BRIENNE


O septo ficava sobre uma ilha elevada a meia milha da costa, onde a selvagem foz do Tridente se alarga ainda mais para beijar a baía dos Caranguejos. Mesmo da costa sua prosperidade era aparente. Sua encosta estava coberta de plantações em terraços, com viveiros de peixes abaixo e moinhos de vento acima, suas pás de madeira e lona girando lentamente com a brisa da baía. Brienne podia ver ovelhas pastando na encosta e cegonhas andando nas águas rasas próximas ao porto das balsas.

— As Salinas estão do outro lado da água, — disse o Septão Meribald, apontando para o norte através da baía. — Os irmãos vão nos levar de balsa com a maré da manhã, apesar de eu temer o que vamos encontrar lá. Vamos comer uma refeição quente antes de enfrentar a travessia. Os irmãos sempre têm um osso extra para o cachorro — o cachorro latiu e abanou o rabo.

A maré estava baixando agora, rapidamente. A água que separava a ilha da costa estava retrocedendo, deixando para trás uma vasta extensão de lama marrom e brilhante pontilhada por piscinas d’água que brilhavam a luz do sol como moedas de ouro. Brienne coçou sua nuca, onde um inseto a picou. Ela tinha seu cabelo preso no alto e o sol aqueceu sua pele.

— Por que eles chamam este lugar de Ilha Quieta? — perguntou Podrick.

— Os que vivem aqui são penitentes, que procuram expiar seus pecados através de contemplação, orações e silêncio. Apenas o Irmão Mais Velho e seus procuradores que têm permissão para falar, e os ajudantes apenas por um dia a cada sete.

— As irmãs silenciosas nunca falam, — disse Podrick. — Eu ouvi dizer que elas não têm língua.

Septão Meribald sorriu.

— As mães têm intimidado suas filhas com esse conto desde que eu tinha a sua idade. Não havia verdade nisso naquela época e continua não tendo. Um voto de silêncio é um ato de contrição, um sacrifício pelo qual se prova sua devoção aos Sete. Para um mudo fazer voto de silêncio seria como para um aleijado desistir de dançar. — Ele levou o seu jumento encosta abaixo, acenando para que os outros o seguissem. — Se vocês quiserem dormir sob um teto esta noite, vocês devem desmontar de seus cavalos e atravessar a lama comigo. O caminho da fé, é como nós o chamamos.


Apenas os que têm fé podem cruzá-lo com segurança. Os perversos são engolidos pela areia movediça, ou são afogados quando a maré retorna com força. Nenhum de vocês é perverso, eu espero? Mesmo assim, eu teria cuidado onde colocar os pés. Pisem apenas onde eu piso e vocês devem alcançar o outro lado.

O caminho da fé era tortuoso, Brienne não pôde deixar de notar.

Embora a ilha parecesse elevar-se para o nordeste de onde eles deixaram a costa, Septão Meribald não se dirigiu diretamente para lá. Ao invés, ele iniciou o caminho para o leste, para as águas profundas da baía, que, à distância, bruxuleavam em tons de azul e prata. A lama marrom e macia se amassava entre seus dedos. Ao andar, ele parava de tempos em tempos, para testar a lama à frente com seu bastão. O cachorro permaneceu perto de seus calcanhares, cheirando cada rocha, concha e tufos de alga. A princípio ele não seguiu a frente ou afastado. Brienne os seguiu, tomando cuidado para permanecer próxima a linha das pegadas deixadas pelo cachorro, pelo burro e o santo homem. Depois seguiu Podrick, e por ultimo Sor Hyle. Após cem jardas, Meribald se virou abruptamente em direção ao sul, então ficou quase de costas para o septo. Ele seguiu nessa direção por mais cem jardas, os guiando entre duas rasas piscinas. O cachorro parou em uma delas e ganiu quando um caranguejo o prendeu com sua garra. Uma luta breve, mas furiosa se seguiu antes do cachorro voltar trotando, molhado e sujo de lama, com o caranguejo entre suas presas.

— Não é lá onde queremos ir? — Sor Hyle chamou de trás deles, apontando para o septo. — Parece que estamos indo para qualquer lugar, menos para lá.

— Fé, — urgiu Septão Meribald. — Acredite, persista, siga, e iremos encontrar a paz que procuramos.

As poças tremeluziram ao redor deles, em meia centena de tons. A lama era de um marrom muito escuro que parecia quase negro, porém também havia faixas de areia dourada, rochas elevadas cinza e vermelhas, e emaranhados de algas pretas e verdes. Storks espreitou em torno das piscinas e deixou suas pegadas por todo lado, e os caranguejos correram pelas águas rasas. O ar cheirava a salmoura e podridão, e o chão sugou seus pés e os deixava continuar com relutância, emitindo um suspiro barulhento. Septão Meribald virou, girou e virou mais uma vez. Suas pegadas se encheram de água assim que ele continuou. Quando o chão começou a parecer mais firme e começou a se elevar sob os pés, eles haviam andado pelo menos dois quilômetros e meio.

Três homens esperavam por eles quando subiram as pedras quebradas que cercavam a costa da ilha. Eles estavam vestidos com as túnicas marrons 554


e pardas dos irmãos, com largas mangas em formato de sino e capuzes pontudos. Os dois também tinham peças de lã enroladas na metade de baixo de seus rostos, então tudo o que podia ser visto eram seus olhos. O terceiro irmão foi o único a falar.

— Septão Meribald, — ele chamou. — Já tem quase um ano. Seja bem-vindo. Seus acompanhantes também.

O cachorro abanou o seu rabo, e Meribald tirou a lama dos seus sapatos.

— Poderíamos solicitar a sua hospitalidade por uma noite?

— Sim, claro. Teremos cozido de peixe esta noite. Vocês vão precisar da balsa pela manhã?

— Se não for pedir muito. — Meribald virou-se para seus amigos viajantes. — Irmão Narbert é um procurador da ordem, então é permitido a ele falar por um dia a cada sete. Irmão, esse bom camarada me ajudou em meu caminho. Sor Hyle Hunt é um cavaleiro da Campina. O rapaz é Podrick Payne, vindo de Westerland. E esta é a Senhora Brienne, conhecida como Donzela de Tarth.

Irmão Narbert aproximou-se um pouco.

— Uma mulher.

— Sim, irmão. — Brienne soltou seu cabelo e o balançou. — Vocês não tem mulheres aqui?

— Não no momento, — disse Narbert. — As mulheres que nos visitam vem a nós doentes ou feridas, ou grávidas. Os sete abençoaram nosso Irmão Mais Velho com mãos que curam. Ele recuperou a saúde de muitos homens que mesmo os meistres não conseguiram curar, e de muitas mulheres também.

— Eu não estou doente, machucada ou grávida.

— Senhora Brienne é uma donzela guerreira, — confidenciou Septão Meribald, — Caçando o Cão de Caça.

— É mesmo? — Narbert parecia surpreso. — Com que finalidade?

Brienne tocou o cabo da Cumpridora de Promessas.

— Ele, — ela disse.

O procurador a estudou.


— Você é... forte para uma mulher, é verdade, mas... mas talvez eu devesse levar você até Irmão Mais Velho. Ele deve ter visto você atravessando a lama. Venha.

Narbert os guiou por um caminho de pedras entre um bosque de macieiras para um estábulo camuflado com um telhado de sapê pontiagudo.

— Vocês devem deixar seus animais aqui. Irmão Gillam vai cuidar para que sejam alimentados e recebam água.

O estábulo tinha mais do que três quartos vazios. De um lado havia meia dúzia de mulas, sendo cuidadas por um pequeno irmão de pernas tortas que Brienne pensou ser Gillam. Abaixo, na outra extremidade, bem longe dos outros animais, um grande garanhão tropeou ao som de suas vozes e deu um coice na porta de sua cocheira.

Sor Hyle olhou admirado para o grande cavalo enquanto ele segurava suas rédeas para o Irmão Gillam.

— Uma bonita fera.

Irmão Narbert disse suspirando.

— Os Sete nos enviam bênçãos, os Sete nos enviam provações. Ele deve ser bonito, mas Driftwood certamente foi parido no inferno. Quando nós o buscamos para aproveitá-lo em um arado, ele deu um coice no Irmão Rawney e quebrou sua tíbia em dois lugares. Nós tínhamos esperança que a castração iria melhorar o temperamento doentio da fera, mas... Irmão Gillam, pode mostrar a eles?

Irmão Gillam baixou o seu capuz. Sob este ele tinha um punhado de cabelo loiro, o couro cabeludo tonsurado e uma bandagem marcada de sangue onde ele deveria ter uma orelha.

Podrick disse assustado.

— O cavalo mordeu e arrancou sua orelha?

Gillam afirmou com um aceno, e cobriu novamente a sua cabeça.

— Desculpe-me,irmão, — disse Sor Hyle, — mas eu poderia arrancar a outra orelha, se você se aproximasse de mim com um par de tesouras.

A brincadeira não agradou ao Irmão Narbert.

— Você é um cavaleiro, Sor. Driftwood é uma besta de carga. O Pai deu cavalos aos homens para que estes os ajudassem em seus trabalhos. —Ele virou-se. — Se me acompanham. O Irmão Mais Velho sem dúvida os estará esperando.


A encosta era mais íngreme do que parecia entre as piscinas d’água.

Para tornar mais fácil, os irmãos construíram um lance de degraus que vagava para frente e para trás por toda a costa e entre os edifícios. Depois de um longo dia numa sela Brienne estava feliz por uma chance de estender suas pernas.

Eles passaram por uma dúzia de irmãos da ordem em sua subida; homens encapuzados em túnicas marrons e pardas que os olhavam curiosamente enquanto eles passavam; mas não disseram uma palavra de saudação. Um deles estava conduzindo um par de vacas leiteiras em direção a um celeiro baixo com telhado de grama; outro trabalhava batendo a manteiga. Nas encostas mais altas eles viram três garotos conduzindo ovelhas, e mais acima eles passaram por um cemitério onde um irmão, maior que Brienne, estava esforçando-se para cavar uma sepultura. Pela maneira com que ele se movia, era claro que ele era manco. Quando ele arremessou uma pá do solo pedregoso sobre um ombro, acidentalmente borrifou lama sobre seus pés.

— Preste mais atenção aí, — ralhou Irmão Narbert. — Septão Meribald poderia ter sido atingido por um bocado de sujeira. — O coveiro abaixou a cabeça. Quando o cachorro foi cheirá-lo ele derrubou sua pá e arranhou sua orelha.

— Um novato, — explicou Narbert.

— Para quem é a cova? — perguntou Sor Hyle, já que recomeçaram sua subida pelos degraus de madeira.

— Irmão Clement, que o Pai o julgue justamente.

— Ele era velho? — perguntou Podrick Payne.

— Se você considerar alguém de oitenta e quatro anos velho, sim, mas não foram os anos que o mataram. Ele morreu por causa dos ferimentos que ele obteve nas Salinas. Ele havia levado um pouco do nosso hidromel para o mercado lá, no dia que os fora-da-lei desceram à cidade.

— O Cão de Caça? — disse Brienne.

— Outro, tão bruto quanto. Ele cortou fora a língua do pobre Clement, pois ele não falava. Como ele havia feito voto de silêncio, o corsário disse que ele não precisava mais dela. O Irmão Mais Velho sabe mais. Ele guarda o pior das notícias de fora para si mesmo, para não perturbar a tranquilidade do septo. Muitos dos nossos irmãos vieram para cá para fugir dos horrores do mundo, não para conviver com eles. Irmão Clement não foi o único ferido entre nós. Algumas feridas não aparecem. — Irmão Narbert gesticulou para a direita. — Aqui fica nosso caramanchão de verão. As uvas são pequenas e azedas, mas fazem um vinho agradável. Nós também fermentamos nossa própria cerveja, e o nosso hidromel e nossa sidra são muito conhecidos.

— A Guerra nunca chegou até aqui? — Brienne disse.

— Não essa guerra, louvados sejam os Sete. Nossas orações nos protegem.

— E a maré, — sugeriu Meribald. O cachorro latiu em concordância.

O cume da colina foi coroado por um muro baixo de pedra não cimentado, circundando um grupo de grandes prédios; o moinho-de-vento, suas pás rangendo a medida que giravam, o mosteiro onde os irmãos dormiam e a sala comunal onde eles faziam suas refeições, um septo de madeira para orações e meditação. O septo tinha janelas de vidro chumbado, grandes portas esculpidas com imagens da Mãe e do Pai, e um campanário de sete lados com uma passarela no topo. Atrás ficava uma horta onde alguns irmãos de mais idade estavam tirando as ervas daninhas. Irmão Narbert guiou seus visitantes em torno de uma castanheira até uma porta de madeira localizada na lateral da colina.

— Uma caverna com porta? — Sor Hyle disse surpreso.

Septão Meribald sorriu.

— É chamada de o Buraco do Ermitão. O primeiro homem santo que veio para cá para encontrar o seu caminho viveu nela, e trabalhou tão maravilhosamente que outros vieram juntar-se a ele. Isso foi a dois mil anos atrás, eles dizem. A porta veio um pouco depois.

Talvez há dois mil anos atrás, o Buraco do Ermitão fosse único, escuro, coberto de sujeira e ecoando os sons da água pingando, mas agora não era mais. A caverna que Brienne e seus acompanhantes entraram era quente, um santuário confortável. Tapetes de lã cobriam o chão, tapeçarias cobriam as paredes. Altas velas de cera de abelha davam mais do que ampla luminosidade. Os móveis eram estranhos, mas simples; uma mesa longa, um cadeirão, um baú, várias prateleiras altas de madeira cheias de livros, e cadeiras. Tudo fora feito de madeira flutuante, estranhas peças talentosamente talhadas e unidas e polidas até que brilhassem em profundo dourado a luz de velas.

O Irmão Mais Velho não era o que Brienne esperava. Ele mal poderia ser chamado de idoso, para começar; considerando que os irmãos que estavam capinando o jardim tinham ombros inclinados e costas curvadas de velhos, ele ficava ereto e alto, e se movia com o vigor de um homem no auge de seus anos. Nem tinha o rosto suave e gentil que ela esperava de um curador. Sua mão era grande e quadrada, seus olhos eram perspicazes, seu nariz era venoso e vermelho. Apesar de ele ser tonsurado, seu couro-cabeludo era eriçado como sua mandíbula pesada.

Ele se parecia mais com um homem para quebrar ossos do que um santo, pensou a Donzela de Tarth, enquanto o Irmão Mais Velho atravessou a sala para abraçar Septão Meribald e afagar o cachorro.

— É sempre um dia feliz quando nossos amigos Meribald e seu cachorro nos honram com uma nova visita, — ele anunciou antes de se virar aos outros convidados. — E novas caras são sempre bem-vindas. Nós vemos tão poucas delas.

Meribald fez as costumeiras cortesias antes de se sentar sobre o cadeirão. Diferentemente do Septão Narbert, o Irmão Mais Velho não pareceu consternado pelo sexo de Brienne, mas seu sorriso estremeceu e desvaneceu quando o Septão disse a ele porque ela e Sor Hyle vieram.

— Eu entendo, — foi tudo o que ele disse antes de se virar dizendo,

— Vocês devem estar com sede. Por favor, tome um pouco da nossa sidra doce para lavar a poeira da viagem de suas gargantas. — Ele mesmo os serviu. As canecas também eram de madeira flutuante e esculpidas não havendo duas iguais. Quando Brienne as elogiou, ele disse — A donzela é gentil. Tudo o que fazemos é cortar e polir a madeira. Nós somos abençoados aqui. Onde o rio encontra a baía, as correntes e a maré lutam uma contra a outra e muitas coisas estranhas e maravilhosas são empurradas até nós, surgindo em nossa costa. Madeira flutuante é o menor presente de todos. Nós encontramos canecas de prata e potes de ferro, sacos de lã e cortes de seda, elmos enferrujados e espadas brilhantes... ah, e rubis.

Isso interessou ao Sor Hyle.

— Rubis de Rhaegar?

— Devem ser. Quem poderia dizer? A batalha foi a muitas léguas daqui, mas o rio é incansável e paciente. Seis foram encontrados. Nós estamos esperando pelo sétimo.

— Melhor rubis do que ossos. — Septão Meribald estava esfregando seu pé, a lama se soltando por debaixo de seus dedos. — Nem todos os presentes do rio são agradáveis. Os bons irmãos coletam os mortos também.

Vacas afogadas, veados afogados, porcos mortos inchados do tamanho de meio cavalo. Ah, e cadáveres.

— Muitos cadáveres, esses dias. — O Irmão Mais Velho suspirou. — Nosso coveiro não conhece o descanso. Homens do rio, do leste e do norte, todos são trazidos para cá. Cavaleiros e patifes são iguais. Nós os enterramos lado a lado, Stark e Lannister, Blackwood e Bracken, Frey e Darry. Esse é o dever que o rio pede em troca de todos esses presentes, e nós fazemos o melhor que podemos. Às vezes encontramos uma mulher, ou pior, uma pequena criança. Esses são os presentes mais cruéis. — Ele virou-se para Septão Meribald. — Eu espero que você tenha tempo para nos absolver de nossos pecados. Desde que os atacantes mataram os antigos, não temos ninguém para ouvir nossas confissões.

— Eu preciso ter tempo — disse Meribald, — embora eu espere que você tenha pecados melhores que da última vez que eu vim — O cachorro latiu. — Está vendo? Até o cachorro ficou entediado.

Podrick Payne ficou intrigado.

— Eu pensei que ninguém pudesse falar. Bem, ninguém não. Os irmãos. Os outros irmãos, não você.

— Nós temos a permissão de quebrar o silêncio para confessar, — disse o Irmão Mais Velho. — É difícil falar de pecados com sinais e acenos de cabeça.

— Eles queimaram o septo nas Salinas? — perguntou Hyle Hunt.

O sorriso desapareceu.

— Eles queimaram tudo nas Salinas, exceto o castelo. Só ele era feito de pedra… embora poderia ter sido feito também de sebo por tudo que serviu a cidade. Coube a mim tratar de alguns dos sobreviventes. Um pescador os trouxe pela baía até mim depois que as chamas acabaram e que considerou seguro aportar. Uma pobre mulher foi estuprada uma dúzia de vezes, e seus seios... minha donzela, você veste uma armadura de homem então não devo poupá-la desses horrores... seus seios foram rasgados e mastigados e comidos, como se fosse por algum tipo de... fera cruel. Eu fiz o que eu podia por ela, embora não tenha sido suficiente. Enquanto ela agonizava, suas piores maldições não foram para o homem que a estuprou, não para o monstro que devorou sua carne viva, mas para o Sor Quincy Cox, que barrou a entrada em seus portões quando os fora da lei entraram na cidade e sentou-se seguro do outro lado das paredes de pedra enquanto seu povo gritava e morria.

— Sor Quincy é um homem velho, — disse Septão Meribald gentilmente. — Seus filhos e seus afilhados estão distantes ou mortos, seus netos ainda são meninos e ele tem duas filhas. O que poderia ter feito, um homem contra tantos?

Ele podia ter tentado, Brienne pensou. Ele poderia ter morrido. Velho ou jovem, um verdadeiro cavaleiro jurou proteger aqueles que são mais fracos do que ele, ou morrer na tentativa.


— Palavras verdadeiras, e sábias, — disse o Irmão Mais Velho para Septão Meribald. — Quando você cruzar para as Salinas, sem dúvida Sor Quincy vai pedir seu perdão. Estou feliz que você esteja aqui para perdoá-lo.

Eu não poderia — Ele deixou de lado a caneca de madeira flutuante e ficou parado. — O sino da ceia vai soar em breve. Meus amigos, venham comigo para o Septo, para orar pelas almas do bom povo das Salinas antes de nos sentarmos para partir o pão e partilhar um pouco de carne e hidromel?

— Alegremente, — disse Meribald. O cão latiu.

O ceia no septo foi a refeição mais estranha que Brienne já havia comido, mas não de todo desagradável. A comida era simples, mas muito boa; havia pães crocantes ainda mornos do forno, potes de manteiga fresca, mel das colméias do septo e um espesso cozido de caranguejo e mexilhões, e pelo menos três tipos diferentes de peixe.

Septão Meribald e Sor Hyle beberam o hidromel feito pelos irmãos, e afirmaram estar excelente, enquanto ela e Podrick se contentaram com mais sidra doce. A refeição não foi melancólica. Meribald fez uma oração antes que a comida fosse servida, e enquanto os irmãos comiam em quatro longas mesas, um deles tocou para eles uma harpa alta, enchendo o salão com sons leves e doces. Quando o Irmão Mais Velho dispensou o músico para fazer sua refeição, Irmão Narbert e outro procurador revezaram-se lendo A estrela de sete pontas.

No momento em que a leitura estava completa, o resto da comida foi recolhido pelos noviços cuja tarefa era servir. Muitos eram rapazes na idade de Podrick, ou mais novos, mas eles eram homens feitos também, e entre eles o grande coveiro que eles encontraram na colina, que tinha o andar desajeitado e balançante de um meio-aleijado. Como o salão estava vazio, o Irmão Mais Velho pediu a Narbert para mostrar a Podrick e Sor Hyle seu catre nos claustros.

— Vocês não se importam de dividir uma cela, eu espero? Não é grande, mas vocês vão achar confortável.

— Eu quero ficar com sor, — disse Podrick. — Quero dizer, minha senhora.

— O que você e a Senhorita Brienne fazem em outro lugar é entre vocês e Os Sete, — disse Irmão Narbert, — mas na Ilha Quieta, homens e mulheres não dormem debaixo do mesmo teto a não ser que sejam casados.

— Nós temos algumas modestas cabanas separadas para as mulheres que nos visitam, sejam elas nobres senhoras ou garotas comuns da vila, — disse o Irmão Mais Velho. — Elas não são utilizadas com frequência, mas as mantemos limpas e secas. Senhora Brienne, você me autorizaria a mostrar-lhe o caminho?

— Sim, obrigada. Podrick, vá com o Sor Hyle. Aqui nós somos hóspedes dos irmãos santos. Sob o teto deles, suas regras.

As cabanas eram no lado leste da ilha, com vista para uma grande extensão de lama e as águas distantes da Baía dos Caranguejos. Era mais frio do que no lado protegido, e mais selvagem. A colina era íngreme, e o caminho serpenteava para frente e para trás entre ervas daninhas e arbustos, rochas esculpidas pelo vento, e árvores torcidas, espinhosas que se agarravam tenazmente a encosta pedregosa. O Irmão Mais Velho trouxe uma lanterna para iluminar o caminho durante a decida. Em uma curva ele parou

— Numa noite clara você poderia ver os fogos nas Salinas daqui. Do outro lado da baía, ali. — Ele apontou.

— Não tem nada lá, — Brienne disse.

— Só sobrou o castelo. Mesmo os pescadores se foram, os poucos afortunados que foram embora pelas águas quando os corsários vieram. Eles viram suas casas pegarem fogo e ouviram os gritos e choros flutuarem pelo porto, ficaram com muito medo para aportarem seus barcos. Quando afinal vieram a terra, foi para enterrarem os amigos e parentes. O que há para eles agora além de ossos e lembranças amargas? Eles se mudaram para Lagoa das Donzelas ou outras cidades. — Ele gesticulou com a lanterna, e eles reiniciaram sua decida. — Salinas nunca foi um porto importante, mas alguns barcos atracavam lá de tempos em tempos. Era o que os corsários queriam, uma galera ou um barco de pesca para carregá-los através do mar estreito. Como não havia nenhum a mão, eles descontaram sua raiva e desespero no povo da cidade. Eu me pergunto, minha donzela … o que você espera encontrar lá?

— Uma garota, — ela disse a ele. — Uma donzela nobre de treze anos, com um rosto justo e cabelos ruivos.

— Sansa Stark. — O nome foi dito suavemente. — Você acredita que esta pobre criança está com o Cão de Caça?

— Um homem de Dorne disse que ela estava a caminho de Correrrio.

Timeon. Ele é um mercenário, um da Companhia dos Bravos Companheiros, um matador e estuprador e um mentiroso, mas eu não acho que ele tenha mentido a esse respeito. Ele disse que o Cão de Caça a roubou e a levou embora.

— Eu entendo. — O caminho fez uma curva, e havia as casas à frente deles. O Irmão Mais Velho as tinha chamado de modestas. E lá estavam elas.


Elas se pareciam com colméias feitas de pedra, baixas e redondas, sem janelas. — Esta, — ele disse, indicando a cabana mais próxima, a única com fumaça saindo pela chaminé no centro do telhado. Brienne teve de curvar-se ao entrar para não bater a cabeça contra o batente. Dentro ela encontrou um chão sujo, um catre de palha, peles e cobertores para mantê-la aquecida, uma bacia de água, um frasco de sidra, um pouco de pão e queijo, um pequeno fogo, e duas cadeiras baixas. O Irmão Mais Velho sentou-se em uma delas e abaixou a lanterna. — Posso ficar mais um pouco? Eu sinto que precisamos conversar.

— Se você desejar. — Brienne soltou seu cinturão e o pendurou na segunda cadeira, então sentou-se no catre com as pernas cruzadas.

— O seu homem de Dorne não mentiu, — o Irmão Mais Velho começou, — mas eu acredito que você não o tenha entendido. Você está perseguindo o lobo errado, minha donzela. Eddard Stark teve duas filhas. Foi com a outra que Sandor Clegane fugiu, a mais nova.

— Arya Stark? — Brienne ficou boquiaberta, espantada. — Você sabia disso? A irmã da Senhora Sansa está viva?

— Então, — disse o Irmão Mais Velho. — Agora ... Eu não sei. Ela pode ter sido morta entre as crianças nas Salinas.

As palavras foram uma facada em sua barriga. Não, Brienne pensou.

Não, isso seria muito cruel.

— Pode ser que... o senhor queira dizer que não tem certeza... ?

— Estou certo de que a criança estava com Sandor Clegane na pousada ao lado da encruzilhada, aquela onde a velha Masha Heddle costumava ficar, antes dos leões a terem enforcado. Estou certo de que estavam a caminho de Salinas. Mais que isso... não. Eu não sei onde ela está, ou mesmo se ela vive. Há uma coisa que eu sei, no entanto. O homem que você busca está morto.

Ela teve outro choque.

— Como ele morreu?

— Pela espada, como ele tinha vivido.

— Você sabe disso com certeza?

— Eu mesmo o sepultei. Eu posso lhe dizer onde está seu túmulo, se você desejar. Eu o cobri com pedras para impedir os comedores de carniça de comer a sua carne, e coloquei o seu elmo em cima do monte de pedras para marcar o seu lugar de descanso final. Esse foi um erro muito grave.


Alguns outros viajantes encontraram o meu marcador e o reclamaram para si mesmos. O homem que estuprou e matou em Salinas não foi Sandor Clegane, embora ele possa ser tão perigoso quanto. As terras ribeirinhas são cheias desses carniceiros. Eu não vou chamá-los de lobos. Os lobos são mais nobres do que isso... e assim são os cães, eu acho.

— Eu sei um pouco a respeito desse homem, Sandor Clegane. Ele foi o escudeiro do Príncipe Joffrey por muitos anos, e mesmo por aqui podemos ouvir falar de suas obras, tanto boas como ruins. Se metade do que ouvimos for verdade, essa era uma alma amarga, atormentada, um pecador que zombava tanto dos deuses quanto dos homens. Ele serviu, mas não encontrou nenhum orgulho em serviço. Ele lutou, mas não tomou nenhuma alegria na vitória. Ele bebeu, para afogar a sua dor em um mar de vinho. Ele não amava, nem amava a si mesmo. Foi o ódio que o guiou. Apesar de ter cometido muitos pecados, ele nunca pediu perdão. Onde outros homens sonharam encontrar o amor, ou riqueza, ou a glória, este homem Sandor Clegane sonhou em matar seu próprio irmão, um pecado tão terrível que me faz tremer só de falar dele. Esse foi o pão a alimentá-lo, o combustível que manteve suas chamas queimando. Ignóbil como foi, a esperança de ver o sangue de seu irmão sobre sua lâmina foi tudo pelo qual viveu essa triste e colérica criatura... e mesmo isso foi tirado dele, quando o príncipe Oberyn de Dorne apunhalou Sor Gregor com uma lança envenenada.

— Você fala como se tivesse pena dele, — disse Brienne.

— Eu tive. Você também teria pena dele, se o tivesse visto em seu final. Deparei-me com ele no Tridente, guiado por seus gritos de dor. Ele me implorou pelo golpe de misericórdia, mas estou jurado a não matar novamente. Em vez disso, banhei sua testa febril com água do rio, e dei-lhe vinho para beber e um cataplasma para sua ferida, mas meus esforços foram insuficientes e tardios demais. O Cão de Caça morreu ali, nos meus braços.

Você deve ter visto um garanhão negro nos nossos estábulos. Esse era o seu cavalo de batalha, Estranho. Um nome blasfêmico. Nós preferimos chamá-lo de Driftwood, já que ele foi encontrado as margens do rio. Temo que ele tenha a natureza de seu antigo mestre.

O cavalo. Ela esteve no estábulo, ouviu os seus coices, mas ela não tinha entendido. Garanhões eram treinados para dar coices e morder. Em uma batalha eles eram armas, como os homens que os montavam. Como o Cão de Caça.

— É verdade, então, — ela disse sombriamente. — Sandor Clegane está morto.


— Ele descansou. — O Irmão Mais Velho fez uma pausa. — Você é jovem, criança. Eu já contei quarenta e quatro aniversários... o que é mais que o dobro da sua idade, eu acho. Você ficaria surpresa ao saber que eu já fui um cavaleiro?

— Não. Você se parece mais com um cavaleiro do que com um homem santo. — Isto é demonstrado por seu peito e ombros, e através de sua mandíbula larga e quadrada. — Por que você desistiu de ser cavaleiro?

— Eu nunca escolhi isso. Meu pai era um cavaleiro, e seu pai antes dele. Assim foram cada um de meus irmãos. Fui treinado para a batalha desde o dia em que fui considerado com idade suficiente para segurar uma espada de madeira. Eu vi a minha parte nisso, e não me desgracei. Eu tive mulheres também, e então eu fiz minha desgraça, pois algumas eu tomei pela força. Houve uma garota com quem eu desejava me casar, a filha mais jovem de um senhor de pequenas posses, mas eu era o terceiro filho de meu pai e não tinha nem a terra nem a riqueza para oferecer-lhe... apenas uma espada, um cavalo, um escudo. E em geral, eu era um homem triste. Quando eu não estava lutando, estava bêbado. Minha vida foi escrita em vermelho, de sangue e vinho.

— Quando isso mudou? — perguntou Brienne.

— Quando eu morri na batalha do Tridente. Eu lutei ao lado do príncipe Rhaegar, embora ele nunca tenha sabido o meu nome. Eu não poderia lhe dizer o porquê, salvo que o senhor a quem servi decidiu apoiar o dragão ao invés do veado. Se ele tivesse decidido de outra forma, eu provavelmente estaria do outro lado do rio. A batalha foi muito sangrenta.

Os cantores querem nos fazer crer que era tudo porque Rhaegar e Robert estavam lutando por uma mulher que ambos alegaram amar, mas garanto, outros homens estavam lutando também, e eu era um deles. Eu levei uma flechada na coxa e outra no pé, e meu cavalo foi morto debaixo de mim, mas eu continuei lutando. Eu me lembro o quão desesperado eu fiquei para encontrar um outro cavalo, pois eu não tinha dinheiro para comprar um, e sem um cavalo eu não poderia ser mais um cavaleiro. Isso era tudo em que eu estava pensando, verdade seja dita. Eu nunca vi o golpe que me derrubou.

Ouvi cascos nas minhas costas e pensei: um cavalo! mas antes que eu pudesse me virar algo bateu na minha cabeça e jogou-me de volta ao rio, onde certamente eu deveria ter me afogado. Ao invés disso acordei aqui na Ilha Quieta. O Irmão Mais Velho me contou que a maré me trouxera, nu como eu vim ao mundo. Só consigo pensar que alguém me encontrou na água rasa, tirou-me a minha armadura, botas e calças, e me empurrou de volta para águas mais profundas. O rio fez o resto. Todos nós nascemos nus, então eu suponho que era justo que eu viesse em minha segunda vida da mesma maneira. Passei os dez anos seguintes em silêncio.

— Eu entendo. — Brienne não sabia por que ele estava dizendo a ela tudo isso, ou o que mais ele deveria dizer.

— Você entende? — Ele se inclinou para frente, suas grandes mãos sobre os joelhos — Então, desista dessa sua busca. O Cão de Caça está morto, e em todo caso ele nunca teve a sua Sansa Stark. Quanto a esta besta que usa seu elmo, ele será encontrado e enforcado. As guerras estão acabando, e estes fora-da-lei não podem sobreviver à paz. Randyll Tarly está procurando desde Lagoa da Donzela e Walder Frey desde de as Gêmeas, e tem um jovem Lorde em Darry, um homem piedoso que certamente vai definir suas terras ao lado dos justos. Vá para casa, criança. Você tem um lar, o que é mais que muitos podem dizer nesses dias negros. Você tem um pai nobre que certamente te ama. Pense em sua dor se você nunca voltar.

Talvez eles levem para ele sua espada e seu escudo, depois de sua queda.

Talvez ele até os pendure em sua sala e olhe para eles com orgulho… mas se você perguntar a ele, eu sei que ele diria que preferiria ter uma filha viva do que um escudo quebrado.

— Uma filha. — Os olhos de Brienne se encheram de lágrimas. — Ele merece. Uma filha que possa cantar para ele e encher a sua casa de netos. Ele merece um filho também, um filho forte e galante para trazer honra ao seu nome. Galladon se afogou quando eu tinha quatro anos e ele tinha oito, e Alysanne e Arianne morreram quando ainda eram bebês. Eu sou a única filha que os deuses deixaram ele criar. A bizarra, que não está apta para ser nem um filho, nem uma filha. — Tudo isso veio a tona, como o sangue negro de uma ferida, as traições e os noivados, Ronnet Vermelho e sua rosa, Lord Renly dançando com ela, a aposta por sua virgindade, as lágrimas amargas que ela derramou na noite em que seu rei casou-se com Margaery Tyrell, a disputa em Ponteamarga, a capa de arco-íris da qual ela tinha sido tão orgulhosa, a sombra no pavilhão do rei, Renly morrendo em seus braços, Correrrio e a Senhora Catelyn, a viagem até o Tridente, o duelo com Jaime na floresta, os homens sem cara, Jaime chorando — Safiras, — Jaime na banheira em Harrenhal com vapor subindo de seu corpo, o gosto do sangue de Vargo Hoat quando ela o mordeu na orelha, a arena do urso, Jaime saltando para baixo na areia, a longa viagem para Porto Real, Sansa Stark, o voto que fez a Jaime, o voto que fez a Senhora Catelyn, Cumpridora de Promessas, Valdocaso, Lagoa da Donzela, Dick, o ágil e Ponta da Garra Rachada e os sussurros dos homens que ela havia matado...

— Eu preciso encontrá-la, — ela terminou. — Há outros procurando, todos querendo capturá-la e vendê-la para a rainha. Preciso encontrá-la rimeiro. Eu prometi a Jaime. Cumpridora de Promessas, ele nomeou a espada. Eu preciso tentar salvá-la… ou morrer na tentativa.




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