmente o namorado para o ver dedilhar a guitarra ou escutá-lo a cantar umas estrofes.
O ensaio terminou por fim e o grupo dispersou-se rapidamente. Já se fazia tarde e a hora do jantar aproximava-se. Mimicas levantou-se do seu lugar e abeirou-se do palco para acolher o namorado. O problema é que José se demorou tanto a guardar a guitarra que só ficou pronto quando os outros saíram. Foi então que fez uma coisa inesperada. A rapariga viu-o varrer a sala com o olhar, aparentemente para se certificar de que se encontravam sozinhos, e depois virar as costas à plateia vazia, como se não tivesse qualquer intenção de abandonar o palanque, e sentar-se ao piano.
"O Zé", impacientou-se Mimicas, "o que estás a coisar?"
"É só mais uma musiquinha."
"Despacha-te! Tenho uma fome de lobo!"
"Senta-te e escuta", recomendou ele. "O que vou agora tocar é dedicado a ti."
A rapariga respirou fundo e, enchendo-se de paciência, acomodou-se numa cadeira da primeira fila. Anoitecera e já estava ansiosa por se instalar à mesa para jantar; ainda por cima o ensaio impedira-a de lanchar. O comportamento misterioso do namorado, porém, deixou-a intrigada.
Teve uma certa curiosidade de saber que música era aquela que justificava tal encenação.
Com ares de dono do palco, José contemplou um longo momento o imponente piano de cauda, como se o quisesse seduzir e tivesse todo o tempo para o fazer, abriu os braços à maneira de um pássaro que se preparasse para se lançar no vazio e, respirando fundo, baixou devagar as mãos sobre a fileira de teclas macias. Dava a impressão de estar hipnotizado pelo reluzir delicado do marfim que cobria as teclas brancas no contraste com o ébano que adornava as negras. O tronco do rapaz vacilou no derradeiro instante de silêncio, no que parecia um frémito de prazer antecipado, e ao pousar enfim os dedos nas teclas, como se as quisesse acariciar, extraiu delas os primeiros sons, notas fortes e ritmadas de uma melodia solene que Mimicas identificou nos primeiros segundos.
A marcha nupcial.
Casaram-se no Verão. A data foi escolhida para aproveitar a viagem à Metrópole da mãe de Mimicas, funcionária dos Correios no Mindelo que gozava esse ano uma licença graciosa.
A cerimónia decorreu na pequena capela de Singeverga, o mosteiro beneditino de Santo Tirso, cujo abade era o primo Gabriel. Foi este familiar de José, aliás, quem celebrou a missa e consagrou o matrimónio, tudo feito em obediência à tradição, aos bons costumes e aos cânones dos casamentos das boas famílias católicas do Norte de Portugal. A família em peso marcou de resto presença, incluindo os primos afastados que vieram de Trás-os-Montes. A excepção foi a irmã Lourdes, que casara quando José fora para a universidade e entretanto havia seguido para Angola com o marido e os filhos, que lhe começaram a nascer em rajada.
O noivo viveu a cerimónia num estado de excitação latente. Os pruridos vitorianos de Mimicas constituíram uma espécie de voto de castidade que se prolongou por todo o tempo de namoro e que tornaram mais apetecível o prazer supremo de que ela tão zelosamente o privara. Houvera momentos em que José se sentira de tal modo desesperado que considerara até a possibilidade de romper a relação, mas, logo que os calores do monstro arrefeciam, caía em si e rejeitava liminarmente a ideia. A namorada era a sua primeira paixão, na verdade a única que tivera, e intuía que perdê-la seria um desastre do qual jamais conseguiria recuperar.O casamento trouxe-lhe a solução para o problema. Se tinha já percebido que aquela era a mulher da sua vida, porquê adiar o inevitável? De resto, alimentava a mais profunda convicção de que, logo que provasse o fruto que até aí havia tão insensatamente desdenhado, Mimicas despertaria de vez para os prazeres por ela desconhecidos. E esse despertar, não o esquecia em instante nenhum, iria suceder dentro de apenas algumas horas, quando abandonassem o copo-d'água no Mosteiro de Singeverga e fossem para o hotel do Porto onde passariam a noite de núpcias.
A perspectiva do fim do longo jejum deixou o monstro em estado de alerta máximo desde manhã. José não o podia controlar e teve de suportar toda a cerimónia na capela e depois no salão onde decorreu o copo-d'água com um descomunal e embaraçoso chumaço a atrapalhar-lhe o andar, pormenor por demais embaraçoso e evidente para todas as senhoras presentes na capela e objecto de inúmeros sussurros de indignação e não poucos suspiros de cupidez. Se não de observação directa, pelo menos de reputação, quase todas as mulheres presentes estavam a par dos valentes atributos com que o noivo havia sido abençoado pela natureza, ou talvez até pelo próprio Senhor, na Sua infinita munificência.
Muitos foram por isso os olhares de cobiça feminina lançados ao longo das cerimónias do casamento na direcção daquele volume tão inconvenientemente protuberante nas calças do smoking do noivo em hora tão solene. Mas, mais do que cobiça, o que aqueles esgares denunciavam era uma incontrolável inveja da até aí casta Mimicas, a quem a inocência e a candura providencialmente mantinham na ignorância do que a sorte lhe destinara por via daquela união.
O copo-d'água pareceu ao noivo interminável, tão curta era a sua paciência e tão grande a vontade de pôr fim ao longo jejum do corpo. Como era natural e de elementar bom gosto, os convidados evitaram fitar-lhe ostensivamente o ventre dilatado, por maior que fosse a tentação e o efeito de atracção magnética que exercia sobre os seus olhos, e procuraram distrair a mente e enganar a tentação com perguntas sobre os seus planos de vida.
Uns queriam saber se iria estabelecer-se no Porto, outros perguntavam-lhe se planeava abrir consultório em Penafiel, houve até quem sugerisse que fossem para Castelo de Paiva, e a todos se foi esquivando com respostas mais ou menos evasivas.
No entanto, quando foi o pai a lançar-lhe as mesmas perguntas, ou outras do género, não viu modo de se furtar às respostas. O capitão Branco era ainda quem lhe pagava as contas. Além disso era o pai, e como se poderia esquivar às perguntas que o pai tão legitimamente lhe fazia?
"Nem Porto nem Penafiel", retorquiu, abrindo enfim o jogo quanto aos seus planos. "Vou para Lisboa."
"Lisboa?", admirou-se o pai. "Fazer o quê? Não estás melhor aqui no Norte, ao pé da família?
Para que precisas tu de ir lá para baixo?"
"Para tirar a minha especialidade", esclareceu José. "Não existe cá no Porto."
O capitão lançou ao filho uma expressão intrigada, até desconfiada.
"Que raio de especialidade é essa que só existe em Lisboa? Preguiçatria?"
"Medicina Tropical."
A desconfiança cedeu lugar ao pasmo.
"Isso não é paludismo e febre-amarela e coisas do estilo? Para que queres tu tirar Medicina Tropical? Que eu saiba essas doenças esquisitas não existem por cá..."
"Pois não. Mas existem no sítio para onde quero ir."
O pai arregalou os olhos, tomando finalmente consciência do que José tinha em mente.
"Não me digas que vais para o Ultramar?!"
O rosto do filho abriu-se num largo sorriso luminoso, como o de uma criança a quem se exibe um caramelo.
"Moçambique."
Parte Dois
Purgatório
Por aqui não se passa Sem que se sofra o
calor do fogo durante um tempo prolongado cortou o ar, ao mesmo tempo alegre e sorumbático, e o casal Branco despediu-se da multidão que acenava do cais. Não que José ou Mimicas conhecessem alguma das centenas de pessoas que se acumulavam em Alcântara para dizer adeus aos que partiam; sempre tinham visto nos filmes americanos as largadas dos paquetes serem feitas de acenos efusivos e não se sentiriam verdadeiros viajantes transatlânticos se não participassem naquele ritual coreográfico.
O casario branco de telhados vermelhos parecia abraçar o vasto lençol de água, sereno e prazenteiro, mas foi ficando mais pequeno à medida que o Infante D. Henrique se retirava com imponência do Tejo e ia deixando Lisboa esfumar-se para trás. Levantou-se então uma brisa salgada, fresca e desagradável, e Mimicas, sempre friorenta, apertou a aba do casaco para se proteger.
"Está frio, Zé", queixou-se. "Vamos lá para dentro."
Por esta altura já a maior parte dos passageiros se havia recolhido ao interior, devidamente aquecido em todos os compartimentos. O casal seguiu-lhes o exemplo e foi explorar o magnífico navio. O Infante D. Henrique era a jóia dos paquetes da carreira de África, embarcação de linhas elegantes e modernas e interior de um luxo nunca visto; o transatlântico acabara de se estrear e revelava-se tão soberbo que havia quem o criticasse por ser "bom de mais".
"Que maravilha!", repetia Mimicas sempre que se deparava com um novo pormenor rutilante do esplêndido navio. "Mas que maravilha!"
O marido havia adquirido bilhetes de primeira classe para celebrar condignamente o virar de página nas suas vidas e ambos fruíram o momento com a consciência de que o deveriam saborear em pleno. O prazer começou logo no vestíbulo da classe, um espaço decorado com uma estátua do infante D. Henrique de bronze revestido a ouro e com uma pintura do planisfério de Mecia de Viladestes como imagem de fundo.
"Sabes o que mais me impressiona?", observou Mimicas ao descer a majestosa escadaria do átrio central. "A estabilidade. Se olhares lá para fora vês que o mar está agitado, não é? Mas aqui... chiça!, até parece que estamos em terra!..."
"É dos estabilizadores", explicou o marido com ar de entendido, embora se limitasse a papaguear o que lera num folheto da Companhia Nacional de Navegação. "É um sistema avançado que neutraliza o balanço da ondulação."
Percorreram o paquete de uma ponta à outra, incluindo os sectores das classes turística A e turística B, e em duas horas visitaram os quatro grandes salões, os três restaurantes, a biblioteca, a sala de escrita e, curiosidade de médico, até o hospital. Por toda a parte o casal se deparou com uma decoração requintada em espaços amplos e bem iluminados, as grandes janelas a abrirem-se para o oceano imenso, como se o mar fosse um quadro e o navio o museu que o exibia.
O passeio prolongou-se até ser interrompido por um esgar de Mimicas.
"Estou com larica...", queixou-se. "Quando é que se coisa?"
O marido consultou o relógio.
"O jantar? É agora."
Depois de uma rápida passagem pelo camarote, situado na segunda vigia a estibordo, para mudarem para trajos mais selectos, subiram ao restaurante e acomodaram-se nos assentos que lhes foram designados para o jantar. Na mesa estavam já os dois casais que lhes fariam companhia ao longo de toda a viagem, uma vez que era política do Infante D. Henrique sentar os comensais sempre nos mesmos lugares; parece que isso facilitava o serviço. Além do casal Branco, aquela mesa juntava o casal Silva e os dois filhos e o casal Rouco.
"Sabem o que isto me faz lembrar?", perguntou o médico depois de se instalar. "Um paquete da linha Cunard!"
"Qual Cunard? A do Titanic?"
O gracejo foi atirado por Domingos Rouco, que com a mulher formava a parelha mais exótica do navio. Domingos era um homem corpulento e tranquilo; vestia um fato de linho claro que, embora de bom corte, lhe acentuava a imensidão do corpo. Já a mulher, Albertina, era uma rapariga pequena e magra, de cabelo curto e com um olhar agitado a saltitar pela mesa. Não poderia haver casal mais contrastante: ele grande e sereno, ela minúscula e nervosa. Mas o que os tornava realmente singulares é que Domingos era negro e Albertina branca.
"Sim", riu-se José Branco. "Mas sem icebergues."
"Nestas águas não há esse perigo", devolveu Domingos, lançando um esgar mordaz na direcção do casal Silva. "Aqui é mais tubarões!..."
Silva estreitou os olhos e espiou Domingos com uma expressão indefinida. Era um homem pequeno de cabelo liso e olhar arguto, talvez até desconfiado, que respondeu por monossílabos evasivos quando o médico quis saber o que fazia na vida.
"Sou polícia."
De si nada mais revelou, a não ser o seu nome próprio, Aniceto, o da mulher, Graciete, e que era nascido no Porto, "mas adepto do Benfica", afinidade importante que encheu as conversas monotemáticas que manteve à mesa o resto da viagem com José Branco.
Como os quatro Silva, os pais e os dois filhos, eram mais de ouvir do que de falar, os Branco aproximaram-se dos Rouco e o que se passou entre os dois casais foi um caso de simpatia à primeira vista.
"Este barco é realmente espantoso", observou Albertina. "Já passaram pela capela?"
A pergunta extraiu uma expressão surpreendida de Mimicas.
"Ai sim? Existe uma capela? Com coiso e tudo?"
"Duas capelas. E, imaginem!, os altares de ambas são feitos com pedra do promontório de Sagres."
"Ah! Que maravilha! Eu e o Zé percorremos o paquete de fio a pavio mas não as vimos. Onde são? Não me digam que é depois do... do coiso."
"Esta noite levamos-vos lá para verem."
"Esta noite não, que há bingo", disse Mimicas. "Que tal amanhã de manhã?"
"Só se for à tarde. De manhã quero ir ao cabeleireiro."
"O quê? Também há cabeleireiro?"
"Não sabia? Ai que não viu bem o paquete! Olhe, se quiser vamos juntas."
Mimicas passou as mãos pelo cabelo, testando-lhe o volume.
"Combinado."
Os dois casais tornaram-se inseparáveis ao longo do resto da viagem. Encontravam-se pela manhã na piscina do paquete, davam à tardinha passeios pelo deck e depois do jantar juntavam-se nas jogatinas que se desenrolavam no salão de jogos.
Pelo fio das conversas percorreram a vida de cada um e foi assim que o casal Branco soube que Domingos Rouco tinha nascido em Inhambane, estudado em Tomar e tirado Direito na Universidade de Lisboa. Havia-se cruzado na faculdade com Albertina, a alentejana com quem casara dias antes de embarcar no Infante D. Henrique, e estava de regresso a casa para ir trabalhar em Lourenço Marques como consultor jurídico do Banco Nacional Ultramarino.
"Existem muitos juristas... uh... moçambicanos?"
A pergunta foi feita por José Branco uma manhã, já depois das escalas no Funchal e no Príncipe, e quando o paquete deslizava pelas águas quentes do golfo da Guiné rumo a Luanda. Mimicas e Albertina tinham ido para a biblioteca e deixaram os dois homens estendidos nas espreguiçadeiras junto à piscina.
"Quando dizes moçambicanos", observou Domingos Rouco com um leve sorriso irónico,
"presumo que te estejas a referir a negros."
O médico engoliu em seco; era a primeira vez que aflorava a questão racial nas conversas com o novo amigo.
"Pois... sim, é isso."
Domingos enlaçou as mãos por trás da cabeça e, esticado na espreguiçadeira, fitou o céu. O
tempo estava ameno e o imenso azul-claro do firmamento matinal era apenas rasgado por um ou outro farrapo de nuvens.
"Sou o primeiro advogado negro de Moçambique."
"A sério?"
"E verdade. E sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior."
A revelação deixou José Branco pensativo. Sempre supusera que os africanos eram gente primitiva, à semelhança do primeiro negro que vira na vida, o homem seminu exibido num pavilhão africano da Exposição do Mundo Português. Essa imagem fora reforçada ao longo do tempo pelas fotografias das revistas, pelo cinema e até pela expressão indígena, usada amiúde para descrever os povos de África.
O encontro com Domingos na mesa de jantar da classe no melhor paquete da Companhia Nacional de Navegação obrigou-o a rever o que até ali dava como certo. Os indígenas podiam afinal ser doutores? E porque não? Com base naquele exemplo passou a imaginar que haveria decerto outros casos semelhantes em Moçambique. A constatação forçou-o a retornar à primeira imagem, a do negro seminu da exposição, o que, percebeu, o deixava desconfortável. Domingos era tudo menos um primitivo; revelava-se aliás muito mais inteligente, culto e bem- falante do que a esmagadora maioria dos brancos que conhecia.
"Estás, portanto, a desbravar caminho", observou o médico. "Atrás de ti virão com certeza outros."
Domingos soltou uma gargalhada.
"Talvez alguns. Mas, para ser franco, nunca passaremos de um punhado."
"Não sei porquê."
"Por causa do racismo, Zé."
O médico passou a mão pelo queixo, na dúvida sobre se deveria aceitar aquela afirmação ou contestá-la.
"Sempre ouvi o regime dizer que Portugal vai do Minho a Timor e que todos os seus habitantes, independentemente da cor ou do credo, são Portugueses. Não me parece um conceito racista."
"Digamos que eles alindaram a coisa", observou Domingos. "Mas isso não passa de uma mistificação, claro. Se todos somos igualmente portugueses, por que razão sou apenas o segundo negro moçambicano a tirar um curso superior? E por que razão, se são portugueses como os outros, os negros se vêem discriminados? É óbvio que essa conversa não passa de propaganda barata."
"Há muito racismo em Moçambique?"
O advogado ergueu o tronco, apoiando-se nos cotovelos.
"Oh! Então não há?! De um ponto de vista formal, Portugal não parece ser um país racista.
Aceito até que se diga que os Portugueses são o povo menos racista que se pode encontrar na Europa. Mas o racismo existe nos costumes, no tratamento do dia-a-dia e também, de uma forma subrreptícia, na própria lei."
"Na lei como?", admirou-se José Branco. "Existe alguma lei, por exemplo, que diga que um branco pode fazer uma coisa e um negro não pode?"
"Não", acedeu Domingos. "Não existem de facto leis especiais para brancos ou negros."
"Mas nos Estados Unidos existem, como sabes. Eles até têm leis raciais e espaços públicos onde os negros não podem entrar."
"Pois, isso não existe formalmente em Moçambique, é verdade. Mas olha que acontece na prática. Há escolas em Lourenço Marques só frequentadas por brancos, por exemplo. De um ponto de vista jurídico, no entanto, a coisa funciona de outra maneira: faz-se a discriminação racial pela via da discriminação por classes sociais."
"Não estou a perceber..."
"É muito simples. Qualquer negro pode ter os mesmos direitos de um branco desde que faça prova de que é civilizado. Chamam-nos assimilados. Um negro tem de provar que goza de estabilidade económica e de um nível acima da média portuguesa. Tem de viver como um europeu, pagar impostos, cumprir o serviço militar e ler e escrever correctamente o português. Se fizer tudo isto, será classificado como assimilado e terá os mesmos direitos que um branco."
"Como acontece contigo."
"Sim, eu sou um assimilado."
O médico esfregou o queixo, considerando o que acabara de ouvir.
"Bem, assim à primeira vista isso até faz sentido. Uma pessoa que vive numa palhota e anda na rua de tanga dificilmente se poderá considerar civilizada, não te parece?"
Domingos sentou-se na espreguiçadeira e ajeitou o boné de modo a garantir que a pala lhe protegia os olhos do sol.
"Achas que sim?", perguntou o advogado em tom retórico, como se fosse de repente transportado para a barra do tribunal e tivesse acabado de apanhar uma testemunha em falso.
"Então deixa-me explicar-te uma coisa. Eu tenho vivido estes últimos anos na Metrópole. Estudei em Lisboa, a grande cidade, mas também em Tomar, onde tive contacto com a realidade da província. Sabes o que vi? Um país atrasado. As estatísticas mostram que quarenta por cento dos Portugueses são analfabetos e que o nível de vida de que gozam é o mais baixo da Europa.
Quer isto dizer que, se submetessem os metropolitanos aos critérios civilizacionais que se aplicam em África para reconhecer os assimilados, quase metade dos Portugueses não teria sequer direito ao estatuto de assimilado! Estás a entender isto?"
José Branco esboçou uma expressão desconcertada.
"Pois...", gaguejou. "Quer dizer, visto desse prisma... realmente!..."
"Então porque se aplica a distinção entre assimilado e não civilizado em África?", questionou.
"Porque não se aplica a mesma distinção na Metrópole? A resposta só pode ser uma: essa distinção é racial."
O médico assentiu; era a primeira vez que reflectia no problema desse ângulo.
"Admito que sim. De qualquer modo, tens de reconhecer que existe uma influência civilizadora de Portugal em África."
Domingos riu-se.
"Olha, vou contar-te uma história", disse, mudando de tom. "Lá em Inhambane existia um tipo que veio da Beira Interior e que montou uma farme no meio do mato. O gajo trouxe lá das berças a mulher e pôs-se a criar gado em Moçambique. Sabes quem é que lhe lia a correspondência e lhe escrevia as cartas? O criado! O preto tinha estudado numa missão católica e sabia ler e escrever, mas o patrão não."
"A sério?"
"A África portuguesa está cheia disto, Zé! Os colonos metropolitanos não têm cultura, não têm instrução e não têm dinheiro. Se se partir do princípio de que os povos de maior civilização devem colonizar os povos pouco civilizados, então Portugal tem também de ser colonizado! Só por milagre um país assim consegue ter uma influência civilizadora sobre quem quer que seja."
Foi a vez de José Branco se erguer da espreguiçadeira e se sentar.
"Espera aí!", atalhou. "Que eu saiba isso mudou! Não existe uma lei que impede a ida para África de indivíduos que não tenham pelo menos a terceira classe?"
"Existe sim", confirmou o advogado. "A emigração de analfabetos até pode ter diminuído, mas olha que não parou. A questão, porém, é que Portugal é um país atrasado que anda armado em grande civilizador." Encolheu os ombros. "De qualquer modo isso é lateral para o tema do racismo.
O problema central é que os negros são discriminados na sua própria terra. Repara: apenas 0,3 por cento da população negra da África portuguesa é considerada assimilada. Os restantes 99,7 por cento são descritos como não-civilizados. Ora o que prevê a lei para os não civilizados? Nada. O
que quer dizer que eles têm tantos direitos como... como o gado, por exemplo. A administração colonial pode pegar num não civilizado e forçá-lo a trabalhar, se quiser. Ou pode exportá- lo para a África do Sul como mão-de-obra, como se fosse uma máquina. Com este tipo de comportamento, como se pode esperar que as pessoas não se revoltem?"
Esta última pergunta, embora retórica, ficou a revolutear no ar, carregada de insinuações.
"Estás a referir-te a quê?", perguntou José, admirado. "Houve alguma revolta?"
"Claro que houve uma revolta. As pessoas não podem aceitar certas coisas!.."
"Mas quando é que houve revolta? Onde? Nunca ouvi falar nisso..."
"Nunca ouviste falar porque não convém ao regime que se fale", argumentou Domingos. "Mas aconteceu o ano passado em Moçambique. Os agricultores macondes protestaram lá no Norte, em Mueda, e a tropa portuguesa abriu fogo sobre a multidão. Morreram seiscentas pessoas."
O médico esboçou uma expressão incrédula.
"A tropa matou seiscentas pessoas no ano passado?"
"Sim, senhor!"
"Seiscentas? Contaram os cadáveres um a um?"
A pergunta atrapalhou o advogado.
"Bem... não."
"Então como sabem que morreram seiscentas pessoas?"
"Pela contagem do número de bicicletas abandonadas."
A incredulidade do olhar de José deu lugar a um esgar carregado de cepticismo.
"Desculpa, mas não me parece um método lá muito fiável para contabilizar mortos", observou.
"Quantos cadáveres foram efectivamente identificados?"
"Acho que dezassete", admitiu Domingos. "Mas, seja qual for o verdadeiro número, foi uma revolta. E resultou numa matança de civis inocentes."
O amigo assentiu.
"Se é como dizes, foi um crime. E um crime é um crime, independentemente do número de vítimas envolvidas. Mas, apesar de tudo, tens de concordar que é diferente matar dezassete e matar seiscentas pessoas."
"Não discuto", aceitou o advogado. "O que é importante que percebas é que a iniquidade da situação provoca revolta. O que aconteceu no ano passado em Mueda pode voltar a..." Hesitou, o olhar fixo num ponto distante. "Atenção, elas vêm aí."
O médico olhou na mesma direcção e viu Mimicas e Albertina a caminharem pelo deck com dois romances policiais nas mãos. Voltou a estender-se na espreguiçadeira e, sentindo o sol queimar- lhe a face, inclinou o guarda-sol em busca da sombra protectora.
"é melhor mudarmos de conversa", aconselhou José. "Elas podem ficar nervosas."
"Tens razão. Mas, considerando o facto de que vocês vão agora viver para Moçambique, há uma coisa de que preciso de te avisar."
"O quê?"
Domingos avaliou a distância a que se encontravam as duas mulheres. Eram uns vinte metros, não mais. Aliás, já lhes ouvia as vozes tagareleiras, com Mimicas a fazer três referências de rajada ao "coiso". Teria de ser rápido a dizer o que pretendia.
"Vem aí a guerra."A vida de Diogo Meireles mudou no dia em que viu a mãe colada ao jornal com uma expressão de angústia. Tinha dez anos e sempre a conhecera como uma pessoa segura de si, alegre e despreocupada. Mas naquela manhã a mãe pareceu-lhe transtornada, a face lívida e as mãos literalmente agarradas à cabeça.
"Ai meu Deus, meu Deus!", exclamava ela repetidamente enquanto lia e relia a segunda página do matutino. "Que vai ser de nós, meu Deus? Que vai ser de nós?"
Tamanha consternação, por ser coisa nunca vista naquela casa, deixou-o assustado.
"O que foi, mãe?", atreveu-se a perguntar.
"Não é nada, Diogo", retorquiu ela sem sequer levantar o olhar. "Vai brincar com os teus irmãos."
O rapaz afastou-se, sem saber o que pensar. Brincar com os irmãos? O que queria ela dizer com isso? Então não sabia que o Manei e a Mimi tinham ido com o pai para o quartel? O que queria ela que ele fizesse? Que brincasse com o puto Jorge ou com a Gracinha, que ainda estava no berço?
Mas que disparate vinha a ser aquele? Para não contrariar a mãe, porém, Diogo optou por se fechar no quarto e esperar que ela se acalmasse.
Se calhar a mãe lera mais um episódio de Fazenda Abandonada, o romance de Ventura Reis que seguia religiosamente no jornal. Só que, ocorreu-lhe logo a seguir, era sexta-feira e o romance só aparecia nos suplementos de domingo. Portanto, os dramas narrados pelo folhetim não podiam ser responsáveis por toda aquela comoção. Então o que seria? A verdade é que não dispunha de pistas, pelo que se resignou à sua ignorância. Estendeu-se na cama e pegou num exemplar da revista Zorro, que folheou para espreitar as mesmas histórias pela enésima vez.
Dez minutos depois sentiu a mãe atravessar o corredor e descer as escadas à pressa. Assomou à janela e viu-a bater à porta da vizinha e envolverem-se as duas numa conversa muito animada.
Depois a vizinha fez-lhe sinal de que entrasse e ambas desapareceram dentro da casa. Era tudo muito estranho, concluiu, decidido a tirar o caso a limpo. Esgueirou-se para a salinha e deparou com o jornal caído no chão, amarfanhado aos pés da poltrona como um trapo desamparado; tratava-se de um exemplar de A Província de Angola, presença diária naquela casa.
Pegou no matutino e estudou-lhe a primeira página sem detectar nada de especial. Virou para a segunda e, quase sem querer, fixou a atenção no que lhe interessava, a caixa dos filmes exibidos no cinema. O Cine Tropical anunciava Maldosamente Ingénua, com Sandra Dee e James Darren, que garantia ser "a história apaixonante de uma rapariga que pela primeira vez encontra o amor!"
Tretas de meninas, pensou com um trejeito de desdém. Já o Cinema Colonial prometia O Regresso de Robin dos Bosques para as 15.30 do dia seguinte, sábado, coisa que logo lhe despertou a curiosidade. Robin dos Bosques? Era fita a não perder!
Desviou os olhos para a esquerda da página e reparou que havia umas linhas sublinhadas a lápis, presumivelmente pela mãe. A notícia intitulava-se "Novas manifestações da criminosa actividade de agitadores externos contra a ordem pública e segurança das populações", mas a sua curiosidade concentrou-se nas linhas sublinhadas, assim destacadas porque decerto haviam sido as causadoras da perturbação que testemunhara minutos antes.
"Gru... pos de nati...vos capi... ta... niados ou ins... truídos por ele... mentos vin... dos do exte...
rior ", murmurou titubeante, "ata... caram pos... tos fron... tei... riços da'Guar... da Fis... cal e da Po...
lí... cia."
Pousou o jornal no regaço e desviou os olhos para a janela. Não percebera nada. "Nativos capitaniados?" Que diabo quereria isso dizer? O que havia ali de tão extraordinário que pudesse suscitar tamanha consternação na mãe? Não sabia bem o que pensar, a não ser que tudo aquilo tinha um certo perfume às aventuras de Tarzan.
Sentiu a porta de casa abrir-se e percebeu que ela regressava. Deixou o jornal onde o encontrara e dirigiu-se apressadamente para o quarto, onde se agarrou de novo ao Zorro. Depois sentiu a mãe pegar no telefone e ficou atento.
"Está lá?... O capitão Meireles, pode chamá-lo?... Diga-lhe que é a mulher... Sim, é urgente... Ai não?... Hmm, está bem. Obrigada."
E desligou.
A ansiedade da mãe era contagiante; dava a Diogo a impressão que ela não parava quieta.
Circulava com grande agitação pela casa e chegou até a enervar-se com a Gracinha, gritando com a bebé por ter sujado as fraldas. Essa reacção encheu-o de espanto. Tanto nervosismo e irritação nem pareciam coisa da mãe, ela que era sempre tão doce e tranquila.
Sentindo necessidade da presença tranquilizadora do pai, Diogo pousou o Zorro sobre a mesinha-de-cabeceira e foi para a janela espreitar a rua na expectativa de o ver chegar. Viviam no primeiro andar de uma vivenda do bairro militar, no Alto da Maianga; a mancha azul do mar estendia-se lá ao fundo, plácida e apaziguadora. Sentiu-se acalmar. Lembrou-se que o quartel onde o pai prestava serviço militar se situava ali bem perto e naquele instante as ruas pareceram-lhe tranquilas.
Voltou para a cama e pegou mais uma vez no Zorro, convencido de que já se conseguiria concentrar na aventura de Blake e Mortimer no Egipto. Depressa verificou que a tensão da mãe o havia contagiado e, ao contrário do que era habitual, nem conseguiu achar graça à história.
Não passara meia hora quando sentiu o pai escalar as escadas de dois em dois degraus e irromper energicamente pela casa, como aliás era seu timbre.
"Lourdes! Lourdes!"
A mãe saiu à pressa da cozinha.
"Ó Quim, finalmente!"
"Não saíste de casa, pois não?"
"Claro que não. Quando li o jornal fui falar com a dona Olga e depois liguei para o quartel a saber de ti. Disseram-me que não podias atender. Tenho andado tão incomodada!..."
As vozes aproximaram-se e Diogo percebeu que ambos passavam pelo corredor. Logo a seguir viu os irmãos, que tinham entrado atrás do pai, invadirem-lhe o quarto; Manei e Mimi vinham silenciosos e com cara de caso, igualmente atentos à conversa que se transferira para a sala de estar, e sentaram-se à escuta.
"Ninguém pode sair de casa." Era a voz do pai. "Estamos a organizar patrulhas para proteger o bairro."
"Mas o que aconteceu, valha-me Deus? No jornal vem a notícia de que os pretos estão a atacar casas comerciais e fazendas na fronteira e que há oito feridos. A dona Olga diz que parece que houve mais vítimas, mas não se percebe muito bem."
O marido suspirou.
"É infelizmente pior do que isso", murmurou, baixando a voz. As crianças viram-se forçadas a suster a respiração e a aguçar os ouvidos para continuarem a acompanhar a conversa.
"Os pretos pegaram em catanas e desataram a matar toda a malta nas fazendas. Homens, mulheres, crianças... tudo o que é branco é para matar."
"Meu Deus! Isso está a acontecer na fronteira? Achas que pode chegar aqui a Luanda?"
"Tudo é possível. Houve matanças de brancos aqui perto."
Fez-se um breve silêncio na sala de estar.
, *
"O que queres dizer com isso? O jornal diz que a confusão aconteceu em postos fronteiriços."
Ouviu-se o som de páginas a serem voltadas. "Está aqui no jornal, ora vê!..."
"Eu sei muito bem o que diz o jornal", atalhou ele. "Houve de facto chatice lá em cima em Cuimba, mas parece que também sucederam coisas por aqui."
"Por aqui, onde?"
"Em Quicabo e em Nambuangongo, por exemplo. Também em Quimbumbe e em Zala."
"Onde é isso?"
"E aqui, no distrito de Luanda."
Ao ouvir o nome da cidade, Lourdes quase entrou em pânico.
"O quê? Em Luanda? Andam a matar brancos em Luanda?"
"Não, mulher, tem calma! Não foi na cidade. A coisa está a passar-se nas fazendas."
Fez-se um novo silêncio e Diogo trocou um olhar horrorizado com os irmãos. Nas férias toda a família ia passar uns tempos a uma das fazendas da região, propriedade dos amigos de um camarada do pai lá do quartel. Lembrava-se de ter estado uma semana numa fazenda com plantação de café e duas semanas numa outra onde se produzia gado; vira até os bois e as vacas serem marcados a ferro, como nos filmes de cobóis do John Wayne nas matinês do Cine Restauração. E agora o pai dizia que os pretos andavam nessas fazendas a matar os brancos?
A voz da mãe voltou num fio, mais temerosa do que nunca.
"Achas que se vai repetir aqui em Luanda o que aconteceu no mês passado?"
"Não sei", respondeu o pai. "É possível."
A referência foi instantaneamente entendida por todos. Diogo lembrava-se muito bem que semanas antes haviam ocorrido incidentes em plena cidade. Na altura fora uma grande agitação.
Os pais diziam que os pretos andavam a atacar a polícia e toda a gente sentiu um medo muito grande. Correu então que a polícia dera uma grande lição aos bandidos e a coisa acalmara. Mas e se eles começassem a atacar todos os brancos? O pai acabara de revelar que tinham morto crianças.
Ora, e apesar das veleidades que o enchiam depois de ver uma coboiada no Restauração, Diogo considerava-se a si mesmo uma criança, totalmente dependente dos adultos. Quereria isto dizer que o matariam a ele? Estaria ele em perigo? E os irmãos? E os próprios pais? O tom da conversa que do quarto escutava em silêncio parecia-lhe augurar o pior.
"Então que vamos fazer, Quim?"
"Para já, ninguém sai de casa. Aqui o nosso bairro vai ser patrulhado a partir de agora. Mas a situação é muito delicada. A cidade tem cinquenta mil brancos e está rodeada de duzentos mil pretos. Se houver um levantamento geral dos indígenas, acho que não temos meios de nos defender."
"E o exército?"
"Qual exército, Lourdes? Tu sabes quantos soldados brancos existem em toda a província de Angola? Sabes quantos?"
"Sei lá. Alguns, acho eu."
"Mil e quinhentos."
"E não chega?"
O pai soltou uma gargalhada sem humor.
"Mil e quinhentos homens? Isso é o mesmo que nada, mulher! São apenas três regimentos em toda a colónia. E sabes quantos há aqui em Luanda? Só um. Um único regimento para toda a cidade e distrito!"
"Meu Deus! O que faremos se isto der para o torto?"Diogo ouviu o pai respirar fundo antes de responder; claramente, o assunto já havia sido discutido no regimento.
"Vamos todos para o quartel."
Apesar de não ter nascido em Angola, as mais antigas memórias de Diogo Meireles eram as brincadeiras dominicais nos baloiços do Parque Heróis de Chaves, as matinês infantis do Cine Restauração e as manhãs de banho na praia.
A família havia chegado a Luanda em 1957, altura em que o pai, o capitão miliciano Joaquim Meireles, iniciara uma comissão de serviço de quatro anos no Grupo Misto de Artilharia. Até àquela altura a cidade tinha vivido ao ritmo pacato de uma terriola de província, com um estilo de vida aprazível e descontraído, as grandes avenidas soalheiras e as palmeiras à beira-mar a conferirem-lhe um atraente toque exótico. Quando não estava no Colégio Goretti, Diogo ia para o quartel estudar matemática com o pai ou então ficava em casa com o resto da família. A mãe, Lourdes, tornara-se Meireles por casamento, mas o seu apelido original era Branco, o nome da família em Penafiel.
Diogo cresceu magro e calado, alto para a idade e anormalmente ágil. Os seus passatempos predilectos deslizavam pelas páginas do Zorro e sobretudo pelo soalho de casa. De giz na mão, desenhava pistas no chão do quarto para as fabulosas corridas das suas miniaturas da Matchbox, paixão que por contágio lhe despertou o interesse pelo que se passava anualmente no asfalto do Grande Prémio de Luanda. O moço tornara-se um amante das provas de automóveis que animavam o Circuito da Fortaleza, espectáculo repleto de barulho, cores garridas e fumaça a cheirar a óleo que o fazia palpitar de emoção como nenhum outro; ainda no ano anterior vibrara com a vitória do rodesiano John Love no seu espectacular Jaguar, embora na altura tivesse torcido sobretudo pelo Maserati de Álvaro Lopes, o ás angolano que cortou a meta num honroso quarto lugar.
Embora não o pudesse saber ainda, esses tempos tinham acabado. Desde que a mãe lera a notícia no jornal e o pai chegara a casa com as novidades que agitavam o quartel e toda a província, o ambiente em casa e pela cidade mudara radicalmente.
"E a Metrópole?", foi a primeira pergunta que Lourdes fez ao marido quando o viu chegar a casa dois dias mais tarde. "O que dizem da Metrópole?"
"Nem uma palavra", respondeu ele sombriamente. "Não querem saber de nós para nada."
"Mas já chegaram tropas..."
"Sim, uma companhia de paraquedistas. E vêm a caminho quatro companhias de caçadores."
A mulher ergueu os olhos aliviados, como se fizesse uma prece a agradecer aos Céus.
"Ufa! Sempre é alguma coisa."
"Pois, mas o Salazar não diz nada sobre o que se passa por aqui", resmungou o capitão Meireles.
"Nada de nada. é o silêncio absoluto. Fingem que está tudo normal."
O tema enchia todas as conversas em casa, no quartel ou por Luanda inteira. Havia pretos a matar brancos em Angola e a Metrópole nada dizia. Como era possível? A indignação generalizava-se, a par do medo. Estariam os brancos de Angola abandonados por Lisboa e entregues à sua sorte? Sentindo a fragilidade da polícia e do exército, os homens contavam armas e combinavam tácticas e modos de actuação em caso de necessidade extrema, enquanto as mulheres se fechavam em casa com as crianças.
Diogo e os irmãos iam acompanhando as novidades de cada vez que o pai chegava do quartel.
A informação ia toda dar ao centro de comando militar e o regresso a casa do capitão Meireles era um autêntico momento de noticiário.
"Estamos a organizar a evacuação das fazendas mais isoladas", contou ele ao jantar numa das noites seguintes. "Partiram hoje colunas e aviões para o Norte."
"Aleluia! Já estava na altura de fazerem alguma coisa!"
"Mas não é possível levar auxílio a todo o lado. Os Dembos estão a dar cabo de nós. Estivemos a ver no mapa e não há para lá estradas nem pistas de aterragem. Não sei como vamos lá chegar."
"Ah, coitados!", exclamou a mãe. "Então como se vai ajudar aquela gente?"
"Precisamos de tempo."
Lourdes pôs-se a despejar sopa fumegante nos pratos; era abóbora. Começou no marido e seguiu para os filhos.
"A dona Olga anda uma pilha de nervos", observou ela. "Está transtornada e diz aos quatro ventos que nos vai suceder o mesmo que aconteceu ao Congo Belga. Achas possível?"
"Não sei."
A resposta claramente não agradou à mulher. Lourdes olhou de relance para os filhos, consciente de que havia coisas que não podia dizer diante das crianças, mas não conseguia conter a preocupação.
"Quim", disse ela entre dentes, improvisando uma observação críptica. "No Congo Belga eles andaram a... enfim, com catanas a... tu sabes, não é? Achas que vão fazer o mesmo aqui?"
O pai meteu a colher à boca, engolindo ruidosamente o pedaço de sopa, enquanto matutava na pergunta.
"Os sobreviventes vêm aí", murmurou, taciturno. "Vamos ouvir o que eles têm para dizer."As acácias rubras agitavam-se num murmúrio verde e laranja, como abanadores gigantes, protegendo do sol agreste os passeios poeirentos da cidade amarelada. Fazia calor, tanto que o próprio dia parecia derramar suor, e o vento quente que soprava baixo entre as árvores, serpenteando pelas ruas até arrebitar pequenos torvelinhos de pó, era afinal o único alívio que aquela fornalha concedia aos homens. O ar acariciava as peles húmidas de transpiração e refrescava o corpo, mas era só um instante, um bálsamo fugaz; o breve momento de conforto logo se esgotava e então voltava o ardor, um abrasamento intenso e pesado, sufocante, tão escaldante que dava a impressão de queimar o ar.
"Puf, que calor!", desabafou Mimicas enquanto abanava o leque com vigor. "Está que não se pode!"
Os dois casais abandonaram o monumental edifício da Capitania do Porto com três rapazes negros no encalço a carregarem as malas e instalaram-se à sombra de uma acácia para recuperar o fôlego. José Branco sentou-se sobre uma mala, abanando um lenço para se refrescar, e olhou para o casal que os acompanhava."Então, Domingos? Contente por teres finalmente chegado à tua terra?"
O advogado parecia sufocar no seu fato escuro. Aliviou o nó da gravata de cornucópias e passou as costas das mãos pela testa de modo a limpar a transpiração que se acumulava em gotículas.
"Caramba! Já nem me lembrava deste calor!" Espreitou de relance para trás, onde se encontrava o paquete que acabava de ancorar no porto de Lourenço Marques. "Ali é que se ia bem, hem?"
"Lá isso ia", assentiu o médico. "É pena aqui na rua não haver ar condicionado!..."
Riram-se todos, divertidos com o absurdo da ideia. Um grupo de negros começou a chamar e a acenar do outro lado da praça e Domingos abriu-se num sorriso, devolvendo os acenos.
"Já chegou a minha gente!", exclamou. "Vocês têm quem vos venha buscar?"
"Ah, sim. Não te preocupes!"
"Guardaste os nossos contactos, não guardaste?"
José Branco indicou o bolso da camisa.
"Está aqui tudo. Depois ligo para irmos tomar um copo."
"Um copo não", corrigiu Albertina com um olhar cúmplice para Mimicas. "Nós as duas ainda vamos juntas às compras, não é verdade?"
"Ah, pois! Quero coisar umas coisas!..."
O grande homem negro engravatado e a mulher fizeram sinal aos rapazinhos esfarrapados de que pegassem nas suas malas e despediram-se do casal amigo.
"Então vamos andando", disse Domingos. "Divirtam-se em Lourenço Marques!"
José e Mimicas deixaram-se ficar à sombra, sentados sobre as malas a apreciar a rua e a praça que se abria em frente. O grande largo estava bem arranjado, rodeado de árvores, o piso cuidadosamente tratado em calçada à portuguesa com abundantes motivos geométricos; ao longo do perímetro erguiam-se belas construções de ferro ao estilo Belle Époque, no centro um coreto abobadado, ao lado alguns quiosques elegantes, aqui e ali um poste de iluminação e vastos bancos públicos; não fossem os homens e mulheres negros e dir-se-ia estarem na Europa mediterrânica. A única coisa que estranhavam era a condução à esquerda; não entendiam como era possível guiar à inglesa em território português.
"Então?", perguntou Mimicas, impaciente e cansada da longa viagem. "Que fazemos agora?"
José consultou uma carta do Ministério do Ultramar que trazia amarrotada no bolso.
"Não percebo", exclamou, desdobrando a missiva para consultar mais uma vez o conteúdo.
"Eles disseram que estariam aqui à nossa espera..."
Um automóvel negro, com a carroçaria coberta de lama e pó, em particular nas rodas e na parte baixa até aos faróis, emergiu da praça e estacionou diante da entrada da Capitania do Porto. Era um velho Studebaker.
A porta do carro abriu-se e do interior saiu um homem magro, de idade, bigode pontiagudo, chapéu branco e fato creme. O desconhecido olhou em redor, como se procurasse alguma coisa; viu o casal instalado por baixo da grande acácia e, vencendo uma ligeira vacilação, dirigiu-se aos dois em passo hesitante, apoiado numa bengala. Chegou ao pé do casal e tirou o chapéu num gesto de deferência.
"Doutor José Branco?"
O médico pôs-se em pé.
"Sim, sou eu."
O homem sorriu.
"Floriano Carvalho, director dos Serviços Provinciais de Saúde." Estendeu a mão ossuda. "Sejam bem-vindos!"
José e Mimicas cumprimentaram o recém-chegado, que fez sinal aos carregadores de que colocassem as malas na vasta bagageira do Studebaker. O casal acomodou-se no carro e Floriano instalou-se ao volante.
"Estava a ver que nos tinham abandonado", observou Mimicas. "Já andávamos até a pensar em coisar um táxi para nos levar para o coiso."
"Peço desculpa pelo meu atraso", disse o anfitrião, olhando pelo retrovisor para se assegurar de que o caminho estava livre. "Pensava que o paquete só chegava ao fim da tarde."
"Não faz mal", devolveu José, conciliador; afinal Floriano era o seu superior hierárquico.
"Vamos para longe*"
Floriano riu-se.
"Em Lourenço Marques é tudo perto." Ligou o motor e o carro arrancou. "Está a ver aquilo?"
Floriano apontou para as muralhas ao lado da Capitania do Porto. "É a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição, o sítio onde há duzentos anos a cidade nasceu." O automóvel passou devagar ao longo da fortaleza, com os ocupantes a espreitarem as muralhas amarelo torradas, dispostas num quadrado baixo. "Foi durante muito tempo a única construção aqui existente."
"Nesta zona?"
"Não, em toda a cidade. No início Lourenço Marques cresceu muito devagar, sabe?" O carro acelerou e entrou no grande largo em estilo Belle Epoque que observaram da sombra da acácia. "Foi para aqui que a cidade começou a desenvolver-se, no século passado. No início chamava-se, creio eu, Praça da Picota e era o sítio onde a malta se juntava."
O Studebaker contornou a praça por completo e voltou ao ponto de partida para meter pela Rua Araújo em direcção à Praça Mac Mahon, num percurso paralelo à Alfândega e à ponte-cais Gorjão.
Os recém-chegados seguiam de olhos presos aos edifícios da rua apertada. Por toda a parte admiraram uma arquitectura tropical de encanto singular, com um toque exótico; eram sobretudo casas de alvenaria adornadas por varandas de madeira, muitas delas com comércio à porta. Em alguns casos havia cabarets de porta fechada, à espera da noite para se abrirem à clientela, mas viam-se também chalets e bungalows ajardinados.
A meio da pitoresca Rua Araújo, o automóvel negro abrandou e encostou ao passeio, estacionando junto a uma esquina. Logo apareceram, como se tivessem emergido do nada, dois grooms negros, fardados de dólmen branco com botões dourados e cofió vermelho na cabeça, que se acercaram do carro e abriram as portas.
"Chegámos?", perguntou José, abanando a cabeça com incredulidade.
O carro havia percorrido uma distância muito curta; entre a Capitania do Porto e aquele local não distavam mais de quatrocentos metros.
"Sim, é aqui", anunciou Floriano, apeando-se com esforço. Fez sinal a um dos grooms de que fosse buscar as malas à bagageira e mirou as instalações que dobravam toda a esquina. "É este o vosso hotel."
Tratava-se de um edifício longo, em forma de V; era de um branco entrecortado por madeira exótica nos pilares e nos varandins, com o telhado coberto de telhas cor de tijolo. Havia um piso térreo e um primeiro andar percorrido por uma longa varanda de madeira, onde se debruçavam alguns clientes e na base da qual se encostavam largos vasos com pequenas plantas tropicais. A porta principal situava-se no vértice do V, o topo a anunciar "Central Hotel".
"Quanto tempo vamos ficar aqui?"
"O tempo suficiente para vos arranjar um destino." Floriano contemplou a fachada, que já lhe era familiar, e vacilou, como se as palavras do recém-chegado lhe tivessem levantado uma dúvida.
"Não gosta do hotel?"
"Gosto, gosto."
O director dos Serviços de Saúde apontou para um outro edifício de esquina, este de três pisos, situado na mesma rua.
"Veja lá! Se preferir, posso pôr-vos ali no Carlton." Indicou um terceiro edifício de esquina, também ao lado. "Ou ali no Savoy. É como queiram."
"Não, este está bem."
Floriano contemplou a fachada com satisfação.
"Pode ficar descansado que aqui o Hotel Central é muito jeitoso. É asseado e encontra-se muito bem localizado." Indicou o lado de onde vinham, a Praça 7 de Março e a Capitania do Porto. "Como vêem, situa-se na zona comercial, a dois passos do porto." Apontou na direcção oposta. "Ali em frente, trezentos metros adiante, está a Praça Mac Mahon, onde temos a estação de comboios."
Depois voltou a mão para outro ponto. "E, duzentos metros para ali, naquela direcção, encontra-se o Mercado Municipal."
Cruzaram a porta e dirigiram-se à recepção com os grooms no encalço.
"Já sabe para onde nos vai transferir?", perguntou José Branco.
"Estamos a estudar várias possibilidades, mas não lhe vou dizer nada enquanto não existir uma coisa concreta. Tenho em vista um sítio que vai perder um médico e pode ser que o doutor seja colocado lá."
"Ai sim? O colega que lá está vai-se embora?"
"Vai."
"Volta a Portugal?"
Floriano fez um gesto largo, abarcando a rua e tudo o que se encontrava em redor.
"A Portugal? Meu caro, Portugal é tudo isto."
"O que eu queria dizer era se ele voltava à Metrópole..."
Com um trejeito um tudo-nada teatral, o superior hierárquico esboçou um ar admirado.
"Voltar à Metrópole? Para quê?"
"Bem", atrapalhou-se José. "Podia não se ter adaptado, sei lá..."
"Oh, doutor! Quem aqui chega já não quer voltar."
"Ora, como pode ter tanta certeza?"
"Porque esta é a terra mais bonita do mundo."
Permaneceram no Hotel Central durante alguns dias, período que lhes serviu para se habituarem à vida em Lourenço Marques.
O casal Rouco deu notícias logo na manhã seguinte e desafiou- os para um passeio pela cidade.
"Primeiro queria tomar o pequeno-almoço", disse Mimicas, eternamente esfaimada. "Mas aqui no hotel coisa-se tão mal!... Não haverá por aí um sítio onde a comida seja boa?"
"Ah, Mimicas!", retorquiu Domingos. "Aqui boa comida é mato!"
Mimicas arregalou os olhos, chocada com a notícia, e pôs a mão escandalizada na boca.
"O quê? Só no mato é que se arranja boa comida? Que horror! Como é que vamos viver assim?!"
Os dois Rouco soltaram uma gargalhada.
"Quando dizemos que uma coisa é mato, isso significa que há muito dessa coisa", explicou Albertina. Apontou para a rua. "Por exemplo: carros é mato. Isto quer dizer que há muitos carros, percebes?"
"Ah, bom!", exclamou a amiga, com alívio. "Ufa! Já estava a ficar assustada!..."
"Se têm fome, vamos então ali ao Scala matabichar", decidiu Domingos. "Depois seguimos para a Pinheiro Chagas. As senhoras dizem que é do melhor para as compras."
"Ai sim? E aqui perto?"
"Não, Mimicas. Temos de apanhar o machibombo."
O casal Branco esboçou um novo esgar interrogativo.
"O quê?"
Os Rouco riram-se de novo e Domingos pousou as mãos nos ombros dos dois amigos.
"Vocês precisam de se habituar aos moçambicanismos, pá", aconselhou ele num tom paternal.
"Vamos primeiro tomar o mata-bicho, não é? Depois apanhamos o machibombo porque a Pinheiro Chagas é maningue mato longe." Tirou do bolso uma pequena embalagem vermelha de pastilha elástica. "Vai uma chuinga? Iá, olhem que é naice!..."
Tomaram um pequeno-almoço no Café Scala tão bem servido que no final, e depois de se ter alambazado com quase metade da comida que tinha vindo para a mesa, Mímicas olhou horrorizada para os pratos vazios diante dela e abanou a cabeça.
"Ai, comi de mais", gemeu. "Estou tão arrependida..."
Apanharam o autocarro mesmo em frente ao café e ao longo do caminho observaram com curiosidade a catedral, a câmara municipal e depois o casario a desfilar em redor. A cidade parecia-lhes bem ordenada e espaçosa, cheia de luz e amplos espaços verdes; a arquitectura variava entre o estilo colonial e as linhas modernas, o que lhe conferia uma graça singular.
A viagem prolongou-se até chegarem a uma fileira de grandes avenidas. Floriano havia-lhes dito que Lourenço Marques não passava de uma povoação pequena, mas não era isso o que constatavam; embora não fosse maior do que Lisboa, a verdade é que a cidade se revelou de uma dimensão apreciável e manifestamente bem planificada, com longas avenidas paralelas, à americana, e arborizadas.
"É aqui."
Apearam-se na Pinheiro Chagas, uma dessas avenidas largas e compridas, dominada por edifícios enormes. Demoraram um instante a admirar as fileiras de prédios; nunca tinham visto nada daquilo na Metrópole. No entanto, a admiração depressa cedeu lugar às coisas práticas. As senhoras enlaçaram os braços uma na outra e foram ao Salão Girassol arranjar o cabelo, deixando os maridos com um aceno e uma recomendação.
"Portem-se bem!"
A primeira coisa que os dois homens fizeram logo que se viram sozinhos foi comprar no quiosque a edição dessa manhã do Notícias, o principal jornal da cidade. José queria saber pormenores da grande vitória alcançada dois dias antes pelo Benfica diante do Barcelona e que lhe valera a conquista da Taça dos Campeões Europeus. Folhearam o jornal no meio do passeio e vitoriaram a imagem de José Aguas em ombros com a taça nas mãos, mas os sorrisos desvaneceram-se quando, terminada a leitura pormenorizada da página desportiva, passaram os olhos pela primeira página e se depararam com um título sobre o que se estava a passar em Angola.
"Tenho uma irmã a viver em Luanda e ela anda em pânico", observou José, de repente taciturno. "A Lourdes mandou-me uma carta a dizer que a cidade se encontra em estado de sítio e que nem sai do bairro do quartel. Coitada, está muito assustada."
"Eu tinha-te avisado", disse o amigo. "A guerra era inevitável."
"Mas assim? Os tipos andam a matar mulheres e crianças à catanada! Achas que isso está certo?"
Domingos abanou a cabeça.
"Acho que está muito errado", admitiu. "Não me entendas mal. Não aprovo de modo nenhum essas carnificinas. Mas isso não significa que não compreenda. A culpa é o MPLA foram criados em 1956, Zé. Isto significa que existem há cinco anos. Andaram cinco anos a tentar falar com as autoridades portuguesas sobre o futuro de Angola. O que deu essa tentativa?" Fez um "O" com o polegar e o indicador. "Zero." Encolheu os ombros. "Depois admiram-se!..."
Agastado com a notícia, José dobrou o jornal e recusou-se a conversar mais sobre o assunto. O
tema perturbava-o, sobretudo porque acabava de chegar a África e já via as coisas a andarem para trás. Observando-o desalentado, e tentando animá-lo com referências à grande vitória do Benfica sobre o Barcelona, Domingos decidiu levá-lo à Casa Bem Fica, uma camisaria situada na Rua Salazar, para adquirir camisas de safari.
"Aqui é melhor vestir coisas leves", aconselhou. "São mais adequadas ao clima tropical do que o fato e gravata que se usa lá na Metrópole." Inclinou a cabeça, num aparte. "Se calhar até já têm camisas com a Taça dos Campeões Europeus cosida ao peito!..."
A visita à Casa Bem Fica serviu para desanuviar o ambiente. O nome da camisaria permitiu a José concentrar-se nas boas notícias, neste caso a vitória do seu clube, em detrimento das novidades sobre a nova guerra. Mas Angola permanecia presente num recanto da sua mente, e foi tanto assim que o tema voltou a aflorar no momento em que, após experimentar vários modelos de balalaica, se decidiu por um deles.
"O branco."
"Branco?", admirou-se Domingos. "Olha que o creme é mais usado. Se queres bizarrias, porque não pedes vermelho?", gracejou. "Sempre serve para comemorar a vitória!"
"Quero o branco."
"Mas porquê o branco?
"Condiz com o meu nome", explicou enquanto se mirava ao espelho. "Além do mais sou médico, não é verdade? O branco é sinónimo de paz e humanidade. É disso que precisamos."
José Branco decidiu-se pelo branco na Casa Bem Fica, uma decisão que reflectia o sentimento que se apossara dele. Que melhor cor poderia escolher no momento em que começava a guerra? De então em diante passou a vestir-se e calçar-se de branco, uma opção que personalizava tudo o que sentia, e foi assim que se apresentou uma hora mais tarde na casa de chá onde haviam combinado o reencontro com as mulheres.
Um burburinho morno enchia o Salão de Chá Veneza. A hora não era muito concorrida e havia inúmeras mesas vagas. As senhoras foram as primeiras a chegar e escolheram um lugar à janela.
Dali viram os maridos cruzar a porta e, com gestos frenéticos, fizeram-lhes sinal.
Foi um momento curioso porque José e Mimicas apareceram diferentes diante um do outro; ele todo de branco como uma pomba, ela sem os tradicionais óculos.
"Fico bem?", quis Mímicas saber, piscando os olhos de forma provocadora. "A Albertina levou-me ao Oculista Pilú e comprei estas lentes de contacto. Gostas?"
José Branco sorriu.
"Estás muito chic." Rodou o corpo para exibir os seus novos trajos. "E eu?"
Mimicas deteve-se a observá-lo dos pés à cabeça, apreciando-o com cuidado. Percebeu que a mudança do visual e a escolha do branco tinha um significado mais profundo do que podia parecer, sinalizando a entrada do marido numa nova fase da vida, mas mesmo assim não resistiu ao gracejo.
"Pareces uma freira de calças."Quando acompanhou a mãe ao Quintas & Irmão para espreitar os saldos, Diogo foi direito à secção dos brinquedos entreter- se com os carrinhos da Matchbox que tanto o fascinavam. Havia algum tempo que andava a namorar um Lotus negro em miniatura que se encontrava no topo da prateleira, inacessível como o tesouro mais precioso da loja, e dessa feita reuniu coragem e dirigiu-se ao empregado com a ideia de pedir para o ver. O funcionário atendia nesse momento uma cliente e o rapaz, educado e paciente, sentou-se aos pés da caixa a aguardar a sua vez, tornando-se assim ouvinte inadvertido da conversa.
a alojar muitos dos refugiados num prédio da Avenida de Lisboa, ao pé do Diário de Luanda, não sei se sabe onde é."
"Sei, pois claro que sei", retorquiu a cliente com grande convicção. "A escola primária do meu filho também já está transformada num albergue de refugiados, o que pensa você? E olhe que não é a única! A número sete encontra-se à pinha com gente acabada de chegar lá do Norte."
"Tem de ser", retorquiu o empregado com uma expressão resignada. "Já são mais de três mil refugiados, dona Aurora!Onde se vai pôr essa gente toda? As escolas e os sindicatos têm de se mobilizar, não há outro remédio!..."
"Os refugiados ainda é o menos, Nuno. Se fosse só isso, estávamos nós bem. Sabe o que verdadeiramente me apoquenta?" A cliente baixou a voz e tornou-se quase conspirativa. "Os mortos."
"Ah, pois..."
"Fala-se em quinhentos ou seiscentos. Um horror!"
"Isso são boatos, dona Aurora!", atalhou o empregado com um esgar céptico. "A boataria que por aí anda é infernal!"
"Mas os jornais dizem muito pouco! Imagine só as coisas que a censura não os deixa publicar...
Se não acreditarmos no que ouvimos os nossos amigos dizerem, acreditamos em quê? Acha que é mentira? Acha que não morreu ninguém?"
"Não, claro que morreu. Os próprios jornais confirmam que há mortes de fazendeiros. Sobre isso não há dúvidas."
"Mas não dão números", insistiu a cliente. "Não acha isso estranho? Sabe, a mim disseram-me que os mortos já iam em seiscentos. E olhe que..."
O empregado apercebeu-se nesse instante da presença de Diogo, que continuava sentado junto à caixa a aguardar vez.
"Chiu!", disse ele para a cliente, fazendo-lhe sinal na direcção da criança. Depois sorriu e inclinou-se para Diogo. "Olá, meu maroto. O que queres tu?"
O rapaz apontou para o carro da Matchbox guardado no alto da prateleira.
"O Lotus."
Diogo sentiu o ambiente febril e a comoção que envolvia os pais e a generalidade dos adultos, mas percebeu também que quando havia crianças em redor toda a gente se calava, como se houvesse uma conspiração para simular a normalidade. Todavia, não se deixou enganar. Havia ajuntamentos de pessoas por toda a parte e os rostos fechados indicavam que algo de grave se passava. Que diabo estariam os adultos a esconder?
O ambiente tornou-se de tal modo pesado que Diogo suspendeu a vida de brincadeiras e, inspirado no incidente ocorrido no Quintas & Irmão, tornou-se uma espécie de espião. Sempre que via adultos em conversas conspirativas aproximava-se deles e, fingindo-se distraído ou ocultando-se em qualquer canto, punha-se a escutá-los.
O diálogo mais revelador foi o que surpreendeu nodia a seguir às compras do Quintas & Irmão.
Estava Diogo à janela do quarto quando viu a mãe aparecer com a fruta que fora comprar às quitandas do bairro.
"Ó vizinha", chamou dona Olga no momento em que a surpreendeu prestes a entrar em casa. "Já viu o que aconteceu em Madimba?"
A mãe pediu-lhe um instante para ir a casa pôr as compras e Diogo aproveitou para agarrar num carrinho de bombeiros e sair disparado para ir brincar atrás de uma árvore mesmo ao lado da casa de dona Olga. Quando a mãe voltou para falar com a vizinha, o rapaz encontrava-se perfeitamente posicionado para escutar a conversa; aninhava-se ali próximo, mas permanecia invisível.
"Então, dona Olga?", quis saber a mãe. "Há novidades?"
"O meu marido foi à sede do Sindicato dos Motoristas ajudar a instalar umas famílias que vieram lá do Norte, de junto da fronteira com o Congo. Os pobrezitos sofreram um inferno. Os pretos mataram o administrador de Luvaca e a mulher e fizeram ainda pior em Madimba.
Apanharam o chefe do posto e mataram-no a ele, a quatro mulheres e a cinco crianças."
"Ai coitados, coitados!..."
"Veja lá! Isto está do pior!"
As duas suspiraram sucessivamente e gemeram de comiseração.
"O meu Quim chegou-me ontem a casa transtornado", disse a mãe. "Sabe, ele tem andado às voltas com os sobreviventes de Nambuca... Nambun..."
"Nambuangongo."
"Isso! Sabe que é a uns cento e cinquenta quilómetros daqui, não sabe?"
"Então não sei, dona Lourdes? Jesus! Desde que isto começou que tenho andado à roda do mapa a calcular a que distância estão eles de nós. Ando toda ralada com Quicabo, onde se fartaram de matar brancos. Olhe que Quicabo fica só a sessenta quilómetros de Luanda..."
"Isto é um horror, um horror! Que vamos nós fazer se a coisa chegar cá?"
"Nossa Senhora há-de proteger-nos."
"Pois olhe que não protegeu estes desgraçados!..."
Mais vagidos de comiseração entre as duas. Diogo mantinha- se encostado ao tronco da árvore, o brinquedo na mão apenas como justificação de ali estar para o caso de a mãe o surpreender.
"Mas a senhora falava de Nambuangongo."
"Ah, sim", retomou Lourdes. "Dizia-lhe eu que o meu Quim tem andado num frenesim com os sobreviventes de Namban... Nanguan... ai!, com os sobreviventes desse sítio. Sabe quantos brancos mataram aí? Mais de trezentos!"
"Que horror!"
"E uma chacina!..."
"Olhe que Nambuangongo também fica aqui no distrito de Luanda..."
"A quem o diz!"
Dona Olga fez um estalido com a língua.
"O meu marido contou-me que já contabilizaram uns trezentos brancos mortos à catanada nas fazendas entre o Dange e Quitexe. Parece que os pretos até retalham as crianças aos bocados!"
"Ai, não me conte isso que fico doente! Fico doente!"
"E eu? Nem durmo só a pensar na mesma coisa."
"Quando me falam das crianças penso logo nas minhas."
"Ah, pois é! Isto é terrível!", exclamou dona Olga, mudando de seguida o tom de voz. "Oiça lá, não quer tomar um chazinho?"
"Ai não. Tenho a minha Gracinha à espera. Daqui a pouco precisa do biberão."
"Quando é que tem de lhe dar o biberão?"
"Daqui por meia hora."
"Então ande daí, venha tomar um chazinho. São só dez minutinhos e vai ver que se sente mais revigorada."
A mãe fez uma pausa para considerar a sugestão.
"Dez minutinhos? Está bem."
"Ora venha. Sabe que o meu marido me disse..."
As duas vozes afastaram-se e emudeceram logo que a porta se fechou. Diogo levantou-se com o carrinho de bombeiros na mão e, apesar do terror que quase o paralisava, voltou em corrida para casa.
Duas noites mais tarde o pai chegou do quartel com um homem que nunca ninguém vira. Era um civil baixo e calvo no topo da cabeça, com o cabelo negro e oleoso atrás das orelhas e penteado para cima, num esforço vão de ocultar a careca; mas o que nele mais se destacava eram as grandes olheiras que lhe escureciam o olhar.
"Lourdes, trouxe o senhor Lopes para jantar", anunciou o capitão Meireles. "Põe os miúdos a comer na cozinha."
"Na cozinha?", admirou-se a mãe. "Homessa! Porque não hão-de os garotos comer connosco?"
"O senhor Lopes veio dos Dembos."
A informação deixou a mãe embatucada. Estudou o convidado dos pés à cabeça, como se o reavaliasse. Depois de o cumprimentar com especial deferência, voltou-se para os filhos e bateu as palmas.
"Ala! Tudo para a cozinha!"
Diogo e os três irmãos foram comer para a copa, enquanto o pai se instalava com o convidado na sala. Logo que despachou os filhos, Lourdes verificou se a bebé dormia, levou a comida para a sala de jantar e fechou a porta.
O tom conspirativo do procedimento não passou despercebido entre os irmãos. Diogo trocou olhares com Manei e Mimi e, com súbita resolução, foi buscar o seu carrinho de bombeiros para ir brincar para o corredor, mesmo aos pés da porta da sala de jantar.
"O que estás a fazer?", quis saber Manei.
Diogo encostou o indicador aos lábios.
"Chiu!"
Encostou a cabeça à base da porta e ali ficou, atento à conversa que decorria à mesa. As frases nem sempre eram integralmente perceptíveis, mas uma ou outra palavra que falhava não impedia que captasse o sentido das frases.
"... primeira coisa estranha foi acordar com o gerente de uma fazenda às seis da manhã", dizia uma voz do outro lado da porta, decerto o convidado. "Pensei: mas que raio me quer o homem? O
tipo vinha preocupado. Disse-me que na véspera lhe tinham desaparecido mais de cem homens da propriedade, a fazenda Zalala, e que achava os restantes muito agitados."
"Agitados como?", interrompeu o pai.
"Sei lá, nervosos... O homem parecia preocupado com a maneira como os trabalhadores falavam com ele e como o olhavam."
"Hmm... e então?"
"Bem, o gerente lá regressou à fazenda e eu fiquei a matutar com os meus botões: querem lá ver que há chatice? Decidi percorrer as roças da região. Vesti-me, deixei a minha mulher e os meus filhos a dormir e meti-me no carro. Andei por ali fora e pareceu-me tudo em ordem. A certa altura, quando já me preparava para voltar ao Quitexe, lembrei-me de uma demarcação que tinha sido feita há pouco tempo para uma nova plantação de café. Aquilo era recente e ainda estive vai não vai para não ir. Mas o terreno ficava ali perto e decidi espreitar a coisa. Quando lá cheguei pareceu-me tudo tranquilo. Buzinei para chamar o proprietário, mas ninguém apareceu. Se fosse de manhã cedo, enfim, ainda podia admitir que o homem estivesse a dormir, mas por aquela altura já era final da manhã, por isso não me pareceu normal ninguém responder. Saí do carro e fui até à casa. O
que vi logo à minha frente? Um corpo deitado no chão no meio de um charco de sangue.
Aproximei-me e percebi que era o fazendeiro, que tinha sido morto à catanada. Peguei logo na pistola e, a tremer, fui inspeccionar o resto da casa. Dei com um preto igualmente morto à catanada; era o empregado. Mais à frente estava a mulher do proprietário, coitada, também morta da mesma maneira."
"E as crianças?"
"Felizmente não tinham filhos. Saí dali a correr e fui em todas as fazendas a alertar para a situação. A certa altura cruzei-me na estrada com um grupo de brancos que reconheci; era pessoal do Quitexe. Onde vai?, perguntaram-me. Ora, vou regressar ao Quitexe. Não vá!, disseram-me; não há ninguém vivo. O quê, não há ninguém vivo?!, admirei-me. Os pretos mataram toda a gente.
Senti o coração dar um salto. O quê? Mataram tudo, responderam-me. E a minha mulher? E os meus filhos? Não há ninguém vivo, repetiram. A minha família também? Alguém viu a minha mulher e os meus filhos mortos? Ninguém sabia, tinha tudo fugido à pressa."
"Ai que horror!", murmurou a mãe. "Que horror, que horror!"
"Fiquei transtornado, como devem calcular. O que ia eu fazer? Devia ir ao Quitexe e arriscar-me a ser morto? Devia ficar numa fazenda e ignorar o que acontecera à minha família? Foi a desorientação total, não podem imaginar."
"Imagino, imagino", disse o pai. "O que decidiu fazer?"
"Percebi que teria de arriscar. Trazia uma pistola comigo e precisava de saber o que sucedera à minha mulher e aos meus filhos. De modo que lá me meti pela estrada, a tremer de medo e a chorar por eles."
"Coitado..."
"Quando cheguei ao Quitexe parecia que tinha entrado no inferno. Havia corpos espalhados pelas ruas, tudo morto à catanada. Até o coração se me apertou. Nem parei e fui directo a casa, prevendo o pior. Entrei a medo, apavorado com o que poderia encontrar, mas descobri-a vazia.
Não havia vivalma nem, felizmente, nenhum cadáver. Fui ter com o aspirante administrativo que normalmente me ajuda no posto e dei com o corpo dele no quarto de banho. Um outro auxiliar estava morto no posto. Sabe como? Agarrado ao emissor de rádio! Aquilo era dantesco, vocês não podem imaginar. Pus-me a esquadrinhar o Quitexe, mas não encontrei a minha família. Depois lembrei-me de ir a casa do meu criado. Meti pela sanzala e fui dar à palhota. Entrei sem avisar e o que vejo eu? A minha mulher e os meus filhos! Oh, foi uma alegria que não se descreve! Tinham sido salvos pelo criado, o João, que Deus o abençoe."
A mãe soltou uma gargalhada nervosa.
"Ai que alívio!", exclamou. "Estava a ver que isso acabava mal."
"Felizmente que não, no nosso caso. Mas noutras situações foi diferente, sabe? Houve casos em que foram os próprios criados a degolar os patrões. Alguns tinham anos de casa!"
"Que horror!", exclamou a mãe. "E a sua família? Onde está ela?"
"Meti toda a gente esta tarde no Super Constellation. A esta hora estão a voar para a Metrópole, graças a Deus. Depois de arrumar as nossas coisas, também vou. Isto está que não se pode."
Fez-se um silêncio pesado à mesa e, ainda encostado à porta, Diogo ouviu um súbito tilintar de pratos, como se alguém chamasse a atenção para a comida de modo a aligeirar o ambiente.
"Ora coma, coma! Quer a perna ou o peito?"
"O peito", retorquiu o convidado. "Não tem jindungo?"
"Está na cozinha. Vai uma pitada?"
"Agradecia."
O rapaz escutou uma cadeira a arrastar e não esperou mais; levantou-se apressadamente e foi para a outra ponta do corredor. A porta da sala de jantar abriu-se e apareceu a mãe, que ao vê-lo ali lhe atirou de imediato um olhar desconfiado.
"O que estás a fazer aqui no corredor?"
Diogo assumiu o ar mais casual que conseguiu.
"A brincar."
A mãe fitou-o com uma expressão severa.
"Vai brincar para o quarto", ordenou, apontando para a porta. "Andor! Fora daqui!"
O filho levantou-se, contrariado, e arrastou-se cabisbaixo com o carrinho dos bombeiros na mão.
Abriu a porta do quarto e viu os irmãos, que se viraram para ele e lhe lançaram um olhar expectante, como quem pede novidades.
Diogo levava muito que contar.A convocatória surgiu na segunda semana, quando um paquete bateu à porta do quarto dos Branco no Hotel Central de Lourenço Marques e entregou a José um envelope remetido pelos Serviços Provinciais de Saúde. Depois de depositar uma gorjeta na mão do rapaz, o hóspede abriu o sobrescrito e constatou que se tratava de uma convocatória do director, Floriano Carvalho, para uma reunião nesse mesmo dia às três da tarde.
Almoçou com a mulher na cervejaria Piripiri e, à hora combinada, o médico apresentou-se na morada da Pinheiro Chagas à qual havia sido chamado. Tratava-se de uma elegante vivenda de traça colonial oitocentista, com um belo jardim à volta e o primeiro andar rodeado por uma vasta varanda, à maneira antiga.
"Oh, caro doutor Branco", saudou Floriano quando o foi receber às escadas. Levou-o para o gabinete e indicou uma cadeira diante da sua secretária. "Faça o favor."
O médico sentou-se e contemplou a sala. Era larga e estava toda revestida a madeira, com um enorme relógio e fotografiasemolduradas a ornar as paredes, incluindo uma grande imagem de Salazar atrás da secretária do director.
"Que belo gabinete."
O olhar de Floriano incendiou-se de entusiasmo.
"É, não é?" Apontou para um caixilho na parede. "Está a ver esta fotografia?"
José Branco pousou o olhar na imagem encaixilhada, enquadrando um retrato a preto-e-branco de uma moradia com o espaço vazio à volta; evidentemente um clichet antigo do edifício onde se encontravam.
"É esta casa?"
"Essa fotografia foi tirada em 1914", indicou com um sorriso embevecido. "Trata-se de um dos edifícios mais antigos de Lourenço Marques, construído para ser a residência do director do Hospital Miguel Bombarda. E para que veja como é distinta esta moradia!"
Os olhos do convidado desviaram-se do retrato para as amplas janelas da sala.
"Uma casa cheia de charme, sem dúvida."
O sol jorrava pelos vidros, formando um rectângulo iluminado no soalho de madeira exótica. O
pó cintilava no ar, como se milhares de pirilampos minúsculos esvoaçassem diante da luz, e um móvel de madeira rangeu, parecia que protestava contra o calor.
Fez-se um silêncio desconfortável, quebrado pelo pigarrear forçado de Floriano a assinalar a entrada no assunto que o levara a convocar o médico para aquela reunião.
"Já tenho aqui a sua guia de marcha", disse, exibindo um envelope com o carimbo dos Serviços Provinciais de Saúde. "Mas antes de lha entregar gostaria de ter consigo a conversa que tenho habitualmente com todos os médicos que aqui recebo antes de os enviar para os seus postos."
"Vai-me alertar para as especificidades das patologias africanas?", perguntou José. "Não precisa.
Ao contrário de muitos colegas que por aí andam, eu tirei Medicina Tropical em Lisboa antes de vir para aqui. Sei muito bem o que me espera."
Os dedos de Floriano tamborilaram distraidamente na mesa.
"Ainda bem!", exclamou o director. "Mas, independentemente disso, queria fazer-lhe uma pergunta. O senhor sabe o que estamos a tentar fazer nesta terra?"
José estranhou a pergunta e ficou incerto sobre o seu sentido.
"Bem, acho que estamos a tentar tratar das populações..."
Floriano ignorou a réplica do médico, evidentemente fora do alvo, e respondeu a si próprio.
"Uma coisa grandiosa." Levantou-se e dirigiu-se à janela voltada para a avenida. "Olhe lá para fora, doutor. Olhe bem." Fez uma pausa, exibindo a paisagem com um gesto grandiloqüente. "O
que vê o senhor?"
José esticou o pescoço.
"Vejo carros a passar na avenida, pessoas a circular pelos passeios e prédios por toda a parte.
Porquê?"
"Há menos de duzentos anos, Lourenço Marques não passava de uma fortaleza, justamente aquela que vos mostrei quando vocês chegaram, e uma casa de madeira construída ao lado. Além das palhotas, claro. Mais nada."
"Há quanto tempo foi isso?"
"No século xviii, meu caro amigo."
"Mas os Portugueses não chegaram a Moçambique em 1498?"
"Sim, é verdade, foi Vasco da Gama o primeiro branco a pôr o pé nesta terra. Mas isto ficou tudo negligenciado, meu caro. Ninguém queria saber de nada, havia outras prioridades. Os únicos que se interessaram foram alguns mercadores portugueses que, enquanto as caravelas seguiam para a índia, exploraram a costa de Moçambique, atraídos pela lenda do Monomotapa. Dizia-se que havia por aí grandes minas de ouro."
"Como as do rei Salomão?"
"Mais ou menos. Instalaram-se então feitorias em Sofala e na Ilha de Moçambique, mas o resto era paisagem. Durante quatro séculos, a influência portuguesa por estas paragens ficou ao sabor das nossas cíclicas expansões e retracções e do comércio dos escravos, do ferro e do ouro. Até cerca de 1890, Moçambique não era bem um território português, mas um pedaço de terra entregue a intermináveis disputas tribais, com os caciques e os mazungos a guerrearem-se uns aos outros, aliando-se alternadamente aos Portugueses e aos maometanos. Só nominalmente é que isto dependia da coroa portuguesa." Abriu a janela e deixou o ar quente da rua invadir o gabinete. "A coisa estava de tal modo ao deus-dará que os primeiros europeus a instalarem-se neste sítio, onde é agora Lourenço Marques, não foram os Portugueses, mas os Holandeses. Depois vieram os Ingleses e até uma empresa austríaca, veja lá!"
"Mas nós não andávamos por aqui?"
"Por Moçambique?"
"Não, não." Apontou para o chão. "Aqui na zona de Lourenço Marques."
Floriano indicou com a cabeça um ponto indefinido para lá de uma janela.
"Instalámos um entreposto ali na ilha da Inhaca, do outro lado da baía, para o comércio do marfim. Mas só viemos aqui para Lourenço Marques em 1781, quando o pessoal da Inhaca atravessou a baía e se pôs a construir a fortaleza. A coisa manteve-se pequena ao longo de todo o século xix, mas a descoberta de ouro e diamantes no Transvaal criou a necessidade de se abrir um porto para escoar esses minerais preciosos. Ora o melhor porto do Sudeste africano é o de Lourenço Marques, toda a gente sabe. Está protegido pela baía e dispõe de águas profundas. De modo que se começou a investir por aqui. A linha férrea, essencial para ligar o Transvaal à costa, ficou entretanto concluída e então, aí sim!, Lourenço Marques começou a crescer a sério." Fez um gesto largo com as mãos, afastando-as como se houvesse um objecto a dilatar no meio. "A cidade cresceu tanto, em dimensão e importância, que, em apenas quatro anos, retirou à Ilha de Moçambique o estatuto de capital da colónia. Pode dizer-se que Lourenço Marques é praticamente uma criação do século xx.
Tudo o que havia antes por aqui era risível, insignificante."
"Mas já havia Moçambique..."
"Não, não havia. Existiam umas territas mais ou menos administradas por nós, só isso. Muitas partes do território permaneceram nas mãos dos selvagens até 1914, altura em que, então sim, a colónia adquiriu as suas fronteiras definitivas. Mas só eram fronteiras no papel, como deve calcular, porque Portugal não fazia ocupação efectiva. O problema é que os Ingleses e os Alemães começaram a ficar com vontade de nos abocanhar e, como não tinha dinheiro nem gente para ocupar a terra, a coroa voltou-se para empresas privadas estrangeiras e entregou-lhes por cinquenta anos o monopólio da exploração de dois terços do território, a troco de 7,5 por cento dos lucros. Está a ver o negócio?"
"Portanto, alugámos a colónia aos estrangeiros."
"Isso. Criaram-se assim três companhias: a do Niassa, a da Zambézia e a de Moçambique. A contrapartida dada por Portugal foi assegurar o controlo efectivo do território, o que obrigou a desencadear várias campanhas militares, como as de Mouzinho de Albuquerque, que levaram à captura dos reis locais, como o Gungunhana."
José Branco passou as mãos pelo cabelo e fitou o superior hierárquico com uma expressão intrigada.
"Tudo isso é realmente muito interessante", disse da forma mais convicta que conseguiu. "Mas confesso que não vejo bem a relação desse assunto com o meu trabalho..."
O director respirou pesadamente.
"O que estou a tentar explicar-lhe, caro doutor, é que isto era tudo muito negligenciado. Os idiotas da monarquia, e depois os parvalhões da República, estavam demasiado envolvidos nas suas trapalhadas para prestarem a devida atenção às colónias. Os republicanos ficaram todos enxofrados com o ultimato inglês, mas, enquanto governaram, esses fala-barato também nada fizeram." Floriano abandonou a janela e voltou a sentar-se no seu lugar. "Sabe quem é que mudou isto?"
A pergunta suscitou um arquear de sobrancelhas de José; a resposta era previsível.
"O novo regime?"
O olhar do seu superior hierárquico desviou-se para o retrato pregado na parede atrás da secretária.
"Salazar."
Numa reacção quase reflexa, o médico fitou também a figura esfíngica do presidente do Conselho, imobilizada naquela moldura.
m
"Ah."
Floriano deu uns passos e estacou diante do retrato.
"Salazar foi o primeiro homem a formular uma estratégia coerente para o império. A ideia que ele apresentou, e que estamos a pôr em prática, é fazer com que as províncias ultramarinas sejam auto-suficientes, com a indústria concentrada na Metrópole e a agricultura e as matérias-primas nas colónias. Salazar acabou com as concessões privadas aos estrangeiros e instituiu uma administração central forte. Investiu no algodão e no arroz, e a verdade é que as exportações aqui da província aumentaram mais de quinhentos por cento." Fez uma pausa, para deixar o número assentar.
"Quinhentos por cento. Imagina o que isso é?"
"É muito."
"E a diferença entre o nada e o tudo, meu caro. Entre a inexistência e a existência." O director puxou a cadeira e reinstalou-se no seu lugar à secretária. "Mas não ficámos por aqui. O estado está a investir na industrialização, que se centra nesta zona de Lourenço Marques, e também no turismo. A ideia é atrair os bifes que vivem na Rodésia e na África do Sul, para ver se eles vêm cá gastar os seus rands." Apontou o dedo ao subordinado. "E é aqui que você entra."
O médico arregalou os olhos.
"Eu?"
"Sim. Você, eu, todos os colonos que aqui estão. E que, para marcar Moçambique no mapa, o país necessita de quadros qualificados. Temos poucos, como sabe, até porque a Metrópole não Pode enviar toda a gente habilitada que para lá anda, se não fica ela sem ninguém. Somos por isso poucos, mas precisamos de dar o melhor uso a cada um." Apontou para o subordinado. "Você é um desses poucos. A pátria exige que dê o seu melhor, apesar das condições adversas que cá existem.
A terra é dura, mas as pessoas que vêm para o Ultramar são gente que ergue, que constrói, que abraça o trabalho, que faz das fraquezas forças e transforma o pó em ouro. Para trás fica o Portugal derrotista, preguiçoso e maledicente, das críticas e das invejas, dos que falam e nada fazem. Aqui é o Portugal optimista, trabalhador e construtivo, solidário e positivo, dos que fazem mais do que falam. Estamos numa terra imensa, onde está tudo por fazer, e gostaria que tivesse isso sempre presente quando começar a desempenhar as suas novas funções." Ergueu o dedo. "Quem vem para África vem em missão!"
"Com certeza", assentiu o médico. "Vim cá para trabalhar e sei muito bem que está quase tudo por fazer. Mas confesso que a sua conversa me está a assustar um bocado. Em que diabo de buraco me querem vocês meter?"
Floriano esboçou um sorriso e levantou-se de novo, desta feita para se abeirar de um mapa de Moçambique que se encontrava assente numa estrutura de madeira ao lado da secretária.
"Esteja tranquilo que é um sítio agradável", prometeu, pousando o indicador num ponto do mapa. "Aqui."
José Branco aproximou-se e fixou os olhos no local indicado. Tratava-se de uma cidade situada relativamente perto de Lourenço Marques, apenas alguns quilómetros a norte da capital provincial.
"Xai-Xai?"
O director pegou no envelope com a guia de marcha.
"Esse mapa é antigo", disse, entregando-lhe o sobrescrito. "Agora chama-se João Belo."
O subordinado mantinha a atenção colada àquele ponto do mapa.
"É este o buraco para onde vamos ser desterrados?"
"Qual buraco, doutor? João Belo é uma linda cidade!" Inclinou a cabeça. "Com a vantagem acrescida de não ser muito longe daqui. Temos lá trabalho para si e para a sua mulher. Se precisar de alguma coisa, estarei aqui às suas ordens." Estendeu- lhe o braço, dando a reunião por terminada. "Boa sorte!"
Apertaram as mãos e Floriano acompanhou o médico até à porta do gabinete. Despediram-se mais uma vez e José virou as costas para descer as escadas.
"Doutor Branco?"
Ia já a meio da escadaria quando se deteve e olhou para trás. O superior hierárquico permanecia plantado à porta do gabinete.
"Sim?"
"Tenha cuidado com as más companhias, ouviu?"
Acto contínuo, e sem esperar pela réplica, Floriano fechou a porta e deixou José Branco ancorado entre dois degraus, intrigado com o conselho, a tentar compreender o seu real alcance.Um silvo ondulante soou pelo altifalante do rádio como um assobio desafinado. O capitão Meireles rodou o manípulo, procurando sintonizar a frequência certa. Do éter irrompeu uma voz e o capitão ficou atento por um instante, tentando perceber se havia encontrado o que queria.
"... mais le président De Gaulle, après avoir reçu le premier- ministre Debré, a déclaré que la situation en Algérie est..."
Uma emissora francesa.
"Bardamerda!", vociferou, frustrado.
Mudou imediatamente de frequência e os silvos voltaram. Captou música e parou. Era uma qualquer canção em árabe. Rodou de novo o manípulo, mas, enervado com a minúcia do processo, foi rápido de mais e saltou uma mão-cheia de emissoras.
A mulher, distraída a fazer malhas, ergueu o sobrolho.
"Ó Quim, não é assim", disse, guardando as lãs e aproximando-se do rádio. "Lá em minha casa habituei-me a ver o meu pai procurar a BBC. Isto de sintonizar uma estação de onda curta tem a sua técnica."Lourdes girou o manípulo e, em apenas alguns segundos, todos na sala ouviram uma voz familiar emudecer os zunidos da estática.
"... aos microfones da Emissora Nacional, a emitir em onda curta pelas frequências de..."
Lançou um olhar triunfal na direcção do marido.
"Estás a ver, Quim? Com calma tudo se faz."
Os sons da rádio portuguesa impuseram o silêncio em toda a casa. Diogo consultava a página desportiva de A Província de Angola em busca de novidades sobre as corridas de automóveis que tanto o apaixonavam, mas deixou igualmente a atenção desviar-se para as ondas curtas.
Passados alguns minutos soou o sinal horário a assinalar as nove da noite e começou o noticiário. A Emissora Nacional dava notícias sobre a substituição das chefias militares na sequência de uma intentona contra o governo chefiada pelo general Botelho Moniz e, nas palavras do locutor, " prontamente neutralizada pela imediata intervenção das forças da ordem".
A revelação provocou espanto na sala, mas ninguém articulou qualquer observação com medo de perder uma palavra que fosse do noticiário.
"Na sequência destes graves acontecimentos" , acrescentou o locutor, "o senhor presidente do Conselho assumiu ele mesmo a pasta da Defesa. No seu gabinete de trabalho, o professor António de Oliveira Salazar gentilmente acedeu a explicar aos nossos microfones os motivos que o levaram a tomar esta decisão."
Ouviu-se a seguir uma voz esganiçada e sibilante que todos de imediato reconheceram como do chefe de governo.
"Se é preciso uma explicação para o facto de assumir a pasta da Defesa Nacional mesmo antes da remodelação do governo, a explicação pode concretizar-se numa palavra, e essa é: «Angola»", disse a voz familiar. "Andar rapidamente e em força é o objectivo que vai pôr a prova a nossa capacidade de decisão."
A declaração foi recebida aos urros na sala de jantar. O capitão Meireles esmurrou o ar com o mesmo vigor com que celebrava os golos do seu FC Porto, no que foi acompanhado pela família.
"Até que enfim!", exclamou a mulher, abrindo-se num imenso sorriso. "Irra! Estava a ver que não!..."
O marido dava saltinhos na sala, agarrando em Diogo e em Mimi e dançando com eles. Incapaz de se conter, abriu a janela e gritou para quem o quisesse ouvir.
"Para Angola, e em força!"
O sol abrasava a pele, apesar da brisa salgada que soprava suave do mar. A multidão comprimia-se em ambos os lados da grande Avenida Paulo Dias de Novais, enchendo os passeios como se fosse uma guarda de honra à magnífica marginal de Luanda. As varandas dos edifícios estavam apinhadas de gente e das janelas pendiam enormes colgaduras; vendiam- se pipocas e gelados e viam-se guarda-sóis coloridos a abrigar a massa humana. O ar trepidava de excitação e cada mirone se esforçava por defender o palmo de passeio que ocupara de modo a garantir o melhor lugar para observar o grande acontecimento.
"O Quim", disse Lourdes naquele aperto, varrendo a multidão com o olhar. "Quantas pessoas achas que estarão aqui?"
"Sei lá... umas trinta ou quarenta mil. Eles até fecharam o comércio para permitir que os empregados viessem!..."
Com a bandeirinha portuguesa a tremelicar na mão, Diogo não era dos mais excitados.
Sentindo-se cansado com a espera prolongada, o rapaz depressa se desinteressou da marginal, cujo asfalto permanecia estranhamente vazio, e preferiu sentar-se à sombra da fila de palmeiras e estudar o grande navio que atracara logo pela manhã na cidade. Pôs a palma da mão sobre a testa, como se fosse a pala de um boné, e protegeu os olhos para melhor ler a palavra pintada no casco do navio.
"Ni... a... ssa", soletrou. "Niassa."
Voltou a cabeça e viu os pais e os irmãos apertados entre a multidão, mantendo-se firmes no pedaço de passeio que haviam ocupado duas horas antes. Admirou a resistência deles, mas não os conseguia acompanhar, doíam-lhe já as pernas.
ó ministro! ministro!"
O alerta dado por um mirone desencadeou um burburinho na multidão. Com a curiosidade atiçada, Diogo levantou-se e furou pela massa de gente até chegar de novo junto dos pais.
Espreitou a estrada. O alcatrão da marginal encontrava-se ainda vazio e o espectáculo permanecia nos passeios, onde a mole humana se agitava com os olhos voltados na direcção do porto. Esticou o pescoço e espreitou naquele sentido, tentando destrinçar a fonte do burburinho.
Pela direcção dos olhares da multidão, percebeu que todos fitavam o edifício do Automóvel e Touring Clube de Angola. A descoberta surpreendeu-o, uma vez que aquele local o fascinava; era ali que se organizavam as emocionantes corridas do Circuito da Fortaleza e o aventuroso Rallye Automóvel Leo- poldville-Luanda.
Mas as emoções nesse momento pareciam-lhe outras. A varanda do clube estava transformada numa tribuna, com o tal ministro do Tramar no meio. Chiça, que raio de nome tinham posto ao homem! Ministro do Tramar!? Parecia ser gente importante, o que não admirava; um ministro que pelos vistos tanto gostava de tramar os outros era de certeza temível. Aliás, já lá em casa o pai tinha-lhe grande respeito e chamava ao sujeito, Adriano qualquer coisa, "o ministro sem medo".
O toque de uma corneta interrompeu as divagações do rapaz, cujo olhar passeava pela varanda do Touring Clube. Logo a seguir o ar tremeu com o súbito rufar simultâneo de tambores.
"Eles vêm aí!"
A multidão agitou-se, despertando do torpor, e as pessoas adiantaram-se um passo, procurando a melhor posição.
"Viva a tropa!", gritou alguém. "Viva Portugal!"
O berro foi acompanhado de vivas sucessivos e o ambiente incendiou-se. Quem tinha uma bandeira na mão içou-a bem alto, gesto que Diogo imitou, e quem não conseguia um lugar na primeira fila punha-se atrás em bicos de pés, esforçando-se por ver acima do mar de cabeças.
"Ó p'ra eles! Ó p'ra eles!"
O desfile foi aberto por cinco jipes da Polícia Militar, secundados com estrondo pela banda do Comando Militar de Angola. Os primeiros soldados acabados de desembarcar apareceram em formação logo a seguir, marchando com passadas marciais, sincronizadas e ao ritmo da banda, as armas a tiracolo, as botas engraxadas a rigor.
Aquela visão ateou uma corrente eléctrica entre a multidão, que se pôs a ovacionar os recém-chegados. Soaram palmas espontâneas, tão ruidosas que por momentos abafaram a marcha solene das cornetas e dos tambores e das botas militares a bater no alcatrão em uníssono; os mirones gritaram, deram sucessivos vivas aos soldados, a Salazar e a Portugal. Foi um bruá imenso. O céu encheu-se de serpentinas, de flores e de confetti lançados dos prédios como chuva colorida, os soldados sorriram e acenaram de volta, e a multidão pôs-se a entoar A Portuguesa com ardente patriotismo. Algumas mulheres recorriam aos lenços para molhar a emoção e havia homens que saltitavam como crianças; olhavam para os soldados e viam a redenção.
Embasbacado diante da cena, talvez até mais impressionado com a reacção apoteótica da multidão do que com a própria tropa em desfile, Diogo agitou freneticamente a bandeira o mais alto que pôde e, embalado pela emoção, ergueu os olhos para o céu e murmurou uma jura sentida e solene.
"Quando for grande, Deus, faz-me soldado de Portugal!"O Limpopo dobrava-se como uma jibóia, roçando pelo casario na sua curva apertada, manso e majestoso; o Sol despontava na planície e o pipilar solitário de um pássaro ecoava pelo espelho de água. A paisagem respirava tal majestade que o casal Branco apenas se atrevia a sussurrar durante o pequeno -almoço, como se receasse que as vozes perturbassem a natureza. Estavam a comer no quintal de casa, protegidos pela sombra de um limoeiro e ambos virados para o rio. Das águas dóceis sentiram subir uma brisa ainda fresca; não era de admirar, considerando a hora matinal.
Foi quase com pena que concluíram a refeição. Depois de Mímicas dar as últimas instruções ao criado, os dois pegaram nas suas coisas e abriram a porta de casa. A manhã despontara tranquila e João Belo parecia ainda meio adormecida. Um jipe passou com estrépito na rua de terra batida, levantando uma nuvem de poeira avermelhada, mas o movimento limitava-se no essencial a algumas pessoas que circulavam despreocupadamente pelos passeios.
Quando teve a certeza de que a nuvem não os atingiria, José saiu para a rua e passou o dedo pelo
capot do Opel paradodiante da casa, de modo a avaliar a quantidade de pó que sobre o automóvel se abatera durante a noite. Era uma bela viatura branca com tejadilho azul-turquesa, que ele, inexperiente ao volante e pouco familiarizado com a condução à esquerda praticada em Moçambique, logo no primeiro dia amolgara ao tentar estacioná-la.
"Não queres levar o coiso?", perguntou a mulher numa referência ao carro.
"Fico intimidado quando ando na bomba da senhora directora da farmácia", gracejou José, inclinando-se para lhe dar um beijo. "Até logo, senhora directora."
Mimicas corou e riu-se.
"Parvo!"
Os dois separaram-se, ele rua acima a pé para o hospital, ela dando meia volta e regressando a casa. Havia já três anos que era aquela a sua rotina matinal em João Belo. Devido à falta de quadros, Mimicas fora nomeada directora da farmácia do Estado, cargo que ocupava apesar de ser recém-formada e que lhe dava direito a casa. Na verdade não era uma casa, mas um conjunto de edifícios: a residência, um posto médico e a farmácia do Estado, os três blocos unidos por uma vasta varanda.
Não era comum a mulher ocupar uma posição hierárquica superior à do marido, facto que atraíra já alguns gracejos na boa sociedade de João Belo, mas José sempre levara a coisa na galhofa.
Referia-se à mulher em público como "a senhora directora" e desse modo contornava a ideia prevalecente entre os seus contemporâneos de que o homem está sempre acima da mulher.
Formavam assim um casal suigéneris: ela era directora da farmácia, ele distinguia-se por andar sempre impecavelmente de branco, como se tornara seu costume desde que chegara a Moçambique.
Foi aliás nas suas tradicionais vestes brancas que nessa manhã seguiu para o trabalho, a mala a balouçar na mão e o olhar atento ao trânsito. Sempre que um automóvel passava pela rua tinha o cuidado de se desviar do inevitável bafo poeirento; vestir de branco obrigava-o a cuidados redobrados, sob pena de ter de ir ao roupeiro buscar as balalaicas de reserva.
Chegou ao hospital à hora habitual, faltavam dez minutos para as sete da manhã.
Cumprimentou o enfermeiro Nélson, um tsonga que tirara o curso de Enfermagem em Lourenço Marques, e recolheu ao seu gabinete para se preparar. Vestiu a bata que estava pendurada no cabide e abriu a malinha, extraindo o estetoscópio e pondo-o ao peito. Cruzou a porta e fez sinal ao enfermeiro que o aguardava como uma sentinela.
"Vamos?"
Nélson hesitou.
"Doutor, o senhor director já cá está."
José fez uma careta surpreendida e consultou o relógio, querendo certificar-se de que não se enganara. Os ponteiros confirmavam que eram quase sete da manhã.
"A esta hora?"
O enfermeiro não respondeu e acompanhou o médico até à enfermaria. José foi ter com cada um dos pacientes e interrogou- os sobre a noite, auscultando-os e medindo-lhes a temperatura. Havia um caso de paludismo cerebral que o mantinha preocupado, tendo gasto mais tempo com esse paciente. Sempre que tinha dúvidas questionava Nélson, que havia passado a noite no hospital e o esclarecia de pronto, e assim cumpriu os seus deveres na enfermaria.
As consultas começavam às oito e, quando a hora chegou, apressou-se a caminhar para o gabinete. Apercebeu-se nessa altura de um vulto a esgueirar-se por detrás de uma cortina que separava os doentes e franziu o sobrolho, mas depressa reconheceu a figura furtiva; era o director.
"Bom dia, doutor Abreu!", cumprimentou, intrigado. "Por aqui a esta hora? Caiu da cama ou quê?"
A silhueta permaneceu um instante imóvel, como se não esperasse ser identificada, mas logo deu um passo para o lado, talvez percebendo que era inútil permanecer escondida.
"Hmpf!", grunhiu o director com ar irritado, dando uma resposta incompreensível.
José Branco riu-se para dentro e abanou a cabeça, sem entender aquele comportamento; era mais uma parvoíce do director, pensou. Retomou caminho, apressado; gostava de cumprir horários e via já uma fila de pessoas na salinha contígua à sua porta. Cumprimentou-as com um "bom dia"
geral e meteu-se no gabinete, fazendo sinal ao enfermeiro.
"Chame o primeiro."
O primeiro paciente foi, na verdade, um par. Tratava-se de um padre que acompanhava uma freira com um problema bizarro: tinha o ventre dilatado. O médico mandou a freira deitar-se na marquesa, apalpou-lhe a protuberância e auscultou-a com atenção.
"Serão gases, doutor? Nós comemos muitos feijões lá na missão..."
As palavras do pároco foram pronunciadas com uma voz sibilante, à maneira dos beirões, e José levou alguns instantes a responder.
"Não."
"Ai, meu Deus!", ciciou o homem, passando as mãos pela cara com evidente aflição. "E um cancro? Será um cancro? Um linfoma? Um carcinoma?"
Disse-o com expectativa, quase com esperança, o que suscitou a estranheza do médico.
Terminado o exame, José recolheu o estetoscópio e regressou em silêncio ao seu lugar, de onde perscrutou os rostos do par que o viera consultar. A freira tinha um ar embaraçado, envergonhado mesmo, e mal se atrevia a cruzar os olhos com o padre. Já o pároco não olhava para ninguém; transpirava em abundância, afogado numa ansiedade que ao clínico pareceu sinal inequívoco de que não era inocente naquela situação.
"Não é um carcinoma", disse por fim José, mantendo o semblante impenetrável. "É um criançoma."
As consultas prolongaram-se até às onze da manhã, altura em que a salinha se esvaziou por completo e José fez a habitual pausa para o café. Esticou os pés sobre a secretária e descontraiu, embora a sua vontade fosse estender-se sobre a marquesa e dormitar um pouco; lidar durante três horas ininterruptas com pacientes deixara-o exausto.
"Pode-se?"
O médico deu um salto na cadeira, entornando o café pela bata e pela balalaica, e olhou para a entrada.
"Domingos!"
O rosto sorridente de Domingos Rouco espreitava pela porta, divertido com a reacção do amigo e sobretudo com as nódoas de café espalhadas pela roupa.
"Lá se foi a balalaica!", exclamou em tom zombeteiro. "Tens de ir ao Bem Fica comprar mais..."
José sacudiu o café que lhe escorria pelos dedos, pousou a chávena na mesa e foi acolher o recém-chegado.
"Por aqui?", admirou-se, apertando-lhe a mão. "Só estávamos à vossa espera este fim-de-semana."
"Pois é, mas recebi um telegrama para vir com urgência a Inhambane e, pimba!, lá vim a correr."
"Que se passa? E coisa grave?"
"Não. Assuntos de família, nada de especial."
O médico fez-lhe sinal de que se sentasse na cadeira habitualmente reservada aos pacientes durante as consultas, mas antes de se lhe juntar lançou uma espreitadela para além da porta.
"A Albertina?"
"Vim sozinho", esclareceu o amigo. "No sábado faço o caminho de regresso e combinámos encontrar-nos no Bilene. Vocês sempre vão, não é verdade?"
José acomodou-se no seu lugar.
"Para o Bilene? Claro! E o que está combinado." Esticou o pescoço na direcção da janela e avistou o Chevrolet do recém- chegado estacionado à porta do hospital. "Olha lá, se vens de Inhambane, o melhor era até passares por nossa casa e íamos juntos. Que te parece?"
"lá, maningue naice."
O médico indicou-lhe a chávena vazia que havia entornado instantes antes.
"Vai um café?"
Domingos riu-se.
"Onde? Na roupa? Não obrigado." Abanou a cabeça, mudando para um tom ligeiramente mais sério. "Matabichei antes de sair de Lourenço Marques."
"E o trabalho? Tudo bem?"
"Os serviços de contencioso do BNU são sempre maningue movimentados, pá", disse. "Iá, a malta nunca pára." Esboçou uma expressão caricaturalmente confidencial. "Além do mais tenho o trabalho por fora, não é? Os indígenas enchem-me de serviço." Disse indígenas em tom irónico. "E
dão-me muita despesa também. Os gajos têm imensos problemas e pouco dinheiro. Mas suponho que é este o preço de ser o único advogado indígena de Moçambique. A malta vem toda bater-me à porta da flat e, como deves calcular, não posso dizer que não."
"Os pides ainda te chateiam?"
"Ui! Nem me fales! Há dois anos que não me largam." Ergueu uma sobrancelha. "Desde que foi criada a Frelimo que andam em cima de mim. Os gajos acham que eu ando envolvido na coisa."
"E não andas?"
O advogado riu-se.
"Não digo que não", admitiu.
"Se a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses de Moçambique e declarar independência imediata e se tu fazes parte da coisa, é natural que os pides te tragam debaixo de olho, não te parece?"
"Eh, pá! Não é bem assim. Quando a Frelimo diz que quer expulsar os Portugueses, isso não é literal. A Frelimo quer é expulsar o regime português. Mas os portugueses que pretendam cá ficar serão bem-vindos, claro. O nosso movimento não é radical. Não te esqueças que o Mondlane se licenciou nos Estados Unidos e que a Frelimo tem o apoio da Ford Foundation. Os países africanos estão todos a declarar a independência e esse processo é apoiado pelos Americanos. Não vejo por que motivo há-de Moçambique ser diferente."
"Não estou a ver o regime ir nessa conversa", observou José. "Se Portugal não ceder, o que achas que vai acontecer?"
"O Zé, já uma vez falámos nisso. Se o Salazar não ceder, o caldo vai-se entornar."
"Ou seja, a guerra vai chegar aqui a Moçambique..."
O advogado ficou um instante quieto, mas acabou por assentir com um ligeiro movimento da cabeça.
"Já te avisei, não avisei? Ela já começou em Angola e também na Guiné. Moçambique é o freguês que se segue..."
"E tu? Vais fazer parte dela?"
Domingos respirou fundo e encolheu os ombros num gesto de resignação.
"Não sei", disse. "Mas não estou a ver alternativa."
José desviou o olhar para a janela.
"E essa a vantagem do meu trabalho", considerou com ar pensativo. "Ao contrário dos advogados, os médicos não têm de se meter na política. O nosso trabalho é estritamente humanitário."
O amigo ergueu o dedo, como se o avisasse.
"Estás enganado, Zé. Na vida tudo é política."
José cruzou os braços, com o ar resoluto de quem tinha tomado uma posição e dali não sairia.
"Os médicos são a excepção."
"Isso é o que tu pensas. Por mais que tentemos fintar a política, meu caro, ela acaba sempre por nos apanhar. Vais ver! Mais tarde ou mais cedo, a política prega-te uma rasteira e ali estás tu, forçado a enfrentá-la. Vais ver!"
Mas o amigo não se mostrava convencido.
"Sabes, Domingos, a minha profissão tem certas especificidades com as quais não estás familiarizado. Para começar, o juramento de Hipócrates estabelece muito claramente que..."
José interrompeu a frase no momento em que se apercebeu de um vulto a assomar à porta.
Desviou os olhos naquela direcção e reconheceu a figura seca do director do hospital, que de manhã havia surpreendido na enfermaria. O doutor Abreu era um médico à moda antiga, cheio de formalismos e com uma pose austera, pelo que, em sinal de deferência pela hierarquia, José se levantou do lugar, no que foi acompanhado por Domingos.
"Doutor Abreu", disse. "Precisa de alguma coisa?"
O director do hospital nem o encarou. Em vez disso estudou o visitante com uma expressão de desdém, examinando-o lentamente dos pés à cabeça.
"O que está este preto aqui a fazer?"
A pergunta rebentou no gabinete com um fragor surdo, silenciando tudo à sua volta. José ficou um longo instante especado a fitar o superior hierárquico, horrorizado com o que acabara de ouvir e percorrendo mil opções sobre como responder. Deveria fingir que não percebera? Deveria agir como se aquilo que ele dissera fosse normal? Ou deveria berrar com o director? Aplicar-lhe uma murraça, talvez? Como proceder quando o seu chefe dizia uma coisa daquelas a uma pessoa, ainda para mais um amigo?
"Desculpe, doutor Abreu", acabou por murmurar, o coração aos pulos, dividido entre a vontade de o insultar e o receio de apanhar um processo disciplinar por insubordinação; teria de dizer o que pensava, mas precisava de medir as palavras. "O doutor Rouco é meu amigo e está aqui numa visita de cortesia. Os termos e o tom que o senhor utilizou não são, receio bem, os mais adequados e devo dizer que me deixam até envergonhado."
O director continuou a olhar fixamente o visitante.
"Este preto não é um paciente, pois não? Se não é, não está aqui a fazer nada e tem de se pôr na rua. Os únicos selvagens que aqui entram são os doentes." Apontou para a entrada. "O lugar dos outros é lá fora."
"O doutor Rouco não é um selvagem", ripostou José, o sangue já a ferver. "E meu amigo e exijo que o trate com o respeito que merece."
O director insistiu com o braço na direcção da porta de entrada.
"Rua!", ordenou. "Quero este preto na rua! Já! Fora do meu hospital! Fora daqui!"
Domingos e José trocaram um olhar, percebendo que a coisa não se iria resolver.
"Deixa estar, Zé", disse o advogado, pegando nas suas coisas e preparando-se para sair. "Eu vou dar uma volta e encontramo- nos para o almoço, está bem?"
"Isso não é bem assim", disse o amigo, voltando-se de novo para o superior hierárquico. "Se o doutor Rouco sai, eu também saio."
Foi a primeira vez que o director do hospital pousou os olhos no subordinado desde o início do incidente.
"Era o que mais faltava!", rosnou. "O preto sai, mas o senhor doutor fica porque tem deveres a cumprir!"
Era o que José queria ouvir: uma ordem que pudesse desafiar. Arrumou o estetoscópio na malinha, despiu a bata suja e atirou- a para o chão, pegou na mala e saiu do hospital ao lado do amigo.
Fazia calor ao sol. Caminharam os dois em silêncio até ao Chevrolet. Quando entrou no veículo, José sentiu o interior a escaldar como se estivesse a meter-se numa lareira. Domingos instalou-se ao volante, ligou o motor e, com o braço atrás do banco para fazer marcha atrás, encarou o amigo; trazia um sorriso irónico a bailar-lhe nos lábios espessos.
"O que te dizia eu?", perguntou. "A política apanha-nos sempre."No momento em que estacionou à beira da praia da Samba, o minúsculo Austin-Morris-Minor parecia uma lata de sardinhas; os ocupantes iam tão apertados que havia pernas e braços a sair pelas janelas. Logo que as portas se abriram, do interior saltaram Diogo, os pais com a bebé, os outros três irmãos e ainda o impedido que servia a família; eram ao todo oito pessoas.
Enquanto durava, a acanhada viagem até à praia no Austin era motivo de galhofa todos os domingos, mas não neste. A euforia provocada pelo desembarque das primeiras tropas havia gerado na família uma reconfortante sensação de segurança, embora com o tempo esse sentimento fosse cedendo de novo lugar à apreensão. Todos os dias o pai chegava do quartel com mais novidades e nem sempre eram as melhores.
A ida à praia era uma tentativa de desanuviar o ambiente pesado, que a todos afectava. A época das chuvas, quando o tempo é mais quente, já havia passado, mas a praia da Samba permanecia apetecível como sempre, as areias douradas a prolongarem-se até à água tépida e translúcida. Os recém-chegados estenderam as toalhas numa crista do areal, tendo o cuidado de proteger do sol os cestos com a comida e o garrafão, e logo todos correram para a água, as crianças à frente a soltar guinchos de excitação.
Ao contrário dos irmãos, porém, Diogo não era um amante dos mergulhos nem das brincadeiras à beira-mar, pelo que cedo se deitou na toalha e ali se deixou tostar. Minutos mais tarde sentiu os pais regressarem também do banho. Falavam à distância, mas as vozes ondulavam pela areia e pela brisa e chegavam a Diogo como se ambos estivessem ao fundo de um túnel.
"A água está uma maravilha", observou a mãe. "Então junto à areia parece mesmo um caldinho."
"E o que isto tem de bom", concordou o pai. "Mas não sei se vamos aguentar muito tempo."
"Homessa! Porque dizes isso?"
"Ora! Porque os ataques não param. Ainda noutro dia a Força Aérea conseguiu pôr fim ao cerco à Mucaba, não foi? Pois os terroristas voltaram ontem a atacar a Mucaba."
"Credo! E não se consegue travar essa gente?"
"Pelos vistos não. Os tipos atacaram também Sanza Pombo e a Damba. Foram dadas ordens para suspender o cultivo do algodão em todas estas regiões."
"Mas quem são esses terroristas?", perguntou a mãe. "O que querem eles? Exterminar-nos a todos?"
"Uns chamam-se UPA e outros MP... qualquer coisa. Dizem que Angola é para os pretos."
"Que disparate!"
"Pode ser um disparate, mas os Americanos dão-lhes razão e os comunistas entregam-lhes armas. E queres saber uma coisa? Até a ONU votou a favor dos terroristas!" Soltou uma gargalhada forçada, que a mulher não acompanhou. "E para rir!"
"Quer dizer que Portugal está sozinho?"
O pai anuiu.
"E incrível, não é? Matam mulheres e crianças à catanada e o que faz o mundo? Aplaude!"
A abanar a cabeça de reprovação, Lourdes inclinou-
se sobre um cesto e extraiu uma sanduíche do interior.
Desembrulhou o guardanapo que a envolvia e sentou-
se a contemplar o mar. Os filhos brincavam ainda na
água e Lourdes acompanhou com atenção os seus
movimentos, tentando perceber se de alguma forma
estariam perturbados pelo ambiente que se instalara
em Luanda. Não deve ter gostado do que viu porque
de repente abanou a cabeça e, com súbita resolução,
voltou-se para o marido.
"Ó Quim, quando é que disseste que acabava a tua
comissão de serviço?"
O marido engoliu o pedaço de sanduíche que tinha
na boca antes de responder.
"No próximo mês", indicou. "O coronel Tavares já me perguntou se quero renovar por mais quatro anos."
"E tu, o que lhe respondeste?"
"Que ia pensar."
A mulher voltou a contemplar o mar enquanto
mastigava. Havia barcos de pesca a deslizar na água e
um deles, baloiçando nas ondas, aproximava-se da
praia já em fecho de faina. Os filhos tinham-se
apercebido daquele barco e interceptavam-lhe o
caminho para espreitar os peixes aos saltos nas cestas.
"Amanhã vou à Agência Atlas comprar os bilhetes", anunciou Lourdes sem tirar os olhos vigilantes dos filhos. "No mês que vem estamos todos na Metrópole."O relógio assinalava já as onze da manhã e José Branco ainda não fora chamado. Uma dor na região lombar arrancou-lhe um esgar sofrido; encontrava-se havia demasiado tempo sentado naquela cadeira. Já tinham passado duas horas e ninguém lhe dizia nada. Ergueu-se para espairecer e deu um passeio pelo rés-do-chão da elegante moradia do centro de Lourenço Marques. Deparou com uma funcionária que escrevinhava a uma secretária e trocou com ela um sorriso tímido.
"Tenha paciência", disse ela. "O senhor director já o chama."
O médico passeou os olhos pela secretária e vislumbrou o papel ordinário de um jornal a espreitar por baixo do que pareciam relatórios.
"É de hoje?"
A funcionária pegou no periódico, um jornal de páginas enormes, e estendeu-lho.
"Diz aqui 16 de Abril de 1964, como vê", indicou, apontando a data por baixo do cabeçalho.
"Quer?"
Era de facto a edição dessa manhã do Notícias. José pegou no matutino e voltou para a cadeira, animado por ter encontradouma forma de passar o tempo enquanto não era chamado. Na verdade devia ter comprado um exemplar a caminho da reunião, mas a realidade é que nunca imaginara que o director dos Serviços Provinciais de Saúde o faria esperar tanto tempo.
Passou os olhos pela primeira página e constatou que os principais títulos eram desinteressantes. Estava quase a saltar directamente para as páginas desportivas quando reparou, escondida no canto à direita, numa caixa estreita e pequena com um título bizarro: "Notícia falsa sobre Moçambique na Rádio Nairobi". É verdade que não percebia muito de jornalismo, mas se a notícia era falsa porque a publicavam?
Intrigado, leu o interior da caixa. "A estação emissora de Nairobi, no Quénia, difundiu a notícia cujo teor é o seguinte", começava o texto, passando a citar a informação queniana. "«Fontes moçambicanas declararam que as autoridades portuguesas haviam declarado o estado de emergência e mandado 2500 homens para a Província da Zambézia, ao norte do Rio Zambeze. As tropas estão a operar contra os rebeldes que declararam guerra aos portugueses há um mês. A informação veio em cartas entregues por mão, dizendo que até agora nenhum membro das guerrilhas fora capturado, embora tenham feito 'raids' contra diversos postos portugueses»."
Parou a leitura, estupefacto. Estado de emergência? Dois mil e quinhentos homens para a Zambézia? Rebeldes que declararam guerra há um mês? "Raides" contra postos portugueses?
Guerrilhas? Mas o que era aquilo? Voltou ao texto. "A notícia acima transcrita - inteiramente forjada
- opõe-se formal desmentido, porquanto há calma absoluta em todo o território da Província de Moçambique, não se tendo registado o mais pequeno incidente." O texto prosseguia com a habitual diatribe contra os inimigos de Portugal e não dava mais informações úteis, mas só o facto de o
Notícias publicar aquela caixinha em primeira página, mesmo que discreta, pareceu-lhe perturbador. Se tudo era falso, porque difundira essa notícia? E por que razão a comissão de censura a deixara passar?
"Doutor?"
Quais as reais intenções por detrás da publicação de texto tão extraordinário? Seria uma forma encapotada de passar uma informação verdadeira? Não iria isso...
"Doutor?!"
A voz irrompeu ao retardador na mente de José Branco, dissolvendo-lhe os pensamentos.
Olhou para a porta e viy uma mulher de meia-idade a observá-lo. "Hã?"
"O senhor director está a chamá-lo", anunciou a mulher. "Faça o favor de subir."
O escritório dormitava à meia-luz no rolar morno do final da manhã, o torpor apenas perturbado pelo ranger casual de uma madeira, pelo tiquetaque hipnótico do relógio de parede e pelo ocasional farfalhar de papéis a serem remexidos. José havia cruzado a porta um minuto antes e Floriano Carvalho nem sequer levantou a cabeça. O director lia um documento, aparentemente absorvido no seu conteúdo, embora o visitante ficasse com a distinta impressão de que o superior hierárquico se fingia ocupado.
Floriano deixou prolongar o momento, indiferente ao pigarrear do convidado para assinalar a sua presença, até que acabou por juntar os papéis com algum fragor. Arrumou-os na esquina da secretária, afinou as cordas vocais e mirou por fim o subordinado.
"Doutor Branco", foram as suas primeiras palavras. "Não posso negar que me sinto decepcionado com o seu comportamento."
A declaração de abertura, sem cumprimentos nem preâmbuos, deixou o subordinado apreensivo. Floriano Carvalho, o director que tão bem o recebera três anos antes, acolhia-o agora com alguma frieza. José vacilou, sem saber se deveria dizer alguma coisa ou permanecer calado, mas como o director nada acrescentou àquelas primeiras palavras sentiu que lhe cabia algum tipo de reacção.
"Bom dia", cumprimentou, esperando que Floriano percebesse que se tratava de um remoque pela falta de cortesia do acolhimento. "Dá-me licença que me sente?"
O superior hierárquico fez um gesto imperial a indicar a cadeira que se encontrava diante da secretária.
"Faça o favor."
O médico puxou a cadeira, arrastando-a deliberada e ruidosamente pelo soalho, e acomodou-se. Cruzou a perna, de modo a ocultar a apreensão e dar até a ideia de que, apesar do formalismo polido das suas palavras, não se sentia minimamente intimidado, e encarou o superior hierárquico.
"Lamento que se sinta decepcionado", começou por dizer. "Mas na verdade nada fiz."
"Fez, e o senhor sabe muito bem que fez."
"Eu não tenho..."
"Deixe-me continuar, se faz favor", cortou Floriano num inesperado tom tenso, embora controlado. Ergueu-se da cadeira e caminhou até à janela. "Sabe, doutor, eu tenho um sonho."
Estacou, contemplando a paisagem urbana com os braços cruzados atrás das costas. "O meu sonho é a grandeza de Portugal. Se pessoas como eu e o senhor estão aqui é para desempenhar um papel, para cumprir uma missão. Uma missão civilizadora." Fez um gesto, apontando os edifícios para além da janela. "Há cem anos não havia aqui coisa nenhuma. Isto era mato e uns pântanos e umas palhotas. Mais nada. Erguemos esta cidade em pouco tempo e faremos mais e melhor se pudermos e nos deixarem." Indicou-se a si e ao seu convidado com a mão direita. "Eu e o senhor somos ambos os emissários da civilização. Compete-nos a nós reerguer o império, restaurar o orgulho da pátria, afirmar o papel de Portugal no mundo. E isso, caro doutor, faz-se trabalhando." Ergueu um dedo e voltou-se para o médico, a luz do dia a banhar-lhe metade da face. "Essa é a palavra crucial.
Trabalhando. É para isso que aqui estamos. Para trabalhar, para fazer coisas, para erguer a civilização, para alargar os horizontes, para honrar a nação." Caminhou devagar para o seu lugar.
"Enquanto estivermos ocupados com o nosso trabalho está tudo bem. Fazemos o que sabemos e damos o melhor que temos. O resto não é connosco." Sentou-se. "E por isso que estou decepcionado consigo. E que o senhor doutor fez o que sabe fazer. Mas resolveu também fazer o que não sabe, e aí borrou a pintura toda."
Floriano manteve os olhos fixos no subordinado, como um professor que chegou ao ponto crucial da lição e observa o aluno para se assegurar de que ele assimilou a matéria. José remexeu-se na cadeira, incomodado e esforçando-se por se manter contido.
"Caro senhor director", disse. "Eu faço o meu trabalho o melhor que posso e sei. Creio aliás que ninguém põe isso em dúvida. O que aqui me trouxe... ou melhor, o que o levou a chamar-me não foi a qualidade do meu trabalho, mas um problema de relacionamento pessoal. E, sobre isso, deixe-me ser muito claro: as pessoas têm de saber respeitar se quiserem ser respeitadas. O doutor Abreu não respeitou um amigo que me foi visitar ao hospital. Insultou-o da forma mais degradante possível. Nessas condições, não vejo como possa ele esperar que eu também o respeite."
Até aí com a cabeça na sombra, o director dos Serviços de Saúde debruçou-se para a frente, os cotovelos apoiados sobre a secretária, e deixou a luz que alagava a sala iluminar-lhe o rosto tenso.
"Seria assim, caro doutor Branco, não se desse o caso de o seu amigo estar envolvido em actividades subversivas."
"Actividades subversivas? O meu amigo é advogado no BNU e, tanto quanto sei, permanece um cidadão livre. Se ele está envolvido em actividades subversivas, porque não o detêm?"
O director fez um trejeito impaciente.
"Isso não sei nem me interessa", retorquiu, voltando a recostar-se na cadeira e devolvendo a cabeça à sombra de modo a ficar com o perfil recortado pela penumbra. "Eu não sou polícia. Não passo de um quadro da administração colonial que está a gerir os Serviços Provinciais de Saúde, nada mais. Agora, eu não nasci burro e sei muito bem que o envolvimento com pessoas ligadas à Frelimo é coisa que só pode dar sarilho."
"Desculpe, mas não estou a perceber. Qual é exactamente a natureza do sarilho em que me meti?"
Floriano pegou nos papéis que tinha estado a ler quando o seu convidado entrou e folheou-os, os olhos a saltitar pelos parágrafos.
"O sarilho, caro doutor", disse, mantendo a atenção presa nos papéis, "é que o doutor Abreu fez um relatório sobre um acto de insubordinação da sua parte enquanto estava de serviço no hospital e expôs ainda acontecimentos posteriores relacionados com esse acto, incluindo o comportamento sedicioso do enfermeiro Nélson, claramente influenciado por si." Levantou os olhos para o subordinado. "É esse o sarilho."
José fez um gesto a indicar os papéis.
"O doutor Abreu explicou que chamou preto ao meu convidado?"
O director dos Serviços Provinciais de Saúde arregalou os olhos, claramente apanhado de surpresa, mas logo readquiriu a expressão impassível que exibia desde o início da reunião.
"Não explicou, nem isso interessa."
"Ai interessa, interessa!"
Floriano pousou de novo as folhas na esquina da secretária e cravou os olhos glaciais no seu interlocutor, como adagas a dissecarem uma vítima.
"O que interessa, caro doutor Branco", rosnou com um ranger de dentes, "são quatro factos."
Exibiu quatro dedos, como se cada um deles fosse um facto. "Primeiro, o senhor estava a confraternizar no hospital com um elemento subversivo durante as horas de expediente. Segundo, o seu superior hierárquico expulsou esse elemento das instalações, como era aliás o seu dever, e o senhor, num acto público de insubordinação, abandonou o seu posto. Terceiro, o enfermeiro Nélson, claramente influenciado pela sua atitude, recusou-se a trabalhar durante dois dias. Quarto, a sua mulher, que é directora da farmácia do estado e que tem responsabilidades acrescidas por via dessas suas funções, não cumpriu uma ordem do director do hospital para aviar uns medicamentos. Ou seja, por sua causa instalou-se no hospital distrital de João Belo um clima de insubordinação que, como calcula, a administração provincial não pode ignorar nem tolerar."
"No hospital onde eu trabalho não há insubordinação", retorquiu o médico. "Há é prepotência e racismo. "Eu estava a conversar com o meu amigo durante a minha pausa para o café e depois de já ter cumprido as minhas obrigações. Saí do hospital porque, como deve calcular, entre os meus deveres profissionais não consta a obrigação de pactuar com as má-criações do senhor director. O
senhor enfermeiro Nélson fez greve? Fez, sim senhor! E fê-lo porque testemunhou um acto de discriminação racista que, além de ser imoral, me parece ilegal. E a senhora directora da farmácia não aviou os medicamentos? Fez ela muito bem! O senhor director, e não inocentemente, deu-lhe a ordem mas não lhe entregou a requisição. Queria que ela aviasse os medicamentos sem requisição?
Aí sim, estaria a infringir as regras e acabaria punida por isso."
O superior hierárquico manteve-se quieto a fitá-lo, os dedos enlaçados sobre a secretária.
"Está a insinuar que o doutor Abreu quis montar uma armadilha à sua mulher?"
"Eu não estou a insinuar nada, estou meramente a expor o que aconteceu", insistiu José. "Desde que percebeu que eu era amigo do doutor Rouco que o senhor director tem assumido atitudes que me parecem destinadas a provocar uma ruptura. Na própria manhã em que ele expulsou o doutor Rouco do hospital, vi-o escondido na enfermaria a observar o meu trabalho. Só posso presumir que estava a espiar-me para ver se eu chegava ou não a horas, se cumpria ou não escrupulosamente as minhas obrigações."
Floriano curvou os lábios, num trejeito de quem não via qualquer problema no que acabara de ouvir.
"Acho normal", disse. "Fiscalizar e ter mão no pessoal é, que eu saiba, uma obrigação do director."
"Não digo que não", admitiu o médico. "Mas por que motivo só me controla a mim? E porque só o faz desde que se apercebeu de que eu era amigo do doutor Rouco? E por que razão começou também a implicar com a minha mulher? À falta de melhor explicação, só posso concluir que andava era a ver se me conseguia apanhar em falso."
"Isso não sei nem quero saber", impacientou-se o director dos Serviços Provinciais de Saúde.
"Essa conversa, se o senhor a quiser ter, não a tenha comigo, que não sou polícia. Tenha-a com o governador, tenha-a com o ministro, tenha-a com quem quiser, mas não comigo. A mim cabe-me dirigir estes serviços, fazer cumprir os regulamentos, articular-me com os directores dos hospitais e obedecer a ordens superiores."
"Com certeza."
Abriu uma gaveta com um gesto brusco.
"E é justamente por ter recebido ordens superiores que o chamei cá a Lourenço Marques." Tirou do interior da gaveta uma folha dactilografada. "Esta é a sua guia de transferência." Estendeu-lhe a folha. "O senhor vai sair de João Belo."
José pegou na folha e olhou de relance para as primeiras linhas; o seu nome encontrava-se referenciado em maiúsculas impressas a tinta vermelha.
"Posso saber com que base é que..."
"São ordens superiores."
O médico assentou a folha no regaço e, como se estivesse distraído, pousou o olhar nas flores alaranjadas que coloriam uma acácia rubra para além da janela.
"E se eu recusar?"
"Não pode recusar. O senhor doutor, quando foi integrado na administração ultramarina, assinou um documento a comprometer-se ir para onde fosse necessário. Com certeza que se lembra disso..."
"Hmm-hmm", assentiu num murmúrio ausente."Também o enfermeiro Nélson será transferido, neste caso para o posto do Guijá."
José permaneceu impassível, com os olhos fixos no exterior, como se tudo aquilo lhe fosse já indiferente. Apesar da pose, porém, fervia por dentro. Ainda ponderou a possibilidade de argumentar, contrapondo com o facto de ter rubricado o documento com um espírito diferente, em que o critério para as transferências era o da necessidade de serviço, não o de uma punição, e quis defender o enfermeiro, que tal como ele se indignara contra a iniquidade do tratamento a que Domingos fora sujeito no hospital. Mas conteve-se; já nada daquilo lhe parecia relevante. O que tinha de acontecer iria acontecer. O mais importante era perceber o que o esperava.
"Vou para onde, posso saber?"
"Tete."
Movendo a cabeça com lentidão, como se despertasse de um sono letárgico, virou o rosto para o mapa que se encontrava plantado ao lado da secretária.
"E lá para cima, não é?"
Floriano voltou a erguer-se do lugar e aproximou-se do mapa.
"Sim, é no Norte." Indicou um ponto a meio do fio azul de um rio. "Aqui mesmo. Nas margens do Zambeze."
O médico deixou os olhos pregados ao ponto que assinalava Tete, ponderando se devia fazer a pergunta que tinha em mente. Esteve para recuar, uma vez que a matéria era sensível, mas acabou por decidir avançar; se iam para o Norte, tinham de saber o que os esperava.
"Não foi nessa zona que decretaram agora o estado de emergência?"
"Quem lhe disse isso?"
"Está no jornal."
O director apontou uma linha azul que serpenteava pelo mapa e desaguava a norte da Beira.
"O Zambeze é aqui", confirmou. "E, que eu saiba, está tudo calmo. O que apareceu no jornal não passa de mentiras propagadas para criar instabilidade entre as pessoas. Nós não temos de nos ocupar com estas coisas; temos é de fazer o nosso trabalho."
O subordinado respirou fundo; essa também era, em boa verdade, a sua opinião. Além disso havia outras preocupações a agitar-lhe o espírito.
"E a minha mulher?"
O director voltou a sentar-se e deitou a mão ao interior da mesma gaveta, que permanecera aberta. Retirou uma segunda folha dactilografada e estendeu-lha; tratava-se evidentemente de uma outra guia de transferência.
"Desta vez ela vai consigo", anunciou com o tom paternal de quem concede uma benesse. "Mas da próxima segue cada um para o seu lado, percebeu?" Estendeu o dedo, à maneira de um professor a admoestar um aluno malcomportado. "Não se voltem a meter em política!"
O ralhete estava dado e o aviso feito. Sentindo-se injustiçado, José teve de fazer um esforço para não protestar. Ainda pensou em dizer que nunca se metera em política nem era sua intenção fazê-
lo, mas percebeu que era inútil. Precisava de se concentrar no essencial, e o essencial estava impresso no mapa.
"Porquê Tete?", perguntou, a atenção voltando-se de novo para a carta de Moçambique. "Não é para aí que se envia quem se quer punir?"
O director confirmou com a cabeça.
"E um posto maningue chato." Suspirou, talvez no único momento de compaixão que se permitiu. "Lamento, mas são ordens superiores. Devo preveni-lo, caro doutor, de que Tete goza de facto de uma péssima reputação."
"Em que sentido?"
Floriano fechou a gaveta e ergueu-se do seu lugar, indicando desse modo que a reunião estava a terminar. Ajeitou o casaco e lançou um derradeiro olhar ao mapa.
"Chamam-lhe o cemitério dos brancos."
Foi à volta de uma bola de voleibol que Diogo cresceu no Rego da Agua, uma lugarejo de Vila Nova de Gaia conhecido por ser o centro social da freguesia da Madalena. Começou a sua vida de voleibolista pouco depois de voltar de Angola, quando se inscreveu na equipa que o Orfeão da Madalena decidira formar. O clube disponibilizou um campo a céu aberto para os treinos do Toneca Melro, o rijo serralheiro que fora colono em Moçambique e que se tornou treinador dos miúdos nas horas vagas depois do trabalho.
Era um grupo formidável, o do Orfeão da Madalena. Os garotos treinavam à noite com afinco num terreno de saibro e Diogo batia com tanta força que a bola voava amiúde para o quintal do Veloso, um canalizador que plantara repolhos atrás de casa.
"Vai buscar!", ordenava-lhe o mestre Melro, sempre em pé junto à rede. "Da próxima quero melhor pontaria!..."
E lá ia Diogo galgar o muro e esgueirar-se pelo quintal do vizinho para recolher a bola, saltarinhando entre as couves e as alfaces do Veloso.Aos treinos sucederam-se os jogos e depressa se tornou claro que as figuras principais do seis-base eram Angelino Melro, o filho do treinador, que primava no passe, e o próprio Diogo, a grande estrela da companhia, graças à capacidade de elevação e remate, que se tornou lendária por aquelas paragens.
Angelino era um rapaz de olhar baço e, tal como Diogo, de poucas falas. Esse traço comum, aliado ao facto de ambos terem vivido em Africa, criou entre eles um laço que os aproximou; no Rego da Agua todos sabiam que onde se via um logo aparecia o outro.
Guiada pelos dois craques e sob a batuta sagaz do mestre Melro, a carreira do Orfeão foi meteórica, com a equipa a impor derrotas aos adversários que sucessivamente lhe apareciam pela frente. Começou com o Santo Tirso e terminou com a Académica de São Mamede. No final, o Orfeão da Madalena tornou-se o inesperado Campeão Regional de Aspirantes e ascendeu ao nível seguinte.
Todos na equipa tinham consciência de que o Campeonato Nacional de Aspirantes se tratava de prova a doer e que os adversários seriam do mais forte que havia. Os mais temíveis eram os nomes maiores do desporto do país, Benfica e FC Porto. Como poderia o pequeno Orfeão da Madalena sobreviver ao embate com tais gigantes? O assunto foi acaloradamente debatido nos quatro cafés do Rego da Agua, onde todos se mostravam convencidos de que, pesasse embora o inegável valor do mestre Melro e dos "nossos rapazes", o mais certo era a equipa levar cabazada atrás de cabazada e terminar no último lugar do campeonato.
O sorteio do calendário de jogos era, apesar disso, aguardado com expectativa nas instalações do Orfeão. No grande dia os homens do Rego da Agua convergiram para o local e ficaram a aguardar as notícias, os mais novos com garrafas verdes de Sumol a balouçarem-lhes nas mãos, os mais velhos a languescer sobre as mesas enquanto dedilhavam pacientemente copinhos de bagaço que iam esvaziando aos beijinhos.Por volta do meio-dia tocou o telefone e o mestre Melro foi atender. Era o presidente da agremiação, que tinha ido a Lisboa participar no sorteio. Diogo discutia na altura com Angelino qual seria o melhor adversário para a estreia, mas, no momento em que a conversa telefónica começou, todos voltaram para ali a atenção, suspenderam a respiração e, perscrutando o rosto do treinador colado ao aparelho, esperaram o veredicto.
A fisionomia do mestre Melro permaneceu no entanto inescrutável ao longo de toda a chamada.
O treinador limitava-se a uns secos "sim, senhor presidente" e "muito bem, senhor presidente", pelo que tiveram de suportar a impaciência que os consumia como lenha em lume brando e aguardar a conclusão do telefonema.
Ao fim de um minuto interminável, o mestre Melro desligou o telefone e encarou os rostos expectantes com a face cerrada.
"É o Benfica."
Vista da pequena janela do Dakota em voo de aproximação à pista, Tete não passava de um insignificante aglomerado de casas que o rio, num menear elegante pela savana amarela, contornava como se não quisesse perturbar a cidade. O avião tocou no solo, saltou e estabilizou, rolou pela pista com o nariz voltado para cima, como era imagem de marca dos Dakota, e imobilizou-se na placa diante da pequena torre de controlo.
Só quando a porta se abriu e os passageiros começaram a desaguar para a escada entretanto colada ao aparelho é que o casal Branco percebeu que não haviam chegado a um sítio normal. Um hálito ardente, escaldante como o bafo intenso de um forno, invadiu o interior do avião e desencadeou um coro de suspiros entre os passageiros alinhados no corredor até à porta.
"Não há dúvida", observou um viajante indiano com um sorriso resignado, como se aquela fornalha tivesse uma assinatura inconfundível. "Chegámos a Tete!"
José e Mimicas entreolharam-se, chocados. Já haviam sido avisados de que Tete era quente, mas
assim? Não imaginavam que pudesse haver no planeta, e muito menos em Moçambique, um sítio onde as temperaturas fossem as de semelhante fornalha.
"Puf!", bufou Mimicas. "Que inferno!"
O marido sentia-se estupefacto com o calor; parecia-lhe que o ar poderia a todo o momento entrar em combustão e pegar fogo. Saíram do Dakota aos tropeções e sentiram toda a força do impacto do sol a tostar-lhes a pele; era como se uma jyelha incandescente os queimasse com o seu fôlego. Apanhado de surpresa, José largou um olhar desconcertado, quase suplicante, na direcção da hospedeira da DETA que se despedia dos passageiros.
"Isto é sempre assim?"
A hospedeira encolheu os ombros e manteve os dentes arreganhados num sorriso profissional.
"Bem-vindos a Tete!"
O fedor a transpiração enchia a apertada sala onde aguardaram as malas. O terminal era incrivelmente quente, mas pelo menos ali estavam protegidos do ardor inclemente do sol. Viram as malas serem transportadas pela pista e despejadas na sala das chegadas. Pegaram nas deles e abalaram para o átrio, onde uma multidão aguardava os recém-chegados; era um mar de rostos inquisitivos, brancos, indianos, mulatos e negros, todos suados à espera que saísse quem vinham buscar.
"Doutor Branco!"
José voltou o rosto na direcção de onde viera a voz que o interpelara e reconheceu o homem que se aproximava; era um sujeito pequeno, com o cabelo curto e pequenos óculos rectangulares a enquadrar-lhe um olhar arguto, gelado e afiado, forjado no fogo de segredos inconfessáveis.
Tratava-se do seu companheiro de viagem no Infante D. Henrique, mas já se haviam passado três anos e, apesar do esforço de memória, não conseguiu lembrar-se imediatamente do nome. "Ah!
Olá!"
O homem apertou-lhe a mão e cumprimentou Mimicas.
"Lembra-se de mim?""Claro. Claro que sim." Abanou a cabeça, como se tentasse sacudir o cérebro e desencravar o nome de uma gaveta da memória. "O benfiquista ilustre que jantava connosco no paquete. Como me poderia esquecer? Mas confesso que o nome... enfim!..."
"Aniceto", apresentou-se. "Inspector Aniceto Silva."
"É isso!", exclamou. "Peço desculpa pelo meu lapso. O senhor é da PSP, não é?"
Os lábios finos de Aniceto esboçaram o fio de um sorriso, não mais do que um esgar sem humor.
"Sou polícia, de facto", confirmou, limpando com um lenço bordado as gotas de transpiração que lhe serpenteavam pela testa. "Mas na altura da nossa bela viagem, e considerando a presença na mesa de um indivíduo relacionado com certos meios da oposição, achei por bem não partilhar mais pormenores das minhas funções profissionais. Mas não pertenço aos quadros da PSP. Sou inspector da PIDE e estou agora responsável pelo posto de Tete."
A revelação apanhou José de surpresa. Sabia que a PIDE, a Polícia Internacional de Defesa do Estado, tinha a responsabilidade de vigiar, intimidar e prevenir quaisquer actos que pusessem em causa o regime. Quem criticasse Salazar ou o governo podia ser preso e maltratado pela PIDE, de que se dizia que, em última instância, chegava a assassinar pessoas. Verdade ou não, o facto é que a sua reputação se tornara temível. Ter um pide à espera num aeroporto não era por isso, e com toda a certeza, das experiências mais desejadas por qualquer viajante.
"Ah!... O senhor é... da PIDE?!", gaguejou. "Há... há algum problema?"
O rosto do homem, até aí amigável, endureceu de um momento para o outro.
"O senhor está preso!"
A ordem foi dada num tom firme e seco. O médico vacilou, abalado com o que ouvira, sem perceber o como nem o porquê. A mulher agarrou-se a ele, como se pudesse impedir o que inevitavelmente se sucederia a uma ordem assim dada por uma pessoa daquelas.
"Sou acusado de... de quê?"
Aniceto soltou uma gargalhada ruidosa e, num gesto apaziguador, pousou-lhe a mão no ombro.
"Eh, pá! Esta resulta sempre!"
"Perdão?"
"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, doutor!", revelou o inspector da PIDE
com um esgar divertido. "Sempre que digo isto, as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."
O casal acompanhou a risada com uma gargalhada breve e nervosa, embora sobretudo aliviada.
"Não há dúvida", observou José, balouçando afirmativamente a cabeça. "O senhor é impagável!"
Aniceto ainda se ria.
"E boa, não é? Nunca falha!" Mais gargalhadas. "Vocês haviam de ver a vossa cara!"
Deixando o homem da PIDE gozar o momento, o casal suspirou de calor e alívio e voltou a pegar nas malas. Fizeram ambos tenções de prosseguir caminho, embora não soubessem exactamente para onde. Estaria alguém do hospital à sua espera? Haveria táxis lá fora? Para onde se deveriam dirigir?
"Bem, senhor inspector", disse José. "Vamos andando. Foi um prazer..."
"Espere aí, doutor", travou-o Aniceto. "Eu vim cá para vos levar a casa."
"O senhor?!"
"Sim, eu. Porquê? Não me diga que tem alguma coisa contra mim!..."
"Claro que não", apressou-se o médico a esclarecer; a última coisa que queria era ofender um pide. "Mas estava à espera que houvesse aqui alguém do hospital ou dos Serviços de Saúde. Ser um inspector da PIDE a fazer-nos a recepção... enfim, não é normal!"
"Ó doutor, não estamos na Metrópole!", exclamou o inspector. "Isto é uma terra pequena e temos de nos ajudar uns aos outros. O director do hospital teve de ir ao Zobué e não pôde vir. Vim eu."
O calor era insuportável e desfez qualquer esboço de resistência. O casal só queria sair dali e chegar à sua nova casa.
"Muito bem", aceitou José. "Vamos para onde?"
Aniceto Silva deitou um olhar às malas que os dois carregavam.
"Eh, pá. Isso parece pesado." Voltou-se para trás e ergueu a mão. "Ó Chico! Anda cá!"
Um indivíduo alto e muito encorpado aproximou-se deles; tinha ar de andar pelos quarenta e tal anos, talvez até cinquenta. Percebia-se que se tratava de um homem rude, a face sulcada por rugas de quem já se havia confrontado com o pior da vida.
"Este é o meu melhor operacional", anunciou o inspector quando o matulão se chegou a eles. "O
Francisco Latino andou na guerra de Espanha e noutras confusões ainda piores. O doutor já o conhece?"
Francisco fitava José com atenção, como se o estudasse.
"Não", disse o médico. "Nunca tive esse prazer."
"No entanto, o Chico conheceu os seus pais", declarou Aniceto. "Nunca lhe falaram dele?"
A revelação suscitou um esgar de admiração no recém-chegado.
"A sério? Quando é que se conheceram?"
Francisco respirou fundo e mudou de perna de apoio, como se o assunto o deixasse pouco à vontade.
"Foi há muito tempo", disse com secura, manifestamente sem vontade de se alongar no tema.
"Histórias antigas, que já não interessam a ninguém."
"Ah, eu cá acho as histórias antigas fascinantes", atalhou o inspector da PIDE. "Aliás, também eu conheci os seus pais."
Mais uma novidade a surpreender José.
"Não me diga!"
"É verdade! Cruzámo-nos em Lisboa e em Penafiel." Indicou o subordinado com a cabeça. "Mas, como diz aqui o Chico, são histórias antigas, que, apesar de curiosas, já não interessam a ninguém."
Apontou para as malas. "Chico, arranja aí quem nos traga as malas dos senhores doutores!..."
A viagem do aeroporto, situado em Chingodzi, até Tete foi relativamente curta, mas demorada.
A estrada era de terra batida avermelhada. Parecia pó de tijolo, varrida por sucessivas nuvens de poeira que as viaturas erguiam a caminho da cidade, como se os pneus fossem tubos de escape. A paisagem apresentava-se plana e seca, dominada por árvores gigantes com enormes raízes e troncos largos e rudes, que davam a impressão de músculos em esforço. As copas estavam despidas, com os ramos nus espetados em todas as direcções; parecia um emaranhado de arames.
Os dois Branco nunca haviam visto coisa igual.
"Que árvores são estas?", quis saber Mimicas.
O inspector fixou a atenção numa árvore monumental mesmo ao lado da estrada.
"Embondeiros."
Além dos embondeiros, plantados como esculturas gigantes até onde a vista alcançava, uma outra característica distinguia a paisagem: ao longo da berma da estrada viam-se ocasionalmente pequenos montes cónicos alaranjados, alguns maiores do que uma pessoa, e que os recém-chegados presumiram tratar-se de construções de formigas.
"Térmitas", corrigiu Aniceto Silva. "Chamam-lhes morros de muchém. Não se metam aí. Noutro dia um gajo passou um tractor por cima de um desses morros e as térmitas saíram lá de baixo aos milhões e comeram-no vivo."
"Está a brincar!..."
"Se eu não tivesse visto o que dele restou, não acreditaria."
Impressionada com a história e incomodada com o calor que a sufocava dentro da viatura, Mímicas abriu a janela e pôs a cabeça de fora. Tentava refrescar-se ao vento, mas o ardor cruel do sol e a poeira asfixiante obrigaram-na a mudar de ideias.
"Que calor horrível!", queixou-se. "Sabe qual é a temperatura?"
O inspector virou a cabeça para trás.
"Estão quase cinquenta graus."
A revelação deixou os dois recém-chegados literalmente boquiabertos.
"Cinquenta?!"
"A sombra", esclareceu Aniceto. "Porque ao sol está muito mais calor." Fez um gesto a indicar a paisagem em redor. "Tete é o ponto mais quente de África a sul do equador. Pior só o deserto do Sara. Às vezes o calor é tanto que penso que o Zambeze está prestes a entrar em ebulição."
"Que horror!"
O inspector da PIDE passeou os olhos pela paisagem seca.
"Iá, as coisas aqui são maningue agrestes", reconheceu. "Mas é um lugar com história.
Livingstone passou por Tete. Capelo e Ivens também." Suspirou com nostalgia. "Vocês chegaram à África profunda."
A estrada inclinou-se para baixo e, logo adiante, depararam com vários automóveis estacionados desordenadamente, alguns mesmo à beira das águas serenas e lamacentas do rio. O
Land Rover da PIDE imobilizou-se e os ocupantes apearam-se, juntando-se à multidão que aguardava perto dos automóveis ou à sombra das micaias. O largo caudal do Zambeze cortava a estrada, separando os carros do casario que se estendia pela outra margem; evidentemente a cidade de Tete.
"Que se passa?", perguntou José. "O que estamos aqui a fazer?"
O inspector indicou uma estrutura que deslizava pachorrentamente a meio do rio; parecia uma jangada metálica, larga e grotesca, e vinha apinhada de automóveis e com um camião.
"Estamos à espera do batelão", explicou. "E a única maneira de chegar a Tete."
Permaneceram longos minutos na margem a observar a aproximação e a manobra de acostagem do batelão. O ardor ao sol era tão infernal que até o rio parecia transpirar. Uma vez ancorada a estrutura, os automóveis e o camião saíram e os veículos que se encontravam na margem do Matundo, do lado oposto à cidade, entraram para os lugares que vagaram, dispondo-se numa arrumação milimétrica ao longo da plataforma flutuante.
Quando o parqueamento ficou lotado, a passadeira das viaturas foi retirada e a embarcação reiniciou a lenta travessia do Zambeze. O ar tornou-se mais fresco, graças à brisa fluvial que soprava refrescante e rente às águas, e os passageiros aproveitaram aquele bálsamo para se abeirarem das bordas da estrutura e contemplarem a paisagem, tranquila no meio do rio e embalada pelo ronronar monótono e ritmado do motor do batelão.
"Estive a observar a documentação sobre o hospital e reparei numa coisa estranha", observou José. "O director é um cirurgião."
Aniceto Silva assentiu.
"Assim é, de facto. O que tem isso de estranho?"
"Os regulamentos dos Serviços Provinciais de Saúde estabelecem que o director de um hospital é obrigatoriamente um clínico geral. Só na ausência de um clínico geral pode um médico de especialidade assumir a direcção."
"O doutor Martins, embora cirurgião, é o único médico do hospital."
José inclinou a cabeça.
"Era", disse, sublinhando a palavra. "Agora também estou cá eu. E sou de clínica geral."
O inspector da PIDE retirou os pequenos óculos do rosto e lançou um bafo sobre as lentes, humedecendo-as. Depois esfregou-as com o seu pequeno lenço bordado.
"Estou a ver onde quer chegar", murmurou enquanto limpava as lentes. "Acontece que as suas amizades, mais os acontecimentos em João Belo, constituem um obstáculo sério a que, neste caso, se aplique o regulamento. Por instrução superior ficou determinado que o doutor Martins continuará a ser o director, apesar do que o regulamento estabelece." Guardou o lenço e voltou a encavalitar os óculos no nariz. "Espero que não veja inconveniente nisso."
O médico encolheu os ombros.
"Nenhum", disse. "Queria era perceber a situação."
Tete revelou-se uma cidade tão poeirenta quanto os seus arredores. As ruas não eram mais que passagens de terra batida e as pessoas andavam por toda a parte descalças ou de sandálias. Um aroma a erva queimada parecia pairar em permanência no ar, tão omnipresente quanto a poeira fina e o bafo de calor seco e impiedoso.
O Land Rover da PIDE passou pelo cruzamento do Hotel Zambeze e estacionou no início de uma rua que subia em curva. O inspector Silva saltou para fora, fazendo sinal aos recém- chegados e a Francisco de que tirassem as bagagens.
"O hospital e a farmácia são no alto desta rua", revelou. "Como vêem, vão ficar os dois relativamente perto do trabalho."
O casal Branco contemplou o edifício assinalado pelo inspector. Tinha dois pisos, com a fachada em curva ocupada por uma longa varanda. Seguiram o seu anfitrião, que os conduziu por umas escadas do quintal para o primeiro andar.
"É aqui."
O apartamento era pequeno, mas servia perfeitamente. Dispunha de um grande quintal coberto de árvores de frutos, cujas copas forneciam amplas zonas de sombra, e a varanda arqueada tinha uma vista panorâmica para a rua.
"Presumo que se sintam cansados da viagem", observou Aniceto Silva. "Vou deixar-vos instalarem-se e repousar um bocadinho. Depois o que gostariam de fazer? Querem passear ou conhecer o hospital?"
"Não se incomode connosco."
"Não incomodam nada. Prometi ao doutor Martins que, considerando a ausência dele, vos acolheria com todas as regras da hospitalidade e vou cumprir a minha missão até ao fim. Ele deu instruções à enfermeira-chefe de que vos mostrasse o hospital e a farmácia, mas vocês é que decidem o que querem fazer."
Os dois entreolharam-se. A viagem fora cansativa, mas a verdade é que não lhes apetecia nada ficar fechados em casa. Se tinham curiosidade de conhecer os locais onde iriam trabalhar, porque não aproveitar o convite?
"Então está bem", concordou José. "Descansamos uma fiorita e depois vamos lá espreitar o hospital."
Na ausência do director, Aniceto Silva mostrou-se meticuloso nas suas responsabilidades de anfitrião. Depois de dispensar Francisco, acompanhou-os nessa tarde numa primeira visita ao hospital e à farmácia. Subiram a rua onde já residiam e desembocaram numa rotunda poeirenta no alto da colina.
Um bonito edifício branco dominava a rotunda com uma escadaria central e uma varanda ao longo de toda a fachada, as quinas acima da porta, uma bandeira portuguesa a esvoaçar num mastro e a palavra Hospital acima das armas lusitanas. O Land Rover contornou um círculo ajardinado e estacionou diante da escadaria. No momento em que saíram da viatura viram a figura minúscula de uma freira em hábitos azul-claros descer na sua direcção com um sorriso acolhedor.
"Bien venidos a Tete!", saudou-os ela numa mescla bizarra de português e castelhano. "Chamo-me Lúcia y soy la enfermei- ra-chefe do hospital. El doutor Martins está no Zobué y pediu- -me para hacer las honras da casa. Bien venidos! Espera-vos mucho trabajo."
"Uma espanhola por aqui?", admirou-se José.
"Posso ter nascido en Espana", empertigou-se a irmã Lúcia, "pêro soy una cidadã dei mundo."
A freira espanhola guiou-os pelos corredores do hospital, mostrando-lhes as instalações e as diferentes valências. Por toda a parte cheirava a álcool e éter, odor familiar para quem frequentava aqueles ambientes desde os tempos da faculdade. Começaram pelas enfermarias, passaram pelas urgências e percorreram a radiologia, o laboratório de análises, a estomatologia, a fisioterapia e a reanimação.
José sentia-se surpreendido por ver um hospital português apetrechado com tantas valências numa terriola perdida no meio de África e fez a observação em voz alta.
verdad", concordou a irmã Lúcia. " Pero ainda vamos tener mais valências."
"A sério?"
"No próximo ano queremos abrir la maternidade."
"Onde fazem agora os partos?"
A freira fez-lhes sinal de que a seguissem pelo corredor.
"Los partos normales são feitos na enfermaria", disse, conduzindo-os a uma sala com uma mesa no centro. " Pero las cesarianas são aqui, em el bloco operatório." A sala cheirava a desinfectante e havia poderosas lâmpadas sobre a mesa de operações. el único bloco operatório dei distrito", revelou a espanhola com uma mistura de orgulho e desânimo. "El director trabaja aqui."
O médico recém-chegado contemplou a sala, surpreendido com o que vira.
"Sendo até agora o único médico do hospital, o senhor director conseguia responder a todas as necessidades?"
A irmã Lúcia estalou a língua e fez uma careta que lhe enrugou a face larga.
"D/os mio, nem mismo com cien médicos seria posible dar respuesta a todas las necessidades."
Fez uma pausa, buscando a palavra que melhor exprimia o que pensava. " El trabajo é colossal."
O jantar decorreu à luz de lanternas no quintal da casa de Aniceto Silva. O director distrital da PIDE convidou para a ocasião as principais figuras de Tete, como o governador, o intendente, o director das Obras Públicas, o director da Missão de Fomento e Povoamento do Zambeze e o comandante da polícia, mais as respectivas esposas. De todas estas figuras, apenas o chefe da PSP e a mulher eram da idade do casal recém- chegado, pelo que José e Mímicas se aproximaram mais do tenente António Trovão e da sua Carolina, uma rapariga alta e vistosa que não parava de embalar um bebé.
"O meu Nuno nasceu aqui em Tete", disse ela, beijando-o na fronte. "Mas, Deus me perdoe, não me volto a sujeitar arestas condições. Tive o parto na enfermaria!"
"Pois é", assentiu o médico. "Mas disseram-me que no próximo ano vamos estar apetrechados com uma maternidade."
"Mesmo assim! Se tivermos mais algum filho, sabem o que faço? Meto-me no avião e vou a Lourenço Marques dar à luz!"
"Não sei se a DETA deixa uma mulher em estado de gravidez tão adiantado entrar no avião", contrapôs José. "Creio que existem umas regras para essas situações, de modo a impedir partos lá em cima."
O tenente António Trovão, que acompanhava a conversa em silêncio, remexeu-se na cadeira.
"Quem disse que a DETA não deixa?", interveio. "Ai deixa, deixa!", exclamou com um sorriso, puxando dos galões de chefe da PSP. "Nem que eu tenha de dar ordem de prisão ao comandante do avião!"
No final desse longo primeiro dia, e considerando que estava cumprida a sua missão de acolhimento, o inspector Silva levou o casal Branco à sua nova casa. Despediu-se à porta e rodou sobre os calcanhares, metendo-se no carro.
"Espere!", chamou José.
Aniceto Silva ligava já a ignição e espreitou para fora.
"Passa-se alguma coisa?"
O médico inclinou-se sobre a janela do jipe e examinou-lhe a face. Depois apontou-lhe para o meio da testa.
"Tem aqui um sinal de que não estou a gostar nada."
"Um sinal?"
José voltou-se para a mulher.
"Ó Mímicas, já viste isto?"
A farmacêutica aproximou-se e, enfiando a cabeça pela janela, quase colou os olhos preocupados ao rosto do inspector da PIDE.
"Iá, pois é! O coiso está-lhe a coisar a testa!..."
"O que se passa?", inquietou-se Aniceto. "Há algum problema?"
O médico manteve a atenção presa na testa, perscrutando-a com cuidado profissional.
"Ó inspector, já alguma vez foi visto por um oncologista?"
Aniceto Silva arregalou os olhos, o terror a trepar-lhe pelo rosto.
"O quê? Um onco... um oncologista?" Apalpou a área da testa que os seus dois interlocutores observavam fixamente. "Porquê, doutor? Porque... porque diz isso?"
"Não sei não!", murmurou José com uma careta, como se falasse consigo mesmo. "Não é por nada, mas parece-me que isto é um tumor!..."
"Ai é, é!", confirmou Mimicas. "E dos malignos! Já vi pacientes coisarem-se com tumores assim."
Abanou a cabeça com uma expressão condoída. "Ah, coitado!"
O marido acompanhou-a no gesto de cabeça.
"Isto é muito mau."
Ainda sentado dentro do Land Rover, Aniceto vacilou no assento, chocado com o que escutava.
"O quê? O quê?"
Com um olhar a transbordar de compaixão, o médico pousou-lhe a mão solidária sobre o ombro.
"Esta resulta sempre."
"Como?"
José piscou-lhe o olho.
"O senhor acabou de ser vítima da minha piada favorita, inspector!", afirmou, saboreando a vingança. "Sempre que digo estas coisas as pessoas ficam pálidas! Vá-se lá saber porquê!..."O dia do jogo foi emocionante no Rego da Água, sobretudo quando os rapazes do Orfeão viram aparecer no cruzamento diante do clube o autocarro vermelho e branco com a grande águia dourada. Era coisa imponente de se ver! Viera da longínqua capital, fizera trezentos quilómetros, andara durante seis horas pela Nacional 1 - tudo para ir ali jogar com a equipa da Madalena. Que emoção!
Ainda mais intimidante foi observar os jogadores da formação adversária a descerem do veículo; vinham altivos e impecavelmente equipados de encarnado-vivo, a águia ao peito a dizer Et pluribus unum! e o símbolo da Adidas ao lado. Que contraste com os do Orfeão, onde tudo era cosido pelas mães em casa e cada um se equipava à sua maneira; uns de amarelo, outros de verde, Diogo de branco.
Mas o que mais impressionou a rapaziada anfitriã foi o equipamento que os jogadores do Benfica traziam nos pés.
"Já viste aquelas sapatilhas?", perguntou Angelino, incapaz de tirar os olhos delas.Os adversários calçavam o último grito da moda na modalidade, sapatilhas de marca tão sofisticadas que apenas se encontravam nas fotografias dos jornais e das revistas da especialidade.
"Então não?", disse Diogo. "Onde as terão arranjado?"
Angelino deu-lhe uma forte palmada nos ombros, que quase o desequilibrou.
"Isto é o Benfica, grande morcão! Eles até têm o Eusébio!"
"Sim, mas onde terão arranjado as sapatilhas? Nunca as vi à venda em parte nenhuma. Nem em Cedofeita!..."
O amigo não tirava os olhos das sapatilhas dos recém-chegados, que se desequipavam já para o aquecimento.
"Isto só há à venda na Alemanha", sentenciou Angelino. "E preciso muita massa para as comprar."
O mestre Melro chamou o seu pessoal e a equipa foi aquecer no outro lado do campo. Os jogadores do Orfeão procederam a corridas e toques de bola, mas ao longo de todo o exercício mantiveram a cabeça voltada para os adversários, intimidados com o seu ar aristocrático, mais o equipamento catita, o que irritou o treinador.
"Porque estais a olhar para ali, carago?", rugiu mestre Melro. "Por acaso vedes entre aqueles paneleiros algumas gajas boas?"
O jogo começou mal. Diogo estava nervoso e falhou alguns blocos defensivos. Também os tempos de salto não lhe saíam bem, perdia ângulo para aplicar as suas poderosas direitas, isto apesar de os passes de Angelino apresentarem a perfeição do costume. Por tudo isto, o Benfica ganhou com facilidade o primeiro set e o craque do Orfeão teve de ouvir uma descompostura do treinador.
"O que tens tu hoje, canudo? Estás com medo daquelas meninas? Faz favor de ir para o campo e jogar o que sabes!"
Mas o segundo set também começou mal, com Diogo a falhar mais dois remates e o Benfica a somar pontos. A cabazada anunciada estava já em curso e os espectadores da casa mergulhavam em depressão. Que vergonhaça! Mas o pior eram os efeitos daquela razia nos próprios jogadores do Orfeão, e em particular no seu maior craque. Além do nervosismo, as dúvidas apoderavam-se do jogo de Diogo, roubando-lhe o que lhe restava da confiança. O adversário acumulava pontos atrás de pontos até chegar ao momento crítico do set.