significa que também ele era um pecador. Mais uma vez,

como pode isso ser verdadeiro se ele era o Filho de

Deus? É altamente improvável que os autores dos

Evangelhos tenham inventado este episódio do baptismo

de Jesus, tão embaraçoso ele se revela. Porque o

fariam, se tal relato põe em causa a superioridade e a

pureza de Jesus? Os historiadores consideram por isso

que o baptismo de Jesus por João ocorreu mesmo. É um

facto histórico. Nenhum evangelista inventaria uma

coisa tão embaraçosa.”


“Ah, estou a entender.”


“O quarto critério é o do contexto. Será que as

informações que constam de um evangelho se enquadram no

contexto da época? E o quinto critério é o da própria

estrutura intrínseca do texto, ou seja, o seu estilo de

escrita, o vocabulário usado e até a tendência

teológica do seu autor. Se num trecho aparecem por

exemplo várias palavras que não surgem em qualquer

outra parte, é altamente provável que se trate de um

acrescento feito por um copista. Mas atenção, estes

critérios não devem ser aplicados às cegas. Pode haver

um texto que seja mais antigo do que outro mas, porque

elimina

determinados

elementos

embaraçosos

ou

acrescenta coisas fantasiosas, deixa-nos a convicção de

que se trata de uma cópia de pior qualidade, quando

comparada com um texto mais recente. Enfim, tudo tem de

ser ponderado.”


A italiana fez que sim com a cabeça.


“Pois, trabalho de detective!...”, observou. “Com tudo

isto, no entanto, onde quer chegar?”


“Quero chegar aos episódios ficcionais do Novo

Testamento.” Aguardou um instante, para obter efeito

dramático. “Como a história da adúltera, por exemplo.”


Valentina quase saltou da cadeira.


“Ah, sim! Disse que me ia dar a prova de que essa

história é uma fraude. Pois ainda não vi nada!”


O historiador lançou-lhe um olhar carregado de avisos.

“Olhe que não é apenas essa história. Há outras.”


“Quais?”


Tomás respirou fundo, subitamente cansado. Tinha dis-

pendido a última meia hora a explicar à inspectora

italiana matéria elementar sobre os manuscritos da

Bíblia. O mais duro, porém, estava para vir. E era

duro, sabia, porque atingia alguns elementos centrais

da teologia cristã. O académico tamborilou os dedos na

mesa de leitura e nem se atreveu a olhar para a sua

interlocutora quando por fim ganhou coragem e respondeu

à pergunta.


“A narrativa da ressurreição de Jesus, por exemplo.”


“A narrativa da... da ressurreição?”, alarmou-se

Valentina. “O que tem ela?”


Encarou-a por fim.

“É outra fraude.”


XI


A relva dos Dubh Linn Gardens estava molhada com a

humidade gelada que a neblina ali pousara de mansinho,

mas Paddy McGrath mostrava-se já insensível àquele

género de desconforto. E porque haveria de se importar?

Tinha

cinquenta

e

dois

anos,

encontrava-se

desempregado, a mulher abandonara-o e ele achava-se o

homem mais infeliz do mundo.


Estendeu-se no tapete verde e ergueu bem alto a garrafa

de whisky; o líquido cor de caramelo ia a um terço da

garrafa, o que significava que ainda lhe restava uma

boa quantidade para afogar as memórias do ano pavoroso

que tinha tido.


“And. it’s all for me grog, me jolly jolly grog”,

cantarolou em voz baixa. “All for me beer and tobacco.

Well I’ve spent all me tin with the ladies drinking

gin...'”


O whisky fazia-o feliz por umas horas, ou pelo menos

apagava-lhe durante esse tempo a infelicidade da

memória, pelo que engoliu mais um trago e recomeçou a

entoar a música que na sua juventude animara muitas

folias. Paddy tinha consumido quase trinta anos da sua

vida a trabalhar na função pública. Trinta anos! De

repente veio a crise, os bancos foram atingidos, o

governo financiou-os, o défice público ficou a

descoberto, veio o FMI e seguiram-se os despedimentos

em cadeia. Fora apanhado na voragem dos cortes em

pessoal e viu-se de repente sem emprego.


Com mais de cinquenta anos, quem o iria contratar?

Sentindo-se

um

farrapo

abandonado,

começou

por

encharcar as mágoas nas Guinness do Mulligan’s, o pub

da esquina. Chegava a casa todas as noites a cambalear

e a vomitar. Ao fim de alguns meses nisso, a mulher,

aquela cabra de voz esganiçada e língua viperina,

abandonou-o e regressou a Limerick.


“Bruxa!”, rosnou logo que pensou nela. “Que apodreça

corroída pelo seu próprio veneno!...”


Depois vieram os bancos e ficaram-lhe com a casa por

causa das mensalidades que deixara de pagar.


“Uns abutres, esses tipos dos bancos!”, acrescentou de

seguida, já sem saber se falava com ele próprio ou se

alguém o escutava. “Que se enterrem na porcaria que

andaram a fazer, esses animais!...”


Porém, Paddy tinha bem a consciência de que quem andava

enterrado na porcaria era ele, ele que ficara sem tecto

e dormia ao relento. Havia já quatro meses que fizera

dos Dubh Linn Gardens a sua cama. Ergueu a cabeça e

olhou em redor. Havia sítios piores, considerou,

esfregando os cabelos desgrenhados. O jardim podia não

ser um local muito confortável para dormir, em especial

nas noites frias e húmidas de Inverno, mas ao menos era

bonito. Além disso tinha vizinhos de prestígio, como o

castelo e a biblioteca. E silenciosos, ainda por cima.

No fundo de que se queixava ele?


Lançou um olhar quase carinhoso na direcção da Chester

Beatty Library, como se buscasse confirmação dos

predicados que acabara de lhe atribuir. Ficou por isso

admirado quando viu a porta de entrada abrir-se e o

guarda nocturno da biblioteca despedir-se de um homem

alto e magro, com um porte distinto.


“Olaré! Movimento a esta hora?”


Sentia-se entorpecido pelo álcool e bebeu mais um gole,

como se essa fosse a maneira mais eficiente de

recuperar a sobriedade. Depois observou o homem alto e

magro a afastar-se. Fez tenção de se voltar a estender

na relva, aproveitando o embalo do sono que começava a

pesar-lhe nos olhos, mas um movimento inesperado fê-lo

deter-se um instante mais.


De uma sombra lá ao fundo emergiu um vulto que se

aproximou a correr em direcção às costas do homem que

acabava de sair da biblioteca. O vulto avançava com

passos rápidos, mas furtivos, e, com uma agilidade

fulminante, saltou sobre a sua presa. As duas figuras


ficaram momentaneamente unidas, os contornos dos corpos

esbatidos na escuridão. Depois o vulto emitiu um grito

de consternação e afastou-se a correr, deixando o homem

estendido no chão.


Apanhado de surpresa pela brevidade e pela estranheza

do sucedido, Paddy esfregou os olhos com força e depois

voltou a abri-los. Fitou o local onde lhe parecera que

algo tinha sucedido e pensou por momentos que havia

sonhado, mas depressa situou o corpo estendido no chão

e percebeu enfim que os sentidos não o tinham enganado

e que havia de facto visto o que pensara que vira.


Levantou-se da relva, cambaleante, e, com a sua voz de

ébrio, gritou por socorro.


XII


A beldade de cabelos castanho-escuros encaracolados e

olhos azuis abanava a cabeça sem cessar, recusando-se

terminantemente a aceitar o que acabara de ouvir.


“Agora já não é apenas a história da adúltera que é

falsa?”, perguntou de dentes cerrados, mal contendo a

irritação que a envenenava. “Também a ressurreição de

Jesus? Mas que conversa vem a ser essa? Está a brincar

comigo ou quê?”


O tom era de tal modo agressivo que Tomás deu por uma

gota de transpiração a escorrer-lhe pelas têmporas,

ziguezagueando como uma lágrima. Teria feito mal em

contar aquilo? Começava a alimentar sérias dúvidas

sobre a sensatez de expor a uma católica devota as

informações históricas sobre Jesus que haviam sido

extraídas pelos historiadores dos vestígios existentes.

Mas uma vez que se pusera a trilhar aquele caminho,

sabia, já não havia recuo. Não podia dizer coisas

daquelas sem ir até às últimas consequências. Era tarde

de mais para se arrepender...


“Tenha calma”, pediu. “Não se enerve.”


“Eu estou calma, ouviu?”, quase gritou a italiana. “Não

me enervo facilmente! Não sou dessas! Mesmo quando por

vezes tenho motivos para me enervar. Como quando escuto

certas alarvidades!...”

“Não são, receio bem, alarvidades. São coisas que...”

“Ai não são?”, cortou ela. “Diz coisas dessas sem

apresentar a mínima prova e está à espera de quê? Que

digamos ámen? Obrigado por nos trazer a luz, a nós, os

papalvos? Está à espera que lhe agradeça? Está à espera

de quê?”


O olhar de Tomás endureceu.


“Estou à espera que me oiça”, disse, com veemência

inesperada. Apontou-lhe o dedo. “Você disse-me que me

escutaria sem se zangar, não disse? Agora cumpra!”


Valentina fechou os olhos, pronunciou num sussurro uma

litania imperceptível em italiano, respirou fundo e

voltou a encarar Tomás, desta feita no perfeito

controlo das emoções.


“Então diga lá”, concedeu, num registo perfeitamente

tranquilo que surpreendeu o seu interlocutor; parecia

impossível transfiguração tão instantânea. “Quais são

afinal as provas que tem para me apresentar?”


Tomás olhou-a com desconfiança, na dúvida sobre se

aquele tom era genuíno ou fingido. Percebendo a

hesitação, a italiana pestanejou e exibiu um sorriso

tão encantador e luminoso que lhe arrancou, também a

ele, um sorriso.


“A primeira coisa que tem de perceber é que há erros na

Bíblia que são intencionais”, disse Tomás, apesar de

tudo com cautela. “Os erros acidentais são muito mais

numerosos, claro. Mas os intencionais, receio bem,

também existem.”


“As provas, professor Noronha.”


“Olhe, logo o segundo versículo do Evangelho segundo

Marcos”, indicou. O texto diz: ‘Conforme está escrito

no profeta Isaías: Eis que envio, à Tua frente, o Meu

mensageiro, a fim de preparar o Teu caminho.’ O

problema é que o autor do Evangelho se enganou, porque

essa citação não é de Isaías, mas do Êxodo, 23:20.

Muitos copistas aperceberam-se deste erro e emendaram

para ‘Conforme está escrito pelos profetas’. Ora isso é

uma alteração fraudulenta do texto original.”


Valentina curvou os lábios.

“Sim, mas não me parece grave.”


“É uma alteração intencional e não está fiel ao

original”, insistiu Tomás. “E, ao contrário do que

possa parecer à primeira vista, é uma alteração

importante. O erro revela-nos algumas limitações

teológicas do autor do Evangelho. Ao apagar o erro,

está-se a adulterar a percepção da qualidade do seu

autor.”


A italiana inclinou levemente a cabeça para o lado,

concedendo o argumento.


“Seja”, disse. “Mas ainda não me apresentou as provas

sobre as fraudes nas histórias da adúltera e da

ressurreição...”


Tomás ergueu a mão, como se a quisesse travar.


“Já lá vai”, indicou, pedindo-lhe que tivesse

paciência. “Primeiro queria que ficasse com uma ideia

mais clara do tipo de alterações intencionais que os

copistas foram fazendo ao longo dos séculos.” Indicou

com o olhar o códice pousado na mesa. “Leia o que está

escrito em Mateus, 24:36. Jesus profetiza o fim dos

tempos e diz: ‘Quanto àquele dia e àquela hora, ninguém

o sabe, nem os anjos do Céu, nem o Filho; só o Pai.’

Este versículo traz problemas óbvios ao conceito de

Santíssima

Trindade,

que,

entre

outras

coisas,

estabelece que Jesus é Deus. Se é Deus, é omnisciente.

No entanto, neste versículo, Jesus admite que não sabe

quando será o dia e a hora do juízo final. Como é

possível? Jesus não é Deus? Não é ele omnisciente? Para

resolver este paradoxo incómodo, muitos copistas

eliminaram a expressão ‘nem o Filho’, e assim

resolveram o problema.” Bateu com o indicador na mesa.

“Esta, minha cara, é uma alteração intencional típica

feita por motivos teológicos. Não sendo inocente,

também não é inconsequente, como estou certo que

perceberá.”


“Mas essa alteração mantém-se, ainda hoje?”


“Esta alteração foi denunciada e, após grande polémica,

as traduções mais fiéis decidiram recuperar o texto


original. Assim sendo, mantêm o paradoxo e rezam para

que os fiéis não o notem. Mas o importante é sublinhar

que os copistas não cometem apenas erros acidentais. Há

muitas alterações que são intencionais. Por exemplo,

quando encontravam pequenas alterações de uma história

nas diferentes cópias, muitos deles eliminavam as

diferenças e harmonizavam os textos, alterando assim

intencionalmente o que copiavam. Chegaram ao ponto de

inserir histórias que não se encontravam nos evangelhos

que estavam a copiar.” Fez uma pequena pausa, para

efeito dramático. “É o caso da história da adúltera e

da narrativa da ressurreição no Evangelho segundo

Marcos.”


“Ah-ha!” exclamou Valentina. “Custou, mas foi! Chegámos

finalmente ao que interessa!”


Tomás riu-se.


“O que interessa está muito para lá dessas duas

histórias, acredite.”


“Isso não sei”, respondeu ela. “O que sei é que você

pôs em causa duas narrativas fundamentais da Bíblia e,

que eu saiba, ainda não apresentou uma única prova!”


“Quer provas?”


“Não estou à espera de outra coisa...”


Sentindo uma dor nos rins por causa da posição incómoda

em que se encontrava sentado, o historiador endireitou

o tronco e encheu os pulmões de ar, como se os quisesse

exercitar.


“A primeira noção que tem de ter é que, apesar de ser

muito conhecido, o episódio da adúltera encontra-se

numa única passagem, do Evangelho segundo João. Mais

exactamente, do versículo 7:53 até ao 8:12.”


Valentina arregalou os olhos.


“Mamma mia!”, exclamou, sem conter a admiração. “Você

até decorou os números dos versículos! Que crânio!”


“Minha cara, sou historiador”, sorriu ele. “Mas é

importante que perceba que esse episódio não constava

originalmente desse evangelho. Aliás, nem desse, nem de

qualquer outro. Foi acrescentado por escribas.”


A italiana esfregou o indicador no polegar, como a

pedir algo de material.


“Provas?”


“É muito simples”, disse Tomás. “A história da adúltera

não se encontra nos manuscritos mais antigos do Novo

Testamento, considerados mais fiéis ao texto original.

Só aparece nas cópias posteriores. Além disso, o estilo

de escrita difere marcadamente do existente no resto do

Evangelho segundo João, incluindo as narrativas que se

situam nos versículos imediatamente antes e depois. Por

fim, este episódio inclui um grande número de palavras

e frases que não são usadas no resto deste evangelho.

Por tudo isto, há um consenso no mundo académico de que

este trecho foi acrescentado. É uma fraude.”


A inspectora carregou as sobrancelhas.


“Ah!”, expeliu, percebendo que não tinha maneira de

contra-argumentar. “Esta agora!” Olhou para o Codex Va-

ticanus. “E como foi esse episódio ali parar?”


“Ninguém sabe. É possível que tenha sido inserido por

teólogos cristãos que, num debate com judeus sobre a

lei de Deus, se sentissem embaraçados pelas regras

divinas estabelecidas em Levítico. Não encontrando nada

em Jesus a contrariar a ordem de apedrejar as

adúlteras, inseriram esse episódio no Evangelho segundo

João.”

“Mas... mas faziam isso assim, sem mais nem menos?”

“Atenção, isto é apenas uma teoria. Naquele tempo as

pessoas acreditavam que certas ideias religiosas que


lhes ocorriam eram verdadeiras porque lhes tinham sido

implantadas na mente pelo Espírito Santo. Jesus é

citado por Marcos em 13:11 a dizer o seguinte: ‘Quando

vos levarem para serdes entregues, não vos inquieteis

com o que haveis de dizer, mas dizei o que vos for dado

nessa hora, pois não sereis vós a falar, mas sim o

Espírito Santo.’ Ou seja, acreditavam que o Espírito

Santo os guiava quando lhes vinha à cabeça um qualquer

conceito teológico. Se a inspiração não fosse divina,

como lhes poderiam ter ocorrido essas ideias? Daí até

inserir a narrativa da adúltera, que convenientemente

desautorizava uma ordem incómoda de Deus estabelecida

de maneira inequívoca em Levítico, foi um passo.” Tomás

comprimiu os lábios. “Outra hipótese é que um escriba

tivesse anotado esse episódio na margem de um

manuscrito, baseado numa qualquer tradição oral sobre

Jesus. Décadas depois um outro escriba que estivesse a

copiar o texto poderá ter achado que a anotação

marginal pertencia à narrativa e inseriu-a a meio do

Evangelho. É curioso notar que o episódio da adúltera

aparece nos diversos manuscritos em diferentes pontos

da narrativa: nuns casos em João 8:1, noutros após João

21:25, e noutros ainda em Lucas 21:38. Isso dá uma

certa credibilidade a esta hipótese.” Encolheu os

ombros. “Seja como for, o que interessa é que a

história é comprovadamente uma falsificação da Bíblia.”


Valentina fez um assobio suave.


“Quem diria!”, exclamou, balouçando a cabeça. Ergueu a

sobrancelha, de repente preocupada. “E a ressurreição

de Jesus? Porque diz que é falsa?”


O historiador folheou com cuidado o Codex Vaticanus, em

busca de uma passagem específica.


“Pelos mesmos motivos”, disse. “Neste caso estamos a

falar do Evangelho segundo Marcos. Mais precisamente

dos derradeiros versículos. O fecho deste evangelho não

constitui um trecho que pareça familiar às pessoas em

geral, mas tem grande peso na interpretação bíblica,

como já vai perceber.” Parou na última página do

Evangelho segundo Marcos. “Aqui está!”


Num movimento quase automático, a italiana inclinou-se

também sobre o manuscrito, mas o texto estava

caligrafado em grego e, quase decepcionada, teve de

aguardar a explicação do seu interlocutor.


“O final de Marcos aborda, claro, a morte de Jesus”,

explicou Tomás. “Ele foi crucificado, como sabe, e, uma

vez morto, José de Arimateia pediu o seu corpo e foi

depositá-lo num sepulcro cavado na rocha, cuja entrada

tapou com uma pedra. Ao amanhecer de domingo, Maria

Madalena, Salomé e Maria mãe de Tiago desceram ao

sepulcro para besuntar o cadáver de óleo, como era da

tradição. Quando chegaram ao local, porém, encontraram

a entrada destapada e um jovem de túnica branca sentado

à direita, que lhes disse: ‘Buscais a Jesus de Nazaré,

o crucificado? Ressuscitou, não está aqui.’ As três

mulheres fugiram do sepulcro, a tremer, ‘e não disseram

nada a ninguém porque tinham medo’.”


Valentina impacientou-se.

“Onde está a fraude?”

O académico português pousou o indicador num ponto do

texto do Codex Vaticanus, mesmo a fechar o Evangelho.


“Nos doze versículos seguintes”, disse. “Aqui, de 16:9

a 16:20. Diz Marcos que, depois de as três mulheres

fugirem apavoradas do sepulcro, Jesus ressuscitado

apareceu primeiro a Maria Madalena e depois aos

apóstolos. E disse-lhes: ‘Ide pelo mundo inteiro e

anunciai a Boa Nova a toda a criatura. Quem acreditar e

for baptizado será salvo, mas quem não acreditar será

condenado.’ Depois Jesus foi arrebatado para o Céu e

sentou-se à direita de Deus.”


A italiana carregou as sobrancelhas, derramando

irritação do olhar azul subitamente nublado.


“Está a insinuar que esse relato da ressurreição é uma

fraude?”


Tomás abriu os braços, num sinal de rendição.


“Não estou a insinuar nada”, apressou-se a esclarecer.

“Se Jesus ressuscitou ou não, isso é uma matéria de

convicção religiosa na qual de certeza não me meto.

Estou apenas preocupado em extrair a verdade histórica

do texto, recorrendo a uma análise crítica dos

documentos ao nosso dispor segundo os cinco critérios

que lhe expliquei.”


“Mas, se o entendi bem, está a pôr em causa a validade

desses versículos que relatam a ressurreição...”


“De facto, assim é.”


Valentina olhou-o de sobrolho carregado, indicando-lhe

que esperava que ele a elucidasse.


“E então?”


O historiador desviou a atenção para o texto redigido

em grego no manuscrito aberto diante dele.


“Isto é uma fraude”, sentenciou. “Os versículos da

ressurreição de Jesus estão ausentes dos dois melhores

e mais antigos manuscritos que contêm o Evangelho

segundo Marcos.”


A italiana arregalou os olhos.

“O quê?”

“É uma situação em tudo semelhante ao episódio da

adúltera”, indicou o académico. “Além de não constarem

dos textos mais antigos, e consequentemente mais

próximos dos originais, o estilo de escrita destes

versículos é diferente do utilizado no resto do

Evangelho. Ainda por cima, muitas das palavras e frases

que são usadas nestes doze versículos da ressurreição

não se encontram noutras partes do texto de Marcos.”

Bateu insistentemente com o dedo no pergaminho do Codex

Vaticanus, como se quisesse reforçar a ideia. “Ou seja,

esta narrativa da ressurreição não pertence ao texto


original e foi acrescentada por um escriba posterior.”

Cravou os olhos na inspectora, como um juiz no momento

de um veredicto terrível. “É uma intrujice.” Valentina

desviou a atenção do seu interlocutor, quase embaraçada

por escutar estas palavras em referência à Bíblia, e

observou o bulício tranquilo nas duas salas contíguas

da Biblioteca Apostólica Vaticana. Os seus subordinados

analisavam ainda vestígios e os paramédicos tinham sido

autorizados a recolher o cadáver estendido no chão,

pelo que faziam os preparativos para a remoção do

corpo.


“Tudo isto por causa da investigação que a sua amiga

estava a conduzir”, murmurou, quase com ressentimento.


Tomás evitou com o olhar a actividade que, com a

chegada ao local dos paramédicos, de repente se

desencadeou em torno do corpo de Patrícia. Em vez disso

concentrou-se no velho manuscrito depositado a dois

palmos dele.


“Ela estava à caça dos erros do Novo Testamento”,

disse. “O facto de ter deixado o Codex Vaticanus aberto

precisamente nesta página é indício seguro disso.”


A inspectora da Polizia Giudiziaria meditou durante

alguns instantes, considerando as pontas soltas da sua

investigação. Havia uma coisa importante que ainda não

esclarecera, lembrou-se, pelo que apontou para a

passagem entre as duas salas.


“E o que me diz daquela charada que encontrámos no

chão?”, perguntou. “Acha que tem alguma relação com

isto tudo? Ou é apenas uma brincadeira?”


Tomás voltou a atenção para o papel pousado sobre o

mármore da biblioteca e ponderou o assunto. Sim, que

papel desempenhava o enigma naquele assunto sórdido?

Prendeu os olhos na folha e focou-os na mensagem

cifrada que nela fora rabiscada.


tyALKÁ


O que queria dizer aquele alma? Seria um gracejo? Uma

referência ao mundo dos espíritos? E o estranho sinal

antes da palavra? Parecia uma forquilha. Ou então

uma... uma...


“Uma flor-de-lis!?”


O historiador ergueu-se com um movimento brusco,

assustando a inspectora.


“Jesus!”, exclamou ela, dando um salto na cadeira. “Que

foi? Que se passa?”


Tomás deu dois passos na direcção da passagem entre as

duas salas e apontou com veemência para a folha de

papel pousada no chão.


“Já

sei!”,

vociferou,

num

estado

de

excitação

repentino. “Já sei o que isto é!”


Valentina fitou a folha, percebendo enfim o rebuliço.

“Ai sim? E o que é?”

O académico português acocorava-se já junto ao enigma

rabiscado no papel, observando-o com novos olhos, os de

quem percebeu enfim o que estava realmente a ver.


“É o segredo de Maria”, exclamou. “A Virgem que não era

virgem.”


XIII


Correr na escuridão é uma coisa naturalmente difícil

para qualquer um, mas fazê-lo com dois terços de uma

garrafa de whisky a circular no sangue revelou-se

tarefa quase impossível para Paddy McGrath.


“Ajudem!”


O homem ébrio tombou duas vezes na relva molhada dos

Dubh Linn Gardens, mas das duas vezes levantou-se e

recomeçou

a

correr.

Era

uma

corrida

trôpega,

cambaleante, feita quase aos trambolhões, numa rota aos

ziguezagues, os pulmões a arfarem, a garganta seca, o

mundo em redor a andar à roda.


Porém, correu.

“Ajudem!”

Chegou ao pé do vulto tombado no chão e estacou, a

respiração ofegante. A seus pés o homem mexia-se, mas

não

conseguia

falar;

emitia

apenas

uns

sopros

gorgolejantes. O pior era que havia uma poça de sangue

ao lado da cabeça. Paddy olhou-o, atrapalhado, sem

saber como proceder. Quis ajudá-lo, mas hesitou. Como?

O que tinha a fazer? O que sabia ele de primeiros

socorros?


“Espere!”, titubeou, fazendo-lhe gestos enfáticos.

“Aguente!” Olhou em volta, atarantado. “Ajudem!”,

gritou. Ninguém apareceu e encarou com impotência o

ferido agonizante. “Eu vou... vou buscar ajuda. Espere

um bocadinho. Já volto!” Procurou de novo em redor.

“Ajudem!”


Apenas o vento respondeu. Paddy largou o ferido e, em

estado de desorientação, deu uns passos para um lado e

depois para o outro, atarantado e indeciso quanto ao

que fazer. De repente viu luz num edifício e correu

naquela direcção. Era a Chester Beatty Library.


Chegou diante da porta e bateu com frenesim no vidro.

“Ajudem!”, berrou. “Abram a porta! Alguém ajude!” Acto

contínuo, o guarda da noite apareceu no átrio interior

da biblioteca com ar de poucos amigos. Aproximou-se da

porta envidraçada e encarou Paddy do outro lado do

vidro. Com um gesto peremptório, fez-lhe sinal com o

braço de que se fosse embora.


“Abra a porta!”, insistiu Paddy, batendo de novo no

vidro, agora ainda com mais força. “Ajude!”


O guarda nocturno pareceu irritar-se. Tirou o cassetete

do cinto e abriu a porta com modos agressivos.


“O que vem a ser isto?”, rugiu, bramindo o cassetete.

“Ponha-se já daqui para fora! Andor!”


Paddy apontou para a esquerda.


“Ali!”, disse. “Está ali um homem que precisa de ajuda!

Está ferido. Pode ajudar?”


O guarda nocturno espreitou naquela direcção e

vislumbrou um vulto a contorcer-se no chão. Intrigado e

desconfiado, puxou do walkie-talkie.


“Phoenix para Eagle.”


Foram precisos dois segundos para uma voz responder no

aparelho.


“O que é, Phoenix?”


“Tenho um problema à porta da Chester”, disse. “Vou

sair e comunico de novo em trinta segundos.”


“Fico à espera, Phoenix. Over.”


O guarda trancou a porta atrás dele e caminhou em passo

rápido para o corpo estendido no chão, mas assegurando-

se de que o sem-abrigo malcheiroso se mantinha a uma

distância prudente. O guarda sabia que precisava de ser

cuidadoso e tomar todas as precauções; havia sempre a


possibilidade de tudo aquilo não passar de uma

encenação para assaltar a biblioteca.


Quando chegou junto ao vulto caído, porém, as dúvidas

desfizeram-se. O guarda nocturno reconheceu de imediato

o utente que, apenas um minuto antes, acompanhara à

porta da biblioteca.


Foi então que viu o sangue.

“My God”

Ajoelhou-se junto do ferido e localizou a ferida;

estava no pescoço e, pelo aspecto, era grave. Demasiado

grave para ele, sozinho e com os seus limitados

conhecimentos de primeiros socorros, conseguir prestar

uma

ajuda

eficiente.

A

vítima

estremecia

convulsivamente, como se estivesse atacada por uma

febre alta. Precisava de auxílio profissional. E

depressa.


O guarda nocturno colou o walkie-talkie aos lábios.

“Phoenix para Eagle.”

“O que é, Phoenix?”


“Tenho um ferido grave à porta da Chester”, disse.

“Chame imediatamente uma ambulância. É urgente.”


Largou o walkie-talkie e curvou-se de novo sobre o

ferido, que tremia descontroladamente. O guarda colou—

-lhe os dedos ao pescoço e tentou localizar a abertura

por onde jorrava todo aquele sangue, na esperança de o

estancar. Foi nesse instante que o líquido vermelho

deixou de golfar e que o tremor cessou. A sua primeira

reacção foi de alívio, mas depois olhou para o rosto da

vítima e percebeu por que razão a hemorragia e a

trepidação haviam parado.


O homem tinha morrido.


XIV


Os dois paramédicos puseram-se em posição, um a segurar

os ombros do cadáver e o outro as pernas, contaram até

três e, com um movimento sincronizado, transferiram-no

para a maca. Depois voltaram a cobrir o corpo com o

lençol e levantaram a maca, transportando Patrícia pela

biblioteca em direcção à saída.


Acocorado na ligação entre as duas salas dos

manuscritos, Tomás viu a maca passar diante dele e

desaparecer para além da porta que conduzia à Joanina.

Permaneceu um longo instante a olhar para a porta

deserta; parecia hipnotizado, mas na verdade despedia-

-se em silêncio da amiga galega.


“Que

história

é

essa

de

Maria?”,

questionou-o

Valentina, quebrando a solenidade constrangedora do

momento. “Diz você que ela é a Virgem que não é

virgem?”


O historiador apontou para a charada rabiscada no papel

que fora abandonado no chão.


Wàlwa


“É o que revela este enigma.”


A inspectora da Polizia Giudiziaria olhou interroga-

doramente para a mensagem incompreensível, tentando

perceber onde poderia o académico português ver ali uma

referência à Virgem Maria. Por mais que esquadrinhasse

aqueles gatafunhos, não conseguia destrinçar a menor

ligação.


“Como me disse há pouco, o que está aqui escrito é a

palavra alma”, lembrou. “Que eu saiba, não há nenhuma

referência à mãe de Jesus.”


Tomás apontou com o dedo para o primeiro rabisco da

mensagem, antes da palavra alma.


“Está a ver este símbolo que parece uma forquilha?”,

perguntou. “É ele a chave da descodificação desta

mensagem.”


“Porquê? O que é isso?”


“É o desenho esquemático de uma flor-de-lis.” Arqueou

as sobrancelhas, para sublinhar o significado da

descoberta. “O símbolo da pureza da Virgem Maria.”


“Ah, então a Madonna sempre é virgem!...”, exclamou

Valentina, carregada de ironia. “Pensei que tinha dito

que...”


“Calma!”, pediu Tomás, reprimindo um sorriso. “A flor-

-de-lis serve apenas para direccionar a interpretação

da palavra que está a seguir. Alma.”


A italiana cruzou os seus olhos azuis com os verdes de

Tomás.


“Então alma não remete para espíritos?”


“Não quando tem a flor-de-lis atrás. Neste caso remete-

-nos para a Virgem Maria.”


“Porque diz isso? O que está escrito aqui é alma, não é

virgem nem Maria.”


Embora se mantivesse acocorado, o historiador

endireitou o tronco para melhor se equilibrar naquela

posição.


“Sabe onde está a informação de que a mãe de Jesus era

uma virgem?”


“Na Bíblia, presumo.”


Tomás fez um V com os dedos.


“Apenas em dois evangelhos”, disse. “Mateus e Lucas.

Marcos ignora por completo a questão do nascimento de

Jesus e João diz em 1:45: ‘É Jesus, o filho de José, de


Nazaré.’ Ou seja, refere directamente que José é pai de

Jesus, afirmação que implica contradizer Mateus e

Lucas.” Ergueu o dedo. “Mas o mais importante é o

testemunho de Paulo, mais antigo que os Evangelhos. Diz

Paulo na Carta aos Gálatas, em 4:4: ‘Deus enviou o seu

Filho, nascido de mulher.’ Paulo, escrevendo mais perto

dos

acontecimentos,

pelos

vistos

esqueceu-se

de

mencionar que a dita mulher era uma virgem. Não me

parece possível que tenha achado esse pormenor

irrelevante. Uma virgem que dá à luz não é coisa

normal, pois não? Se tivesse acontecido com Maria,

decerto Paulo não se esqueceria de o mencionar. Ora se

Paulo não o refere, é porque tal nunca lhe foi dito. E

porquê? Porque provavelmente essa tradição não existia

ainda nesse tempo. Foi inventada mais tarde.”


Valentina arregalou os olhos.


“Inventada? Você é incrível! Há-de ir para o Inferno!

Como pode afirmar uma coisa dessas, Dio mio?”


Tomás indicou o papel pousado no chão.


“Por causa desta palavra”, explicou. “Alma.”


A italiana baixou os olhos para a charada e levantou-os

de novo, perdida naquela argumentação.


“Não entendo. Que quer dizer com isso?”


“A resposta a essa pergunta é-nos dada por Lucas e por

Mateus. Diz um anjo a Maria, no Evangelho segundo

Lucas, em 1:35: ‘O Santo que vai nascer há-de chamar-Se

Filho de Deus.’ E esclarece Mateus em 1:22 e em 1:23,

ao apontar as razões pelas quais Jesus nasceu de uma

virgem: ‘Tudo isto sucedeu para que se cumprisse o que

foi dito pelo Senhor e anunciado pelo profeta: Eis que

a Virgem conceberá e dará à luz um filho; e chamá-Lo-ão

Emanuel, que quer dizer Deus connosco.’”


O historiador calou-se, deixando que as implicações das

duas citações do Novo Testamento fossem absorvidas pela


sua interlocutora, mas Valentina devolveu-lhe um olhar

opaco, ainda sem nada entender.


“E então?”


“Não percebe? Lucas relaciona o facto de Jesus ter

nascido de uma virgem com a afirmação de que é o Filho

de Deus. O mais importante é que Mateus atribui isso ao

‘que foi dito pelo Senhor e anunciado pelo profeta’.”

Fez uma nova pausa. “Dito pelo Senhor? Anunciado pelo

profeta?”

Inclinou

a

cabeça

para

a

italiana,

interpelando-a directamente. “O profeta revelou que o

Messias nascerá de uma virgem? E chamar-se-á Emanuel?

Que profeta escreveu tal coisa?”


“Bem, presumo que se trate de um profeta do Antigo

Testamento, não é verdade?”


“Claro que é um profeta do Antigo Testamento! A questão

é esta: que profeta das Escrituras previu que o Messias

iria nascer de uma virgem e se chamaria Emanuel?”


Valentina encolheu os ombros.

“Sei lá!”

Tomás levantou-se e fez sinal à inspectora de que o

seguisse. Sentaram-se ambos de novo à mesa de leitura e

o historiador folheou com infinito cuidado o velho

Codex Vaticanus.


“Na verdade, consultando o Antigo Testamento, descobre-

-se que há de facto um profeta que fez a previsão

mencionada por Mateus”, disse, enquanto virava as

páginas do códice do século IV. “Trata-se do profeta

Isaías.” Chegou ao trecho das Escrituras que buscava.

“Aqui está! Repare o que diz Isaías em... em 7:14: ‘Por

isso, o mesmo Senhor por sua conta e risco, vos dará um

sinal: Olhai: A virgem está grávida e dará um filho,

por-lhe-á o nome de Emanuel.’”


A italiana arregalou os olhos.


“Então... então Mateus tinha razão!”, exclamou com

entusiasmo. “O nascimento de Jesus estava de facto

previsto por um profeta do Antigo Testamento! E esse

profeta anunciou que o Messias nasceria de uma virgem,

como de facto veio a suceder!”


Tomás encarou-a demoradamente, como se lhe estudasse o

rosto. Na verdade, avaliava apenas a forma como lhe

iria explicar o enigma bíblico que aquela charada

encerrava.


“Sabe em que língua foi originalmente escrito o Novo

Testamento?”, perguntou de repente.


“Não foi em latim?”

O historiador sorriu.

“Não brinque comigo”, disse. “Que língua falava Jesus?”

“Bem... hebraico, acho.”

“Aramaico”, corrigiu o académico. “É verdade que o

aramaico é uma língua muito próxima do hebraico.”

Baixou por momentos os olhos para o Codex Vaticanus. “E

a Bíblia? Em que língua acha que foi originalmente

escrita?”


“Enfim, se Jesus falava aramaico, parece-me natural que

os

Evangelhos

também

tenham

sido

escritos

em

aramaico...” Tomás assentiu.


“O Antigo Testamento foi de facto escrito em aramaico e

em hebraico”, disse. Indicou as palavras em grego

alinhadas no manuscrito do século IV. “Mas o Novo

Testamento,

criado

em

torno

da

figura

e

dos

ensinamentos de Jesus, foi originalmente redigido em

grego.” Apontou para a charada que se encontrava no

chão, junto à passagem entre as duas salas. “O que

explica muita coisa, não lhe parece?”


“Não vejo o quê!...”


O historiador pousou o dedo sobre uma palavra a meio de

uma linha do Codex Vaticanus.


“A

palavra-chave

do

enigma

é

esta”,

indicou.

“Parthenos. Ou seja, virgem em grego.” Releu a frase

desenhada no códice. “‘A virgem está grávida e dará um

filho.’”


Valentina olhou para a linha em grego, cheia de

curiosidade e fascínio. As letras eram arredondadas e

tinham sido desenhadas com esmero.


“É essa a linha onde Isaías profetiza o nascimento de

Jesus filho da Virgem Maria?”


“Seria”, retorquiu Tomás, “não fosse o facto de o

profeta Isaías não ter profetizado tal coisa!”


“Como pode você dizer isso?”, protestou, indicando o

Codex Vaticanus. “Pois não está a profecia muito clara?

O Messias nascerá de uma virgem. Foi isso o que Isaías

profetizou.” Tomás voltou a bater com o indicador na

palavra parthenos grafada no velho códice.


“Foi o que Isaías profetizou na tradução do Antigo

Testamento em grego”, disse. “Acontece que o Antigo

Testamento foi originalmente escrito em hebraico e

aramaico. No caso das profecias de Isaías, o texto foi

redigido em hebraico. E a minha pergunta agora é esta:

que palavra hebraica usou Isaías quando mencionou a

mulher que daria um filho que seria o Messias?”


“Bem,

presumo

que

seja

a

palavra

virgem

em

hebraico!...”


“Aí é que está o problema!”, exclamou. “É que a palavra

usada originalmente por Isaías em hebraico neste

versículo do Antigo Testamento não foi virgem.”


“Então qual foi?”

“Alma”


A italiana arregalou os olhos.

“Perdão?”

“A palavra original neste versículo é alma. Que em

hebraico significa mulher jovem. Ou seja, o que Isaías

originalmente escreveu em hebraico foi: ‘“A mulher

jovem está grávida e dará um filho.’” Voltou a bater em

cima da palavra parthenos grafada no Codex Vaticanus.

“O que se passou foi que, na antiguidade, o tradutor do

Antigo Testamento em grego se enganou neste versículo

e, em vez de traduzir mulher jovem, traduziu virgem.

Acontece que os autores dos dois evangelhos, Lucas e

Mateus, leram a profecia de Isaías na sua tradução

grega, e não no original em hebraico. Querendo associar

Jesus às profecias das Escrituras, para o legitimar

enquanto Messias e Filho de Deus, escreveram que Maria

era virgem, coisa que aliás Marcos, João e Paulo nunca

referiram. Além do mais, é bom não esquecer que Jesus

teve vários irmãos. Escreveu Marcos em 6:3: ‘Não é Ele

o carpinteiro filho de Maria e irmão de Tiago, de José,

de Judas e Simão? E as Suas irmãs não estão aqui entre

nós?’ Se a mãe de Jesus era de facto virgem, como

pretendem Lucas e Mateus, como concebeu ela essa

filharada toda? Também por obra e graça do Espírito

Santo? Foram todas imaculadas concepções?”


Valentina levou a mão à boca, estupefacta.


“Madonna!”, exclamou. “Enganaram-me este tempo todo!”

Estreitou os olhos. “E a Igreja? O que diz a Igreja

desses irmãos todos?”


Tomás sorriu.


“É um embaraço, claro!”, exclamou. “Os teólogos

cristãos puxaram pela imaginação e arranjaram várias

desculpas. Uma é que os irmãos são, na verdade, meios-

irmãos, todos filhos de José mas não de Maria. Outra é

que não se trata de irmãos, mas de primos. E outra é

que a expressão irmãos era muito abrangente e podia ser

aplicada a companheiros.”


“Ah, isso explica a filharada toda!...”

O historiador abanou a cabeça com ênfase.

“Não, minha cara”, disse. “A frase de Marcos, ‘Não é

Ele o carpinteiro filho de Maria e irmão de Tiago, de

José, de Judas e Simão? E as Suas irmãs não estão aqui

entre nós?’, torna evidente pelo seu contexto que se

está a referir a irmãos de sangue. O resto não passa de

esforços desesperados para adaptar os factos à

teologia.” Colou o indicador às têmporas. “Meta isto na

cabeça: Maria não era virgem. O relato da sua

maternidade enquanto virgem resulta de um erro de

tradução do Antigo Testamento em grego e da vontade de

Lucas e Mateus de associar Jesus às profecias de

Isaías, para reforçarem a ideia de que ele era o Filho

de Deus e sem consciência de que o trecho de Isaías que

leram em grego estava manchado por um erro de

tradução.”


Valentina bufou.

“Pois, isso encaixa.”

“E o pior é que este erro desencadeou uma sucessão de

adulterações do texto bíblico ao longo dos séculos”,

acrescentou Tomás, quase ainda no mesmo fôlego. “Por

exemplo, quando Lucas diz que José e Maria levaram

Jesus ao Templo e Simeão o identificou como o Senhor,

escreve o evangelista em 2:33: ‘Seu pai e Sua mãe

estavam admirados com o que se dizia d’Ele.”’ O

historiador fez uma careta. “Seu pai?


Como pode Lucas dizer que José é pai de Jesus se ele

nasceu de uma virgem? Confrontados com este problema,

muitos copistas alteraram o texto para ‘José e Sua mãe

estavam admirados...’ O mesmo aconteceu uns versículos

mais à frente, em 2:43, quando Lucas diz que José e

Maria ‘regressaram a casa e o Menino ficou em

Jerusalém, sem que os pais o soubessem’. Pais? José

volta aqui a ser apresentado como pai de Jesus.

Novamente os copistas corrigiram o texto, escrevendo

‘sem que José e a mãe soubessem’. Em 2:48, Maria


repreende o pequeno Jesus por ter ficado para trás,

dizendo: ‘Teu pai e eu andávamos aflitos à Tua

procura.’ Os copistas mudaram para ‘Andámos à tua

procura’, evitando assim de novo chamar a José pai de

Jesus.” Sorriu. “Enfim, estamos perante uma catadupa de

adulterações do texto original, nascidas de um simples

erro de tradução de Isaías do hebraico em grego.”


“É

incrível!”,

exclamou

Valentina.

“Absolutamente

incrível!” Ergueu o sobrolho. “É comum os autores dos

Evangelhos cometerem esses erros de tradução?”


“Mais do que os teólogos cristãos gostariam”, retorquiu

o académico português. “No Evangelho segundo João está

descrita uma conversa entre Jesus e um fariseu chamado

Nicodemo. Em 3:3, Jesus diz-lhe: ‘Quem não nascer de

novo não pode ver o Reino de Deus.’ Ao que Nicodemo

responde, no versículo seguinte: ‘Como pode nascer um

homem sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de

sua mãe e voltar a nascer?’ Jesus esclarece que não

está a falar de um nascimento pela segunda vez, mas de

um nascimento de origem divina. Este equívoco de

Nicodemo é perfeitamente natural, uma vez que a

expressão

outra

vez

tem,

em

grego,

um

duplo

significado: quer dizer uma segunda vez, mas também do

alto. Nicodemo pensava que Jesus tinha usado a palavra

no sentido de nascer uma segunda vez, mas o Messias

esclareceu que queria dizer nascer do alto, isto é,

nascer de Deus. Acontece que, a ter ocorrido, esta

conversa teria forçosamente de ter sido em aramaico, a

língua de Jesus. O problema é que, em aramaico, a

palavra outra vez não tem esse duplo sentido. O duplo

sentido existe apenas em grego. Assim sendo, esta

conversa não pode ter ocorrido. É uma invenção.”


Valentina parecia abismada.


“Mas como é possível que eu nunca tenha ouvido estas

coisas na missa?”


O historiador encolheu os ombros.


“Isso não sei”, disse, lançando um olhar de esguelha

para o contorno do corpo de Patrícia que ficara

desenhado a giz no sítio onde a historiadora fora

encontrada. “Nem isso é o que nos interessa nesta

investigação. A questão realmente pertinente é perceber

por que razão o equívoco em torno da virgindade de

Maria é abordado nesta charada.”


A italiana respirou fundo, deixando esvair-se a

irritação por só então descobrir um conjunto de coisas

que nunca ninguém lhe havia explicado sobre a sua

própria religião. O seu interlocutor tinha razão,

sabia; precisava de se concentrar no essencial. Dadas

as circunstâncias, o essencial era deslindar aquele

crime na Biblioteca Apostólica Vaticana. Tudo o resto

não passava de distracções.


“A resposta a essa questão depende de saber quem

redigiu o enigma”, retorquiu ela. “Se foi a vítima ou o

homicida. Já encomendei uma peritagem caligráfica para

determinar se a letra em que o enigma foi rabiscado é

ou não da sua amiga.” Tomás assentiu com a cabeça, a

mente a deter-se num pormenor que ainda não ficara

claro.


“Há uma coisa que gostaria que me explicasse.”

“O quê?”

“Disse-me há pouco que há uma relação entre o homicídio

e a investigação que a Patrícia estava a levar a cabo”,

recordou. “Mas não me revelou que relação é essa.”


Valentina indicou o espaço vazio onde antes se

encontrara o cadáver da historiadora espanhola.


“O assassino entrou aqui com o único fito de matar a

sua amiga.”


“Como sabe isso?”


A inspectora indicou os códices e os incunábulos que

enchiam as prateleiras da biblioteca.


“Estivemos a verificar o catálogo e não desapareceu

nada”, disse. “Logo, o roubo não foi o móbil do crime.”

Indicou a porta. “Além do mais, descobrimos o empregado

da biblioteca inconsciente no quarto de banho de

serviço. Pelos vistos o assassino não o quis matar,

apenas neutralizar. Isto significa que o intruso veio

especificamente com a missão de matar a sua amiga.”


“Ah, bom.”


“E depois há o homicídio propriamente dito.”

“O que tem ele?”

“A sua amiga foi degolada, lembra-se?”


O português estremeceu.


“Por favor, poupe-me a esses pormenores!...”


“Estes pormenores são muito importantes”, sentenciou a

inspectora da Polizia Giudiziaria. “A maior parte dos

homicídios em Itália, e, aliás, no resto da Europa, são

levados a cabo com lâminas. As vítimas são esfaqueadas

até à morte.”


“Portanto, a Patrícia foi vítima de um homicídio

comum...”


Valentina abanou a cabeça.


“Não necessariamente”, disse devagar. “Sabe, apesar da

frequência de assassínios com recurso a lâminas, a

verdade é que a degolação não é uma maneira simples de

matar alguém. As vítimas lutam muito, criam enormes

dificuldades e atrapalham as manobras necessárias. É

difícil cortar o pescoço a uma pessoa. É por isso que a

degolação constitui uma forma muito rara de homicídio.

Tão rara, aliás, que em geral só ocorre numa situação

muito específica.”


Fez uma pausa, espicaçando a curiosidade de Tomás.


“Qual?”


“Lembra-se de eu lhe ter dito que a sua amiga foi

degolada como um cordeiro?”, perguntou ela. “Essa

imagem, embora admissivelmente de gosto dúbio, é muito

feliz porque exprime com exactidão a natureza deste

tipo de crime.”


O português arqueou as sobrancelhas, sem entender onde

queria a inspectora chegar.


“Não percebo.”


Valentina fitou Tomás com intensidade.


“É que a degolação em geral é reveladora de um

homicídio ritual.”


“O quê?”


“A morte da sua amiga não foi um mero assassínio”,

sentenciou. “Foi um acto ritual.”


“Mas... mas...”


A italiana indicou o Codex Vaticanus.


“É por isso que estou convencida de que este crime está

relacionado com a investigação que ela estava a

conduzir.” Apontou para o seu interlocutor. “E é por

isso que a sua ajuda é preciosa. Estou convencida que

me poderá fornecer pistas que se revelem a chave deste

crime.”


“Eu? Mas não estou a ver o que mais possa...”

Uma voz interrompeu-os.

“Signora inspectora”, disse um homem corpulento que se

aproximara deles com um telemóvel na mão. “Dá licença?”


Valentina rodou o corpo e virou-se para ele.


“Sim, Vittorio. Que é?”


“Recebemos agora uma comunicação da polícia da

Irlanda”, disse. “Parece que houve para lá um homicídio

e querem falar consigo.”


A inspectora da Polizia Giudiziaria arregalou os olhos,

apanhada de surpresa.


“Comigo? A polícia da Irlanda? A esta hora?”

“Parece que o crime ocorreu há pouco...”

A italiana soltou uma gargalhada seca.


“Ora esta, eles falam como se eu não tivesse mais nada

que fazer!” Fez um gesto com a mão, mandando Vittorio

embora. “Diga-lhes que estou ocupada. Eles que nos

enviem um ofício segundo os trâmites normais nestes

casos.”


O polícia à paisana não se mexeu e manteve os olhos

pousados na superiora hierárquica.


“Parece que em Dublin assassinaram esta noite um

historiador”, afirmou num registo lacónico. “A polícia

da Irlanda viu o relatório preliminar que enviámos para

a Interpol e percebeu as semelhanças com o nosso caso.

Os

irlandeses

consideram

imprescindível

a

sua

colaboração. Querem que vá a Dublin o mais depressa

possível.”


A inspectora franziu o sobrolho.


“Mamma mia!”, exclamou. “São rápidos, esses

irlandeses.” Esboçou um gesto de indiferença. “Muito

bem, na mesma noite foram mortos dois historiadores. Um

no Vaticano, outro em Dublin. E depois? Será que os

irlandeses nunca ouviram falar em coincidências?” Novo

gesto com a mão, mandando o subordinado embora. “Vá,

mande-os dar uma volta. Tenho mais que fazer.”


Vittorio manteve-se ainda absolutamente imóvel; era

como se nem sequer a tivesse escutado.


“O historiador assassinado esta noite em Dublin estava

a investigar manuscritos antigos da Bíblia”, revelou no

seu tom monocórdico. “Foi degolado. Ao lado do corpo, a

polícia encontrou um papel com uma coisa estranha.”


“Estranha como?”


O polícia arqueou as sobrancelhas, sublinhando a

derradeira informação que tinha para dar.


“Uma outra charada.”


XV


Uma luz de chumbo pintava a manhã de tonalidades

tristes. O céu apresentava-se densamente nublado e o

clarão difuso do dia emprestava um azul sombrio e

deprimente àquele canto verdejante no centro de Dublin.


“Nem sei como me deixei arrastar para aqui”, queixou-

-se Tomás. “Eu devia estar a tratar das ruínas do Fórum

de Trajano!...”

Valentina Ferro lançou-lhe uma censura com o olhar.

“Outra vez a lamuriar-se?”, perguntou. “Já lhe

expliquei mil vezes que a sua colaboração é essencial

para o sucesso deste inquérito. A forma como me ajudou

a deslindar as pistas bíblicas semeadas na Biblioteca

Vaticana foi brilhante.” Juntou os dedos da mão para

cima, num gesto muito italiano. “Bri-lhan-te!”


“Está bem, mas o meu trabalho não é este...”


“O seu trabalho é colaborar com a justiça”, sentenciou

a inspectora da Polizia Giudiziaria. Encarou o

historiador e suavizou o tom das suas palavras, numa

clara mudança de táctica argumentativa. “Não quer

encontrar o assassino da sua amiga galega? Não acha que

lhe deve pelo menos isso?” Tomás sabia que o argumento

era manipulador, mas não deixava de ser válido. Devia

de facto isso a Patrícia. Como amigo dela, o mínimo que

poderia fazer era ajudar a polícia a encontrar o

assassino. Que raio de amigo seria ele se nem a uma

coisa

dessas

estivesse

disposto?

Se

a

polícia

solicitava a sua colaboração, era de facto seu dever

oferecê-la. Como a poderia recusar?


“Tem razão”, concedeu por fim, conformando-se com a

situação. “É só que eu...”


“Inspectora Ferro?”


Um homem de cabelo grisalho e gabardina creme, imagem

acabada de um detective, aproximou-se dos dois recém-

-chegados com uma pasta de cartolina verde na mão.


“Sim, sou eu”, disse Valentina. “E este é o professor

Tomás Noronha, que nos está a ajudar a investigar o

homicídio no Vaticano.”


O desconhecido estendeu a mão para os cumprimentar.

“Sou o superintendente Sean O’Leary”, identificou-se.

“Inspector do NBCI, o National Bureau of Criminal

Investigation da An Garda Síochána, a polícia da

República da Irlanda. Fui eu que pedi a vossa presença

aqui em Dublin.” Abriu o rosto num sorriso acolhedor.

“Sejam bem-vindos. A viagem foi boa?”


“Normal”, retorquiu Valentina com indiferença; tinha

mais

que

fazer

do

que

alimentar

conversa

de

circunstância. “Pelo que me disseram do vosso caso

existe uma extraordinária semelhança com o nosso. Acha

mesmo que estão relacionados?” O superintendente

O’Leary devolveu-lhe o olhar, como se considerasse a

resposta evidente.


“O que acha?”


A italiana encolheu os ombros.


“Não sei. Explique-me o que aconteceu e logo lhe

direi.”


O superintendente do NBCI indicou com o polegar o

edifício atrás dele; era uma construção de traça

moderna, encravada entre dois edifícios de linhas

clássicas.


“Esta é a Chester Beatty Library, uma biblioteca

fundada com o espólio de um magnata do sector mineiro”,

disse. Retirou da sua pasta de cartolina verde a

fotografia de um sexagenário de porte elegante e olhos

pálidos. “Acontece que um historiador holandês, um tal

Alexander

Schwarz,

professor

de

Arqueologia

da

Universidade de Amesterdão e colaborador da Biblical


Ar- chaeology Review, veio cá consultar uns manuscritos

antigos da Bíblia.” Fez com a cabeça sinal para o

edifício. “Parece que esta biblioteca tem umas coisas

com um certo valor...”


Tomás sorriu com a observação.


“Umas coisas?”, perguntou com sarcasmo. “O espólio de

Bíblias da Chester Beatty Library é melhor que o do

Vaticano!”


“O quê?”, admirou-se Valentina. “Está a brincar!...”


“A sério!”, insistiu o historiador, apontando para o

edifício. “Oiça, esta biblioteca guarda dois grandes

tesouros. Um é o P45, o mais antigo exemplar quase

completo do Novo Testamento que jamais foi encontrado.

Trata-se de um manuscrito em pergaminho e escrito em

letras minúsculas. Recua ao século III. O P45 é ainda

mais antigo do que o Codex Vaticanus.


“Dio mio!'"


“E esta biblioteca guarda também o P46, a mais antiga

cópia quase completa das Epístolas de Paulo. Este

pergaminho foi redigido no ano 200, veja lá. Isto

significa que o P46 foi escrito pouco mais de cem anos

depois da morte de Paulo. É talvez o mais antigo texto

do Novo Testamento que chegou até nós.” Fez um gesto no

ar. “Consegue calcular o valor destas preciosidades? À

falta dos originais e das cópias iniciais, estes

pergaminhos são o que temos de mais próximo dos

primeiros manuscritos do Novo Testamento.” O polícia

irlandês afinou a voz, dando sinal de que tinha coisas

pertinentes para dizer.


“Tem graça que mencione esses dois documentos”,

observou, extraindo um bloco de notas do bolso. “É que

o professor Schwarz veio cá justamente para os

consultar.” Verificou as cotas dos textos nas suas

anotações. “Passou a noite a estudar as reproduções em

computador do P45 e requisitou para esta tarde a

consulta do P46.”


“E então?”, impacientou-se a italiana. “Que lhe

aconteceu?” O superintendente O’Leary passou os olhos

nos seus apontamentos.


“Alegando urgência no seu trabalho, o professor Schwarz

obteve uma autorização especial para trabalhar durante

a noite, fora do horário normal de expediente. Por

volta das três da manhã terminou a consulta do P45 e

despediu-se do funcionário encarregado de o acompanhar.

O guarda nocturno abriu-lhe a porta e deixou-o sair.

Depois voltou para o seu lugar e diz que não viu nada

de anormal.” Virou a folha do bloco de notas. “Um

minuto mais tarde apercebeu-se de um homeless aos

berros e aos murros ao vidro da porta. O guarda

nocturno foi ter com ele para o mandar embora. Foi

nessa altura que avistou o corpo do professor Schwarz

no chão.” Indicou um ponto protegido por fitas

instaladas pela polícia. “Ali. Foi ter com ele e

apercebeu-se de que ainda estava vivo. Pediu ajuda à

central de segurança, mas quando os paramédicos cá

chegaram já não havia nada a fazer. O professor tinha

morrido.”


“Esse

homeless”,

disse

Valentina,

atenta

aos

pormenores, “viu alguma coisa?”


“Parece que sim.” Folheou o bloco, em busca das

anotações da testemunha. “Repetiu a mesma frase aos

paramédicos. ‘Foi um acidente’, disse ele. ‘Foi um

acidente.’”


“Um acidente? Um acidente como?”


“Foi o que ele disse aos paramédicos.”

“E a vocês? O que vos disse ele?”

O irlandês corou e baixou os olhos,


“Pois... enfim, ainda não falámos com esta testemunha.”

A inspectora da Polizia Giudiziaria esboçou um esgar

intrigado.


“E estão à espera de quê?”


O homem do NBCI permaneceu embaraçado, incapaz de a

encarar de frente.


“Adormeceu”, murmurou. “Parece que estava embriagado.

Os paramédicos insistiram em levá-lo para o hospital e

só esta tarde o poderemos interrogar.”


Valentina assentiu com a cabeça. Reflectiu um momento e

indicou o local onde o corpo do professor Schwarz havia

tombado.


“E a vítima? Qual a causa do óbito?”


O superintendente O’Leary passou o dedo pelo pescoço,

num gesto universal.


“Degolação.”


Tomás e Valentina trocaram um olhar. Tudo indicava

tratar-se

de

um

novo

homicídio

ritual,

em

circunstâncias semelhantes às do assassínio ocorrido na

noite anterior na Biblioteca Vaticana. Não podia de

facto ser coincidência. A inspectora da Polizia

Giudiziaria suspirou.


“Estamos, pois, perante um assassino em série”,

observou, pensando em voz alta. “Alguém que mata

historiadores

especificamente

envolvidos

em

investigações com manuscritos antigos da Bíblia. E que

sente necessidade de praticar assassínios rituais.” Fez

com as mãos um gesto a simular uma pistola. “Podia dar-

lhes um simples tiro. Era rápido, limpo e fácil. Mas

não. Degola-os como cordeiros.” Fitou o seu homólogo

irlandês. “Porquê?”


O’Leary fez um gesto de ignorância.


“Não faço ideia”, disse. “Estava à espera que me

pudesse ajudar. Vi o relatório preliminar que vocês

enviaram à Interpol e percebi que estávamos perante o


mesmo caso. Penso que temos de cooperar para o

resolver.”


“Isso é evidente”, concordou Valentina. “Disseram-me

que, tal como aconteceu no Vaticano, também aqui foi

encontrado um papel com uma charada. Isso tem algum

fundamento?” O homem do NBCI irlandês retirou mais uma

fotografia da pasta verde que trazia na mão.


“Está a referir-se a isto?”


Os dois recém-chegados inclinaram-se para a imagem. A

foto mostrava um papel amarrotado com uma série de uns

e quatros alternadamente rabiscados a negro.


“Exactamente como no Vaticano”, constatou Valentina.

“Agora é uma nova mensagem.”


“O que significa isto?”, quis saber o irlandês.


“A noite passada tive muitas dúvidas a propósito do

enigma que encontrámos no chão da Biblioteca Vaticana”,

indicou a inspectora da Polizia Giudiziaria. “A charada

podia ter sido uma brincadeira da própria vítima, algo

que ela escrevera enquanto trabalhava e que tombou no

chão no momento em que foi morta. Ou poderia ser uma

assinatura deixada pelo assassino.” Apontou para a

fotografia. “Mas se o mesmo tipo de charada aparece

horas depois num homicídio semelhante perpetrado a

milhares de quilómetros de distância, isso só pode

significar que a resposta verdadeira é a segunda.”


O’Leary olhou para a fotografia que tinha na mão.

“Ou seja, isto é uma assinatura do assassino!’

Tomás

posicionou-se

ao

lado

do

superintendente

irlandês, de modo a melhor observar a imagem. Não

precisou de mais de dois segundos para formar opinião.


“Ou algo diferente”, sugeriu, metendo-se na conversa.

“Uma mensagem.”


Os dois polícias voltaram-se para ele, os rostos

contraídos numa expressão inquisitiva.


“Parece-lhe

mesmo?”,

perguntou

a

italiana.

“Uma

mensagem? Sente-se capaz de a decifrar?”


O historiador pegou na fotografia e analisou com

atenção a sequência de algarismos.


“Já o fiz.”


“Ai sim? E o que é?”


Tomás estudou a imagem por alguns segundos mais. Depois

levantou

a

face

e

sorriu

com

timidez,

quase

envergonhado por ser portador de uma nova revelação que

a italiana não iria decerto apreciar.


“Mais uma coisa embaraçosa do Novo Testamento, receio

bem.”


XVI


O trânsito à entrada da cidade revelou-se intenso,

embora fluido. Os blocos de apartamentos pareciam

verdadeiros caixotes cinzentos e monolíticos; tinham um

aspecto vagamente decadente, como era imagem de marca

da construção da era soviética. Além disso, pairava no

ar um certo cheiro a óleo queimado, um pouco

desagradável,

e

o

barulho

fora

mostrava-se

desagradavelmente invasivo.


Incomodado, Sicarius premiu o botão com uma seta para

cima e o vidro eléctrico do automóvel emitiu um zumbido

prolongado enquanto a janela se fechava. Já isolado dos

ruídos e dos odores exteriores, encostou o carro à

berma, pegou no telemóvel e digitou o número.


“Cheguei, mestre!”, anunciou logo que o destinatário

atendeu. “Estou à espera de instruções.”


A pessoa do outro lado da linha fez um ruído de

mastigação; deveria estar a comer.


“Fez boa a viagem?”

“Longa.”

Ouviu-se o som de talheres a tilintarem em loiça e

depois papéis a serem remexidos.


“Tenho informações sobre o teu novo alvo”, disse o

mestre, dirigindo-se ao assunto sem mais delongas.

“Entrou na faculdade às nove da manhã em ponto para dar

aulas. Ao meio-dia termina a lição e vai direito para

casa, onde entrará ao meio-dia e vinte e dois.”


“Entra em casa ao meio-dia e vinte e dois?”, estranhou

Sicarius. “Nem um minuto mais tarde? Como pode estar

tão seguro disso?”


A voz soltou uma gargalhada.


“Parece que o nosso amigo é um tipo de hábitos

rígidos”, explicou. “Há colegas da faculdade que

acertam o relógio pela passagem dele. Tudo o que faz é

previsível.’’’’


Sicarius fungou.


“Perfeito”, disse. “Assim é mais fácil.”


“Eu sabia que ias gostar”, ronronou a voz ao telefone.

“Mas não facilites, ouviste? Assegura-te de que não

haverá complicações. Quero tudo a correr sobre rodas,

como até aqui. Avança apenas quando for seguro.”


“Esteja descansado, mestre.”

“Bom trabalho!”

Sicarius desligou e guardou o telemóvel no bolso das

calças. Pegou no seu caderno, consultou as anotações e

identificou a morada que procurava. Era em Stariot

Grad. Identificou o local no mapa da cidade e a seguir

introduziu o endereço no sistema de GPS do carro.


Concluída a operação, ligou o pisca-pisca para a

esquerda, sinalizando que ia retomar a marcha, e

espreitou o trânsito pelo retrovisor lateral; vinham

vários automóveis a passar, não tinha possibilidade de

arrancar de imediato.


Lançou por isso uma espreitadela à mala de couro negro

que trazia no lugar ao seu lado. A mala estava aberta,

exibindo o conteúdo como se fosse um passageiro

silencioso.


A adaga sagrada.


XVII


Um delicioso aroma a especiarias e uma fragrância

quente de café enchiam o espaço junto ao átrio ocupado

pelo restaurante da Chester Beatty Library. Os três

visitantes acomodaram-se a uma mesa da esplanada do

Silk Road Café, situado na torre do relógio, e Tomás

apreciou a magnífica vista para o jardim do Castelo de

Dublin. Pediram chá de camomila, doces baclava e

kataif, panquecas libanesas recheadas de nozes e coco,

muito recomendadas pelo empregado, mas a ementa que os

levava ali era o crime cometido nessa madrugada às

portas da biblioteca.


Logo que o empregado se afastou, o historiador

português fez sinal para a pasta de cartolina verde que

Sean O’Leary havia pousado no chão, junto à cadeira.


“Mostre-me aí a fotografia da charada.”


O irlandês inclinou-se, apanhou a pasta e retirou a

fotografia, que entregou a Tomás. Nesse instante

apareceu um polícia fardado que chamou O’Leary. O

superintendente trocou umas palavras com ele e voltou-

se para os seus convidados.


“Queiram desculpar”, disse. “O dever chama-me.”


O’Leary afastou-se, deixando Tomás e Valentina a sós. O

académico estudou a fotografia da charada e deteve-se

demoradamente na sequência alternada de uns e quatros,

como se quisesse confirmar a sua conclusão preliminar.


“Então?”, impacientou-se Valentina. “O que é isso?”


Foi a vez de Tomás se inclinar no seu lugar e retirar

de um saco de plástico um livro volumoso que havia

comprado à chegada numa livraria do aeroporto de

Dublin. A italiana espreitou a capa e viu o título.


A Bíblia.


“Os únicos evangelhos que dão a genealogia de Jesus são

o de Mateus e o de Lucas”, disse o historiador,

folheando o livro. “O que é interessante é que são

ambas feitas a partir da linha genealógica de José. O

que é intrigante, não acha?”


“Com efeito”, admitiu ela. “Se José não era o pai

biológico de Jesus, como estabelecem esses dois

evangelhos, por que motivo fizeram a genealogia de

Jesus a partir dele?” Indicou a Bíblia. “Não há

genealogia feita a partir da linha de Maria?”


“Não, apenas de José”, esclareceu Tomás. “A outra coisa

interessante é que as genealogias apresentadas por

Mateus e por Lucas, embora acompanhem a ascendência de

José, são diferentes uma da outra.” Fixou o livro na

primeira página do primeiro dos Evangelhos. “Mas apenas

nos vamos ocupar da genealogia delineada no Evangelho

segundo Mateus.”


“Porquê essa?”


O

académico

indicou

a

fotografia

deixada

pelo

superintendente O’Leary.


“Porque é esta genealogia que nos irá conduzir à

decifração da charada deixada pelo assassino.” Afinou a

voz e colou os olhos à linha inicial do texto. “O

primeiro versículo deste evangelho começa assim:

‘Genealogia de Jesus, filho de David, filho de

Abraão.”’


“Filho de David?”, surpreendeu-se Valentina. “Não é de

José?”


“Já lá vamos”, retorquiu Tomás, fazendo sinal à sua

interlocutora de que tivesse paciência. “O segundo

versículo deste evangelho traça a linhagem a partir de

Abraão: ‘Abraão gerou a Isaac; Isaac gerou a Jacob;

Jacob gerou a Judá e a seus irmãos...’, e assim

sucessivamente até chegar a Jessé e dizer: ‘Jessé gerou

o rei David.’ Depois recomeça, dando a linhagem a

partir de David. ‘David, da mulher de Urias, gerou a


Salomão;

Salomão

gerou

a

Roboão...’

e

assim

consecutivamente até desembocar na deportação para a

Babilónia. O texto retoma novamente a linhagem e a

sucessão de nomes acaba por chegar a Jacob, terminando

assim: ‘Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual

nasceu Jesus, que se chama Cristo.’ ” “E assim se liga

Jesus genealogicamente a David e a Abraão.”


“Nem mais”, murmurou o historiador, a atenção retida no

texto bíblico. “Agora repare no que está escrito no

versículo 17 deste primeiro capítulo do Evangelho

segundo Mateus. ‘De sorte que todas as gerações, desde

Abraão até David, são catorze gerações. De David até ao

desterro de Babilónia, catorze gerações; e, desde o

desterro de Babilónia até Cristo, catorze gerações.’ ”


Ergueu o rosto e fitou a sua interlocutora, esperando

que ela tirasse as suas próprias conclusões. Os olhos

de Valentina desviaram-se para a fotografia da charada

encontrada junto ao corpo da vítima dessa madrugada.


“Catorze, catorze, catorze”, disse a italiana com a

cadência mecânica de um autómato. Levantou a cabeça e

encarou o historiador, os olhos arregalados. “É

incrível! Acertou outra vez!” Bateu palmas e sorriu.

“Bravo!”


O rosto cansado de Tomás abriu-se num vasto sorriso.

“Obrigado.”


“O assassino estava a chamar a atenção para esse

versículo do Novo Testamento!”, observou. Passada a

excitação inicial, contudo, a sombra de uma dúvida

atravessou-lhe o olhar. “Muito bem, já percebi a

ligação entre a charada e a Bíblia. Mas, ao colocar

este enigma junto ao corpo da vítima, o que queria o

tipo dizer exactamente? Qual o significado disso?”


O dedo do historiador bateu no texto que reproduzia o

Evangelho segundo Mateus.


“Estes

versículos

incidem

na

numerologia

da

ancestralidade de Jesus”, disse. “Repare, temos aqui


catorze gerações entre Abraão e David, o maior dos reis

de Israel. Seguem-se mais catorze gerações entre David

e a escravização dos judeus na Babilónia, o que

corresponde ao fim do primeiro templo. E depois mais

catorze gerações entre a Babilónia e Jesus.”


“E então?”


“Não percebe? Mateus está a dizer-nos que, de catorze

em catorze gerações, há um evento de importância

transcendente na vida dos judeus. Ao fim das primeiras

catorze gerações surge David, ao cabo das segundas

catorze gerações acontece o fim do primeiro templo e a

consequente escravização na Babilónia. O que quer dizer

que Jesus, que surge catorze gerações depois da

Babilónia, é também um acontecimento de importância

transcendente.”


“O que é uma evidência”, sentenciou Valentina. “Jesus

foi um acontecimento transcendente.”


“Não discuto a fé de ninguém”, declarou Tomás. “Mas

permito-me salientar vários erros cometidos por Mateus.

O primeiro é que o último grupo de catorze gerações só

contabiliza treze. Pelos vistos Mateus não sabia

contar. O segundo erro é que a contabilidade de Mateus

também não bate certo com a do Antigo Testamento.

Mateus diz em 1:8 que Jorão é o pai de Ozias.” Recuou,

de uma assentada, centenas de páginas no seu exemplar

da Bíblia. “Mas consultando as Crónicas, no Antigo

Testamento, descobrimos em 3:10 que Jorão não é o pai

de Ozias, mas o trisavô! Ou seja, Mateus fez

desaparecer três gerações.”


Valentina pegou na Bíblia e contou as gerações no

primeiro livro das Crónicas. Depois verificou o que

estava escrito no Evangelho segundo Mateus.


“Tem razão”, confirmou. “Porque aconteceu isso?”


“Não é evidente?”, perguntou o académico português num

tom retórico. “Se incluísse todas as gerações, Mateus

não tinha modo de demonstrar que ocorria um evento de


importância

transcendente

de

catorze

em

catorze

gerações. O que fez ele para resolver o problema?

Aldrabou a contagem.”


A italiana emitiu com a língua um estalido agastado; a

associação da palavra aldrabou com a Bíblia não era

manifestamente do seu agrado.


“Oh, não diga isso!”


“Não tenhamos medo das palavras só porque estamos a

falar da Bíblia”, insistiu Tomás. “Mateus adulterou

intencionalmente a contabilidade das gerações para

forçar um efeito numerológico. Precisava que a conta

desse catorze gerações e por isso subtraiu as que

estavam a mais.”


Não havia maneira de contra-argumentar, pelo que a

inspectora da Polizia Giudiziaria optou por ignorar o

assunto. Fez um gesto para a fotografia deixada por

O’Leary.


“Acha que era isso o que o homicida estava a tentar

demonstrar? Que o Evangelho segundo Mateus fez uma...

enfim, uma engenharia com a genealogia de Jesus?”


“Sim, mas por outros motivos. Sabe, o algarismo sete é

considerado na Bíblia o número perfeito. Não foi Deus

que descansou ao sétimo dia? Assim sendo, o que é o

catorze senão o sete em duplicado? No contexto

genealógico, catorze é a perfeição a dobrar.”


“Estou a entender.”


Tomás voltou a bater com o indicador nos versículos

iniciais do primeiro evangelho.


“A genealogia de Mateus destina-se a sublinhar o

estatuto de Jesus como o rei de Israel previsto pelas

Escrituras. Em Samuel l1, os cronistas judaicos afirmam

que Deus disse a David em 7:16: ‘Tua casa e teu reino

permanecerão eternamente, e o teu trono será firme para

sempre.’ Ou seja, o trono seria sempre ocupado por um


descendente de David. Porém, e devido às vicissitudes

da história, já não havia um descendente de David no

trono. Deus, no entanto, tinha prometido que haveria.

Como resolver este paradoxo? Mateus dá uma solução:

Jesus. Quem é o Jesus apresentado por este evangelista?

É descendente de David por via de duas sequências de

catorze gerações, o duplo número perfeito.” Pegou numa

caneta e pôs-se a rabiscar num guardanapo de papel com

o logotipo do Silk Road Café. “Nas línguas antigas, as

letras do alfabeto tinham valores numéricos e eram

numeradas. Em hebraico, por exemplo, as três primeiras

letras são o alef, o beth e o guimel, não é? Pois o

alef vale um, o beth vale dois, o guimel vale três, e

assim sucessivamente.


Chama-se a isso guematria.” Pegou de novo na caneta. “O

nome David escreve-se com estas três letras.”


Grafou D-V-D no guardanapo, o que suscitou a estranheza

dos dois polícias.


“DVD?”, admirou-se Valentina. “Faltam duas letras!...”

“No hebraico não se escrevem as vogais”, esclareceu o

historiador. “David fica DVD.” Atribuiu algarismps às

letras. “O valor do D, ou daleth em hebraico, é quatro,

e o valor do V, ou waw, é seis. Assim sendo, D-V-D é

daleth-waw-daleth, ou quatro-seis-quatro. Quanto dá a

soma destes três algarismos?”


“Catorze.”


Tomás confirmou a conta no guardanapo, desenhando no

final um gordo 14, e mostrou o resultado à sua

interlocutora.


“Ou seja, a guematria do nome de David é catorze, o

duplo número perfeito”, enunciou. “Foi esta a razão

pela qual Mateus arrumou a genealogia de Jesus em três

grupos de catorze. O evangelista queria associar Jesus

a David por laços de sangue, cumprindo assim a promessa

divina que consta em Samuel 11.” Ergueu um dedo, como

se

lhe tivesse

ocorrido

uma ideia.

“Aliás,

é

interessante notar uma outra coisa. Ao longo de todo o


Novo Testamento, Jesus é apelidado de Filho de Deus. O

que significa essa expressão?” A italiana fez um esgar

de admiração, como se a resposta fosse óbvia.


“Não é evidente?”, questionou. “Filho de Deus significa

que Jesus é Deus Filho.”


O historiador sorriu e abanou a cabeça.


“É um facto que essa expressão é hoje associada à ideia

de que Jesus é Deus na terra. Mas ela não tem

originalmente esse sentido. A sua origem encontra-se em

Salmos, cuja autoria a tradição atribui a David. Diz

David no versículo 2:7: ‘Divulgarei o decreto do

Senhor. Ele disse-me: «Tu és meu filho, hoje mesmo te

gerei.»’ Ou seja, e sem nunca reivindicar qualquer

estatuto divino, David apresenta-se como o Filho de

Deus. Então o que fazem os evangelistas? Chamam a Jesus

o Filho de Deus. Com essa expressão não estão a afirmar

que Jesus é um deus, ou o Deus Filho, como agora se

pretende, mas que é descendente de David, condição

essencial para reclamar o trono de Israel. É nesse

sentido que os Evangelhos lhe chamam Filho de Deus.”


Os dedos de Valentina baquetearam pela mesa numa

cadência ritmada, enquanto ela tirava as consequências

do que acabara de escutar.


“Já percebi essa parte”, afirmou. “Mas agora explique-

me uma coisa: o que queria o homicida dizer realmente

quando deixou essa charada? Isso é o que não

compreendo!...”


O historiador inclinou a cabeça e lançou-lhe um olhar

simuladamente admirado.


“Ainda não percebeu?”, perguntou. “O nosso amigo está a

marcar os homicídios com pistas sobre as fraudes no

Novo Testamento.”


A italiana revirou os olhos, esforçando-se por conter a

irritação.


“Madonna!”,

protestou.

“Lá

vem

você

com

essas

palavras... desagradáveis. De que tipo de... enfim, de

problemas da Bíblia estamos agora a falar? Novamente de

erros?”


Com a caneta a girar entre os dedos, Tomás ponderou a

questão.


“Não são bem erros”, disse devagar, como se ainda

estivesse a pensar no problema. Fez uma curta pausa.

“Sabe, para lhe poder explicar o significado profundo

da questão suscitada por esta charada vou ter de lhe

revelar algo que a chocará.”


Se tivesse um cinto de segurança, Valentina tê-lo-ia

posto nesse momento. À luz das coisas que já tinha

escutado, pressentia que o que aí vinha não era

agradável.


“Diga lá.”

O académico acariciou a capa do seu exemplar da Bíblia.

“Não existem textos de ninguém que tenha conhecido

Jesus pessoalmente.”


A italiana arregalou os olhos.


“Ai não? Essa agora! Então e os evangelhos de Marcos,

Lucas, Mateus e João?”, contra-argumentou. “Não foram

eles testemunhas dos acontecimentos?”


Tomás coçou a ponta do nariz e baixou os olhos, como se

se sentisse embaraçado por desfazer mais um mito.


“Minha cara”, disse, “ao contrário do que está escrito

na Bíblia, Marcos, Lucas, Mateus e João não escreveram

os Evangelhos.” Fez uma pausa. “E a maior parte dos

textos que aparecem no Novo Testamento são pseudo-

epígrafos.”


“Pseudo... quê?”


“Pseudo-epígrafos”, repetiu o académico. “Um nome

pomposo que se arranjou para não chamar os bois pelos

nomes. Diz-se pseudo-epigrafia e evita-se assim usar

uma palavra mais desagradável para descrever a maior

parte dos textos da Bíblia.”


“Que palavra?”


Tomás fitou-a nos olhos e esforçou-se por manter a

expressão o mais neutra possível.


“Falsificações.”


XVIII


O centro da povoação exibia uma beleza desconcertante,

com os soberbos promontórios de rochedos a rasgar de

verdura o emaranhado da urbe, plano e espraiado. Um

pequeno rio serpenteava entre os edifícios, mas eram os

promontórios que verdadeiramente chamavam a atenção;

pareciam castelos erguidos na planície, imponentes e

majestosos, verdadeiras jóias que coroavam a cidade.


Sicarius baixou o vidro da janela do automóvel e

interpelou um transeunte.


“Onde é a Stariot Grad?”


O homem, um velho de longas barbas brancas e corpo

curvado pelos anos, indicou o promontório central.


“Ali”, disse. “No monte.”


Sicarius seguiu naquela direcção, percebendo o que o

GPS não conseguia explicar-lhe: o seu destino estava

numa elevação. Tentou meter pelo monte, mas a

inclinação da rua era demasiado grande e, além do mais,

havia ali um sinal a proibir o trânsito. O recém-

chegado viu-se por isso forçado a dar meia volta e a

deixar o carro estacionado no sopé do promontório.


Seguiu a pé, com a mala de couro negro a balouçar na

mão. Escalou a rua, íngreme e estreita, mas Sicarius

estava em boa forma e não teve dificuldade em galgar o

monte e internar-se em Stariot Grad. Os edifícios

tinham uma traça muito original, com o primeiro andar

mais largo do que o rés-do-chão e sustentado por traves

de madeira. O traço balcânico, cruzado com elementos

otomanos, era por demais evidente.


O visitante perdeu-se no emaranhado de ruelas da cidade

velha, pelo que teve de consultar o endereço que havia

anotado num papel e dirigir-se a um quiosque.


“A Casa de Balabanov?”


A rapariga do quiosque apontou para um edifício de

esquina,

junto

a

uma

rua

estreita

que descia

acentuadamente.


“É aquela.”


Sicarius seguiu de imediato em direcção à casa e

inspeccionou a fachada pintada de branco e bordeaux,

repleta de janelas com o topo arredondado, o primeiro

andar erguido em erker. As linhas arquitectónicas eram

tradicionais e revelavam-se em tudo semelhantes às das

restantes

construções

antigas

de

Stariot

Grad.

Considerou a possibilidade de penetrar no interior, por

uma janela ou até mesmo pela porta, mas constatou que a

cidade velha permanecia tranquila e optou por se

plantar na rua.


Consultou o relógio. Os ponteiros assinalavam meio-dia

e um quarto. O recém-chegado escolheu uma grande árvore

ao lado da Casa de Balabanov e sentou-se à sua sombra,

junto ao tronco. Abriu a mala de couro negro e, sempre

com gestos de grande delicadeza, extraiu a adaga. Uma

faísca cristalina cintilou na ponta, para êxtase de

Sicarius; era como se Deus tivesse acabado de lhe

enviar um sinal.


Espreitou de novo o relógio. Meio-dia e dezanove.

Desceu a rua com o olhar e lá ao fundo viu um homem

iniciar a escalada. Procurou-lhe as feições do rosto e

reconheceu-as das fotografias integradas no dossiê que

o mestre lhe entregara. Acto contínuo, acariciou o

punho da adaga, sentindo-lhe a superfície macia.


A hora tinha chegado.


XIX


A palavra que acabara de escutar deixou Valentina à

beira de uma explosão de fúria.


“Falsificações?”, protestou ela, a face a enrubescer.

“Lá vem você mais uma vez com essas palavras

depreciativas! Irra! Parece que faz de propósito!”


Tomás encolheu os ombros.


“O que quer que lhe faça?”, perguntou. “Quer que lhe

esconda estes factos?” Indicou a fotografia da charada

deixada pelo assassino de Dublin. “Se o fizer, nunca

irá compreender o significado deste enigma. E se não

compreender jamais poderá deslindar estes casos.”


A inspectora lançou um olhar em redor, em busca de

ajuda do superintendente O’Leary, mas o irlandês ainda

não voltara. A italiana suspirou longamente com

resignação. A agonia que lhe atacava o estômago

roubava-lhe toda a vontade de resistir.


“As coisas que tenho de fazer pelo meu trabalho”,

desabafou ela. Esboçou com a mão um gesto de rendição.

“Está bem, conte lá o que se passa com os Evangelhos.”


O historiador folheou o seu exemplar da Bíblia até

localizar o primeiro evangelho na sequência do Novo

Testamento, o de Mateus.


“A primeira coisa que tem de perceber é que os

Evangelhos são textos anónimos”, disse. “O primeiro a

ser escrito foi o de Marcos, entre 65 e 70, ou seja,

quase quarenta anos depois da crucificação de Jesus.

Ainda haveria apóstolos vivos, mas já deviam estar

velhos. Os textos de Mateus e Lucas foram escritos uns

quinze anos mais tarde, entre 80 e 85, e o de João dez

anos depois, entre 90 e 95, numa altura em que a

primeira geração já deveria ter morrido. Estes

evangelhos circulavam entre as comunidades de fiéis sem

que se soubesse quem eram os autores. Aliás, atribuir-

-lhes uma autoria até os descredibilizava. Ao serem


apresentados sem autores, o ponto de vista subjectivo

era anulado e os textos apareciam como portadores da

verdade absoluta, objectiva e anónima. Quase como se

fossem directamente a palavra de Deus.”


“Sendo assim, nenhum dos evangelistas afirma ter

escrito os Evangelhos...”


“Exacto”, confirmou Tomás. “Se alguém cometeu fraude

não foram eles com certeza, mas quem mais tarde

abusivamente lhes atribuiu a autoria dos Evangelhos. O

mais importante é que temos a certeza de que os dois

discípulos, Mateus e João, não escreveram esses textos.

O Evangelho segundo Mateus, por exemplo, refere-se a

Jesus e aos apóstolos como eles, não como nós. Isto

mostra que o autor do texto não era um apóstolo. Mas

Mateus era. Além disso, em 9:9, este evangelho descreve

o apóstolo Mateus na terceira pessoa. Logo, Mateus não

pode ser o autor do Evangelho segundo Mateus. Isso é

uma mistificação posterior da Igreja.” Valentina voltou

a revirar os olhos.


“Mistificação?”, questionou. “Lá vem você outra vez com

essas palavras acintosas!...”


“Isso é ainda mais claro no caso do Evangelho segundo

João”, disse o historiador, ignorando o protesto. “No

final do Evangelho, o autor fala no ‘discípulo que

Jesus amava’ para afirmar nos derradeiros versículos:

‘É esse o discípulo que dá testemunho destas coisas e

as escreveu; e nós sabemos que o seu testemunho é

verdadeiro.’ Ou seja, o próprio autor admite que não é

um apóstolo, apenas alguém que falou com um apóstolo.

Assim, o autor não pode ser João.”


“E os outros dois evangelistas?”


“Marcos não era um discípulo, mas companheiro de Pedro,

e Lucas era companheiro de viagem de Paulo. Quer isto

dizer que nem Marcos nem Lucas foram testemunhas

directas dos acontecimentos. E já percebemos que Mateus

e João não escreveram os evangelhos que lhes são

atribuídos.” Cravou os olhos na sua interlocutora,


interpelando-a. “Assim sendo, qual é a conclusão que

tira?”


A inspectora da Polizia Giudiziaria suspirou, vencida e

quase desanimada.


“Não temos testemunhas.”


O académico português estreitou os olhos.


“Pior ainda”, acrescentou. “Parece haver um grande

distanciamento entre os apóstolos e os autores dos

Evangelhos. Repare, temos como seguro que Jesus e os

seus discípulos eram todos pessoas de baixa condição

que viviam na Galileia. Ora calcula-se que nesta época

só dez por cento das pessoas no Império Romano sabiam

ler. Uma percentagem menor conseguia escrever frases

rudimentares e apenas uma ínfima parte era capaz de

elaborar narrativas completas. Tratando-se de gente sem

educação, os discípulos eram analfabetos. Aliás, em

4:13 os Actos dos Apóstolos descrevem explicitamente

Pedro e João como agrammatoi, ou ‘homens iletrados’.

Jesus seria uma excepção. Lucas apresenta-o a ler na

sinagoga em 4:16, mas em nenhuma parte Jesus aparece a

escrever.”


“No episódio da adúltera”, apressou-se Valentina a

lembrar, “Jesus está a escrever no chão.”


“O problema desse episódio é que é uma fraude, como já

lhe expliquei. Não está nas cópias mais antigas do Novo

Testamento.”


A italiana bateu com a palma da mão na testa.

“Ah, pois é!...”

Tomás voltou a sua atenção para o exemplar da Bíblia

que tinha pousado na mesa do Silk Road Café.


“Em suma, os discípulos de Jesus eram analfabetos de

classe baixa que falavam aramaico e viviam na Galileia

rural”, recapitulou. Pôs a mão sobre a Bíblia. “No


entanto, lendo os Evangelhos depressa percebemos que os

seus autores não são apenas alfabetizados. À excepção

de Marcos, que escrevia em grego popular, são todos

falantes de grego de classe alta que viviam fora da

Palestina.”

“Como pode ter a certeza desses pormenores todos?”

“Devido a um vasto número de razões linguísticas de

natureza técnica, o consenso académico hoje em dia é

que todos os evangelhos foram originalmente escritos em

grego e não na língua de Jesus e dos seus discípulos, o

aramaico”, explicou. “Por exemplo, sabemos que Mateus

copiou várias histórias de Marcos palavra a palavra na

versão grega. Se Mateus tivesse sido originalmente

escrito em aramaico, seria impossível que essas

histórias fossem copiadas exactamente com as mesmas

palavras que estão no texto grego.”


“Ah, estou a ver.”


“Além

do

mais,

a

complexidade

estilística

dos

Evangelhos, que incluem parábolas e outros artifícios

literários, implica que os seus autores eram pessoas

com educação elevada. Mais ainda, não se tratava de

judeus nem de gentios que vivessem na Palestina.

Percebemos isso porque os autores dos Evangelhos

revelam certa ignorância em relação aos costumes

judaicos. Por exemplo, Marcos indica em 7:3 que ‘Os

fariseus efectivamente, e os judeus em geral, não comem

sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a

tradição dos antigos’, o que é falso. Na época os

judeus em geral não tinham ainda o hábito de lavar as

mãos antes de comer. Se o autor deste evangelho vivesse

na Palestina, sabê-lo-ia com certeza e não teria

escrito

tamanho

disparate.

Assim

sendo,

temos

fundamentos para concluir que os autores dos Evangelhos

eram falantes de grego oriundos de classes altas que

não viviam na Palestina, o que contrasta com os

discípulos falantes de aramaico oriundos de classe

baixa

que

habitavam

na

Galileia.

Como

estão

linguística,

social,

geográfica

e

culturalmente

afastados dos discípulos, podemos com segurança afirmar


que os verdadeiros autores dos Evangelhos não eram

apóstolos,

mas

pessoas

que

não

viveram

nem

testemunharam

os

acontecimentos

que

narraram.”

Valentina recostou-se na cadeira e voltou a olhar em

redor,

como

se

pedisse

ajuda.

Contudo,

o

superintendente irlandês permanecia retido pelas suas

funções. Era evidente que dali não viria qualquer

auxílio.


“Espere aí!”, exclamou a inspectora

da Polizia

Giudiziaria, ainda combativa. “De onde vem então a

atribuição da autoria dos Evangelhos? Apareceram assim

sem mais nem menos, por obra e graça do Espírito

Santo?”

Tomás riu-se.

“Quase”, gracejou. “Isso resultou da tradição. Apesar

das provas de que Mateus e João não são os autores dos

textos que lhes são atribuídos, e dos indícios de que

Marcos e Lucas também não o são, a mais antiga tradição

da Igreja atribui a autoria de dois evangelhos a Mateus

e a Marcos.”


“Ah-ha!”, exclamou Valentina num tom triunfante. “Eu

sabia que algum fundamento haveria!”


O historiador voltou a soltar uma gargalhada.


“Tenha calma, isto não é uma competição”, disse. “Sabe,

a fonte mais antiga dessa tradição é um autor chamado

Pápias, que numa obra da primeira metade do século II

terá dito que falou pessoalmente com cristãos que

conheceram pessoas a quem chamaram ‘os anciãos’. Esses

anciãos afirmaram ter conhecido alguns dos discípulos.

Pápias terá escrito, e vou citar mais ou menos de cor:

‘O ancião costumava dizer «quando Marcos era o tradutor

de Pedro anotou rigorosamente tudo o que se lembrava do

que o Senhor disse e fez, mas não por ordem. Pois ele

não escutou o Senhor nem o acompanhou, mas mais tarde,

como indicado, ele acompanhou Pedro, que adaptava os

ensinamentos às circunstâncias, sem fazer uma

composição ordenada das palavras do Senhor. Marcos


limitou-se a escrever alguns destes assuntos como os

lembrava. Só tinha um propósito: não deixar de fora

nada do que tinha escutado nem incluir nenhuma

falsidade».’ Sobre Mateus, Pápias terá escrito: ‘E

então Mateus compôs as máximas na língua hebraica.”’


Valentina irradiava felicidade, como se aquelas

palavras fossem melodia divina.


“Está a ver?”, exultou. “Está a ver?”

“Olhe que há aqui uns problemas...”

“Problemas?”, exaltou-se a italiana. “Que problemas?

Dio mio, lá está você a complicar!”


O historiador voltou a ignorar o protesto.


“O primeiro problema é que não possuímos o texto

original de Pápias”, explicou. “O que temos é o que

escreveu um antigo historiador cristão chamado Eusébio.

Ou seja, tudo o que sabemos sobre Marcos é que alguém

diz que alguém escreveu que alguém conheceu alguém que

conheceu

alguns

discípulos

que

conheceram

o

evangelista. Ou, por outras palavras, Eusébio diz que

Pápias escreveu que conheceu cristãos que dizem que

conheceram anciãos que afirmam ter conhecido discípulos

que alegaram ter conhecido Marcos.” Contraiu o rosto.

“Um pouco rebuscado, convenhamos. São fontes em quarta

mão, com todas as consequências que isso acarreta.

Aliás, outras informações atribuídas a Pápias são

consideradas erradas pelos historiadores, o que mostra

tratar-se de uma fonte de pouca confiança. Mesmo que a

sua informação fosse rigorosa, nada nos garante que o

evangelho de Marcos a que Pápias se referiria é o

evangelho que nos chegou.”


“E sobre Mateus?”


“Pior ainda. Eusébio não diz qual a fonte de Pápias. E

a pouca informação que nos dá sobre o evangelho de

Mateus decididamente não corresponde ao nosso Evangelho

segundo Mateus. Pápias terá indicado que o evangelho de


Mateus era constituído por uma colecção de máximas,

como o Evangelho segundo Tomé, e, presumivelmente, a

fonte Q. Mas o nosso Mateus deu-nos uma narrativa

completa, não uma mera colecção de máximas. Por outro

lado, o Mateus de Pápias terá sido escrito em hebraico,

enquanto o nosso Mateus foi comprovadamente redigido em

grego. Pápias parece portanto estar a falar de um

evangelho que se terá perdido.”


“Então como é que os nossos evangelhos foram atribuídos

a esses autores?”


“A primeira referência segura aos quatro evangelhos

canónicos foi feita por um líder cristão gaulês chamado

Ireneu no ano 180”, respondeu. “Nesta altura já havia

curiosidade em saber quem eram os autores dos textos

considerados pela hierarquia mais fiáveis, uma vez que

existiam muitos evangelhos a circular que teriam sido

escritos por discípulos, como Maria Madalena, Pedro,

Tomé e outros. Recuperando tradições orais, um

evangelho foi atribuído a Mateus e outro a Marcos. As

restantes atribuições foram mais arbitrárias. Percebeu-

-se que o autor do terceiro evangelho escrevera também

os Actos dos Apóstolos, onde Paulo é uma figura

preeminente, pelo que se achou que o autor teria de ser

alguém ligado a Paulo. Escolheram Lucas, companheiro de

viagem de Paulo. E o nome de João foi ligado ao quarto

evangelho, apesar de o autor anónimo desse texto

afirmar explicitamente que não era um discípulo.”


“Nesse caso, em parte alguma aparecem esses nomes a

reivindicar a autoria dos evangelhos canónicos...”


“Exacto. O que significa que os autores destes textos

não testemunharam coisa nenhuma. Os Evangelhos foram

escritos décadas depois dos acontecimentos que relatam,

por pessoas que não conheceram Jesus, não falavam a sua

língua, tinham outra cultura e educação e viviam num

país diferente. Nestas condições, que confiança podemos

ter no que elas escreveram?”


Valentina emitiu um suspiro longo e desanimado.


“Felizmente o Novo Testamento não é apenas constituído

pelos Evangelhos”, desabafou. “Sempre há outros textos,

não é verdade?”


A observação produziu uma hesitação em Tomás. Deveria

ou não problematizar esta questão? Ainda considerou a

possibilidade de a deixar passar em branco, mas

percebeu que, tendo em conta que toda a informação

poderia ser relevante para deslindar aqueles crimes,

teria de levar a explicação até ao amargo fim.


“Receio que os outros textos também levantem problemas

graves”, disse, quase a medo. “Aliás, bem mais

graves!...”


“O quê?”


“Dos vinte sete textos do Novo Testamento, apenas oito

são de autoria segura”, revelou. “É o caso de sete

epístolas de Paulo e do Apocalipse de João, embora não

se trate do apóstolo João. Os autores dos restantes

dezanove textos são incertos. Semelhante ao caso dos

Evangelhos é a Carta aos Hebreus, texto anónimo

atribuído a Paulo mas quase de certeza de outro autor.

A Carta de Tiago é também genuína, mas o autor não é o

Tiago irmão de Jesus, conforme erradamente pensou a

Igreja quando aceitou este texto. Os restantes textos,

minha cara, são puras fraudes.”


A italiana abanou a cabeça, desanimada.

“Lá vem você!...”

“Lamento, mas a verdade é para se dizer”, insistiu o

historiador.

“Várias

epístolas

de

Paulo

são

provavelmente falsificações: a Segunda Carta aos

Tessalonicenses, que contradiz a primeira e parece ser

um texto posterior para corrigir certas coisas ditas

anteriormente e que não ocorreram, e as Cartas aos

Efésios e aos Colossenses, redigidas num estilo

diferente do de Paulo e abordando problemas que não

existiam no tempo de Paulo. Paulo também não escreveu

as duas Cartas a Timóteo nem a Carta a Tito, uma vez


que abordam igualmente problemas que não existiam no

tempo do seu suposto autor. Além disso, um terço das

palavras usadas nestas epístolas nunca foi usado por

Paulo, e a maior parte eram palavras características

dos cristãos do século II. Por outro lado, João não

escreveu as três Cartas de João e Pedro não escreveu as

duas Cartas de Pedro. Convém lembrar que estes dois

apóstolos eram analfabetos.” O historiador pegou na

Bíblia e exibiu-a. “Ou seja, a maior parte dos textos

que compõem o Novo Testamento não foi escrita pelos

autores que lhes foram atribuídos. São fraudes.”

Valentina não parava de abanar a cabeça.


“Não

posso

acreditar!”,

murmurou.

“Não

posso

acreditar!” Fitou por momentos o jardim diante da

biblioteca, a mente perdida no que acabara de escutar,

até que estremeceu e encarou o seu interlocutor. “A

Igreja sabe?”


“Claro que sabe.”


“Então... então porque não retirou esses textos do Novo

Testamento?”


“Se o fizesse, o que ficava? Sete epístolas de Paulo e

o Apocalipse de João? Parece curto, não acha?”


“Mas como é então justificada a manutenção desses

textos na Bíblia?”


Tomás sorriu.

“São inspirados.”

“O quê?”

“Os teólogos já perceberam que estão a lidar com

falsificações ou textos anónimos. A primeira coisa que

fazem para enfrentar o problema é evitar usar as

palavras fraude ou falsificação. Dizem textos pseudo-

epígrafos e a coisa fica disfarçada. Depois afirmam

que, apesar de os autores desses textos não serem os

atribuídos, os textos são sagrados porque foram


inspirados por Deus.” Fez um movimento rápido com as

mãos, como se fosse um ilusionista. “E assim, quase por

artes mágicas, fica o problema resolvido.”


Por esta altura já Valentina fervia, agastada com a

forma como a Bíblia se desfazia na boca daquele

historiador português. Mesmo assim a agente italiana

manteve a compostura. No fim de contas, guardava ainda

alguns argumentos na manga.


“Pode dizer o que quiser”, afirmou, “mas uma coisa é

indiscutível: os textos do Novo Testamento contam todos

a mesma história. E isso é a prova de que pelo menos a

história de Jesus é verdadeira.”


“Por acaso não é verdade”, respondeu. “Cada texto

bíblico conta uma história diferente. E vários

episódios são completamente inventados.”


“Está a brincar comigo!...”

Tomás coçou a cabeça.

“A história de que Jesus nasceu em Belém, por exemplo.”


XX


Havia já muito tempo que o professor Vartolomeev andava

a pensar em mudar de casa, mas no momento da verdade

nunca reunia coragem para consumar o projecto. Afinal

vivia na histórica Casa de Balabanov, uma construção

novecentista em Stariot Grad, a zona antiga que havia

sido erguida no preciso promontório onde nascera a

velha cidade. Só um louco se desfaria, sem precisar de

o fazer, de uma casa daquelas e num local como aquele.


No entanto, era sempre no momento em que escalava a rua

a caminho de casa que o pensamento lhe voltava. Desde

que cruzara os cinquenta anos que sentia mudanças no

corpo, e para pior. A escalada do monte tornava-se mais

penosa a cada dia, com os músculos das pernas a

endurecerem como pedras e os pulmões a arfarem como se

ele tivesse corrido uma maratona. E isto apenas por

subir uma rua inclinada! Quanto mais tempo conseguiria

escalar o monte? Já sabia que, logo que chegasse a

casa...


“Senhor professor.”


... e se estendesse no sofá, estes pensamentos se

desvaneceriam como vapor em ar puro. Mas não podia ser

assim. Definitivamente, tinha de se convencer que a

juventude fora consumida pelos anos e o seu corpo não

tinha culpa das indulgências a que se entregava o

espírito. Viver em Stariot Grad era muito bonito, sim

senhor. O problema é que não era prático. Bastava

ver...


“Senhor professor?!”


Ouviu a voz interpelá-lo e estacou, aparvalhado.

“Hã?”

“Sou eu, senhor professor”, disse a voz à sua direita.

“Zdravei’te!”, saudou-o. “Não leva hoje o seu exemplar

do Maritsa?”


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