SAMWELL
A última parte da viagem era a mais perigosa. Os Estreitos Redwyne estavam repletos de Dracares, tal como lhes tinham dito em Tyrosh. Com a maior parte da frota do reino no outro lado do poente, os homens de ferro haviam saqueado Porto Ryan, haviam se apoderado de Villavinha e do Porto Estrela do Mar, e os utilizavam como base desde que começaram a atacar os navios que se dirigiam a Vilavelha.
O vigia avistou três barcos longos, dois estavam a popa à uma boa distancia, e o Vento Canela não tardou a afastar-se deles. O terceiro apareceu no final do dia para cortar o caminho enquanto fazia um som sussurrante. Quando viu subir e baixar os remos deixando um rastro branco nas águas acobreadas. Kojja Mo enviou seus arqueiros aos castelos com seus grandes arcos, que podiam lançar uma flecha ainda mais longe e com maior precisão que os de Dorne. Esperou até que o barco longo estivesse a duzentos passos antes de dar a ordem de disparar. Sam também disparou e naquela ocasião pareceu que sua flecha chegava ao outro barco. Bastou um disparo e o barco longo virou em direção ao sul em busca de uma presa mais fácil.
O dia já era escuro quando entraram na Enseada dos Murmúrios.
Goiva estava na proa com o bebê contemplando o castelo que ficava sobre as falésias.
— Três Torres — lhe disse Sam — a sede da casa Costayne.
O castelo se recortava contra as estrelas e em suas janelas cintilavam as luzes das tochas. Era um espetáculo esplendido, mas entristeceu Sam. A viagem chegava ao fim.
— É muito alto — comentou Goiva.
— Bem, você verá o farol de Torralta.
O bebê de Dalla começou a chorar. Goiva abriu a túnica para dar o peito ao pequeno. Sorriu enquanto o amamentava, e acariciou o suave cabelo castanho.
Acabou por amar tanto este como o que deixou para traz, compreendeu Sam.
Rezava aos deuses para que fossem bondosos com os dois.
Os homens de ferro tinham penetrado até nas águas resguardadas da Enseada dos Murmúrios. Quando chegou a manhã, enquanto o Vento Canela se dirigia até Vilavelha, o casco começou a tropeçar com cadáveres que flutuavam a deriva. Havia corvos pousados em alguns, e começavam a voar entre grasnos de protesto quando o barco perturbava suas grotescas jangadas.
Nas margens se viam campos carbonizados e aldeias queimadas, e sob os bancos de areia tinham barcos destruídos. Os mais comuns eram os botes de pescadores e os barcos mercantes, mas também viram barcos longos abandonados, e os restos de dois grandes dromones. Um havia ardido até a linha de flutuação, enquanto que o outro tinha um enorme buraco no casco; Saltava a vista que o haviam atacado.
— Aqui houve uma batalha — disse Xhondo — não tem muito tempo.
— Quem pode ter cometido a temeridade de fazer um ataque tão perto de Vilavelha?
Xhondo assinalou um navio semi afundado nas águas baixas. Em sua popa estavam pendurados os restos de um estandarte rasgado e manchado.
Sam nunca tinha visto aqueles brasões: um olho vermelho com a pupila negra, embaixo uma coroa de ferro negro segurado por dois corvos.
— De quem é esse estandarte? — Perguntou.
Xhondo encolheu os ombros.
O dia seguinte amanheceu frio e nublado. Quando o Vento Canela passava diante de outra aldeia de pescadores que fora saqueada, um barco de guerra saiu da névoa e avançou para eles. Chamava-se Caçadora, levava o nome escrito atrás de uma figura de proa em forma de uma esbelta donzela vestida com folhas e que carregava uma lança. Em um instante apareceram mais dois barcos, um de cada lado, como um par de cães que seguem seu dono. Para alivio de Sam, levavam o estandarte do rei Tommem, o veado e o leão, encima da torre branca hierarquizada de Vilavelha com sua coroa flamejante.
O capitão da Caçadora era um homem alto que vestia uma capa cinza com uma gola de seda vermelha. Emparelhou seu navio com o Vento Canela, ordenou que levantassem os remos e gritou que ia subir a bordo.
Enquanto seus besteiros e os arqueiros de Kojja Mo se olhavam a distância, ele cruzou com meia dezena de cavalheiros, saudou a Quhuru Mo com um gesto de cabeça e solicitaram ver suas adegas. Pai e filha debateram em particular uns segundos e depois consentiram.
— Desculpe — disse o capitão após a inspeção — Lamento que pessoas honradas recebam um tratamento tão descortês, mas tenho que evitar a todo custo que os homens de ferro entrem em Vilavelha. Fazem apenas quinze dias, estes cornos de merda capturaram um barco mercante de Tyroshi nos estreitos. Mataram a tripulação e colocaram suas roupas, usaram as tintas que levavam para tingir a barba de várias cores. Tinham intenção de colocar fogo no porto enquanto entravam e abriam uma porta por dentro enquanto combatíamos o fogo. Eles teriam se saído bem, mas encontraram com a Dama da Torre, e a esposa do chefe de remeiros é de Tyoshi. Quando viu tantas barbas violeta e verde os saudou na língua Tyroshi, e nenhum soube responder.
Sam estava escandalizado.
— Não é possível que pretendessem saquear Vilavelha
— Não eram simples saqueadores — O capitão da Caçadora o olhou com curiosidade — os homens de ferro sempre tem se dedicado ao saque.
Atacam de repente pelo mar, pegam um pouco de ouro e umas tantas garotas e vão embora, mas raras vezes chegam mais de dois navios, e nunca mais de meia dezena. Agora estão nos atacando com centenas de navios; Saem das Ilhas Escudo e de várias rochas situadas em torno da Árvore. Tomaram o Recife do Caranguejo de Pedra, a ilha dos Porcos e o palácio da Sereia e também tem covil no Rochedo da Ferradura e no Berço do Bastardo. Sem a frota de Lorde Redwyne, não temos barcos suficiente para enfrenta-los.
— E o que fez Lorde Higtower? — perguntou Sam — Meu pai sempre dizia que ele é tão rico como os Lannister, que podia reunir o triplo de espadas que qualquer outra bandeira de Jardim de Cima.
— Mais, se varrer a calçada — replicou o capitão — mas as espadas não valem de nada contra os homens de ferro, a menos que os que as empunhem possam andar sobre a água.
— Hightower tem que estar fazendo algo!
— Com certeza. Lorde Leyton se trancou no alto de sua torre com a donzela louca para consultar livros de feitiços. Pode ser que consiga levantar um exercito vindo das profundezas, ou não. Baleor está construindo barcos; Gunthor tomou o Porto; Garth está treinando novos recrutas, e Hunfrey viajou a Lys para contratar barcos mercenários. Se conseguir uma frota como a da puta da sua irmã, daremos aos homens de ferro um pouco do seu próprio remédio. Até lá o melhor que podemos fazer é defender a enseada e esperar que a raposa da rainha de porto real solte o cinto à Lorde Paxter.
A amargura das ultimas palavras do capitão emocionaram a Sam tanto como seu significado.
Se Porto Real perde Vilavelha e a Árvore, todo reino se fará em pedaços, pensou enquanto via a Caçadora e suas irmãs se afastarem.
Começava a duvidar que Monte Chifre fosse um lugar seguro. A posse dos Tarly se estendia terra adentro, entre colinas onde cresciam espessos bosques, cem léguas ao nordeste de Vilavelha e muito longe de qualquer coisa. Ali estariam fora do alcance dos homens de ferro e seus barcos longos, ainda que o Senhor seu pai estivesse ausente, lutando nas terras dos rios, e a guarnição do castelo fosse escassa. Sem dúvida o jovem lobo tinha pensado o mesmo de Winterfell até a noite em que Theon vira-casaca subiu por seus muros. Sam não suportava pensar que poderia ter levado Goiva e o bebê para deixá-los a salvo e acabaria os abandonando no meio de uma guerra.
Ele passou o resto da viagem debatendo-se em dúvidas, sem saber o que fazer. Podia levar Goiva a Vilavelha. As muralhas da cidade eram muito mais imponentes que as do castelo de seu pai, e havia milhares de homens para defendê-las, em vez do punhado de soldados que devia ter deixado Lorde Randyll em Monte Chifre quando partiu para Jardim de Cima para responder a chamada de seu Senhor. Mas em tal caso teria que a esconder.
Na Cidadela não se permitia a um noviço que tivesse esposa nem amante, pelo menos abertamente.
Além do mais se fico muito mais tempo com Goiva como vou ter forças para deixá-la? Porque tinha que deixá-la. Ou deserta. Pronunciei o juramento, se lembrou, se deserto me cortam a cabeça, e de que serviria isso a Goiva?
Pesou a possibilidade de suplicar a Koja Mo e a seu pai que levassem a menina selvagem para as Ilhas de Verão. Mas aquilo também envolvia perigos. Quando saísse de Vilavelha, o Vento Canela teria que cruzar outra vez os Estreitos de Redwyne. Talvez tivessem menos sorte daquela vez. E o vento morresse? E se os ilhéus de verão se encontrassem a deriva? Se o que se dizia era verdade, levariam Goiva como esposa de sal, e o mais provável era que considerassem o bebê um estorvo, e o atirassem ao mar.
Tenho que levá-la a Monte Chifre — decidiu por fim. — Quando chegarmos a Vilavelha, alugarei um carro e uns cavalos, e a levarei eu mesmo. Assim se asseguraria de deixá-la a salvo no castelo e se visse ou ouvisse algo que o fizesse duvidar, sempre podia dar meia volta e voltar para Vilavelha com Goiva.
Chegaram a Vilavelha uma manhã fria e úmida, no meio de uma neblina tão espessa que a única coisa que se via da cidade era o farol de Torralta. O porto estava cruzado por um dique flutuante que ligava duas dezenas de cascos podres. Atrás havia uma fileira de barcos de guerra ancorados junto a três grandes dromones e o carro chefe de Lord Hightower, um imponente navio de quatro pavimentos chamado Honra de Vilavelha. O Vento Canela teve que submeter-se a inspeção mais uma vez. Naquela ocasião, quem subiu a bordo foi Gunthor, o filho de Lorde Leyton, que levava uma capa de fio de prata e uma armadura cinza. Sor Gunthor havia estudado vários anos na Cidadela e falava a língua de verão, de maneira que Quhuru Mo e ele se reuniram no camarote do capitão para conversar em particular.
Sam aproveitou o tempo para explicar seus planos a Goiva.
— Primeiro irei à cidadela para entregar as cartas de Jon e informar a morte de Meistre Aemon. Espero que os arquimeistres enviem um carro para recolher o cadáver. Logo conseguirei cavalos e um carro para te levar até minha mãe em Monte chifre. Voltarei assim que puder, mas talvez não seja até amanhã.
— Amanhã — repetiu ela, e lhe deu um beijo para desejar-lhe sorte.
No final, Sor Gunthor voltou a sair e ordenou que abrissem o dique para que o Vento Canela pudesse entrar no porto. Enquanto amarravam o navio cisne, Sam se uniu a Koja Mo e três de seus arqueiros junto à prancha.
Os ilhéus de Verão estavam resplandecentes com capas de plumas que somente colocavam para desembarcar. A seu lado se sentia esfarrapado, com a roupa negra larga, a capa desbotada e as botas manchadas de salitre.
— Quanto tempo você vai ficar no porto?
— Dois dias, dez dias, quem sabe? O tempo que esperamos esvaziar as adegas e voltar a enchê-las — Koja sorriu — Depois meu pai tem que visitar os meistres cinzentos. Quer vender uns livros.
— Goiva pode ficar a bordo até que eu volte?
— Goiva pode ficar todo tempo que quiser — cravou um dedo na barriga de Sam — não come tanto como os outros.
— Não estou tão gordo como antes— se defendeu o garoto.
Era um dos resultados da viagem até o sul, com tantos guardas e comendo somente frutas e peixes. Os ilhéus de Verão gostavam muito de frutas e peixes.
Sam desceu pela prancha com os arqueiros, mas ao chegar à margem se separaram e cada um foi para o seu lado. Rezou para lembrar como chegava à cidade, Vilavelha era um labirinto, e não podia perder tempo se perdendo.
Era um dia úmido, e os paralelepípedos do solo estavam escorregadios e as ruas, envoltas em névoas e mistérios. Sam tratou de evitá-los e seguiu o caminho do rio que serpenteava junto à margem de Vinhomel cruzando o coração do casco velho. Era agradável voltar a pisar em terra firme, em vez de um convés que se mexia sem parar, mas apesar de tudo se sentia incomodado. Notava os olhares cravados nele: o espiavam de janelas e balcões, e o observavam desde o portal escuro. A bordo de Vento Canela sabia quem eram todos. Em vez disso, naquela cidade, aonde olhasse, todos eram desconhecidos. E o pior ainda era a possibilidade de ver algum conhecido. Não havia ninguém em Vilavelha que não soubesse quem era Lorde Randyll Tarly, ainda que poucos lhe tivessem afeto. Sam não sabia o que poderia ser pior; que um inimigo de seu pai lhe reconhecesse ou um de seus amigos. Cobriu-se com o capuz e acelerou o passo.
As portas da Cidadela estavam ladeadas por um casal de gigantescas esfinges verdes, com corpo de leão, asas de águia e cauda de serpente. Uma tinha rosto de homem, e a outra de mulher. Do outro lado estava o Lar do Escriba, onde iam os moradores de Vilavelha para que os acólitos escrevessem testamentos e lessem cartas. Havia meia dezena de escribas chatos sentados sobre os estábulos ao ar livre, a espera de clientes. Em outros estábulos se compravam e vendiam livros. Sam se deteve diante de um que vendia mapas e examinou um da cidadela para verificar a forma mais rápida de chegar a Residência do Senescal.
O caminho se dividia no ponto onde se encontrava a estátua do rei Daeron Primeiro montado em um alto cavalo de pedra, com as costas voltadas em direção à Dorne. O Jovem Dragão tinha uma gaivota pousada na cabeça e outras duas na espada. Sam tomou a bifurcação da esquerda, a que seguia o curso do rio. Na Doca Gotejante viu dois alcólitos que ajudavam um ancião a subir em um bote para uma curta viagem até à ilha Sangrenta.
Atrás dele subiu uma jovem mãe, da idade de Goiva, com um bebê chorão nos braços. Em baixo do cais, alguns meninos cozinheiros procuravam rãs nas águas. Um grupo de noviços com bochechas coradas passaram correndo em direção ao septo.
Deveria ter vindo quando tinha sua idade, pensou Sam, se eu tivesse fugido e arranjado um nome falso, poderia ter desaparecido entre os outros noviços. Assim meu pai poderia ter fingido que Dickon era seu único filho.
Nem sequer teria se incomodado em me buscar, a não ser que eu tivesse levado uma mula, então sim teria me perseguido, mas apenas pela mula.
Diante da Residência do Senescal, os reitores estavam pondo no pelourinho um noviço maior.
— Roubou comida na cozinha — explicava um deles aos alcólitos que aguardavam para atirar verduras podres no prisioneiro.
Todos olharam para Sam com curiosidade quando passou a seu lado com a capa negra balançando como uma vela.
Do outro lado das portas havia um vestíbulo com solo de pedra e janelas altas arrematadas por arcos. Nos fundos viu um homem com rosto magro, sentado sobre um estrado, que escrevia a caneta em um livro. Vestia uma túnica de meistre, mas não levava corrente ao pescoço. Sam tossiu.
— Bom dia
O homem levantou a vista, e ao que pareceu, não mereceu sua aprovação.
— Você cheira como um noviço.
— Espero ser um em breve. — Sam tirou as cartas que Jon Snow havia lhe dado. — Vinha da Muralha com mestre Aemon, mas ele morreu durante a viagem. Se pudesse falar com o Senescal...
— Seu nome?
— Samwell. Samwell Tarly.
Ele anotou no livro e lhe fez um aceno com a caneta em direção a um banco situado junto à parede.
— Sente-se. Irão te chamar
Sam se sentou no banco.
Chegaram outros homens. Uns entregavam mensagens e partiam; outros falavam com o homem do estrado, que os convidava a atravessar a porta que ficava atrás e subir por uma escada. Outros sentavam com Sam no banco, esperando que os chamassem. Tinha quase certeza que alguns que foram chamados tinham chegado depois dele. Na quarta ou quinta vez que isso aconteceu, se levantou e cruzou a sala.
— Falta muito?
— O Senescal é muito importante
— Venho da Muralha
— Então não se importaras de esperar um pouco mais — acenou com a caneta — nesse banco aí embaixo da janela.
Sam voltou ao banco. Transcorreu mais uma hora. Chegaram mais visitantes. Todos falavam com o homem do estrado e esperavam um tempo até eram chamados.
Em todo aquele tempo, o porteiro nem se dignou a olhar Sam. No exterior a névoa ia sumindo à medida que o dia ia avançando. A luz brilhante do sol entrava pelas janelas. Sam se distraiu olhando as partículas de poeira que dançavam na luz. Ele deixou escapar um bocejo, e depois outro. Ele mexeu uma bolha rebentada da mão, antes de apoiar a cabeça na parede e fechar os olhos. Devia ter cochilado. Imaginou depois que o homem do estrado tinha gritado seu nome. Sam se levantou, mas voltou a sentar quando se deu conta que não era o seu.
— Tem que dar uma moeda a Loecas; Se não, ficará três dias esperando — disse uma voz ao seu lado. — Que traz a Patrulha da Noite a Cidadela?
Seu interlocutor era um jovem esbelto, constante, atraente, que vestia uns calções de pele de cervo. Tinha a pele da cor de cerveja negra e uma massa de cachos negros apertados que terminava em um pico na raiz do cabelo, em cima dos grandes olhos negros.
— O Senhor Comandante está restaurando os castelos abandonados— explicou Sam — Necessitou mais meistres para os corvos... Falou sobre uma moeda?
— Pode ser uma de cobre. Em troca de um veado de prata, Lorcas te leva nas costas para ver o Senescal. Tem cinqüenta anos de acólito. Detesta os noviços, sobre todos os de nascimento novre.
— Como sabe que sou de nascimento nobre?
— Da mesma forma que você sabe que eu sou meio dornês — disse com um sorriso, e com um suave sotaque de Dorne.
Sam buscou uma moeda.
— Você é noviço?
— Acólito. Alleras, alguns me chamam de Esfinge.
Sam se assustou.
— A esfinge é uma adivinha, não o adivinho — disse atropeladamente — sabe o que significa isso?
— Não. É uma adivinha?
— Isso eu queria saber. Sou Samwell Tarly. Sam.
— Um prazer. E que assuntos tem que tratar Samwell Tarly com o Arquimestre Theobald?
— Assim se chama o Senescal? — perguntou Sam, confuso — o mestre Aemon disse que era Norren.
— Fazem dois turnos que não. Cada ano se elege um novo Senescal.O cargo é tirado a sorte entre os arquimestres, porque quase todos consideram que é uma tarefa ingrata que os separa de seu verdadeiro trabalho. Esse ano, o arquimestre Walgrave levou a pedra negra, mas as vezes ele é meio louco, Theobald se ofereceu voluntariamente para substituí-lo . É um pouco brusco, mas uma boa pessoa. Você falou Meistre Aemon?
— Sim.
— Aemon Targaryen?
— Esse foi seu nome, mas todos o chamavam Meistre Aemon.
Morreu quando viemos de barco para o sul. Como você o conhece?
— Como não ia conhecê-lo? Não só era o mestre vivo mais velho; também era o homem mais velho do poente. Viveu mais historias do que poderia aprender o Arquimeistre Perestan. Poderia ter nos contado muitas coisas dos reinados de seu pai e de seu tio. Sabes quantos anos tinha?
— Cento e dois.
— E o que fazia embarcado nessa idade?
Sam meditou na pergunta um momento; não sabia ate que ponto podia revelar a verdade.
A Esfinge é uma adivinha. Não o adivinho. Seria possível que mestre Aemon se referisse aquela Esfinge? Não parecia provável.
— O Senhor Comandante Snow o enviou longe para salvar-lhe a vida — começou titubeante.
Falou-lhe do rei Stannis e de Melisandre de Asshai. Não pretendia chegar além, mas uma coisa levou a outra, e acabou falando de Mance Rayder e seus selvagens, do sangue real e dos dragões, e antes de se dar conta saiu o resto todo: os espectros do Punho dos Primeiros Homens, o Outro montado em seu cavalo morto, o assassinato do Velho Urso na Casa de Craster, Goiva e sua fuga, Árvore Branca e Paul, pequeno, Mãos frias e os corvos, como havia chegado Jon à Senhor Comandante, o Pássaro Negro, Dareon, Bravos, os dragões que Xhondo havia visto em Quart, o Vento Canela e o que lhe havia sussurrado mestre Aemon quando estava morrendo.
Só não falou dos segredos que havia jurado guardar de Bran Stark e seus amigos ,e dos bebês que Jon Snow havia trocado.
— Danenerys é a única esperança — concluiu. — Aemon disse que a Cidadela deveria enviar um meistre a ela sem demora, para que volte ao oeste com ela antes que seja tarde demais.
Alleras escutou com atenção. De vez em quando piscava, mas em nenhum momento riu ou interrompeu. Quando Sam terminou, lhe colocou uma esbelta mão morena no seu braço.
— Salva a moeda Sam, Theobald não vai acreditar nem na metade do que diz, mas a outros que talvez sim. Porque não vem comigo?
— Para onde?
— Falar com arquimestre.
Tens que lhes dizer, Sam. Havia dito o mestre Aemon. Tem que contar aos arquimestres.
— Muito bem. — Sempre poderia voltar a tentar ver o Senescal no dia seguinte, com uma moeda na mão. — Temos que ir muito longe?
— Não muito. A Ilha dos Corvos.
Não lhes fez falta nenhum bote para chegar à Ilha dos Corvos; uma ponte levadiça de madeira em ruínas a unia com a costa.
— A Corvaria é o edifício mais velho da Cidadela — explicou Alleras enquanto cruzavam as lentas águas de Vinhomel. — Dizem na Era dos Heróis era a fortaleza de um senhor pirata que ficava de braços cruzados saqueando os barcos que navegavam rio abaixo.
Sam percebeu que as paredes estavam cobertas de musgo e videiras, e que as ameias estavam patrulhadas por corvos, não por arqueiros. Ninguém se lembrava de ver a ponte levadiça sendo içada.
No interior do castelo estava fresco e reinava a penumbra. Um velho represeiro crescia no pátio, desde que fora construído o edifício. O rosto entalhado no tronco estava coberto de musgo violeta que se pendurava nas ramas embranquecidas. Muitas delas pareciam secas, mas outras ainda tinham algumas folhas vermelhas, e essas eram as favoritas dos corvos. A árvore estava cheia de pássaros, e havia mais nas janelas arrematadas com arcos que davam para o pátio. Os excrementos cobriam todo solo. Enquanto cruzavam o pátio, um começou a voar, e os outros começaram a grasnar.
— As habitações do arquimestre Walgrave estavam na torre oeste, embaixo do aviário branco, — lhe disse Alleras. — Os corvos brancos e os negros brigam como dorneses e marquenos. Assim temos que separá-los.
— Você acredita que o arquimestre Walgrave entenderá o que vou dizer? — perguntou Sam. — Antes tinha dito que ele é meio louco.
— Tem dias bons e dias ruins — respondeu Alleras —, mas não é Walgrave a quem vai ver.
Abriu a porta da torre norte e começou a subir. Sam subiu as escadas depois dele. Encima se ouvia agitação e murmúrios, e de quando em quando, um grasnido com raiva, como se os corvos se queixaram de que os acordaram.
No topo das escadas havia um jovem pálido e loiro, da idade de Sam, sentado diante de uma porta de carvalho e ferro, olhando atentamente a chama de uma vela com o olho direito. O esquerdo estava tapado com uma mecha de cabelo loiro cinza.
— Que está buscando? — lhe perguntou Alleras. — Seu destino?
Sua morte?
O jovem loiro desviou a vista da vela e piscou.
— Mulheres peladas — respondeu. — E este quem é?
— Samwell. Um noviço recém-chegado, que quer ver o Mago.
— A Cidadella já não é o que era — se queixou o loiro. — Hoje em dia aceitam qualquer um. Cachorros morenos, dorneses, guardadores de porco, aleijados, imbecis, e agora, uma baleia vestida de preto. E eu que acreditava que os leviatãs eram cinzentos.
Uma capa curta de listras verdes e douradas cobria um ombro. Era muito bonito, embora tivesse os olhos astutos e aboca cruel. Sam o conhecia.
— Leo Tyrell. — Só ao pronunciar o nome voltou a sentir-se como um garotinho de sete anos ao ponto de molhar os calções — eu sou Sam, de Monte Chifre, o filho de Lorde Randyll Tarly.
— De verdade? — Leo lhe deu outra olhada. — Imagino que sim.
Seu pai nos disse que havia morrido. Ou desejava que tivesse morrido? — sorriu. — Continua sendo tão covarde como antes?
— Não — mentiu Sam, como Jon o havia ordenado. — Fui mais além da Muralha e participei de batalhas. Me chamam de Sam, o matador.
Nunca soube por que havia dito. As palavras escaparam sem mais.
Leo começou a rir, mas antes que pudesse dizer nada, se abriram as portas que estavam as suas costas.
— Entre, Matador — rosnou o homem do umbral. — E você também, Esfinge, venha.
— Esse é o Arquimestre Marwyn, Sam — disse Alleras.
Marwyn levava uma corrente de diversos metais em volta do grosso pescoço. Além disso, parecia mais um vadio portuário do que um meistre.
Sua cabeça era desproporcionalmente grande em relação ao corpo, e sua maneira de projetá-la para frente desde os ombros, juntamente com o queixo resistente, fazia que parecesse a ponto de matar alguém. Era baixo e atarracado, mas com o peito e os ombros amplos, e uma barriga de cerveja redonda e dura como uma pedra, que forçava os laços do gibão de couro que usava como túnica. Das orelhas e do nariz saiam mechas de pelo branco.
Tinha a frente protuberante, lhe haviam quebrado o nariz em mais de uma ocasião, tinham lhe deixado os dentes cheios de manchas vermelhas, e suas mãos eram as maiores que Sam já havia visto.
O garoto titubeou, e uma daquelas mãos enormes o agarrou pelo braço e o obrigou a cruzar a porta. A sala que havia do outro lado era grande e redonda. Havia livros e pergaminhos por toda parte, espalhados sobre as mesas e amontoados no chão em pilhas de seis palmos de altura. As paredes de pedra estavam cobertas de tapetes desbotados e mapas desgastados. Na lareira ardia um fogo que esquentava um caldeirão de cobre. Fosse o que fosse seu interior, cheirava a queimado. A única luz da sala procedia de uma vela alta e negra situada no centro da habitação.
Tinha um brilho desagradável. Havia algo de estranho nela. A chama não piscava, nem sequer quando o Arquimeistre Marwyn fechou a porta com tanta força que tremularam os papéis de uma mesa próxima. Também, aquela luz fazia um efeito estranho nas cores. No branco era tão brilhante como a neve recém caída, no amarelo brilhava como ouro; no vermelho pareciam chamas, mas nas sombras eram tão negras que pareciam orifícios abertos no mundo. Sam se deu conta de que não podia desviar a vista. A própria vela media uma vara e era esbelta como um junco, retorcida e estriada, de um negro deslumbrante.
— Isso é...?
— Obsidiana? — Terminou um outro homem da sala, um jovem pálido e gordo com os ombros redondos, as mãos macias,os olhos muito juntos e manchas de comida na túnica.
— Chama-se vidro de dragão — o arquimestre Marwyn contemplou a vela um instante. — Arde, mas não se consome.
— O que alimenta a chama? — Quis saber Sam.
— O que alimenta o fogo de um dragão? — Marwyn se sentou em um tamborete — toda bruxaria de Valíria tinha suas raízes no sangue e no fogo. Com uma dessas velas de cristal, os feiticeiros do Feudo Franco podiam ver através de montanhas, mares e desertos. Eram capazes de entrar no sonho das pessoas e provocar-lhes visões; podiam manter conversas mesmo que estivessem a meio mundo de distância, sentados diante de suas velas. Não te parece que isso seria útil, Matador?
— Assim não fariam falta os corvos.
— Somente depois das batalhas — o arquimestre pegou uma folhamarga de um fardo, meteu na boca e começou a mastigar — Conte-me tudo que disse a nossa Esfinge de Dorne. Já sei boa parte, e também coisas que ignora, mas quem sabe me escapou algum detalhe.
Não era um homem a que se pudesse negar nada. Sam titubeou um momento e voltou a relatar toda sua historia a Marwyn, a Alleras e ao outro noviço.
— Meistre Aemon acreditava que a profecia teria se cumprido em Daenerys Targaryen. Nela, não em Stannis, nem no príncipe Rhaegar, nem no principezinho que estamparam em uma moeda.
— Nascido de sal e fumaça, embaixo de uma estrela que sangra. Eu conheço a profecia. — Marwyn girou a cabeça e cuspiu. — Não digo que me pareça verdadeira, claro. Como escreveu Gorghan do Antigo Ghis, uma profecia é como uma mulher traiçoeira: ela te chupa, geme de prazer, e pensa
“que bom, que maravilha, como eu gosto...” e de repente aperta os dentes, e os gemidos se transformam em gritos. Gorghan dizia que esta era a natureza das profecias: arrancam-te o pau com uma mordida quando se descuida. —seguiu mastigando — ainda assim...
Alleras deu um passo para ficar junto de Sam.
— Aemon havia ido com ela se não tivesse lhe faltado forças. Queria que a enviássemos um meistre para que a aconselhe e proteja, para que a traga sã e salva.
— É verdade? — o arquimestre Marwyn encolheu os ombros. —Pois menos mal que morreu antes de chegar a Vilavelha. Se não, poderia o rebanho cinzento ter que matá-lo, e ao pobre velho teria sido fatal.
— Matá-lo?— se escandalizou Sam — Por quê?
— Se eu te digo, talvez tenham que te matar também — Marwyn lhe deu um sorriso espantoso; os pedaços da folhamarga ficavam entre os dentes
— Quem acredita que matou os dragões da ultima vez? Galantes cavaleiros mataram dragões com sua espada? — cuspiu. — O mundo que a Cidadela está onstruindo não tem lugar para feitiçaria, nem profecias e nem as velas de cristal, e muito menos para dragões. Não se pergunta por que se permitiu que Aemon Targaryan desperdiçasse sua vida na muralha, quando deveria ter sido arquimestre por direito? Pelo seu sangue. Não podia se confiar nele.
Nem em mim.
— Que vai fazer? — Quis saber Alleras.
— Irei à Baía dos Escravos no lugar de Aemon. O navio cisne que trouxe Matador me servirá perfeitamente. O rebanho cinzento enviará seu homem em um navio, sem duvida. Se tiver bons ventos, eu chegarei antes.
— Marwyn olhou Sam outra vez e franziu a testa — e quanto a você... tem que ficar e forjar uma corrente. Eu em seu lugar teria pressa. Chegará um momento em que fará falta na muralha. — Se voltou até o noviço de rosto gordo — Arranje uma cela seca para o Matador. Dormirá aqui e te ajudará a cuidar dos corvos.
— Mas... mas...mas... — balbuciou Sam, os outros arquimestres — ... o Senescal... que lhes direi?
— Diga que eles são sábios e bondosos. Diga que Aemon te ordenou que te pusesse em suas mãos. Diga que sempre sonhou com o dia em que te permitiriam colocar a corrente e servir, e que o serviço é a honra mais alta, e a obediência, a virtude mais elevada. Mas nunca diga nada sobre profecias de dragões, a menos que você goste de sopa com veneno. — Marwyn vestiu uma capa de couro que estava pendurada em um prego, junto da porta, e a abotoou. Cuide dele, Esfinge.
— Cuidarei — respondeu Alleras, mas o arquimiestre já tinha saído.
Ouviram suas pisadas escada a baixo.
— Aonde ele vai? — perguntou Sam, assombrado.
— Para as docas. O mago não perde tempo. — Alleras sorriu — tenho que confessar uma coisa: nosso encontro não foi casual, Sam. O Mago me enviou para te pescar antes que falasse com Theobald. Sabia que vinha.
— Como?
Alleras mostrou a vela de cristal.
Sam contemplou por um momento a estranha chama clara, e depois piscou e afastou os olhos. Do lado de fora da janela começava a escurecer.
— Tem uma cela desocupada em baixo da minha, na torre oeste, com umas escadas que levam as salas de Walgrave — disse o jovem de rosto gordo. — Se não te incomodam os grasnidos dos corvos, tem uma boa vista do Vinhomel. Te parece bom?
— Imagino que sim.
Em algum lugar teria que dormir.
— Te levarei umas mantas de lã. Por culpa das paredes de pedra faz frio à noite, inclusive aqui.
— Agradeço. — O menino pálido e suave tinha algo que ele não gostava, mas não queria parecer descortês. — De verdade, não me chamo Matador. Sou Sam. Samwell Tarly.
— Eu me chamo Patê — respondeu — como o guardador de porcos.