Jesus Cristo
Às minhas três mulheres, Florbela, Catarina e Inês
Todas as citações de fontes religiosas todas as
informações históricas e científicas incluídas neste
romance são verdadeiras.
Prólogo
O som abafado atraiu a atenção de Patricia.
“Quem está aí?”
Pareceu-lhe que o barulho tinha vindo da Sala
Inventario
Manoscritti,
mesmo
ao
lado
da
Sala
Consultazioni Manoscritti, onde se encontrava, mas nada
vislumbrou de anormal. Os livros permaneciam em
silêncio nas prateleiras ricamente trabalhadas daquela
ala da Biblioteca Apostólica Vaticana, como adormecidos
pela sombra que a noite projectava em silêncio sobre as
lombadas poeirentas. Aquela podia ser a mais antiga
biblioteca da Europa, e talvez também a mais bela, mas
à noite o local respirava uma atmosfera soturna, quase
intimidatória, como se uma ameaça oculta por ali
pairasse.
“Ay, madre mia!”, murmurou, estremecendo para debelar o
medo irracional que dela por momentos se apossara.
“Ando a ver demasiados filmes!...”
Devia ter sido o empregado a passar, pensou. Espreitou
o relógio; os ponteiros assinalavam quase as onze e
meia da noite. Não eram as horas normais de expediente
na biblioteca, mas Patrícia Escalona tornara-se amiga
pessoal do prefetto, monsenhor Luigi Viterbo, que
recebera em Santiago de Compostela durante o Xacobeo de
2010. Acometido por uma crise mística, monsenhor
Viterbo decidira na altura percorrer a pé o Caminho de
Santiago e, graças a um amigo comum, fora bater à porta
da historiadora. Em boa hora o fez, porque ela cobriu-o
de atenções quando o recebeu em casa, um belo
apartamento convenientemente localizado numa ruela
mesmo atrás da catedral.
Por tudo isso, quando chegou a Roma para consultar
aquele manuscrito, Patricia não hesitou em cobrar o
favor. O facto é que o prefetto da Biblioteca
Apostólica Vaticana se mostrara à altura do pedido e,
retribuindo as honras que o haviam rodeado em
Compostela, mandou abrir à noite a Sala Consultazioni
Manoscritti de propósito para a sua amiga galega fazer
com absoluta tranquilidade o trabalho que ali a
trouxera.
Mas fez mais do que isso. O prefetto mandou buscar o
próprio original para ela consultar. Caramba, não era
preciso tanto!, respondera então Patrícia, quase
embaraçada. Os microfilmes teriam chegado
perfeitamente. Mas não, monsenhor Viterbo fizera
questão de a mimar. Para uma historiadora do seu
gabarito, insistira ele, só o original servia!
E que original.
A investigadora galega passou as mãos enluvadas pelos
caracteres castanhos desenhados à mão com escrúpulo de
copista piedoso, sobre folhas de pergaminho entretanto
envelhecido e manchado por nódoas do tempo que os
arquivistas haviam guardado em placas de material
transparente. O manuscrito estava composto de uma
maneira que lhe fazia lembrar o Codex Marchalianus ou o
Codex Rossanensis. A diferença é que era muito mais
valioso.
Inspirou fundo e sentiu-lhe o cheiro adocicado. Ah, que
maravilha! Como adorava o perfume quente que o papel
antigo exalava!... Passeou os olhos enamorados pelos
caracteres pequenos e muito bem arrumados, sem
ornamentos nem maiúsculas, o grego corrido numa linha
contínua, as letras arredondadas e equidistantes, as
palavras sem nada a separá-las, como se cada linha
fosse na verdade um único verbo, interminável e
misterioso, um código arcano soprado por Deus na génese
do tempo. A pontuação era rara, havendo aqui e ali
espaços em branco, diéreses e abreviaturas dos nomina
sacra e aspas invertidas para as citações do Antigo
Testamento, a exemplo do que ela já vira no Codex Ale-
xandrinus. Mas o manuscrito que tinha à frente era o
mais precioso de todos quantos alguma vez manuseara. Só
o título, aliás, impunha respeito: Bibliorum Sacrorum
Graecorum Codex Vaticanus B.
O Codex Vaticanus.
Custava-lhe crer, mas a verdade é que o funcionário da
Biblioteca Apostólica Vaticana, agindo sob ordens do
prefetto, lhe pousara na mesa o célebre Codex
Vaticanus. Aquela relíquia de meados do século IV era o
mais
antigo
manuscrito
sobrevivente
da
Bíblia
praticamente completa em grego, o que fazia dela o
maior tesouro da Biblioteca Apostólica Vaticana. E,
vejam só, havia-lhe sido confiado, a ela. Que coisa
incrível. Alguém lá na universidade iria acreditar?
Virou a página com infinito cuidado, quase como se
receasse danificar o pergaminho, apesar de ele estar
protegido pela placa de material transparente, e
mergulhou quase instantaneamente no texto. Percorreu o
primeiro capítulo da Carta aos Hebreus; o que procurava
andava ali, perto do início. Passou os olhos pelas
linhas, os lábios a murmurarem as frases em grego como
se entoasse uma ladainha, até por fim chegar à palavra
que buscava.
“Ah, aqui está!”, exclamou. “Phanerón.”
Era extraordinário. Já lhe tinham falado naquele
vocábulo, mas uma coisa era conversar sobre o assunto à
mesa da cantina da faculdade e outra vê-lo diante dos
olhos
em
plena
Biblioteca
Apostólica
Vaticana,
desenhado por um copista do século IV mais ou menos na
altura em que Constantino adoptou o cristianismo e em
que se realizou o Concílio de Niceia, onde o essencial
da teologia cristológica ficou enfim definido. Sentia-
-se em êxtase. Ah, que sensação! Só de pensar que...
Mais um barulho.
Com um salto de susto, Patrícia voltou ao presente e
fixou a atenção de novo na Sala Inventario Manoscritti,
ali à direita, de onde mais uma vez lhe pareceu ter
vindo o som.
“Está aí alguém?”, perguntou, com voz trémula.
Ninguém respondeu. A sala parecia deserta, embora fosse
difícil ter a certeza, considerando todas aquelas
sombras e a penumbra. Será que o barulho tinha vindo da
Leonina? O grande salão da biblioteca encontrava-se
para lá da sua linha de visão, pelo que não tinha modo
de se certificar. Sob o manto da noite aquele lugar
enchia-a de calafrios.
“Signore”, chamou ela no seu italiano espanholado, em
voz alta, buscando o empregado que o prefetto havia
chamado ao serviço só para a atender. “Per favore,
signore”
O silêncio era absoluto. Patrícia ainda considerou a
possibilidade de permanecer sentada e prosseguir a
consulta do manuscrito, rodeada pelo ambiente denso
daquele lugar opressor, mas a verdade é que os sons
inesperados e o mutismo pesado que os envolvia a
enervaram. Onde diabo se metera o empregado? Quem
estaria a fazer os ruídos que ela escutara? Se era o
empregado, porque não respondia?
“Signore”
Mais uma vez, ninguém replicou. Assaltada por uma
inquietude que não conseguia explicar, a historiadora
ergueu-se com um movimento repentino, como se esperasse
que a brusquidão afugentasse o próprio medo. Tinha de
tirar aquilo a limpo. Além do mais, acrescentou para si
mesma, era a última vez que aceitaria fechar-se sozinha
numa biblioteca à noite. Sob os contornos da treva,
tudo lhe parecia sinistro e ameaçador. Ainda se tivesse
o seu Manolo ao pé dela!...
Deu uns passos e cruzou a porta, decidida a esclarecer
o mistério do desaparecimento do empregado. Entrou na
Sala
Inventario
Manoscritti,
que
se
encontrava
mergulhada na escuridão, e apercebeu-se de uma mancha
branca a seus pés. Desceu o olhar para ver o que era.
Tratava-se de uma simples folha de papel pousada no
chão.
Intrigada, ajoelhou-se e, sem pegar nela, inclinando-se
como se a quisesse cheirar, estudou-a com uma expressão
intrigada.
“Que diabo é isto?”, interrogou-se.
Nesse instante sentiu um vulto sair da sombra e tombar
sobre ela. O coração disparou com o susto e Patrícia
quis gritar, mas uma enorme mão tapou-lhe a boca com
força e tudo o que conseguiu fazer foi emitir um gemido
de horror, rouco e abafado.
Tentou fugir. Contudo, o desconhecido era pesado e
prendeu-lhe os movimentos. Virou a cabeça para tentar
identificar o assaltante. Não o conseguiu encarar, mas
apercebeu-se confusamente de algo a cintilar no ar. No
derradeiro instante compreendeu que se tratava de uma
lâmina.
Não teve porém tempo de raciocinar sobre o que lhe
estava a suceder porque sentiu uma dor lancinante
rasgar-lhe o pescoço e o ar faltou-lhe de imediato.
Tentou gritar, mas não tinha ar. Agarrou no objecto
frio que lhe furava o pescoço, num esforço desesperado
para o travar, mas ele era manejado com demasiada força
e a energia começava a esvair-se do seu corpo. Um
líquido quente jorrou-lhe sobre o peito em golfadas e,
no estertor da aflição, tomou consciência de que era o
seu próprio sangue.
Foi a última coisa em que pensou, porque de imediato a
visão se encheu de luzes e depois de escuridão, como se
um interruptor a tivesse para sempre desligado.
I
O pincel escovou a terra que ao longo dos séculos se
acumulara sobre a pedra, entranhando-se nos poros mais
minúsculos. Quando a nuvem de pó acastanhado se
desvaneceu, Tomás Noronha aproximou os olhos verdes da
pedra, à maneira de um míope, e inspeccionou o
trabalho.
“Porra!”
Ainda havia terra por retirar. Suspirou fundo e passou
as costas da mão pela testa, ganhando embalo para mais
umas escovadelas. Aquele não era decididamente o tipo
de tarefa que mais apreciava, mas resignou-se; sabia
que na vida não se faz sempre aquilo de que se gosta.
Antes de recomeçar, todavia, ofereceu a si mesmo um
momento de repouso. Rodou a cabeça e apreciou a lua
cheia lá no alto, a irradiar um halo prateado sobre a
majestosa Coluna de Trajano. A noite era sem dúvida a
altura que mais apreciava para trabalhar ali no centro
de Roma; de dia o trânsito tornava tudo caótico. O
clamor das
buzinadelas e
o
ronco
furioso
das
britadeiras revelavam-se absolutamente infernais.
Consultou o relógio. Já era uma da manhã, mas estava
determinado a aproveitar a pausa que o sono dos
automobilistas romanos lhe havia concedido durante a
noite para adiantar o máximo de trabalho. Só sairia
dali às seis da manhã, quando os carros começassem a
encravar as ruas e o concerto das buzinadelas e das
britadeiras recomeçasse. Nessa altura iria dormir ao
seu pequeno hotel na Via dei Corso.
O telemóvel tocou no bolso das calças, arrancando-lhe
uma expressão inquisitiva. Àquela hora? Quem diabo lhe
ligaria à uma da manhã? Verificou o visor do telemóvel
e, depois de identificar o autor da chamada, premiu o
botão verde.
“Que se passa?”
A voz da mãe soou-lhe no aparelho no habitual queixume
inquieto.
“Filho, quando é que vens para casa? Olha que já se faz
tarde!..."
“Ó mãe, já lhe disse que estou no estrangeiro”,
explicou Tomás, enchendo-se de paciência; era a
terceira vez que lhe dizia o mesmo nas últimas vinte e
quatro horas. “Mas na próxima semana estou de regresso,
está bem? Vou logo visitá-la aí a Coimbra.”
“Onde estás tu, rapaz?”
“Em Roma.” Teve vontade de acrescentar que era a
milésima vez que o repetia, mas conteve a irritação.
“Fique descansada, logo que volte a Portugal vou vê-
la.”
“Mas o que estás tu a fazer em Roma?”
A limpar pedras, apeteceu-lhe responder. E não estaria
a mentir, considerou, lançando um olhar ressentido ao
pincel.
“Vim ao serviço da Gulbenkian”, acabou por esclarecer.
“A fundação está envolvida no restauro das ruínas do
fórum e dos mercados de Trajano, aqui em Roma, e vim
acompanhar os trabalhos.”
“Mas desde quando és tu arqueólogo?”
Ora aí estava uma boa pergunta! Apesar do Alzheimer que
por vezes lhe nublava o discernimento, a mãe fizera uma
pergunta bem certeira.
“Não sou. Acontece que o fórum tem duas grandes
bibliotecas e, já sabe como é, quando se fala em livros
antigos...”
A conversa não durou muito e, no instante em que
desligou, Tomás sentiu-se acossado por um sentimento de
culpa por quase se ter irritado durante o telefonema. A
mãe não tinha responsabilidade nenhuma pelos acessos de
amnésia provocados pela doença. Umas vezes melhorava e
outras piorava; ultimamente andava pior e fazia mil
vezes as mesmas perguntas. Os seus lapsos de memória
tornavam-se
enervantes,
mas
teria
de
ter
mais
paciência.
Pegou de novo no pincel, aproximou-o da pedra e voltou
a escovar. Quando viu a nuvem libertar-se daquele
pedaço de ruínas pensou que, à maneira de um mineiro,
deveria estar já com os pulmões carregados do miserável
pó castanho que se entranhara por toda a parte. Da
próxima vez traria uma máscara, como as dos cirurgiões.
Ou talvez o melhor fosse escapar àquele trabalho e
dedicar-se aos relevos que decoravam a Coluna de
Trajano. Levantou os olhos para o monumento. Sempre
tivera curiosidade de observar as cenas de campanha na
Dácia, gravadas na coluna e que apenas conhecia dos
livros. Já que ali estava, porque não estudá-las ao
vivo e de perto?
Escutou um burburinho atrás dele e virou a cabeça. Viu
o responsável pelas obras de restauro, o professor
Pontiverdi, falar alto com um homem engravatado e, com
gestos espalhafatosos e uma voz estridente, mandá-lo
ficar quieto. Depois aproximou-se de Tomás e esboçou um
sorriso obsequioso. “Professore Norona...”
“Noronha”, corrigiu Tomás, divertido por ninguém
conseguir acertar com a pronúncia correcta do seu nome.
“Diz-se nhe, como em bagno.”
“Ah, certo! Noronha!”
“Isso!”
“Mi dispiace, professore, mas está ali um polícia que
insiste em falar consigo.”
O olhar de Tomás desviou-se para o homem engravatado
que permanecia a uns dez metros de distância, entre
duas paredes em ruínas, o perfil recortado pelos
holofotes que haviam sido instalados para iluminar o
fórum; não parecia um agente da autoridade, talvez por
não se encontrar de uniforme. “Aquilo é um polícia?”
“Da Giudiziaria.”
“Para mim?”
“Oh, é muito desagradável. Tentei mandá-lo embora,
claro, e disse-lhe que não são horas para se incomodar
ninguém. É uma da manhã, Dio mio! Mas o idiota insiste
em falar consigo e já não sei o que lhe faça. Diz que é
de suprema importância, que é urgente, que isto e que
aquilo.” Inclinou o rosto e estreitou os olhos.
“Professore, se não o quiser atender, é só dizer.
Falarei com o ministro, se for preciso! Falarei até com
o presidente! Mas a si ninguém o incomodará.” Fez um
gesto pomposo apontando em redor. “Trajano deu-nos esta
obra maravilhosa e o senhor está a ajudar-nos a
recuperá-la. O que são os insignificantes assuntos da
polícia ao pé de coisa tão magnífica?” Quase colou o
indicador ao nariz de Tomás. “Falarei com o presidente,
se for preciso!”
O historiador português soltou uma curta gargalhada.
“Calma, professor Pontiverdi. Não tenho problema nenhum
em falar com a polícia. Ora essa!”
“Veja lá, professore! Veja lá!” Apontou com vigor para
o homem engravatado, o tom de voz já inflamado. “Olhe
que não me custa nada mandar aquele imbecille, aquele
cretino, aquele stronzo, para o raio que o parta!”
O polícia à paisana empertigou-se lá ao fundo.
“Está-me a chamar imbecille a mim? A mim?”
O arqueólogo italiano voltou-se para o polícia, o corpo
a estremecer de justa indignação, os braços a
gesticularem num frenesim, a mão acusadora a estender-
-se uma e outra vez na sua direcção.
“Sim, seu energúmeno! A si! A si! Imbecille! Cretino!”
Vendo a discussão começar a ficar fora de controlo,
Tomás puxou o professor Pontiverdi.
“Calma! Calma!”, disse, da forma mais conciliadora que
pôde. “Não há problema nenhum, professor. Eu falo com
ele. Não há drama.”
“A mim ninguém me chama imbecille”, protestou o
polícia, o rosto rubro de fúria, bramindo no ar o punho
cerrado e ameaçador. “Ninguém!”
“Imbecille!”
“Calma!”
“Stupido!”
Percebendo que não conseguiria travar a ira já
descontrolada do arqueólogo italiano, e vendo o polícia
a empertigar-se com a altercação, Tomás dirigiu-se
apressadamente para o homem engravatado. Esquivando-se
do chorrilho de insultos que os dois interlocutores
trocavam como de uma corrente invisível que jorrava
pelo ar, agarrou no polícia e arrastou-o para fora
dali.
“O senhor queria falar comigo?”, perguntou enquanto o
puxava pelos ombros, esforçando-se por quebrar o fluxo
da discussão. “Então venha daí.”
O polícia à paisana ainda soltou mais dois insultos na
direcção do professor Pontiverdi, ambos aos berros e a
esbracejar com profusão, mas deixou-se levar.
“Ah, porca miséria!”, desabafou logo que se voltou para
o português. “Quem pensa aquele... aquele scemo que é?
Ora já viu isto? Mamma mia! Que atrasado mental!”
Logo que sentiu que haviam ganho uma distância segura e
já não havia risco de a discussão ser retomada, Tomás
estacou junto à Via Biberatica e encarou o visitante.
“Então diga lá. O que quer de mim?”
O polícia respirou fundo e recuperou o fôlego, ainda a
recompor-se da discussão. Tirou um bloco de notas do
bolso e passou os olhos pelas anotações enquanto
ajeitava a gola do casaco.
“O senhor é o professore Tomás Noronha, da Universidade
Nova de Lisboa?”
“Sim, sou eu mesmo.”
O polícia encarou as escadas de madeira que ligavam as
ruínas do Fórum de Trajano à rua, situada no plano
superior, e fez com a cabeça sinal para se porem a
caminho.
“Tenho ordens de o levar para o Vaticano.”
II
Uma azáfama inesperada dominava a Praça Pio XII, mesmo
em frente à Praça de São Pedro e à sua imponente
basílica iluminada. Embora fosse um lugar habitualmente
tranquilo àquela hora da noite, um bulício frenético
animava o espaço diante do Vaticano. Havia vários
carros azuis da polícia e uma ambulância estacionados
na Pio XII com as luzes azuis de emergência a girar nos
tejadilhos, como faróis acelerados, embora mantendo-se
em silêncio. Algumas pessoas formigavam em redor; umas
eram carabinieri e outras, de bata branca, pareciam
paramédicos.
“O que se passa?”
O polícia à paisana ignorou a pergunta, a exemplo do
que havia feito durante a curta viagem pelas ruas
desertas de Roma. Claramente, a discussão com o
professor Pontiverdi nas ruínas do Fórum de Trajano
tinha-o deixado maldisposto e com pouca vontade de
esclarecer as dúvidas do seu acompanhante.
O Fiat anónimo da polícia acelerou pela Via di Porta
Angélica e, com uma travagem brusca, estacionou aos pés
das muralhas altas do Vaticano, perto da Porta
Angélica. O polícia abriu a porta do automóvel e emitiu
um grunhido, fazendo sinal a Tomás de que o seguisse. O
visitante apeou-se e alçou o olhar para o enorme vulto
iluminado que se erguia à esquerda; tratava-se da
grande e emblemática abóbada iluminada da Basílica de
São Pedro, que recortava a noite como um gigante
adormecido.
Encaminharam-se ambos para o complexo do Vaticano, na
zona de Belvedere, o italiano à frente em passo
apressado, o historiador atrás ainda sem perceber
exactamente o que se passava. O polícia fez continência
a um homem alto que os esperava junto à Porta Angélica,
vestido com uma fantasia espampanante em faixas
berrantes de azul e amarelo, como se a roupa fosse um
estandarte, e com uma boina negra na cabeça. Seria um
palhaço? Ali?
“Professore Noronha”, disse o desconhecido das roupas
garridas, cumprimentando-o. “Faça o favor de me
acompanhar.”
Atordoado com a vertigem dos acontecimentos, Tomás
amaldiçoou-se em voz baixa. Como podia ter confundido
um guarda suíço com um palhaço? Devia estar a dormir em
pé! Aquelas roupas, que momentos antes lhe tinham
parecido bizarras, haviam sido desenhadas por um dos
maiores pintores da história, Miguel Ângelo. Como podia
ser tão estúpido? Era decerto do adiantado da hora!...
“Onde vamos?”
“Onde o esperam.”
Engraçadinho, pensou Tomás. Aquela era uma forma de
responder sem dizer nada.
“Esses trajes”, lançou o português em jeito de
provocação. “Vocês andam sempre assim vestidos?”
O suíço lançou-lhe um olhar enfadado.
“Não”, retorquiu no tom contrariado de quem não gosta
de explicar as suas vestes garridas. “Estávamos a fazer
um exercício de parada no Portone di Bronzo, que a esta
hora está fechado, quando me chamaram de urgência.”
O desagrado do homem era evidente, pelo que Tomás
encolheu os ombros de resignação e acompanhou em
silêncio o guarda suíço pelos pátios e pelas passagens
do Vaticano, os passos de ambos a ecoarem com secura
pelo piso. Caminharam uns cinquenta metros até
desaguarem num pátio cercado pela arquitectura opulenta
da Santa Sé, marcada por uma torre redonda que o
historiador logo reconheceu; era a antiga sede do Banco
Ambrosiano, agora entregue ao Istituto per le Opere di
Religione. Passaram por um posto da Polizia Vaticana,
uma força diferente da guarda suíça e que dava um certo
ar de gendarmeria francesa, e viram adiante, à direita,
a farmácia.
“Chegámos”, anunciou o guarda suíço.
O homem conduziu o visitante por uma porta discreta.
Subiram umas escadas e foram dar a um átrio envidraçado
e apetrechado de sistemas de segurança. Adiante abria-
-se um salão com as paredes repletas de livros.
Passaram a segurança, entraram no salão e, ao estudar
as estantes com a sua panóplia de lombadas antigas,
Tomás percebeu que se encontravam na Biblioteca
Apostólica Vaticana.
As janelas abriam-se para o Cortile dei Belvedere, mas
a atenção do historiador voltou-se para o movimento
junto à porta de acesso ao grande salão da Leonina.
Viam-se dois guardas suíços, três carabinieri, dois
religiosos e mais umas pessoas à paisana; falavam em
voz baixa, umas movimentando-se com propósito, outras
aparentemente perdidas ou ociosas.
O guia entregou-o a um homem à paisana, que o levou ao
longo da Leonina até uma mulher que se encontrava de
costas, de tailleur cinzento-escuro, à executiva,
debruçada sobre uma mesa a estudar o que parecia uma
grande planta do edifício.
“Inspectora, aqui está o suspeito.”
Suspeito?
Tomás quase olhou para trás, num esforço para
identificar a pessoa a quem o homem se referira, mas
percebeu de imediato que o suspeito era ele próprio.
Ele. O uso daquela palavra em referência à sua pessoa
deixou-o chocado. Suspeito? Era suspeito de quê? Que se
passava? O que vinha a ser aquilo?
A inspectora voltou-se para o encarar e o historiador
sofreu um novo choque, mas desta vez de natureza
diferente. Ela tinha os cabelos castanhos encaracolados
até aos ombros, o nariz pontiagudo e uns olhos azuis
profundos e límpidos, à Jacqueline Bisset. Não estava
maquilhada, mas parecia-lhe encantadora.
“Que se passa?”, perguntou ela ao surpreender-lhe a
expressão embasbacada. “Que cara é essa? Está a olhar
para mim e parece que viu o Diabo!...”
“O Diabo, não”, retorquiu Tomás, esforçando-se por
retomar a compostura. “Um anjo.”
A inspectora fez um estalido de contrariedade com a
língua.
“Olhem a minha sorte!”, exclamou, revirando os olhos.
“Saiu-me um galanteador na rifa! Confirma-se assim que
os Romanos deixaram mesmo descendência em Portugal!...”
Tomás corou e baixou os olhos.
“Desculpe, não resisti.”
A italiana levou a mão ao bolso interior do casaco e
extraiu um cartão que exibiu na direcção do recém-
-chegado.
“Chamo-me Valentina Ferro”, identificou-se com uma voz
profissional. “Sou inspectora da Polizia Giudiziaria.”
O visitante sorriu.
“Tomás Noronha, galanteador. Nas horas vagas sou também
professor na Universidade Nova de Lisboa e consultor da
Fundação Gulbenkian. A que devo a honra do convite para
nos encontrarmos em local tão exótico, a hora tão
comprometedora?”
Valentina fez um esgar de desagrado.
“Aqui quem faz as perguntas sou eu, se não se importa”,
repreendeu-o com rispidez. Cravou os olhos no seu
interlocutor, como uma gata atenta à reacção dele às
palavras que ia proferir. “Por acaso conhece a
professora Patrícia Escalona?”
O nome surpreendeu Tomás.
“A Patrícia? Sim, claro. É uma colega minha da
Universidade de Santiago de Compostela. Uma simpatia de
moça. É da Galiza. Os Galegos e os Portugueses são
povos gémeos, sabia?” Olhou a italiana, subitamente
inquieto. “Porquê? Que se passa? Porque quer saber da
Patrícia? Aconteceu alguma coisa?”
A inspectora perscrutou-lhe o rosto com os olhos
semicerrados, como se tentasse avaliar o significado e
a sinceridade da expressão facial dele ao ouvir a
pergunta
e
ao
responder.
Deixou-se
ficar
momentaneamente calada, enquanto ponderava o passo
seguinte e os prós e contras de abrir o jogo.
Acabou por se decidir.
“A professora Escalona morreu.”
A informação constituiu uma estalada brutal, que fez
Tomás arregalar os olhos e recuar um passo, como se
estivesse a ponto de perder o equilíbrio.
“A Patrícia? Morreu?” Ficou por instantes de boca
aberta, tentando absorver a notícia. “Mas... mas... que
absurdo! Como é que isso... Como foi que... O que
aconteceu?” “Foi assassinada.”
Nova estalada.
“O quê?”
“Esta noite.”
“Mas... mas...”
“Aqui no Vaticano.”
Abalado pela notícia, Tomás cambaleou para junto da
mesa onde estava estendida a grande planta do Vaticano
e deixou-se cair numa enorme cadeira.
“A Patrícia? Assassinada? Aqui?” Falava pausadamente e
a abanar a cabeça, como se a informação não fizesse
qualquer sentido e tivesse até dificuldade em assimilá-
-la. “Mas... mas quem? Porquê? Como? O que aconteceu?”
A italiana aproximou-se devagar e pôs-lhe a mão no
ombro, num gesto de compaixão.
“E para perceber isso que aqui estou”, disse ela. “E o
senhor também.”
“Eu?”
Valentina pigarreou, como se considerasse a melhor
forma de pôr a questão.
“Sabe, na investigação de um homicídio costuma haver
uma figura crucial para deslindar o caso”, disse.
“Trata-se da última pessoa com quem a vítima esteve ou
falou.” Tomás sentia-se de tal modo abananado que mal
reagiu a estas palavras.
“Ai sim?”
“Acontece que estivemos a ver a lista de chamadas do
telemóvel da professora Escalona nas duas horas que
precederam a sua morte”, acrescentou, falando com vagar
deliberado. “Adivinhe qual foi o último número para o
qual ela ligou?”
Como era possível que Patricia tivesse sido
assassinada?, questionava-se Tomás sem cessar. A
informação era de tal modo difícil de digerir que mal
conseguia acompanhar as palavras da sua interlocutora.
“Hã?”
Valentina respirou fundo.
“O seu.”
III
O ar frio de Dublin acolheu o passageiro solitário que
desembarcava do pequeno e luxuoso Cessna Citation X
acabado de aterrar. Passava já das duas da manhã e o
aeroporto estava prestes a encerrar por umas horas;
aquele tinha sido o último voo da jornada e o próximo,
primeiro da jornada seguinte, só estava previsto para
as seis da manhã.
O passageiro solitário levava apenas bagagem de mão,
uma mala de executivo de couro negro que nem sequer foi
inspeccionada porque o pequeno bimotor a jacto havia
sido fretado de propósito para ele e descolara de um
pequeno aeródromo. Seguiu directamente as indicações
para a saída e resmungou, contrariado, quando o fizeram
passar pela alfândega; o seu voo tinha decorrido dentro
do espaço aéreo da União Europeia e não via necessidade
de exibir os documentos. Contudo, a apreensão revelou-
se desnecessária porque o inspector alfandegário
irlandês
lançou
apenas
um
olhar
sonolento
e
desinteressado ao passaporte do recém-chegado.
“Vem de onde?”, quis saber, evidentemente mais por
curiosidade do que por necessidade de serviço.
“Roma.”
O irlandês, decerto um católico praticante, suspirou de
melancolia; era como se uma visita a Roma estivesse no
itinerário dos seus sonhos. Devia ter invejado o
passageiro que acabara de desembarcar, mas isso não o
impediu, de esboçar um sorriso fraco e de lhe fazer
sinal para passar.
Uma vez no átrio do terminal, o visitante ligou o
telemóvel. Uma musiquinha assinalou a reactivação do
aparelho. Digitou o código de acesso e o telemóvel pôs-
-se de imediato à procura de rede. O processo levou
mais de dois minutos, tempo que ocupou a levantar
dinheiro de uma caixa multibanco, mas acabou enfim por
se alinhar com uma rede irlandesa que lhe enviou
sucessivas mensagens automáticas de boas-vindas e lhe
comunicou os preços do roaming.
Ignorando aquelas informações irrelevantes, o recém-
-chegado digitou de memória o número internacional e
aguardou que atendessem do outro lado. Bastaram dois
toques.
“Chegaste, Sicarius?”
O passageiro cruzou as portas automáticas do aeroporto
e sentiu a frescura agreste da noite atlântica
esbofetear-lhe a face e envolver-lhe o corpo com
agressividade.
“Sou eu, mestre”, confirmou. “Aterrei há minutos.”
“Correu bem a viagem?”
“Uma maravilha. Dormi que nem um bebé.”
“É melhor ires descansar. Fiz-te há pouco uma reserva
no Radisson aí no aeroporto e...”
“Não, vou avançar agora.”
Fez-se uma pausa do outro lado da linha e Sicarius
ouviu a respiração pesada do mestre.
“Tens a certeza? O trabalho em Roma foi impecável, mas
não quero que corras riscos desnecessários. Isto
envolve responsabilidade e deve ser feito sem falhas.
Talvez seja preferível repousares.
“Prefiro não perder tempo”, disse o recém-chegado sem
hesitar. “Pela noitinha é sempre mais tranquilo. E
quanto mais fulminante for a operação menor tempo de
reacção terá o inimigo.”
O seu interlocutor ao telefone suspirou, vencido mas
não inteiramente convencido.
“Muito bem”, assentiu. “Se achas assim...” Fez uma
pausa e ouviu-se um remexer de papéis. “Vou falar com o
meu contacto e já te ligo.”
“Fico à espera, mestre.”
Fez-se nova pausa no outro lado da linha.
“Tem cuidado.”
E desligou.
O corpo estava estendido no chão, coberto por um lençol
branco, e apenas os pés eram visíveis; um encontrava-se
descalço, o outro tinha um sapato de senhora com o
salto quebrado. Viam-se algumas manchas de sangue
espalhadas pelo chão e vários homens de cócoras ou em
pé a examinarem pormenores, alguns com lupas e todos de
luvas brancas, evidentemente em busca de indícios que
pudessem dar-lhes mais informações sobre o que ali se
passara. O que sobretudo procuravam era vestígios, como
cabelos, traços de sangue ou impressões digitais, que
os conduzissem à identidade do homicida.
Valentina acocorou-se ao lado do corpo e lançou por
cima do ombro um olhar a Tomás, que se aproximava a
medo.
“Preparado?”
O historiador engoliu em seco e assentiu. A inspectora
da Polizia Giudiziaria pegou numa ponta do lençol e
dobrou-o com um movimento suave, destapando uma parte
do corpo.
A cabeça. Tomás reconheceu a face de Patrícia, já com
um toque de lividez a lavar-lhe a pele, os olhos
paralisados numa expressão vítrea de espanto, os lábios
entreabertos com a língua enrolada para dentro e uma
mancha densa de sangue seco e escuro agarrada ao
pescoço.
“Meu Deus!”, exclamou Tomás, tapando a boca com a mão
enquanto fitava horrorizado o cadáver da colega
espanhola. “Foi... foi estrangulada?”
Valentina abanou a cabeça e indicou a mancha no
pescoço. “A expressão correcta é degolada”, corrigiu-o.
“Como um cordeiro, está a ver?” Aproximou os dedos da
fenda que lhe rasgava a pele. “Usaram uma faca e...”
“Coitada! Que coisa horrível! Como é possível?” Desviou
o olhar, recusando-se a ver mais; a morte parecia
despojar a sua amiga de toda a dignidade. “Quem lhe fez
uma coisa destas?”
A italiana voltou a tapar o rosto da vítima e ergueu-se
devagar, encarando o historiador.
“É justamente o que estamos a tentar perceber. E para
isso precisamos da sua ajuda.”
“Tudo”, exclamou ele, enfático, ainda com o rosto de
lado. “Tudo o que for preciso.”
“Então comecemos pelo telefonema. Como explica que a
última chamada que ela fez tenha sido para si?”
“É muito simples”, disse Tomás, devolvendo-lhe enfim o
olhar; sabia que a questão era crucial, considerando
que aquele pormenor os levava a encararem-no como um
suspeito. “Estou aqui a trabalhar nas obras de restauro
do Fórum de Trajano, a pedido da Fundação Gulbenkian,
de que sou consultor. A Patrícia faz... fazia também
consultoria ocasional para a Gulbenkian e conhecemo-nos
de alguns trabalhos de peritagem que tivemos de levar a
cabo em conjunto. Ela chegou esta noite a Roma e, como
pelos vistos sabia que eu também cá estava, fez-me um
telefonema. Foi isto e só isto.” Valentina esfregou o
queixo, avaliando o que acabara de escutar.
“Como soube ela da sua presença em Roma?”
O historiador hesitou.
“Isso... isso não sei.”
A
inspectora,
que anotava
no seu
bloco
estas
informações, parou de escrever e levantou os olhos para
o suspeito. “Não sabe como?”
“Não sei”, repetiu ele. “Suponho que alguém da fundação
lhe deve ter dito...”
“Tem a noção de que vamos verificar tudo?”
Tomás esboçou uma expressão cândida.
“Esteja à vontade”, disse, retirando o telemóvel do
bolso. “Se quiser, digo-lhe já o número do engenheiro
Vital, em Lisboa. É ele que habitualmente lida comigo e
com a Patrícia.” Premiu umas teclas. “Cá está. É o
21...”
“Dá-me o telefone dele depois”, interrompeu-o
Valentina, aparentemente convencida com a explicação e
a mente já ocupada com outras questões mais prementes
naquele momento. “Ela revelou-lhe o que veio cá fazer?”
“Não. Pareceu-me até um pouco misteriosa quanto a
isso.”
“Misteriosa?”
“Sim, não quis dizer tudo ao telefone. Mas combinámos
almoçar amanhã e é natural que nessa altura me
contasse.” O olhar de Tomás passeou pelas estantes
ricamente decoradas da Sala Consultazioni Manoscritti.
“Percebo agora que veio fazer uma investigação aqui à
Biblioteca do Vaticano...” Valentina parecia já não o
escutar; lia com atenção umas fotocópias cheias de
rabiscos e anotações marginais. O português espreitou
as fotocópias e verificou, surpreendido, que incluíam
uma velha fotografia sua; era um relatório com o perfil
dele.
“Vejo aqui que, além de historiador, o senhor é cripta-
nalista e perito em línguas antigas.”
“Exacto.”
A inspectora deu dois passos para o lado e indicou uma
folha branca de papel pousada no chão.
“Sabe dizer-me o que é isto?”
Tomás pôs-se ao lado da italiana e inclinou-se sobre a
folha, analisando-a de perto.
“Que estranho!”, murmurou. “Não se parece com nenhuma
língua ou alfabeto que eu conheça...”
“De certeza?”
O historiador permaneceu ainda alguns segundos a
estudar os estranhos símbolos, procurando pistas que o
conduzissem a uma solução, até que endireitou o corpo.
“Absoluta.”
“Veja lá bem.”
Tomás manteve a atenção presa no enigma. Um dos
símbolos, o último, chamou-lhe a atenção; parecia bem
diferente dos restantes. Para o ver de uma outra
perspectiva, deu uns passos e contornou a folha de
papel. Baixou-se de novo e analisou mais uma vez a
charada. Após uns instantes, os lábios abriram-se num
sorriso e fez sinal à inspectora.
“Venha ver.”
Valentina foi ter com ele e, inclinando-se também sobre
o papel, encarou o enigma na perspectiva inversa.
“Alma?”, murmurou ela, sem descolar os olhos da folha,
agora de cima para baixo em relação à perspectiva
anterior. “Que diabo quer isto dizer?.”
O historiador inclinou a cabeça.
“Ora!”, exclamou, apontando para a palavra. “Não sabe?”
“Em italiano, alma significa espírito...”
“Tal como em português, aliás.”
“Mas, neste contexto, o que raio quererá isto dizer?”
Tomás curvou os lábios numa expressão de ignorância.
“Não sei. Será que o assassino se quer fazer passar por
uma alma penada? Pretenderá insinuar que nunca o
apanharão porque é fugidio como um espírito?”
Valentina pousou a mão sobre o ombro do seu
interlocutor e deu-lhe umas palmadas de encorajamento,
claramente impressionada.
“Você é bom, não há dúvida”, disse num tom de
aprovação. Endireitou-se e encarou-o com uma expressão
de desafio. “Quem sabe se conseguirá ajudar-me ali com
uma outra charada... Quer ver?”
“Mostre lá.”
A inspectora fez-lhe sinal de que a seguisse e,
contornando o cadáver estendido no chão, aproximou-se
da mesa de leitura, no centro da Sala Consultazioni
Manoscritti. Um enorme volume encontrava-se deitado
sobre a madeira envernizada da mesa, aberto numa página
já perto do fim. “Sabe o que isto é?”
Tomás seguiu-a, caminhando com mil cautelas para evitar
pisar qualquer mancha de sangue e perturbar assim os
trabalhos de recolha de indícios. Encostou-se à mesa,
inclinou-se sobre o volume e percebeu, pelo estado do
pergaminho, que se tratava de um documento muito
antigo. Leu umas linhas e franziu a sobrancelha.
“Isto é S. Paulo”, identificou. “Um trecho da Carta aos
Hebreus.” Inspirou o aroma exalado pelo pergaminho,
sentindo-lhe o perfume adocicado pelos séculos. “Um
original da Bíblia, portanto. Escrito em grego, por
sinal.” Olhou com uma expressão interrogadora para a
italiana. “Que manuscrito é este?” Valentina pegou no
volume e exibiu as letras na capa dura. “Codex
Vaticanus.”
Ao ver o título, o historiador escancarou a boca de
admiração e cravou de novo os olhos no manuscrito,
desta feita com incredulidade, como se visse e não
acreditasse. Reanalisou o pergaminho para se certificar
de que era mesmo antigo e a seguir aproximou o nariz
para o cheirar. A confirmação deixou-o estupefacto.
“Isto é o Codex Vaticanus? O documento original?”
“Sim, claro. Porquê essa admiração?”
Como se o manuscrito fosse uma relíquia que valesse o
seu peso em ouro, Tomás arrancou-o das mãos da
inspectora e pousou-o com infinito cuidado sobre a mesa
de leitura; dir-se-ia que manejava um delicado
candelabro de cristal.
“Isto é um dos mais valiosos manuscritos que existem no
planeta!”, disse, num tom de repreensão. “Não se pode
pegar nele assim de qualquer maneira. Meu Deus, isto é
uma coisa única! Não tem preço! É como... é como se
fosse a Mona Lisa dos manuscritos, percebe?” Lançou um
olhar fulminante para a porta, como se o papa ali
estivesse e o quisesse admoestar nos termos mais
vigorosos por não guardar devidamente um tesouro
daqueles. “Nem sabia que eles autorizavam com tanta
facilidade a consulta deste original. É incrível! Uma
coisa destas não devia ser permitida! Como é possível?”
“Tenha calma”, devolveu Valentina. “O prefetto da
biblioteca já me explicou que, em condições normais,
ninguém tem acesso a este manuscrito, apenas a cópias.
Mas parece que a vítima era um caso especial...”
Tomás assentou os olhos no corpo tapado pelo lençol, na
passagem entre as duas salas, e engoliu a indignação.
“Ah, bom...”
Se o acesso ao original do Codex Vaticanus era
excepcional, raciocinou, nada tinha a dizer.
“O que eu queria era saber o que tem este manuscrito de
tão especial.”
A atenção do historiador regressou ao códice pousado
sobre a mesa de leitura.
“De todas as Bíblias que recuam aos primórdios do
cristianismo, o Codex Vaticanus é provavelmente a de
melhor qualidade.” Passou a mão sobre o pergaminho
amarelecido ao longo de quase dois milénios. “Data do
século IV e contém a maior parte do Novo Testamento.
Dizem que foi uma oferta do imperador bizantino ao
papa.” A palma da mão desceu sobre a folha e acariciou-
a com um movimento suave. “Um tesouro. Nunca imaginei
poder um dia tocar nele.” O rosto abriu-se num sorriso
quase beatífico. “O Codex Vaticanus. Quem diria?” “Não
consegue
imaginar
o
que
a
professora
Escalona
procuraria nestas páginas?”
“Não faço a mínima ideia. Porque não perguntam a quem
lhe encomendou o trabalho?”
Valentina suspirou.
“Pois, esse é um dos problemas”, admitiu. “Não sabemos
para quem estava ela a trabalhar. Aliás, pelos vistos
mais ninguém sabia. Nem sequer o marido. Parece que a
professora Escalona encarava este trabalho como um
segredo de estado, está a ver?”
A observação acicatou a curiosidade de Tomás. Um
segredo
de
estado?
O
historiador
perscrutou
o
manuscrito e encarou-o com novos olhos, já não ofuscado
pela sua importância como relíquia histórica, mas
vendo-o como fonte de informação que poderia ser
relevante para o crime que ali tinha sido cometido.
“O códice está aberto na página em que a Patricia o
deixou?”
“Sim. Ninguém mexeu nele. Porquê?”
Tomás não respondeu, preferindo ler o texto com atenção
renovada. O que haveria ali que tivesse interessado à
sua amiga? Que segredos estariam encerrados naquelas
linhas? Traduziu o texto mentalmente até embater na
palavra fatídica. Pronunciou-a em voz alta.
“Phanerón.”
“Perdão?”
O historiador indicou uma linha no manuscrito.
“Vê o que está aqui escrito?”
Valentina observou os caracteres arredondados, um dos
quais lhe parecia rasurado, e, abanando a cabeça, riu-
se.
“Não entendo nada. É chinês?”
Tomás pestanejou.
“Ah, desculpe! Às vezes esqueço-me que nem toda a gente
lê grego.” Voltou a atenção para a linha que indicara.
“O que temos aqui é uma epístola de S. Paulo que consta
do Novo Testamento. Trata-se da Carta aos Hebreus. Este
versículo é o 1:3 e a palavra que está aqui rasurada é
phanerón. Phanerón, ou manifesta. Nesta linha Paulo diz
que Jesus ‘manifesta todas as coisas pela Sua palavra
poderosa’. Mas a maior parte dos manuscritos da Bíblia
usa neste trecho a palavra pherón, que significa
sustém. Ou seja, uma coisa é dizer que Jesus manifesta
todas as coisas e outra é dizer que Jesus sustém todas
as coisas. Percebe? São sentidos diferentes.” Indicou a
palavra rasurada e uns gatafunhos à margem do
manuscrito. “Está a ver isto?”
“Sim...”
“Ao consultar o Codex Vaticanus, um escriba leu
phanerón e achou que havia um erro. O que fez ele?
Rasurou essa palavra e substituiu-a pela expressão mais
comum, pherón. Mais tarde um segundo escriba apercebeu-
se desta rasura, rasurou pherón e reescreveu phanerón,
a palavra original.” Apontou para os gatafunhos. “E
aqui na margem rabiscou esta nota: ‘Estúpido e
ignorante! Deixa o velho texto em paz, não o alteres!’”
Valentina cerrou as sobrancelhas, tentando extrair
daquela explicação um sentido que fosse relevante para
o assunto que tinha em mãos.
“Ah, muito interessante”, disse, evidentemente a pensar
o contrário. “E então? Qual a pertinência dessa charada
para esta investigação?”
Tomás cruzou os braços e apoiou o queixo nas mãos, numa
pose pensativa, enquanto considerava as implicações da
descoberta que acabara de fazer.
“É muito simples”, disse. “Esta rasura no Codex
Vaticanus ilustra um dos maiores problemas da Bíblia.”
Inclinou a cabeça para o lado, como se algo tivesse
acabado de lhe ocorrer. “Deixe-me fazer-lhe uma
pergunta: na sua opinião, a Bíblia representa a palavra
de quem?”
A italiana riu-se.
“Ora, que pergunta!”, exclamou. “De Deus, claro. Toda a
gente sabe isso!”
O historiador não acompanhou a gargalhada. Em vez disso
ergueu uma sobrancelha, numa expressão teatral de
cepticismo. “Está a dizer-me que foi Deus quem escreveu
a Bíblia?” “Bem... quer dizer, não”, atrapalhou-se
Valentina.
“Deus
inspirou
os
cronistas...
as
testemunhas... enfim, os evangelistas que escreveram as
Escrituras.”
“Essa inspiração divina significa o quê? Que a Bíblia é
um texto infalível?”
A inspectora hesitou; era a primeira vez que a forçavam
a pensar nisso dessa maneira.
“Suponho que sim. A Bíblia traz-nos a palavra de Deus,
não é? Nesse sentido, acho que se pode afirmar que é
infalível.”
Tomás lançou uma espreitadela ao Codex Vaticanus e fez
um estalido com a parte lateral dos lábios.
“E se eu lhe disser que pelos vistos a Patrícia andava
à caça dos erros do Novo Testamento?”
A inspectora esboçou um esgar inquisitivo.
“Erros? Que erros?”
O historiador susteve-lhe o olhar.
“Não sabia? A Bíblia contém muitos erros.”
“O quê?”
Tomás girou a cabeça em redor, procurando certificar-se
de que ninguém o escutava. No fim de contas encontrava-
-se em pleno Vaticano e não queria desencadear nenhum
incidente. Viu dois sacerdotes junto à porta que
conduzia à Leonina, um deles devia ser o prefetto da
biblioteca,
mas
concluiu
que
a
distância
era
suficientemente grande e não corria o risco de ser
escutado.
Inclinou-se, mesmo assim, para a sua interlocutora e
numa postura de conspirador preparou-se para partilhar
com ela um segredo com quase dois milénios.
“São milhares de erros a infectar a Bíblia”, murmurou.
“Incluindo fraudes.”
V
O silêncio da noite de Dublin foi perturbado pelo toque
impaciente do telemóvel. Havia já vinte minutos que
Sicarius aguardava aquela chamada num canto discreto no
exterior do aeroporto, longe dos candeeiros ou de
qualquer outra iluminação. Retirou o aparelho do bolso
e verificou a origem do telefonema antes de atender.
“Já tenho a informação de que precisas”, anunciou-lhe a
voz do outro lado da linha. “Parece que o nosso amigo
está enfiado na Chester Beatty Library.”
Sicarius extraiu do bolso a caneta e o bloco de notas e
pôs-se a rabiscar a informação.
“Ches... ter Bi...” Hesitou. “Como se soletra a segunda
palavra?”
“B... E... A... T... T... Y”, entoou o mestre do outro
lado da linha. “Beatty.”
“Library”, completou Sicarius. Guardou o bloco de notas
e espreitou o relógio, que durante o voo tinha já
ajustado à hora de Dublin, uma a menos que em Roma.
“Aqui são duas e meia da manhã. O gajo está numa
biblioteca a esta hora?”
“Estamos a lidar com historiadores...”
Sicarius soltou uma gargalhada seca e começou a
caminhar, abandonando o canto sombrio e dirigindo-se à
fila dos táxis, duas dezenas de metros adiante.
“E esta? Só me saem ratos de biblioteca na rifa!...”,
observou. “Dê-me uma referência ali perto.”
“Uma referência? Porquê?”
“Não quero indicar ao taxista a Chester Beatty Library.
Quando amanhã a coisa começar a ser noticiada é
importante que ele não se recorde que transportou um
cliente justamente para aquele local a estas horas...”
“Ah, estou a ver.” Calou-se e ouviu-se na linha o som
de papéis a serem remexidos. “Estou a verificar aqui no
mapa e... olha, o Castelo de Dublin. A biblioteca fica
ao pé do castelo.” Sicarius tomou nota da referência.
“Mais alguma coisa?”
O seu interlocutor afinou a voz.
“Ouve, não pensei que quisesses actuar já, por isso não
tratei do teu acesso ao edifício. Terás de improvisar
um pouco. Mas joga pelo seguro, ouviste?”
“Fique descansado, mestre.”
“Não te deixes apanhar. E se fores apanhado já sabes o
que tens de fazer.”
“Fique descansado.”
“Boa sorte!”
Sicarius guardou o telemóvel no bolso e estacou diante
da fila dos táxis. Chamar fila àquilo era, porém, uma
forma de falar; só lá estavam dois automóveis. Os
respectivos motoristas pareciam adormecidos, as cabeças
tombadas sobre os volantes, os vidros fechados para os
abrigar do frio. O recém-chegado bateu à janela da
viatura da frente e o motorista despertou com um
sobressalto. Olhou estremunhado para o cliente e levou
um instante a focar os olhos, recompor-se e fazer-lhe
sinal.
“Entre!”
O recém-chegado instalou-se no lugar de trás, junto à
janela, e pousou a pasta de couro negro no regaço.
“É para o Castelo de Dublin.”
O táxi arrancou, deslizando num murmúrio pelas vias de
saída do aeroporto rumo à cidade. As ruas estavam
desertas e a iluminação pública projectava um halo
espectral sobre a neblina.
Com movimentos precisos, Sicarius abriu a pasta e
contemplou a preciosidade que trazia ali dentro. A
adaga reluzia como cristal. Inspeccionou o metal e não
encontrou o menor vestígio de sangue; a limpeza tinha
sido perfeita. O viajante ficou um longo momento a
admirar-lhe
o
brilho,
quase
como
se
estivesse
enamorado; a lâmina era uma verdadeira obra de arte,
ondulante e aguçada, a prova de que os seus
antepassados milenares, inspirados pela graça divina,
sabiam moldar os metais até à perfeição.
Meteu a mão na pasta e pegou na sica; era
surpreendentemente pesada. Passou o dedo pelo fio da
lâmina e sentiu-lhe o poder cortante; talvez fosse
mesmo capaz de dividir uma folha de papel como se não
passasse de um bife tenro. A lâmina cintilava de tão
cristalina, reflectindo as luzes do exterior como um
diamante puro. Com o jeito de um pai carinhoso que
deposita a filha adormecida no leito, Sicarius
devolveu-a com cuidado ao seu lugar no interior da
pasta. Sabia que a adaga não permaneceria assim
imaculada muito mais tempo.
O sangue esperava-a.
VI
A face contrariada de Valentina Ferro constituiu um
sinal de alerta de que Tomás de imediato se apercebeu.
A inspectora pareceu reagir mal à revelação de que a
Bíblia continha milhares de erros e fechou o rosto,
criando uma súbita barreira entre os dois. O português
tinha consciência de que, se havia assuntos de grande
sensibilidade, as convicções religiosas eram sem dúvida
um dos que requeriam maiores cuidados. Não valia a pena
ferir susceptibilidades e ofender as pessoas, mesmo que
fosse com a verdade.
Em busca de uma saída, deitou teatralmente uma mirada
ao relógio e fez um ar admirado.
“Ah, já é tão tarde!”, exclamou. “Parece-me que é
melhor voltar para o Fórum de Trajano. Os trabalhos de
restauro vão prosseguir até ao amanhecer e o professor
Pontiverdi está a contar comigo.”
A inspectora fez um esgar de descontentamento.
“O senhor não vai a parte nenhuma enquanto eu não
autorizar”, sentenciou num tom frio.
“Porquê? Ainda precisa de mim?”
Valentina desviou o olhar para o corpo coberto que
permanecia deitado no chão.
“Tenho um crime para deslindar e os seus talentos
podem-me ser úteis.”
“Mas o que quer ainda saber?”
“Quero perceber a investigação que a vítima estava a
conduzir e a sua relação com o homicídio. Isso pode
dar-me pistas cruciais.”
O historiador abanou enfaticamente a cabeça.
“Eu não disse que havia uma relação!...”
“Mas digo eu.”
A
declaração
deixou
Tomás
atónito.
Olhou
momentaneamente para o cadáver e depois para a
inspectora.
“O quê?”, admirou-se. “Acha que a Patrícia foi
assassinada por causa da investigação que estava a
fazer? Porque diz isso?” O rosto de Valentina voltou a
fechar-se.
“Cá tenho as minhas razões”, murmurou de uma forma
críptica. Pousou a mão sobre o Codex Vaticanus,
redireccionando
a
conversa
para
a
questão
que
considerava central. “Explique-me lá essa treta dos
erros da Bíblia que ela procurava neste manuscrito.”
O historiador hesitou. Deveria mesmo meter-se por
aquele caminho de destino incerto? Os instintos
respondiam-lhe que não. Sabia que poderia ter de dizer
coisas consideradas ofensivas por um crente e não tinha
a certeza de que isso seria sensato. Cada pessoa tinha
as suas convicções, e quem era ele para as pôr em
causa?
Mas havia o outro lado da questão a levar em conta.
Afinal uma amiga dele tinha sido assassinada e, se a
inspectora encarregada da investigação considerava que
os
seus
talentos
e
conhecimentos
poderiam
ser
importantes para deslindar o caso, porque haveria de
lhe negar ajuda? Além do mais, não podia esquecer o
pormenor de que tinha sido considerado sob suspeita.
Pressentia que, se não colaborasse nas investigações,
isso poderia ser problemático.
Respirou fundo e cerrou os olhos por momentos, como um
pára-quedista prestes a lançar-se no vazio, e deu o
passo que mais temia.
“Muito
bem”,
concordou.
“Mas
primeiro
deixe-me
esclarecer uma coisa.”
“O que quiser.”
Os olhos verdes de Tomás cravaram-se no azul celestial
dos de Valentina, como se quisessem ver para além deles
e chegar ao fundo para perceber o que os animava.
“Você é cristã, presumo.”
A inspectora da Polizia Giudiziaria assentiu com um
movimento discreto da cabeça e puxou de debaixo da gola
da camisola um delicado fio de prata que trazia
pendurado ao pescoço.
“Católica romana”, disse, exibindo uma pequena cruz
pendurada no fio. “Sou italiana, não é verdade?”
“Então há uma coisa que é importante que perceba”,
afirmou ele. Encostou a palma da mão ao seu próprio
peito. “Eu sou historiador. Os historiadores não
investigam com base em fé religiosa, antes assentam as
suas conclusões nos vestígios: restos arqueológicos ou
textos, por exemplo. No caso do Novo Testamento,
estamos a falar essencialmente de manuscritos. Eles são
uma importantíssima fonte de informação para perceber o
que aconteceu no tempo de Jesus. Porém, têm de ser
usados com muita cautela. Um historiador precisa de
perceber as intenções e os condicionalismos do autor
dos textos para descobrir coisas para além do que está
lá escrito. Repare, se eu ler uma notícia do Pravda no
tempo da União Soviética a dizer que foi feita justiça
sobre um lacaio imperialista que punha em causa a
revolução, tenho de eliminar toda a retórica ideológica
e perceber o facto por detrás dessa notícia: foi
executada uma pessoa que se opunha ao comunismo.
Certo?”
O olhar de Valentina tornou-se gelado.
“Está a comparar o cristianismo com o comunismo?”
“Claro que não”, apressou-se ele a esclarecer. “Estou
apenas a dizer que os textos exprimem a intenção e os
condicionalismos dos seus autores, e um historiador
deve levar isso em conta quando os lê. Os autores dos
Evangelhos não queriam meramente relatar a vida de
Jesus. Pretendiam glorificá-lo e persuadir outras
pessoas de que ele era o Messias. Isso é algo que um
historiador não pode ignorar. Percebe?”
A italiana fez um sinal afirmativo.
“Claro, não sou burra”, disse. “No fundo também é isso
que um detective faz, não é verdade? Quando ouvimos uma
testemunha, temos de interpretar o que ela diz em
função da sua situação e das suas intenções. Nem todas
as suas afirmações são para levar à letra. Parece-me
óbvio.” “Nem mais”, exclamou Tomás, satisfeito por se
ter feito entender. “O mesmo se passa connosco, os
historiadores. Somos uma espécie de detectives do
passado. Mas é importante que perceba que, quando
estudamos uma grande figura da história, por vezes
descobrimos
coisas
que
os
seus
admiradores
incondicionais talvez não gostassem de saber. Coisas
que
podem
ser...
desagradáveis,
entende?
Porém,
verdadeiras.”
Fez uma pausa para se assegurar de que este ponto tinha
sido perfeitamente assimilado.
“E então?”, impacientou-se Valentina.
“E então preciso de saber se me quer escutar até ao
fim, sabendo que vou dizer algumas coisas sobre Jesus e
a Bíblia que poderão mexer profundamente com as suas
convicções religiosas. Não quero que se zangue comigo a
cada revelação que lhe faça. Se é para isso, mais vale
eu ficar calado.”
“Essas coisas que me pode revelar... de certeza que são
verdadeiras?”
Tomás fez que sim com a cabeça.
“Tanto quanto podemos determinar, sim.” Esboçou um
sorriso
sem
humor.
“Chamemos-lhes...
verdades
inconvenientes.”
“Então, força com isso.”
O historiador perscrutou-a com cuidado, como se
duvidasse da sinceridade do que acabara de escutar.
“De certeza? Não me vai prender no fim?”
A pergunta teve o condão de quebrar o gelo no rosto de
Valentina.
“Não sabia que tinha medo de mulheres”, sorriu.
Tomás riu-se.
“Só das lindíssimas.”
“Ah, pois. Já cá faltavam os galanteios”, repreendeu-o
a italiana, corando. Antes que ele pudesse retorquir,
porém, Valentina voltou a pousar a mão no Codex
Vaticanus, reencaminhando mais uma vez a conversa.
“Então diga lá. Que erros são esses que constam da
Bíblia?”
O historiador fez-lhe sinal de que se sentasse e ele
próprio se acomodou à mesa de leitura, junto ao célebre
códice do século IV. Tamborilou os dedos na madeira
envernizada da mesa, tentando decidir por onde começar;
havia tanta coisa para dizer que a dificuldade era
justamente estabelecer o roteiro da conversa.
Por fim ergueu os olhos e fitou-a.
“Por que razão é cristã?”
A inspectora foi apanhada de surpresa.
“Bem...”, titubeou a italiana, “é uma questão de...
enfim, a minha família é católica, cresci com essa
educação e... e sou também católica. Porque quer saber
isso?”
“Está a dizer-me que é cristã meramente por tradição
familiar?”
“Não... quer dizer, claro que a tradição conta. Mas
acredito nos valores cristãos, acredito no que Jesus
nos ensinou. É isso que faz de mim uma cristã.”
“E quais são os ensinamentos de Jesus que mais
valoriza?” “O amor e o perdão, sem dúvida.”
Tomás deitou um olhar ao Codex Vaticanus, testemunha
silenciosa daquela conversa.
“Conte-me um episódio do Novo Testamento que considere
mais emblemático desses ensinamentos.”
“Ah, a história da adúltera”, disse Valentina sem
hesitar. “A minha avó falava-me muito nessa história,
era a sua favorita. Presumo que a conheça bem, não?”
“Quem não a conhece? Se exceptuarmos as narrativas do
nascimento e da crucificação de Jesus, esse é o
episódio mais famoso do Novo Testamento.” Recostou-se
na cadeira, como se se preparasse para assistir a um
espectáculo. “Mas diga-me lá: o que sabe sobre a
história da adúltera?”
O pedido voltou a atrapalhar a italiana.
“Sei o que toda a gente sabe, acho eu”, disse. “A lei
judaica prevê que os adúlteros sejam apedrejados até à
morte, não é verdade? Acontece que certa vez os
fariseus foram ter com Jesus e levaram-lhe uma mulher
que tinha sido apanhada em adultério. Queriam testar o
respeito de Jesus pela lei de Deus. Os fariseus
lembraram-lhe que a lei que Deus entregou a Moisés
previa a lapidação da adúltera...”
“É o que diz a Bíblia”, atalhou Tomás. “Em Levítico,
20:10, Deus diz a Moisés: ‘Se um homem cometer
adultério com a mulher de outro homem, com a mulher do
seu próximo, o homem e a mulher adúltera serão punidos
com a morte.’ ”
“Pois”, assentiu Valentina. “Os fariseus conheciam,
claro, essa ordem de Deus, mas pretendiam primeiro
saber o que tinha Jesus a dizer sobre o assunto.
Deveriam apedrejá-la até à morte, como requeria a lei,
ou deveriam conceder-lhe o perdão, como Jesus andava a
pregar? Esta pergunta era evidentemente um ardil, uma
vez que, se recomendasse a lapidação, Jesus estaria a
contradizer tudo o que ensinara sobre o amor e o
perdão. Mas se a libertasse estaria a violar a lei de
Deus. O que fazer?”
“Toda a gente conhece a resposta a esse dilema”, sorriu
o historiador. “Sem levantar a cabeça, e sempre a
rabiscar coisas na areia, Jesus disse-lhes que atirasse
a primeira pedra quem nunca tivesse pecado. Os fariseus
ficaram atrapalhados, porque evidentemente todos eles
já haviam cometido pecados, mesmo que mínimos, e foram-
se embora, deixando a adúltera com Jesus. Quando ficou
a sós com ela, Jesus mandou-a também embora, dizendo-
lhe: ‘Vai e doravante não tornes a pecar.”’
Os olhos de Valentina brilhavam.
“Não acha brilhante?”, perguntou ela. “De uma penada,
Jesus impossibilitou a aplicação de uma lei cruel sem a
revogar. É de génio, não é?”
“A história é lindíssima”, concordou Tomás. “Tem drama,
tem conflito, tem tragédia e, no momento do clímax,
quando a tensão atinge o apogeu e Jesus e a adúltera
parecem perdidos, ela destinada à morte à pedrada e ele
ao escárnio dos fariseus, apresenta-nos uma resolução
surpreendente e maravilhosa, cheia de humanidade,
compaixão, perdão e amor. Basta escutar esse episódio
maravilhoso para perceber a grandeza de Jesus e dos
seus ensinamentos.” Fez uma careta e ergueu um dedo,
interrompendo assim o fluxo das suas palavras. “Só há
um pequenino problema.”
“Problema? Qual problema?”
O historiador assentou os dois cotovelos na mesa,
apoiou o queixo nas mãos e fitou intensamente a sua
interlocutora. “Isso nunca aconteceu.”
“Como?!”
Tomás suspirou.
“A história da adúltera, minha cara, é forjada.”
VII
A iluminação nocturna que beijava as paredes exteriores
do Castelo de Dublin conferia às muralhas um certo
aspecto fantasmagórico, como se os postes fossem
sentinelas a vigiar um vulto adormecido no meio da
cidade. Um manto denso de neblina abatera-se sobre o
casario, parecia que um véu de prata havia tombado na
noite, e os candeeiros exalavam um halo amarelado de
luz que projectava estranhas sombras sobre os passeios
e as fachadas de tijolos dos edifícios.
Logo que o táxi se afastou, Sicarius pôs-se a
esquadrinhar as ruas em torno do castelo, em busca do
seu destino. Depressa percebeu, contudo, que a Chester
Beatty Library não era tão simples de localizar como
inicialmente supusera. Verificou no mapa, onde tudo se
lhe afigurava claro, mas o formato real das ruas
pareceu-lhe diferente e ficou confuso. Acabou por se
deparar com umas tabuletas que o conduziram aos Dubh
Linn Gardens e por fim à entrada da biblioteca.
O edifício deixou-o algo desconcertado. Esperava um
monumento imponente, à altura dos tesouros de valor
incalculável que albergava nos seus cofres, mas
encontrou algo diferente. Considerando o ambiente
histórico que a rodeava, a Chester Beatty Library
encontrava-se alojada num edifício surpreendentemente
moderno, ao lado do oitocentista Clock Tower Building.
Observou durante algum tempo a grande porta envidraçada
da entrada e todo o espaço em redor. Apenas se
apercebeu de um sem-abrigo a dormir no jardim com uma
garrafa de whisky ao lado; não era uma ameaça. Já com a
certeza de que ali não circulava ninguém que o pudesse
importunar, aproximou-se com cautela.
A porta estava fechada, como era natural àquela hora da
madrugada, mas o visitante apercebeu-se de luzes acesas
no interior do edifício. Teria de haver pelo menos um
guarda, claro. Talvez mais. O importante, porém, era o
visitante que, segundo o mestre, ali se encontrava.
O alvo.
Sicarius colou o rosto ao vidro da porta. Apercebeu-se
de que havia um guarda a dormitar por detrás de um
balcão circular. Estudou o dispositivo de alarme
instalado no interior do edifício. Percebeu que não
seria fácil entrar ali. O ideal seria contar com a
colaboração de um cúmplice, como acontecera no Vaticano
graças aos contactos do mestre, mas em Dublin estava
por sua conta e risco. Voltou a analisar o dispositivo
de alarme. Havia luzes vermelhas a piscar e câmaras de
vídeo instaladas em pontos estratégicos nas paredes.
Sem ajuda nem planificação atempada, parecia-lhe quase
impossível entrar na biblioteca sem ser detectado.
Teria de improvisar.
Como o acesso frontal lhe estava vedado, avaliou a
possibilidade de penetrar por uma das janelas.
Situavam-se num plano um pouco elevado, mas à primeira
vista pareciam-lhe acessíveis. Estudou-as da rua e
ponderou avançar, mas acabou igualmente por se
convencer de que, sem um trabalho adequado de
preparação, os riscos de a sua intrusão por aí ser
detectada eram também consideráveis.
Convencido em definitivo de que não estavam reunidas as
condições para ser bem sucedido, decidiu não tentar
penetrar na Chester Beatty Library. Em vez disso
procurou um canto recatado junto à entrada da
biblioteca e instalou-se aí; o local parecia-lhe
perfeito, ao abrigo de quaisquer olhares indiscretos.
Calçou as luvas negras e ultimou os preparativos.
Depois pressionou a fechadura da sua pequena mala de
couro negro e, com um clique surdo, abriu-a. O interior
da maleta era de uma treva impenetrável, mas no meio
daquela sombra cerrada um reflexo límpido cintilou,
como o faiscar de um diamante; tratava-se da luz dos
faróis de um automóvel que passara na rua e se
reflectira na lâmina cristalina.
Extraiu a adaga com um movimento delicado e sentiu-lhe
o peso milenar. Era perfeita. Depois atirou um olhar
para a entrada da biblioteca e delineou o plano. Para
que as coisas acontecessem, só lhe faltava que o alvo
desse sinais de vida.
Ele se encarregaria de os transformar em morte.
VIII
“Forjada?”
A face de Valentina quase se contorcia, desfigurada por
um misto de espanto e de indignação; o que acabara de
ouvir sobre a história da adúltera, de longe a sua
favorita da Bíblia, deixara-a em estado de choque.
Tomás percebeu a estupefacção e respirou fundo, odiando
ser o mensageiro daquela notícia.
“Receio bem que sim.”
A italiana estava boquiaberta e perscrutava o rosto do
historiador em busca de sinais de que tudo aquilo não
passava de uma brincadeira de mau gosto. Não os
encontrou.
“Como, forjada?”, questionou, num tom intensamente
incrédulo. “Oiça, não basta dizer uma coisa dessas para
que eu acredite. Para o afirmar é preciso provar!” Deu
uma palmada furiosa na mesa de leitura. “Provar,
ouviu?”
O académico português deitou os olhos ao manuscrito
silencioso que se encontrava sobre a mesa de leitura,
como se o Codex Vaticanus o pudesse ajudar a aplacar a
fúria que fervia dentro dela.
“Se quer a prova, primeiro precisa de entender algumas
coisas”, disse num registo sereno. “Para começar,
quantos textos não cristãos do século I existem a
relatar a vida de Jesus?”
“Muitos, claro!”, exclamou Valentina. “Jesus foi só o
homem mais importante dos últimos dois mil anos, não é
verdade? Não era possível ignorá-lo!...”
“Mas que textos são esses?”
“Todas as coisas que os Romanos escreveram.”
“Que coisas?”
A inspectora atrapalhou-se.
“Bem... sei lá! Você é que é o historiador...”
Tomás desenhou um círculo com o polegar e o indicador e
ergueu-o ao nível dos olhos da sua interlocutora.
“Zero.”
“Perdão?”
“Não há um único texto romano do século I sobre Jesus.
Nem manuscritos, nem documentos administrativos, nem
certidões de nascimento ou de óbito, nem vestígios
arqueológicos, nem alusões de passagem, nem referências
crípticas. Nada. Sabe o que os Romanos do século I
tinham a dizer sobre Jesus?” Voltou a desenhar o
círculo com os dedos. “Um grandessíssimo zero!”
“Não pode ser!”
“A primeira referência de um romano a Jesus foi feita
já no século II, por Plínio, o Jovem, numa carta ao
imperador Trajano, na qual menciona a seita dos
cristãos e diz que eles ‘veneram Cristo como um deus’.
Antes de Plínio, o silêncio é absoluto. Há, porém, um
historiador judeu, Josefo, que num livro sobre a
história dos judeus escrito no ano 90 menciona Jesus de
passagem. De resto, é um deserto. Significa isto que as
únicas fontes de que dispomos sobre a vida de Jesus são
as cristãs.”
“Não fazia a mínima ideia!...”
O historiador pousou os olhos no Codex Vaticanus.
“E sabe que textos fazem parte do Novo Testamento?”
Valentina ainda vacilou, tentando perceber se o seu
interlocutor não estaria a desviar a conversa. Acabou
por lhe conceder o benefício da dúvida e, fazendo um
esforço para controlar as emoções, decidiu colaborar.
Respirou fundo e buscou na mente resposta à pergunta.
“Bem, confesso que nunca prestei grande atenção a
isso”, admitiu, fazendo um ar pensativo. “Deixe ver,
são os quatro evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e
João.” Hesitou. “E acho que há mais umas coisinhas, não
há?”
“Há pois”, riu-se Tomás. “Na verdade, os textos mais
antigos do Novo Testamento não são os Evangelhos. São
as Epístolas de Paulo.”
“A sério?”
“Sim, as cartas de Paulo”, repetiu o português,
clarificando o significado da palavra epístolas. “Sabe,
para perceber como nasceram os textos do Novo
Testamento é preciso ter presente que os primeiros
cristãos consideravam que a Bíblia era exclusivamente
constituída pelo Antigo Testamento dos judeus. O
problema era como interpretar as Sagradas Escrituras à
luz dos ensinamentos de Jesus, uma vez que os
diferentes ramos dos seus seguidores estavam a escolher
caminhos diversos, por vezes até contraditórios, e
invocavam sempre o Messias para legitimar as suas
posições. O líder de um desses ramos era Paulo, um
judeu muito activo na propagação da palavra de Jesus e
que, por isso mesmo, fez inúmeras viagens a cidades
distantes em todo o Mediterrâneo oriental para
converter pagãos. Dizia-lhes que só se devia adorar o
Deus judaico e que Jesus morreu pelos pecados do mundo
e voltaria em breve para o dia do juízo final. Acontece
que, quando ia a meio dessas viagens, chegavam-lhe por
vezes notícias de que os fiéis de uma congregação que
havia fundado estavam a adoptar uma teologia da qual
ele discordava, ou então de que havia nessa congregação
comportamentos imorais, ou qualquer outro problema.
Para voltar a pôr os crentes no que achava ser a
verdadeira senda, Paulo escreveu-lhes cartas, chamadas
epístolas, carregadas de admoestações por se terem
desviado do caminho e de exortações a regressarem ao
rumo que ele considerava correcto. A primeira dessas
cartas que sobreviveu foi dirigida à congregação de
Tessalónica, chamada Primeira Carta aos Tessalonicenses
e redigida em 49, menos de vinte anos após a morte de
Jesus. Há também uma carta que endereçou à congregação
de Roma, a chamada Carta aos Romanos, outras à
congregação de Corinto, chamadas Cartas aos Coríntios,
e assim sucessivamente. É importante perceber que,
quando
foram
escritas,
essas
epístolas
não
se
destinavam a ser encaradas como Sagradas Escrituras —
eram simples cartas.”
“Como os e-mails que trocamos hoje em dia?”
Tomás riu-se.
“Isso, só que usando um correio um pouco mais lento”,
gracejou. “Acontece que naquele tempo as pessoas eram
em geral analfabetas, pelo que estas epístolas acabavam
por ser lidas em voz alta a toda a congregação. O
próprio Paulo termina a sua Primeira Carta aos
Tessalonicenses a apelar a que a missiva «seja lida a
todos os irmãos», o que demonstra que essa era a
prática comum. Com o tempo, e após sucessivas cópias e
muitas leituras em voz alta, estas epístolas passaram a
ser consideradas uma referência e de certo modo
começaram a constituir um elo comum entre todas as
congregações. Ao todo, o Novo Testamento é constituído
por vinte e uma epístolas, de Paulo e de outros
líderes, como Pedro, Tiago, João e Judas, mas sabemos
que foram escritas muitas mais cartas que não
sobreviveram.” Valentina deitou um olhar curioso ao
Codex, Vaticanus, como se se tratasse da Bíblia
original.
“E os Evangelhos? Surgiram também em cartas?”
“A história dos Evangelhos é diferente.” Tomás indicou
a cruz de prata que a italiana trazia discretamente ao
pescoço. “Inicia-se com a crucificação de Jesus.
Receando ser mortos pelos Romanos, os seus seguidores
fugiram e esconderam-se. Depois surgiu a história da
ressurreição e eles começaram a dizer que Jesus em
breve voltaria à Terra para o dia do juízo final. Por
isso instalaram-se em Jerusalém e ficaram à espera.
Enquanto aguardavam, puseram-se a contar histórias de
Jesus.”
“Ah!”, exclamou a inspectora. “E foi assim que os
Evangelhos foram escritos.”
“Não, de modo nenhum! Os apóstolos achavam que o
regresso de Jesus estava iminente e não viam o menor
motivo para pôr essas histórias por escrito. Para quê?
Em breve Jesus voltaria! Além do mais, é importante
lembrar que os primeiros seguidores de Jesus eram gente
pobre e sem educação. Logo, analfabetos. Como iriam
eles redigir as narrativas? O que havia portanto eram
histórias avulsas e que os historiadores designam
‘perícopas orais’.”
“Foi desse modo que se preservaram as narrativas da
vida de Jesus?”
“Sim, mas não com a intenção de as preservar”, insistiu
Tomás. “Lembre-se que para eles Jesus estava prestes a
voltar.
Eles contavam essas histórias apenas para ilustrar
situações que poderiam dar a solução para os novos
problemas que entretanto iam surgindo. Este pormenor é
importante,
porque
indicia
que
estes
narradores
retiravam as histórias do contexto próprio e lhes davam
um
novo
contexto,
alterando
assim
subtil
e
inconscientemente o seu sentido. O problema é que, à
medida que os primeiros seguidores foram envelhecendo e
morrendo sem que Jesus regressasse, foi-se percebendo
que era necessário um registo escrito para ser lido em
voz alta nas diversas congregações, sob pena de a
memória se perder. As perícopas foram então redigidas
em folhas de papiro e lidas fora dos seus contextos
originais. E Jesus continuou sem voltar. Chegou-se
depois à conclusão de que, para surtir melhor efeito
junto dos fiéis, era possível alinhar as perícopas
segundo uma determinada ordem e reuni-las em grupos: as
referentes aos milagres, as dos exorcismos, as das
lições morais... O passo seguinte foi juntar todos
estes grupos para formar narrativas mais alargadas,
designadas
proto-evangelhos,
e
que
contavam
uma
história completa. Esses proto-evangelhos foram por fim
unidos numa única narrativa e nasceram...”
“Os quatro evangelhos”, atalhou Valentina com um
sorriso. “Fascinante!”
Tomás fez uma careta.
“Na
verdade,
não
foram
só
quatro”,
corrigiu.
“Apareceram dezenas de evangelhos.”
“Dezenas?”
“Mais de trinta. Os primeiros de que temos registo
foram o Evangelho segundo Marcos e a Fonte Q, um
evangelho perdido e cuja existência inferimos a partir
de outros dois evangelhos, os de Mateus e Lucas, que
parecem ir ambos beber a uma mesma fonte, o Q.”
“Q?” estranhou Valentina. “Que raio de nome é esse?” “Q
de Quelle, palavra alemã que designa fonte. Mas há
outras fontes, como a M, usada exclusivamente por
Mateus, e a L, usada apenas por Lucas.”
“Todas perdidas?”
“Sim”, assentiu o historiador. “Depois surgiram mais
evangelhos, como o de João, o de Pedro, o de Maria, o
de Tiago, o de Filipe, o de Maria Madalena, o de Judas
Tomás, o de Judas Iscariotes, o de Tomé... enfim,
dezenas de evangelhos diferentes.”
“Pois, confesso que já li qualquer coisa sobre isso”,
observou a italiana. “O que não sei é o que aconteceu a
esses evangelhos...”
“Mais tarde foram rejeitados.”
“Sim, mas porquê?”
Era uma boa pergunta, sabia o historiador.
“Sabe, nenhum evangelho é uma mera crónica dos
acontecimentos”,
explicou.
“Os
evangelhos
são
reconstituições teologicamente orientadas.”
“O que pretende dizer com isso?”
“Simplesmente que cada evangelho apresentava uma
teologia específica”, indicou, evitando mais pormenores
controversos para não desencadear um novo ataque de
fúria da italiana. “Isso estabeleceu o caos entre os
fiéis, como deve calcular. Uns evangelhos apresentavam
Jesus como uma figura exclusivamente humana, outros
como uma figura exclusivamente divina, outros ainda
como uma figura divina dentro de uma figura humana. Uns
diziam que havia ensinamentos secretos só acessíveis a
iniciados, outros que Jesus nem sequer morrera. Havia
quem defendesse que existia apenas um deus, outros
diziam que eram dois deuses, outros apontavam para
três, outros para doze, outros para trinta...”
“Madonna! Que confusão!”
Tomás assentiu.
“De facto, ninguém se entendia”, disse. “Formaram-se
vários grupos dominantes de seguidores de Jesus, cada
um com os seus evangelhos. Havia os ebionitas, judeus
que diziam ser Jesus apenas um rabino que Deus
escolhera por se tratar de uma pessoa particularmente
correcta e conhecedora da lei entregue a Moisés. Há
indícios de que Pedro e Tiago, irmão de Jesus, eram
considerados precursores desta corrente. Depois
surgiram
os
paulistas,
que
preconizavam
a
universalização dos ensinamentos aos gentios e achavam
que Jesus tinha características divinas e a salvação
decorria da crença na sua ressurreição, e não do
respeito pela lei. Havia também os gnósticos, que
encaravam Jesus como um homem temporariamente encarnado
por um deus, Cristo, e pensavam que alguns seres
humanos continham dentro deles uma centelha divina que
poderiam libertar se tivessem acesso a um conhecimento
secreto. Por fim existiam os docetistas, que diziam que
Jesus era um ser exclusivamente divino que apenas
parecia humano. Nem sequer tinha fome ou sono, apenas
fingia ter.”
Valentina fez um gesto largo com o braço direito,
englobando a Biblioteca do Vaticano e tudo o que a
rodeava. “Qual dessas correntes é a nossa?”
Tomás sorriu.
“A nossa? Quer dizer, a da actual Igreja?”
“Sim.”
“Os cristãos de Roma”, sentenciou. “Foram estes que se
organizaram de forma mais eficiente, com hierarquia e
estruturas nas suas congregações. Nasceram assim as
igrejas. Os outros grupos tinham organizações mais
informais.
Além
disso,
beneficiaram
da
forte
implantação dos paulistas no mundo pagão. É certo que o
centro do cristianismo continuou, durante algum tempo,
a ser Jerusalém, onde se encontravam os judeus
cristãos. Acontece que, no ano 70, os Romanos
destruíram Jerusalém e o centro de gravidade do
cristianismo não poderia continuar aí. Para onde acha
que se transferiu?”
A italiana encolheu os ombros.
“Sei lá!”
O historiador apontou para o chão.
“Para aqui, claro! Não era Roma a capital do império?
Não iam todos os caminhos dar a Roma? Não é a igreja
hoje dominante designada católica apostólica romana?
Quem melhor poderia liderar o cristianismo que os
cristãos que se encontravam aqui na capital imperial?
Ocupavam uma situação privilegiada, que lhes permitiu
tornarem-se dominantes. E fizeram pleno uso dessa
posição. Com o tempo rejeitaram os evangelhos de vários
grupos diferentes, que catalogaram como heréticos, e
valorizaram os textos que consideravam verdadeiros. O
seu juízo tinha muita força, porque estes cristãos
apresentavam-se bem organizados e com estruturas
hierárquicas rígidas lideradas por bispos, o que
facilitava a transmissão de ordens. Além disso, eram
mais abastados e emitiam instruções a partir da capital
do império. Os evangelhos considerados heréticos
deixaram de ser copiados e gradualmente a doutrina
dominante
passou
a
assentar
nos
quatro
textos
evangélicos perfilhados pelos romanos: os de Mateus,
Marcos, Lucas e, embora inicialmente com alguma
relutância, João.”
“E foi assim que os Evangelhos se juntaram às cartas
como textos de referência?”
“Exacto. Acontece que alguns desses textos, como o
Evangelho segundo Mateus e a Primeira Carta de Paulo a
Timóteo, começaram a pôr as palavras de Jesus ao nível
das Sagradas Escrituras, está a ver? Insinuavam assim
que elas tinham a mesma autoridade que se reconhecia ao
Antigo Testamento, o que constituiu uma importante
inovação teológica.” Fez uma careta teatral. “A palavra
de Jesus valia tanto como a das Sagradas Escrituras?”
Desfez a careta. “Mais ainda, na Segunda Carta de Pedro
consta uma crítica aos ‘incultos e inconstantes’ que
deturpam as epístolas de Paulo ‘como o fazem com as
outras Escrituras’. Ou seja, as próprias cartas de
Paulo já são aqui elevadas à categoria de Escrituras!
Daqui até a sua aceitação como cânone, como deve
calcular, bastou um passo.”
“Quando foi isso?”
“O cânone ficou definido alguns anos depois de
Constantino ter adoptado o cristianismo”, disse,
fazendo um gesto na direcção do Codex Vaticanus. “Mais
ou menos quando este códice foi feito, no século IV.
Determinou-se então que as novas Escrituras eram
constituídas por vinte e sete textos: os evangelhos de
Lucas, Marcos, Mateus e João, que narravam a vida de
Jesus, e ainda as crónicas da vida dos apóstolos, a que
se chamou Actos dos Apóstolos, e as diversas cartas
escritas pelos próprios apóstolos. Para além do
Apocalipse, de João, a fechar.”
A italiana assentou o queixo na palma da mão, numa pose
pensativa, e reflectiu sobre o que acabava de escutar.
“Pode haver textos considerados heréticos que sejam
verdadeiros”, observou ao fim de alguns instantes.
“Como sabemos que só os quatro evangelhos canónicos são
historicamente correctos?”
“A questão é legítima”, concordou Tomás. “Porém, há um
certo consenso entre os académicos de que a escolha foi
globalmente bem feita. Os textos heréticos, hoje
chamados apócrifos, são demasiado fantasiosos. Um deles
mostra Jesus em menino a matar outras crianças com
actos de magia, veja só! Outro põe a cruz da
crucificação a falar, como se fosse uma pessoa. Já viu?
Uma cruz falante! Os cristãos de Roma não eram dados a
fantasias e foram rejeitando estes textos. De todos os
apócrifos, sabe qual é o único que pode ter material
genuíno?”
A pergunta extraiu um olhar vazio de Valentina.
“Não faço a mínima ideia.”
“O Evangelho segundo Tomé”, disse. “Já há muito tempo
que se sabia da existência desse evangelho, mas
pensava-se que, depois de ser declarado herético,
estava perdido para sempre. Acontece que em 1945 foram
descobertos acidentalmente em Nag Hammadi, no Egipto,
vários volumes de manuscritos apócrifos, incluindo o
Evangelho segundo Tomé. Houve uma grande agitação, como
pode calcular, maior ainda quando se leu o seu
conteúdo.”
A revelação excitou a curiosidade da inspectora.
“Ai sim? O que tinha ele?”
“É um manuscrito muito interessante porque não inclui
nenhuma narrativa. Nada de nada. Limita-se a registar
cento e catorze ensinamentos de Jesus, muitos dos quais
também aparecem nos evangelhos canónicos, e outros
ensinamentos que não aparecem em parte nenhuma, mas que
podem ser agrafa, isto é, citações autênticas não
canónicas. Aliás, há académicos que acham que as
citações que se encontram no Evangelho segundo Tomé são
mais próximas das palavras realmente pronunciadas por
Jesus do que as citações que se encontram nos
evangelhos canónicos. Daí que alguns lhe chamem o
quinto evangelho.”
“Se assim é, porque foi excluído do cânone?”
“Porque alguns dos seus ensinamentos podem ser
interpretados como gnósticos”, devolveu Tomás. “Isso é
algo que os cristãos romanos, que se tornaram a
ortodoxia, queriam em absoluto evitar. Mas o Evangelho
segundo Tomé é um documento com informação histórica
que pode ser pertinente, embora o assunto divida os
académicos. De qualquer modo, a sua descoberta
consolidou uma velha suspeita de que a Fonte Q, o
manuscrito perdido que alimentou Mateus e Lucas, seria
igualmente um texto composto apenas por ensinamentos.”
Valentina balançou a cabeça num movimento afirmativo e
emitiu um som apreciativo.
“Muito curioso, sim senhor”, disse. “Mas onde quer
chegar com isso tudo?”
O historiador endireitou-se no seu lugar e passeou a
atenção pelas estantes carregadas de livros da
Biblioteca Apostólica Vaticana.
“Quero chegar a esta pergunta”, disse, virando-se para
a sua interlocutora. “Onde estão os originais de todos
os textos canónicos que compõem o Novo Testamento?”
Num movimento quase instintivo, os olhos azuis da
inspectora da Polizia Giudiziaria acompanharam a
deambulação visual de Tomás pela Sala Consultazioni
Manoscritti.
“Bem... aqui no Vaticano”, disse. “Talvez mesmo nesta
biblioteca.” Sentiu o olhar perscrutador do seu
interlocutor a examiná-la e, intuindo que tinha dado a
resposta errada, hesitou. “Não?”
Tomás abanou a cabeça.
“Não”, disse com ênfase. “Não há originais.”
“Como?”
“Os originais do Novo Testamento não existem.”
IX
Estudar um manuscrito através de um ecrã de computador
era uma tarefa exigente para qualquer um, mas fazê-lo
pela madrugada fora revelou-se uma verdadeira loucura.
Alexander Schwarz esfregou os olhos cansados e
injectados de sangue e endireitou o tronco, sentindo as
articulações doerem-lhe. Havia demasiado tempo que
estava sentado naquela posição, a atenção a dançar
entre o texto no ecrã e o bloco de notas onde registava
as suas observações.
“Já chega!”, murmurou nesse instante, sentindo os olhos
pesarem-lhe. “Não posso mais!...”
Fez logout ao file do manuscrito e desligou o
computador. Olhou em redor e viu a sala deserta e
mergulhada na treva, as sombras a reflectirem a luz da
lâmpada que incidia sobre ele. Havia também o candeeiro
do balcão, lá ao fundo, para onde Alexander espreitou.
Quis chamar o funcionário que a biblioteca tinha
destacado para o acompanhar naquela noite, mas não o
descortinou. Devia ter ido ao quarto de banho, pensou.
Arrumou os seus papéis, engoliu de uma assentada os
restos já frios do café que tinha no copo descartável e
levantou-se por fim. Cambaleou no primeiro passo, o
corpo afectado pela posição prolongada à mesa de
trabalho. Os músculos pareciam enferrujados, embora ao
fim de três passos já caminhasse normalmente. Chegou
junto do balcão de atendimento e espreitou em todas as
direcções, mas não viu sinais do rapaz.
“Onde raio se meteu o tipo?”, interrogou-se em voz
baixa.
Espreitou no quarto de banho e não o encontrou. Pensou
que poderia ter ido buscar qualquer coisa para beber e
foi até à máquina do café, mas não vislumbrou vivalma.
“Alô?”, chamou em voz alta. “Alô?”
Ninguém respondeu. A Chester Beatty Library estava
integrada num edifício de traça moderna. À noite,
porém, com as salas às escuras e as raras fontes de luz
a projectarem estranhas sombras no chão e nas paredes,
a biblioteca adquiria uma atmosfera inesperadamente
lúgubre. E o pior é que o ambiente pesado o contagiava
já.
“Alô? Está aí alguém?”
A voz ecoou pela sala e morreu no silêncio.
Definitivamente, o empregado desaparecera. Alexander
decidiu não esperar mais e meteu pelo corredor. O
problema é que o resto do piso estava mergulhado na
escuridão e ele não sabia onde se encontrava o
interruptor da luz. Caminhou devagar, a tactear as
paredes, a imaginar o caminho mais do que a vê-lo. A
escuridão começava a afectar-lhe os nervos e, sem
conseguir controlar-se, sentiu uma ponta de medo a
eriçar-lhe a pele.
“Que disparate!”, dialogou consigo mesmo, esforçando-se
por se tranquilizar. “Só tenho de encontrar a saída,
mais nada!...”
Às escuras era difícil. Caminhou com cuidado e dobrou
uma esquina. Foi nesse instante que se apercebeu de um
vulto a cortar um halo difuso de luz e tomou
consciência de que não se encontrava sozinho naquele
corredor.
“Quem está aí?”, perguntou, assustado.
Escutou o som de alguém a respirar.
“Sou eu.”
“Eu, quem?”
Esforçou-se por destrinçar as feições do vulto que se
aproximava na escuridão, mas não conseguiu. Precisava
de luz. Assim, às escuras, sentia-se estupidamente
vulnerável.
“Eu.”
O vulto estacou diante de Alexander, que ficou
momentaneamente sem saber o que fazer. Ouviu um clique
e, acto contínuo, o corredor iluminou-se. À sua frente
estava um rapaz de cabelo desgrenhado e olheiras a
rodearem os olhos azuis.
O empregado da biblioteca.
“Ah!”, exclamou Alexander com alívio. “Onde diabo se
meteu você?”
O rapaz ergueu a mão e exibiu o telemóvel.
“Fui conversar com a minha namorada”, disse. “Saí da
sala para não o incomodar.” O empregado olhou para o
fundo do corredor. “Já terminou o que estava a fazer?”
“Sim, sim. Desliguei o computador e tudo. Estou muito
cansado.” Abriu a boca e bocejou, como se assim
quisesse reforçar o que dissera. “Como se sai daqui?”
O rapaz indicou o outro lado do corredor.
“Vai por aqui, passa pelas galerias e desce as escadas.
O resto já sabe, não é?”
Alexander despediu-se e seguiu na direcção indicada.
Passou por uma galeria e lançou um olhar contemplativo
aos tesouros que ela albergava, os manuscritos antigos.
Estavam ali os originais que ele consultara pelo
computador, mas também outras preciosidades, como
fragmentos dos manuscritos do Mar Morto, esplêndidas
cópias ilustradas do Alcorão e velhos textos budistas e
hindus. Já os observara mil vezes, mas sempre que
passava por aquela galeria sentia a mesma chama do
encantamento a animá-lo. Como era possível que tamanhas
raridades tivessem ido parar a uma colecção privada?
A galeria seguinte exibia outras maravilhas, como
livros chineses de jade, caixas inro japonesas, belas
miniaturas mughal e magníficas iluminuras persas.
Coisas de encher o olho, mas, na perspectiva de
Alexander, não tão valiosas e interessantes quanto as
riquezas preservadas na galeria dos manuscritos.
Desceu as escadas e chegou ao átrio, de arquitectura
moderna. O guarda nocturno dormitava atrás do balcão e
despertou ao escutar os passos. Levantou-se e veio
abrir-lhe a porta para o deixar sair.
“Boa noite, sir.”
Alexander despediu-se também e, mergulhando no ar frio
da rua, fez-se ao caminho. Ia fatigado, mas satisfeito
com
o
trabalho
dessa
noite.
Avançara
bem
na
investigação e calculou que apenas precisava de mais um
dia de pesquisa na biblioteca para concluir a tarefa
que o trouxera a Dublin. Ia para o hotel, mas sentia-se
tão entusiasmado e motivado que sabia que não poderia
estar muito tempo afastado dos manuscritos que tanto o
enfeitiçavam. Quando acordasse, e depois de comer,
retornaria de imediato à Chester Beatty Library. No fim
de contas, tinha ainda de...
Nesse instante sentiu uma presença atrás dele.
X
O Codex Vaticanus tornara-se de repente, de novo, o
centro das atenções na Sala Consultazioni Manoscritti.
A inspectora Valentina Ferro cravou nele a sua atenção,
quase como se o velho manuscrito pousado na mesa de
leitura tivesse culpa do que ela acabara de ouvir.
“Não existem os originais do Novo Testamento?”
Tomás fez um gesto vago no ar.
“Nunca ninguém os viu”, disse. “Puf!”, soprou, como se
expulsasse grãos de poeira. “Sumiram-se! Desapareceram
com o tempo!”
“Ai sim?”, admirou-se Valentina, fazendo um gesto na
direcção do códice diante dela. “Só temos estas...
estas cópias?”
Nova negativa do historiador.
“Nem isso.”
A italiana franziu o sobrolho.
“Não temos as cópias?”
“Não.”
A italiana pousou a mão no Codex Vaticanus.
“Então o que é isto? Um fantasma?”
“Quase”, retorquiu Tomás com o vestígio de um sorriso a
formar-se-lhe na face. “Oiça o que lhe digo: não temos
os originais do Novo Testamento nem as respectivas
cópias. Na verdade, não temos as cópias das cópias, nem
sequer as cópias das cópias das cópias.” Pousou a mão
sobre o manuscrito depositado ao seu lado. “O primeiro
evangelho que chegou até nós foi o de Marcos, escrito
por volta do ano 70, isto é, ainda no século I. Ora o
Codex Vaticanus, embora seja um dos mais antigos
manuscritos que sobreviveram com o texto do Novo
Testamento, é datado de meados do século IV! Ou seja,
este códice é uns trezentos anos mais recente do que o
original do Evangelho segundo Marcos, o que faz dele a
enésima cópia da cópia dos originais escritos pelos
autores dos textos agora canónicos.”
“Madonna/”, exclamou a italiana. “Não fazia ideia!”
Tomás recostou-se na cadeira, procurando uma posição
mais confortável, mas manteve os olhos presos na sua
interlocutora.
“Isto cria um problema, como deve calcular.”
Valentina balançou afirmativamente a cabeça; era
detective e sabia bem a importância de aceder às fontes
primárias.
“Como podemos ter a certeza de que a enésima cópia é
igual ao original?”
“Bingo!”, exclamou o historiador, dando uma palmada na
mesa. “Já me aconteceu certa vez contar uma história a
uma amiga, essa amiga contar a história a outra pessoa
e essa outra contar a uma terceira, que depois me veio
contar. Quando a história regressou a mim, após ter
passado por três filtros sucessivos, já chegou
diferente. Agora imagine o que é estarmos a falar de
uma história que foi copiada vezes sem conta por
escribas, os primeiros dos quais eram decerto amadores
pouco qualificados. Que alterações não sofreu ela?”
“Algumas, imagino.”
O académico português voltou a sua atenção para a
página onde o Codex Vaticanus estava aberto.
“Daí a importância desta nota marginal do escriba a
repreender o copista que a Patrícia veio consultar”,
disse, indicando a anotação escrevinhada no manuscrito.
“‘Estúpido e ignorante! Deixa o velho texto em paz, não
o alteres!’ Tudo porque alguém tinha mudado phanerón
para pherón.” Folheou o códice com cuidado. “E não é
caso único aqui no Codex Vaticanus. Ora repare no que
vem escrito no Evangelho segundo João. ”Localizou o
evangelho e procurou a referência. “João, 17:15. Aqui
está. É Jesus a implorar a Deus a favor da humanidade.”
O texto estava redigido em grego, mas Tomás traduziu-o
directamente. “Não peço que os livres do mal.” O
historiador ergueu os olhos interrogativos na direcção
da sua interlocutora. “Não peço que os livres do mal”?
Jesus pediu a Deus que mantivesse o mal a afligir a
humanidade? Mas o que é isto?”
Valentina devolveu-lhe o olhar com uma expressão
perdida, sem saber como interpretar a estranha frase.
“Pois... não percebo bem.”
Tomás bateu com o dedo no velho pergaminho.
“Isto é um erro de copista!”, exclamou. “A frase
original é ‘Não peço que os tires do mundo, mas que os
livres do mal’. Acontece que o copista do Codex
Vaticanus saltou inadvertidamente uma linha e copiou
‘Não peço que os livres do mal’. Este tipo de erro
chama-se periblepsis e ocorre quando duas linhas de um
texto terminam com as mesmas palavras ou as mesmas
letras. O copista está a copiar uma linha, baixa os
olhos para escrever, e quando os levanta olha para a
mesma palavra na linha seguinte, não na linha anterior,
acabando sem querer por ignorar o texto entre as duas
palavras iguais.” Fez um gesto para o manuscrito. “E
estamos a falar do Codex Vaticanus, que é considerado
um dos trabalhos de cópia mais profissionais do mundo
antigo! Agora imagine os erros que não andarão por toda
a Bíblia, cujos originais desapareceram e dos quais só
temos cópias das cópias das cópias das cópias das...”
“Pois, já percebi”, impacientou-se Valentina. “E então?
Que eu saiba, uma andorinha não faz a Primavera! Lá
porque encontrou um ou outro errozito, isso não
invalida o Novo Testamento!...”
Tomás fez um ar escandalizado.
“Um ou outro errozito? Tem ideia de quantos erros já
foram detectados nos mais de cinco mil manuscritos
antigos da Bíblia que sobreviveram?”
A italiana encolheu os ombros e pegou numa pequena
garrafa de água mineral que um polícia corpulento lhe
veio trazer.
“Não sei”, disse enquanto desenroscava a tampa.
“Quantos? Vinte? Trinta erros? E depois?”
Desenroscou a tampa e levou a garrafa à boca, quase
indiferente à resposta. O historiador inclinou-se para
diante, a atenção presa nela enquanto bebia a água
mineral, e soprou-lhe o número perto do ouvido.
“Quatrocentos mil.”
Valentina engasgou-se e tossiu, deixando a água
escorrer pelo queixo e voltando-se para o lado de modo
a evitar salpicar o Codex Vaticanus. Passou as costas
da mão pela boca, para se secar, e fitou Tomás com uma
expressão incrédula.
“Quatrocentos mil erros na Bíblia? Está a brincar!...”
O historiador acenou afirmativamente, a confirmar o
número.
“Quatrocentos mil”, repetiu. “Na verdade, mais do que
isso.”
“Mas... mas... não pode ser! A Bíblia contém mais de
quatrocentos mil erros? Que absurdo!”
“É verdade que a esmagadora maioria é composta por
coisas
pequenas”,
concedeu
Tomás.
“Palavras
mal
copiadas, linhas que se saltam, esse tipo de coisas
acidentais.” Soergueu o sobrolho. “Mas há outros erros
que são propositados. Coisas que os autores dos
Evangelhos inventam, por exemplo.”
“Que disparate!”, retorquiu a italiana. “Como pode
saber se uma determinada coisa que aparece escrita no
Novo Testamento é ou não inventada? Esteve lá para
poder dizer isso?”
“Posso não ter lá estado, mas, tal como vocês,
detectives, também nós, historiadores, dispomos de
métodos para apurar a verdade dos factos.”
“Que métodos? Do que está a falar?”
“Estou a falar do método de análise histórica, que
assenta em critérios de crítica textual.” Tomás abriu a
palma da mão, mostrando todos os dedos estendidos.
“Cinco critérios.”
“Desculpe, mas não vejo como se possa, através da mera
análise de um texto, determinar o que há nele de
verdade ou de invenção, e muito menos na Bíblia. Sejam
quantos forem os critérios a que recorra.”
“Oiça antes de julgar”, recomendou o historiador.
“Estes critérios são fiáveis quando bem aplicados.
Olhe, o primeiro é o da antiguidade. Quanto mais antigo
é um manuscrito, maior é a nossa confiança no seu
rigor. Isto porque o texto de uma cópia antiga sofreu
necessariamente menos corrupções do que uma mais
recente. O segundo critério é a abundância de fontes.
Quanto mais fontes independentes umas das outras
disserem a mesma coisa, mais confiança temos de que
essa coisa aconteceu realmente. Mas precisamos de nos
assegurar de que as fontes são mesmo independentes. Por
exemplo, uma informação que apareça nos evangelhos de
Lucas e Mateus não é necessariamente independente, uma
vez que os dois evangelistas estão muitas vezes a citar
a mesma fonte, o manuscrito Q. O terceiro critério é o
do embaraço. Diz-se em latim: proclivi scriptioni
praestat ardua, isto é, a leitura mais difícil é melhor
do que a fácil. Ou seja, quanto mais embaraçosa for uma
informação, mais certeza temos de que é verdadeira.”
“Uma informação embaraçosa?”, estranhou Valentina. “O
que quer dizer com isso?”
“Deixe-me dar-lhe um exemplo do Novo Testamento”,
sugeriu Tomás. “Os vários Evangelhos narram que Jesus
foi baptizado por João Baptista. Esta informação é
embaraçosa para os cristãos, porque se acreditava que a
pessoa que baptizava era espiritualmente superior
àquela que era baptizada. Ora o episódio mostra Jesus
numa situação de subalternidade espiritual em relação a
João. Como é isso possível, se Jesus é o Filho de Deus?
Além do mais, o baptismo servia para purificar uma
pessoa dos seus pecados. Se Jesus se baptizou, isso