-se no seu interlocutor, como se buscasse confirmação.
“Assim é, de facto.”
“Três
meses
depois,
os
três
académicos
foram
assassinados”,
acrescentou
o
inspector-chefe
com
secura.
Estreitou
as
pálpebras.
“Estranha
coincidência...”
Arkan remexeu-se na poltrona, claramente incomodado com
esta última observação.
“Lá estão vocês com as vossas insinuações torpes”,
grunhiu, fazendo porém um esforço para controlar o tom
de voz. “Não tenho culpa nenhuma do sucedido. Lamento
estas mortes e, se pudesse voltar atrás no tempo, nem
sequer os tinha convidado.”
“Pode ser que sim”, disse Grossman. “O problema é que
as coincidências não se ficam por aqui.” Indicou
Valentina e Tomás. “Horas depois de os nossos colegas
terem estado aqui a conversar consigo e terem sido
postos na rua por si, o professor Noronha foi atacado
por um desconhecido no seu quarto de hotel.”
O anfitrião arregalou os olhos e fitou Tomás; se não se
sentia surpreendido, fingia bem.
“O quê?!”
O português ergueu a mão direita engessada, esticou o
pescoço para expor o penso e forçou um sorriso.
“Estão aqui as provas.”
O inspector-chefe israelita não descolou o olhar do
interlocutor, como se estudasse as suas reacções.
“Outra coincidência, não lhe parece?”, perguntou, num
registo sibilino. “O senhor enfureceu-se com eles,
expulsou-os da fundação e algumas horas depois alguém
os atacou.”
Arkan deu um salto e pôs-se de pé, as faces rubras, as
sobrancelhas felpudas a tremerem de indignação.
“Como se atreve?!”, vociferou, fora de si. “Está a
insinuar que eu... que eu tive alguma coisa a ver com
aquilo?” Apontou para Tomás, como se o historiador
fosse aquilo. “Mas o que vem a ser isto?! Está tudo
louco? Como podem pensar uma coisa dessas? Com que
direito? Agora sou o culpado de tudo o que de errado se
passa no mundo?”
O presidente da fundação bufava e tremia, mas Grossman
não
se
mostrou
intimidado.
Deixou-se
ficar
tranquilamente na sua cadeira, de perna cruzada, e
esperou que o vendaval passasse.
“Tenha calma”, aconselhou por fim. “Ninguém o está a
acusar de nada.” Descruzou as pernas e dobrou o corpo
na direcção do seu interlocutor. “Ainda.” Recostou-se
novamente, muito satisfeito consigo próprio, e voltou a
cruzar as pernas. “O problema é que ocorreu uma nova
coincidência.” Fez um sinal ao polícia sentado ao seu
lado e o homem entregou-lhe um manuscrito. O inspector-
chefe abriu-o e retirou do interior uma folha de papel.
“Reconhece isto?”
Tratava-se do enigma que Tomás havia decifrado na noite
anterior, no quarto do hospital.
Arkan inclinou-se sobre a secretária para melhor
observar os rabiscos e esboçou uma expressão de
ignorância.
“Não faço ideia do que seja.”
“É uma charada que o agressor do professor Noronha
deixou no local do ataque”, explicou. “Uma mensagem, de
resto, muito parecida com as que foram encontradas ao
pé das vítimas de Roma, Dublin e Plovdiv.”
“E então?”
“E então, mandei analisar este papel. Localizámos o
fornecedor em Telavive e fomos informados de que se
tratava de um tipo de papel muito raro, só fornecido a
quinze clientes. A sua fundação é um deles.”
A boca de Arkan entreabriu-se de estupefacção.
“O quê?!”
Grossman acenou com a folha onde o enigma se encontrava
escrevinhado.
“Este papel veio provavelmente da sua fundação”, disse
devagar, quase a soletrar as palavras. “Tem alguma
explicação para isso?”
Os olhos do anfitrião dançavam entre a folha de papel e
o rosto do inspector-chefe, como se aí pudesse
encontrar a resposta à pergunta.
“Eu... eu não sei...”, titubeou. “Isso é... é
impossível.” Abanou a cabeça, ganhando convicção. “Não
pode ser!”
“No entanto, é o que diz a empresa.” Manteve os olhos
cravados no seu interlocutor.
“Agora repare na sequência de acontecimentos. O senhor
teve uma altercação com a inspectora Ferro e o
professor Noronha. Horas depois, o professor Noronha
foi atacado. O agressor deixou uma charada rabiscada
num papel adquirido pela sua fundação. Explique-me, por
favor!”
Arkan parecia atarantado, quase incapaz de formular um
discurso coerente.
“Deve haver engano!”, exclamou. “Uma coisa dessas
implica que... que...” Voltou a abanar a cabeça. “Não,
não pode ser! Tem de haver uma explicação qualquer!”
“Claro que sim”, concordou Grossman, sempre muito
calmo. “E a primeira explicação relaciona-se com os
três académicos que o senhor recebeu aqui na sua
fundação e que acabaram assassinados. Ainda ninguém
percebeu bem a natureza da investigação que os ligava.”
“Contratei-os para consultoria”, afirmou o anfitrião.
“Não há nada para explicar!”
O inspector-chefe fez um novo sinal para o homem ao seu
lado. O polícia entregou-lhe um segundo envelope, que
Grossman encetou. Retirou uma carta do interior,
encabeçada pelos símbolos oficiais de Israel.
“Se insiste em manter o silêncio, receio ter de o
convidar a acompanhar-nos para esclarecimentos”, disse,
estendendo-lhe a carta. “Verifique se está tudo em
conformidade.” Arkan pegou hesitantemente na carta, uma
expressão interrogativa no olhar.
“O que é isto?”
“Um mandado de detenção”, esclareceu o polícia
israelita. “Em seu nome.”
“Como?!”
“Perante as sucessivas coincidências a envolverem a sua
instituição neste estranho caso, o juiz acedeu a
autorizar-nos a dar-lhe ordem de prisão enquanto o
inquérito prossegue.” Exibiu um sorriso. “O que dá dois
anos, no mínimo, enquanto isto não se esclarece em
todos os seus contornos.” O presidente da fundação
estava de tal maneira atónito que nem conseguiu ler o
texto do mandado.
“Dois anos?!”
Grossman fez que sim com a cabeça.
“No mínimo. O prazo pode ser prolongado um ano.” Arkan
deixou-se cair para trás, recostando-se na poltrona
numa postura de derrota. O anfitrião mantinha o mandado
preso entre os dedos, mas claramente nem o sentia.
“Meu Deus!”
O inspector-chefe examinou as próprias unhas, como se
naquele momento se preocupasse sobretudo com a sua
higiene pessoal.
“A menos que o senhor decida poupar-se a estes sarilhos
e nos explique o verdadeiro motivo pelo qual convocou
os professores Escalona, Schwarz e Vartolomeev para uma
reunião.”
Levantou os olhos e cravou-os no seu interlocutor.
“Quero o verdadeiro motivo.”
O rosto de Arpad Arkan exibia uma lividez cadavérica.
Gotas de transpiração escorriam-lhe pela face, enquanto
avaliava as opções diante dele e o dilema o paralisava.
Passou os olhos pelos cinco polícias à sua frente e só
encontrou alguma simpatia no rosto do historiador
português,
evidentemente
menos
à
vontade
nestas
situações constrangedoras, em que um homem é posto
perante a terrível perspectiva de perder a liberdade. O
que fazer?
Ouviu um tilintar de metais e notou que um dos polícias
preparava já as algemas. O tempo escasseava, percebeu.
Quase em transe, o presidente da fundação forçou-se a
tomar uma decisão e chegou à conclusão de que, no ponto
a que as coisas haviam chegado, tinha de pôr os seus
interesses pessoais à frente do resto.
“Isto já foi longe de mais”, concluiu. “Vou contar-vos
tudo. Mas não aqui.”
“Onde, então?”
“No local onde se desenvolvem os trabalhos.”
“Que trabalhos? Está a falar de quê?”
Arkan respirou fundo, como um atleta que se prepara
para entrar em competição, e levantou-se do seu lugar.
“Do mais extraordinário projecto da humanidade.”
L
A porta da fundação abriu-se e a partir desse instante
foi tudo muito rápido. Sicarius viu Arpad Arkan
abandonar o edifício na companhia dos polícias
israelitas, da inspectora italiana e do historiador
português e instalarem-se todos nos automóveis. Num
despertar súbito, as motos dos batedores desataram a
roncar e logo a seguir foi a vez dos carros, embora
estes mais suavemente.
O homem encapuzado que estava sentado num degrau do
outro lado da rua ergueu-se com gestos langorosos, para
evitar
despertar
as
atenções.
Lançou
um
olhar
enfastiado às viaturas e espreguiçou-se. Depois pôs-se
a caminhar com aparente despreocupação para a moto
negra parqueada a alguns metros de distância.
As viaturas iniciaram a marcha. À frente seguiam as
duas motos dos batedores, depois vinham os dois
automóveis, atrás encontrava-se a última moto da
polícia. Sicarius viu-os passar e só então tirou o
manto que o cobria. Guardou-o na sacola, que apertou às
costas, montou a sua moto e ligou o motor. A máquina
rugiu.
Ao fundo da rua, o cortejo da polícia dobrava já a
curva.
“Pensam que estão em segurança?”, murmurou Sicarius, os
olhos presos às traseiras dos veículos. “Enganam-se.”
A moto arrancou com estrépito e acelerou pela rua como
uma bala de canhão, chegando a empinar-se durante
alguns metros. Instantes depois Sicarius retomou o
contacto visual com a coluna da polícia e abrandou;
convinha-lhe manter a discrição.
O cortejo ziguezagueou pela cidade velha e saiu pela
Porta do Lixo, junto ao monte Moriah, em pleno Bairro
Judeu, mergulhando no bulício nervoso da Jerusalém
moderna. O tráfego era intenso, pelo que, apesar dos
batedores que abriam caminho, o cortejo avançou com
relativa lentidão. Como ia de moto, Sicarius conseguiu
progredir através do trânsito e colou-se à coluna.
“Isto não anda!”, resmungou.
Ia depressa de mais, percebeu. A continuar àquele
ritmo, em breve ultrapassaria o cortejo. Viu-se assim
forçado a abrandar, mas, como a progressão das viaturas
da polícia continuava a ser muito lenta, optou por
parar durante trinta segundos, de modo a deixar a
coluna ganhar alguma distância.
O tráfego melhorou consideravelmente depois de saírem
da cidade. A coluna seguiu para oeste, como se fosse
para Telavive, e o perseguidor continuou no seu
encalço,
embora
procurando
sempre
respeitar
uma
distância prudente e manter várias viaturas civis no
espaço que o separava do cortejo policial.
A viagem prosseguiu por mais de duas horas, sem muita
história. Antes de chegarem a Telavive, viraram para
norte e meteram pela rodovia Trans-Israel. Sicarius
ficou alerta quando se aproximaram da saída para
Netanya, mas o seu alvo ignorou as indicações para a
cidade da costa e manteve-se na estrada principal, rumo
a norte.
“Mas para onde vai esta gente?”, interrogou-se o
perseguidor, admirado com a viagem prolongada. “Para
Haifa? Para Acre?”
A resposta veio pouco depois, quando o cortejo
abandonou a estrada principal na saída da mais famosa
povoação da região da Galileia. No momento em que viu a
tabuleta à entrada da cidade, Sicarius percebeu que, se
tivesse
raciocinado
um
pouco,
facilmente
teria
adivinhado o destino. Como não pensara nisso mais cedo?
A tabuleta anunciava Nazaré.
LI
Antes de o cortejo de viaturas da polícia subir o monte
e entrar no perímetro urbano de Nazaré, o automóvel da
frente, onde seguia Arpad Arkan, virou à direita e
meteu por um caminho secundário. As motos e o segundo
carro, onde se encontravam Tomás e Valentina, viraram
também à direita e acompanharam a viatura da frente;
era evidente que o presidente da fundação estava a dar
instruções sobre o itinerário.
Diversos edifícios de traça moderna, com estruturas
metálicas e vidros, apareceram à esquerda, os vultos a
agigantarem-se entre o arvoredo. O cortejo cruzou os
portões do complexo e dirigiu-se para a entrada
principal do primeiro edifício, adornada por dois arcos
de aço entrecruzados como colunas dobradas por uma
força colossal.
Os automóveis e as motos imobilizaram-se à frente da
porta e a atenção do historiador desviou-se para uma
grande placa que identificava o complexo em inglês.
Advanced Molecular Research Center.
As portas das viaturas abriram-se e os ocupantes
apearam-se. Do carro da frente saíram primeiro os
polícias e depois Arkan, que se voltou para todos os
que o acompanhavam.
“Bem-vindos à jóia da coroa da minha fundação!”, disse
ele com evidente orgulho. “Este edifício chama-se
Templo.” Apontou para os dois enormes arcos que
decoravam a entrada e desviou o olhar para Tomás.
“Professor, sabe o que isto é, não sabe?”
O historiador aquiesceu.
“As portas do Templo de Jerusalém eram guardadas por
duas grandes colunas”, disse. “Se este edifício se
chama o Templo, presumo que estes arcos representem
essas colunas.”
“Isso mesmo.” Indicou a entrada. “Quando cruzarem esta
porta, lembrem-se que vão entrar num novo mundo.” Fez
um gesto grandiloquente com os braços. “O mundo do
Templo.”
Arnie Grossman fez um gesto para os seus homens.
“Vamos!”
Os polícias dirigiram-se para a entrada do edifício,
mas Arkan deu três passos rápidos e cortou-lhe o
caminho.
“Senhor inspector”, disse, “tenho muito gosto em
convidar a polícia a visitar as nossas instalações,
mas... sem armas. Lamento, são as regras em vigor no
Templo.”
O
inspector-chefe
da
polícia
israelita
estacou,
surpreendido com a objecção.
“Que disparate vem a ser este?”
Arkan pousou nele os olhos.
“O senhor tem algum mandado judicial para entrar neste
edifício?”
“Tenho um mandado para o deter se achar necessário.”
“Para me deter, onde?”
“Bem... na fundação ou na via pública.”
O presidente da fundação girou a cabeça em redor,
fingindo
que
se
certificava do
local
onde
se
encontravam.
“Olha, olha”, disse. “Não estamos na fundação nem na
via pública, pois não?”
Os olhos do polícia chisparam e a voz tornou-se gelada,
repleta de ameaças veladas.
“Quer que eu vá ao juiz obter o mandado? Olhe que
isso...” Arkan abanou negativamente a cabeça.
“Os senhores são bem-vindos ao Templo”, apressou-se a
esclarecer. “A única coisa que gostaria de evitar é a
entrada de armas neste edifício. As nossas regras
proíbem-no explicitamente.”
Grossman olhou para os seus homens com uma expressão
pensativa e avaliou o pedido. Depois voltou-se para o
seu interlocutor, a decisão já tomada.
“Ninguém desarma a polícia israelita”, sentenciou.
“Mas, num gesto de boa-fé, estou disposto a chegar a um
compromisso que me parece razoável. Os meus homens
ficam cá fora e só entro eu.” Abriu a aba do casaco e
revelou uma pistola atada ao peito. “Armado.”
O anfitrião olhou para a pistola e durante uns momentos
ponderou a proposta.
“Não pode deixar a arma com os seus homens?”
“Isto é inegociável”, murmurou Grossman. “E se calhar
já estou a contemporizar em demasia...”
Arkan massajou o queixo, pensativo. Porque não? A
alternativa àquela proposta de compromisso era os
polícias arranjarem um novo mandado e prenderem-no. A
regra que impusera no seu Templo determinava que não
haveria armas no interior, mas certas situações
requeriam flexibilidade. Aquela parecia-lhe uma delas.
“Está bem”, acedeu, com um gesto de rendição. “O senhor
entra armado. Os seus homens ficam cá fora.”
O inspector-chefe da polícia deu instruções aos seus
subordinados e, tudo já esclarecido, fez sinal a Arkan.
O presidente da fundação entrou enfim no edifício,
seguido por Grossman, Tomás e Valentina. Depois de se
identificarem na recepção, os visitantes passaram por
um detector de metais. Os dois seguranças que
controlavam a entrada não gostaram de ver a arma do
polícia penetrar no perímetro, mas o chefe fez-lhes
sinal de que estava tudo bem e eles consentiram.
O interior do edifício era, depois da entrada,
iluminado pela luz natural de um grande pátio. Havia
longos
corredores
em
duas
direcções
opostas,
contornando o pátio como tentáculos a abraçá-lo. Cada
corredor exibia uma fileira de portas na parede oposta
ao pátio.
“Onde estamos?”, quis saber Grossman.
Com os olhos pequenos quase escondidos por baixo das
sobrancelhas grossas, Arkan fez uma expressão de sonso.
“No Templo, já lhe disse.”
“Não era isso o que dizia lá fora”, atalhou Tomás,
indicando a entrada com o polegar. “A tabuleta
anunciava um Advanced Molecular Research Center. O nome
não me parece ter grandes conotações religiosas...”
O anfitrião soltou uma gargalhada; a irritação com que
os acolhera na fundação parecia substituída por uma
vasta bonomia.
“Tem razão, professor!”, exclamou Arkan. “Templo é o
nome deste edifício onde nos encontramos. Mas o
complexo tem de facto uma designação mais científica,
que revela os seus verdadeiros propósitos. Na verdade,
estamos no Centro de Pesquisa Molecular Avançada, o
mais ambicioso e sofisticado projecto da minha
fundação.”
“Sim, mas o que se faz aqui?”
“É segredo.”
O inspector-chefe exibiu o seu mandado judicial e,
confiante
de
que
a
visão
do
documento
era
suficientemente eloquente, sorriu.
“Se assim é, receio que tenha de nos contar tudo. Que
segredo vem a ser esse?”
Arkan respirou fundo, preparando-se mentalmente para
começar a revelar o que sempre escondera do mundo, e
arqueou as sobrancelhas peludas no momento em que fez a
declaração.
“É a última esperança da humanidade.”
LII
O bafo quente da humidade artificial acolheu os
visitantes quando penetraram no grande salão situado no
complexo científico da Fundação Arkan em Nazaré. Por
toda a parte cresciam plantas, com caminhos abertos
entre elas, como uma selva ordenada. O tecto do salão
era coberto por vidro fosco, deixando a luz do Sol
banhar a verdura que enchia todo o perímetro.
Uma estufa, percebeu Tomás. Tinham entrado numa estufa
gigante.
“Éden”, anunciou Arpad Arkan com um vasto sorriso.
“Este sector do complexo chama-se Éden.” Fez um gesto
para as plantas em redor. “É fácil entender porquê, não
é verdade?”
“O que isto é já eu percebi”, disse Grossman. “Mas para
que serve uma estufa em instalações científicas como
estas?”
O anfitrião não respondeu de imediato. Dirigiu-se a um
homem de bata branca, pequeno e magro, que estava
acocorado a analisar as folhas de uma planta, e
cumprimentou-o efusivamente. Trocaram algumas palavras,
impossíveis de captar à distância, mas era evidente que
Arkan lhe explicava a situação, uma vez que o homem da
bata branca desviou o olhar para os três visitantes
enquanto
escutava
o
chefe.
Por
fim
acenou
afirmativamente e acompanhou o presidente da fundação
até junto dos dois polícias e do historiador.
“Este é o professor Peter Hammans”, apresentou-o Arkan.
“É o director do Departamento de Biotecnologia do nosso
centro.” Deu-lhe uma palmada nas costas que quase o
atirou
ao
chão.
“Roubámo-lo
à
Universidade
de
Frankfurt.”
O professor Hammans, um homem com o rosto magro cortado
por rugas e uma barba grisalha rala que afunilava no
queixo, reequilibrou-se e, com um sorriso encabulado,
estendeu a mão aos desconhecidos.
“Muito prazer.”
Trocaram cumprimentos e apertos de mão, com cada
visitante
a
apresentar-se
com
nome
e
funções.
Terminadas as cortesias introdutórias, que envolveram
uma rápida explicação do inquérito que estava a
decorrer aos três homicídios na Europa, o director do
Departamento de Biotecnologia levou-os para um canto da
estufa e mandou-os sentar-se a uma mesa.
“Gostaria de vos oferecer uma coisa para comerem”,
disse com um sorriso malicioso. “Querem provar uma
couve geneticamente alterada ou uma couve absolutamente
natural?”
“Uma couve geneticamente alterada?”, interrogou-se
Grossman. “Nem pensar! Isso faz mal à saúde!”
O professor Hammans foi ao frigorífico e distribuiu
pratos com uma folha de couve por cada um dos três
visitantes.
“Então experimentem a couve no seu estado natural.”
Valentina fez uma careta.
“Não tenho fome...”
O cientisita apontou para a couve.
“Coma!”, insistiu. “É importante para a demonstração
que vos quero fazer.”
Os três lançaram um olhar desconfiado à folha de couve
que cada um tinha no seu prato. Estava cozida, mas
apresentava um aspecto que não era familiar.
Tomás espetou o garfo na sua e levou-a à boca. Deu duas
mastigadelas e, acto contínuo, cuspiu os pedaços que
saboreara.
“Bah! Que porcaria!”
O professor Hammans simulou um ar admirado.
“Então? 'Que se passa?”
O historiador fez uma careta.
“Esta couve é intragável”, disse. “Sabe a... sei lá,
tem um sabor amargo!”
Os dois polícias provaram um pequeno pedaço, que
trincaram quase a medo, e confirmaram o veredicto.
“Isto não presta para nada!”, sentenciou Grossman. “Que
raio de couve é esta?”
O director do Departamento de Biotecnologia voltou ao
frigorífico e trouxe uma outra couve cozida, que cortou
em três pedaços pequenos e distribuiu pelos pratos.
“Experirmentem agora esta couve e digam-me o que vos
parece...”
Desta vez: Tomás hesitou. À luz do que acabara de
suceder, interrogava-se sobre se deveria sujeitar-se
àquela experiência. Analisou a nova folha. Parecia-lhe
perfeitamente normal, como as que se emcontram no
supermercado. Uma couve lombarda. Com mil cuidados,
espetou o garfo na folha e levou-a à boca. Deu uma
pirimeira trincadela e parou, à espera que algo de
muito estramho lhe acontecesse na boca. Tudo parecia
normal. Deu uma segunda trincadela e voltou a aguardar
algo de explosivo. Nada. Retomou a mastigação e comeu a
couve.
“Então?”, quis saber o professor Hammans, o olhar
expectante. “Estava boa?”
“Hmm-hmm”, confirmou o historiador, ainda a mastigar.
“Fria, mas normal.”
Os dois polícias, que preferiram prudentemente aguardar
a reacção de Tomás, meteram esta segunda folha à boca e
mastigaram-na, confirmando o veredicto.
“Sabem como é que isto ficava mesmo bom?”, perguntou
Valentina enquanto saboreava a couve. “Com spaghetti,
azeite e alho.”
O director do Departamento de Biotecnologia trocou um
olhar rápido com Arpad Arkan e sorriu para os três
visitantes.
“Estão a ver esta primeira couve?”, perguntou. “É
absolutamente natural e vocês não a conseguiram comer.”
Indicou a boca dos seus interlocutores. “A segunda
couve é geneticamente modificada e acharam-na uma
delícia!”
Grossman suspendeu a mastigação.
“O quê?”, indignou-se. “O senhor deu-me a comer uma
couve geneticamente modificada?”
“E vocês adoraram!”
O inspector-chefe virou a cara para o lado e cuspiu a
comida mastigada para o chão.
“Que horror!”, exclamou. “Eu não como estas porcarias!”
O professor Hammans simulou surpresa.
“O quê? O senhor nunca comeu couve na vida?”
“Claro que comi! Mas nunca comi couve geneticamente
modificada! Isso, recuso-me!”
O cientista cruzou os braços e fitou-o fixamente, como
um professor à espera que o aluno corrija a resposta
errada. A seguir desviou a atenção para a folha de
couve que ninguém havia conseguido engolir.
“A única couve existente no mundo que nunca foi
geneticamente alterada é essa aí”, disse. “E vocês não
a quiseram comer. Todas as outras couves, e em especial
aquelas couves deliciosas que se encontram à venda nos
supermercados, como a couve lombarda, a couve roxa e
todas as outras, foram geneticamente manipuladas.”
“O quê?”
“É como lhe digo”, insistiu o professor Hammans. “As
couves naturais são demasiado amargas para consumo
humano. O seu sabor desagradável é, obviamente, um
mecanismo de defesa que desenvolveram para impedir que
os animais as comessem. Para as tornar saborosas, o que
fizeram os seres humanos? Começaram a manipulá-las
geneticamente, claro.”
“A manipulá-las geneticamente como?”, questionou Gross-
man. “Está a insinuar que as couves à venda nos
supermercados foram concebidas em laboratório?”
“Não num laboratório convencional, com bactérias e
ampolas e tubos de ensaio e placas de Petri e coisas
assim. Mas sim, as couves que consumimos são de certo
modo produtos de laboratório. Ou pelo menos de
manipulação genética. Desde que o homem inventou a
agricultura, há mais de dez mil anos, que não tem feito
outra coisa que não seja manipulação genética. Os
agricultores andam há milhares de anos a cruzar plantas
de modo a produzir verduras novas, mais saborosas e
fáceis de plantar.”
“Oh, isso é uma coisa diferente!...”
“Não é não! O cruzamento de plantas é uma forma
elementar de manipulação genética. As couves que
comemos não existiam assim no estado natural. Foram
desenvolvidas ao longo de muito tempo em cruzamentos
sucessivos
de
plantas.
Os
agricultores
faziam
experiências e, através do sistema de tentativa e erro
no cruzamento de verduras diferentes, criaram produtos
que não existiam na natureza. Muitos desses produtos
estão
à
venda
nos
supermercados
e
comemo-los
diariamente na sopa, na salada ou em forma de fruta.”
Arnie Grossman olhou para Valentina e Tomás em busca de
apoio, mas não o obteve. Quem se atreveria a desmentir
um especialista em biotecnologia num assunto, daqueles?
Vendo-se sem argumentos, o polícia israelita fez um
gesto rápido com a mão, como se afastasse uma mosca.
“Está bem, e depois?”, perguntou, com alguma irritação
na voz. “O que quis provar com isso?”
O professor Hammans sorriu.
“Quis simplesmente demonstrar que a biotecnologia é
usada pelos seres humanos há milhares de anos e não tem
nada de mal. Os agricultores estão habituados a cruzar
diferentes variedades de plantas para obter espécies
novas.” Ergueu o dedo. “Aliás, é até interessante notar
que a própria natureza pratica a biotecnologia. E até a
clonagem! Os morangueiros, por exemplo, libertam
vergônteas que depois se transformam em morangueiros.
Esses novos morangueiros são clones do original. As
sementes de batata usadas para plantar batatas não são,
na verdade, sementes, mas clones da batata de onde a
semente foi cortada. E quando arrancamos uma folha e a
plantamos, e ela se transforma numa nova planta, essa
nova planta é um clone da planta original.”
“Ah, bom!...”
“A questão que se põe é perceber como funciona este
cruzamento. Se cruzarmos uma planta comprida com uma
planta curta, que tipo de planta resultará da
experiência?”
“Ora, essa é fácil!”, exclamou Grossman. “Sai uma
planta média, claro!”
“Isso foi o que sempre se pensou. Mas decerto já ouviu
falar em Mendel, que fez a experiência com plantas que
produzem ervilhas. Sabe o que aconteceu? Todas as
plantas que resultaram deste cruzamento eram altas!
Mendel ficou surpreendido. Então decidiu cruzar uma
vagem verde com uma amarela. Todas as plantas
resultantes deste cruzamento nasceram verdes. Mendel
concluiu
que
havia
características
dominantes
e
características recessivas. A planta comprida era
dominante, a curta era recessiva. A vagem verde era
dominante, a amarela era recessiva. Sempre que se
cruzavam, a recessiva desaparecia.”
Tirou a língua de fora e afunilou-a. “É como afunilar a
língua. Quem consegue fazer como eu?” Preocupado com
salvaguardar a sua dignidade de polícia, Grossman
recusou-se a participar na experiência, mas Valentina e
Tomás colaboraram. O português afunilou a língua, a
italiana não.
“Não consigo!”, queixou-se ela. “Como é que vocês fazem
isso?”
“É uma habilidade inata”, explicou o professor Hammans.
Indicou os dois. “No entanto, se a senhora engravidar
deste cavalheiro, os vossos filhos terão todos a
capacidade de afunilar a língua. Ou seja, essa
característica é dominante.”
Tomás e Valentina trocaram um olhar embaraçado.
“Pois...”
“O mesmo se passa com os olhos. Os olhos castanhos são
dominantes, os azuis são recessivos. A visão a cores é
dominante, a visão sem cores é recessiva.” Passou a mão
pela barba. “Tendo feito esta descoberta, Mendel não se
ficou por aqui. Pegou nas plantas altas resultantes dos
cruzamentos e cruzou-as entre elas. O que acham que
aconteceu?”
Foi a vez de a italiana responder, esforçando-se por se
libertar do embaraço que lhe transparecia no rosto.
“As altas não são as dominantes?”, perguntou. “Então
resultaram novas plantas altas.”
O cientista abanou a cabeça.
“Um quarto das plantas nasceram curtas. Ou seja, na
primeira geração as altas dominaram e as curtas
desapareceram por completo. Contudo, na segunda geração
as curtas reapareceram. Tinham-se mantido escondidas na
primeira geração para depois reaparecerem. Mendel
concluiu que havia algo de especial nas plantas que
determinava o seu tamanho, e deu um nome a isso.
Chamou-lhe gene.”
“Gene, de genética?”
O rosto chupado do professor Hammans, com os malares
salientes e a barba grisalha a formarem uma extremidade
pontiaguda no queixo, voltou a abrir-se num sorriso.
“E de génesis”, disse. “O texto da criação.”
LIII
Havia já algum tempo que Sicarius estudava os edifícios
à distância. Vira o cortejo entrar pelo portão que dava
acesso ao complexo, mas não se atrevera a aproximar-se.
E se algum dos polícias o tinha visto de moto no
percurso de Jerusalém? Se o avistasse de novo, e ali,
decerto chegaria a conclusões. Era por isso fundamental
desfazer-se da moto.
Sicarius desmontou e deixou a sua máquina negra
estacionada na berma da estrada, à sombra de uma
oliveira. Escondeu o capacete na sacola e meteu-a na
caixa de viagem por cima da roda traseira. Depois
voltou-se e começou a caminhar descontraidamente ao
longo do muro, em direcção ao portão.
Chegou junto das grades do portão e espreitou para o
interior do complexo. Viam-se as três motos da polícia
e os dois carros estacionados junto à entrada do
edifício da frente. Vários homens conversavam por ali e
o intruso contou-os. Três fardados e três à paisana. Os
seis polícias tinham ficado cá fora.
“O mestre é brilhante”, murmurou Sicarius, sem ocultar
o sorriso. “Um verdadeiro génio!”
O seu mentor arranjara maneira de deixar os polícias à
porta do complexo, concluiu. Isso era extraordinário,
porque facilitaria enormemente a operação.
“Deseja alguma coisa?”
Uma voz interpelou Sicarius de surpresa. O intruso
olhou na direcção de onde ela soara e descobriu,
embasbacado, que estava ali um segurança do complexo.
Não havia reparado nele! Com a atenção voltada para os
polícias, negligenciara aquele pormenor. Como podia ter
sido tão descuidado?
“Sou um turista cristão”, desculpou-se. “É aqui que
está a gruta onde o anjo Gabriel anunciou a Maria que
iria gerar Jesus?”
O guarda riu-se.
“A Gruta da Anunciação encontra-se na basílica”,
explicou, apontando em direcção ao casario de Nazaré,
lá ao fundo. “Tem de ir para a cidade velha.”
Sicarius acenou em despedida.
“Ah, obrigado.” Desenhou uma cruz no ar. “Deus o
abençoe!”
O intruso afastou-se com ar descontraído, mas, pelo
canto do olho, inspeccionou o muro que protegia o
recinto. Era alto, embora não em demasia. O maior
problema parecia ser o arame farpado enrodilhado no
topo. Além disso, é claro, teria de escolher o ponto
ideal para passar para o outro lado. O melhor seria dar
uma volta a todo o perímetro e escolher o sítio mais
discreto. Já percebera que o complexo era protegido por
um dispositivo de segurança, mas não se tratava de nada
de extraordinário. No fim de contas, não tinha de
penetrar num banco nem numa cadeia de alta segurança.
As
medidas
de
protecção
pareciam-lhe
apenas
ligeiramente mais fortes do que as de um edifício
normal. Nada que não se ultrapassasse. Afinal não tinha
já lidado com coisas bem piores?
Atirou um novo olhar ao muro. O que fazer com o arame
farpado ali no topo? Não ia ser agradável, mas tinha na
caixa da bagagem da moto um alicate que iria resolver
esse problema. Dispunha também das cordas necessárias
para escalar até lá acima. Como é evidente, era também
na caixa da moto que se encontrava o instrumento mais
importante para aquela missão.
A adaga sagrada.
LIV
O edifício era seguramente o maior do complexo. Logo
que o grupo saiu de Éden, a estufa, Arkan e Hammans
conduziram os visitantes na direcção de uma estrutura
gigantesca com um formato curvo, como o de uma bacia
colossal. Vista de longe, entre as árvores, não parecia
tão grande. Mas ali, já de perto, a verdadeira dimensão
do edifício tornou-se perceptível em toda a sua
plenitude.
“O que é isto?”, quis saber Arnie Grossman, abismado
com o tamanho da construção. “Parece um barco.”
“Chamamos-lhe a Arca.”
“Como a de Noé?”
“Isso”, assentiu o presidente da fundação. “É o
principal edifício do nosso centro de pesquisas. Uma
catedral da ciência, se quiser.”
Os dois anfitriões conduziram o grupo para o interior
da Arca. Pairava no ar um vago odor asséptico a álcool
e a formol que tudo parecia permear. Os visitantes
cruzaram o átrio e meteram por um grande corredor com
paredes de vidro para lá das quais se espraiavam vários
laboratórios. Uma legião de técnicos de bata branca
afadigava-se em torno de microscópios, de tubos de
ensaio, de pipetas e de diverso material, evidentemente
a proceder a experiências.
As paredes de vidro foram, ao fim de uma centena de
metros, substituídas por paredes de alvenaria. O grupo
dobrou a esquina do corredor e o professor Hammans
abriu uma porta e convidou os visitantes a passarem à
frente. Primeiro entrou Valentina e depois Tomás e
Grossman. Os três detiveram-se, quase assustados, logo
que se aperceberam do que estava para lá da porta.
Uma câmara de horrores.
A sala para onde os conduziram era um armazém de jarros
de todas as dimensões arrumados em prateleiras. O
cheiro a álcool e formol revelava-se aqui muito forte,
denunciando o horror que se encerrava no interior dos
jarros. Cadáveres. Eram centenas e centenas de corpos
confinados aos jarros e a boiar numa solução líquida.
Viam-se coelhos, pássaros, ratos, cães, cabritos e
macacos. Todos a flutuarem nos líquidos dos jarros, de
olhos vidrados e membros em posições bizarras, parecia
que tinham a vida suspensa.
“Que horror!”, exclamou a italiana. “O que é isto?”
Arpad Arkan contemplou as fileiras de jarros como um
artista a apreciar a sua obra.
“São as nossas experiências”, disse. “Não se esqueça de
que estamos no Centro de Pesquisa Molecular Avançada.”
“Vocês matam animais e metem-nos em jarros?”, admirou-
-se ela. “Que raio de trabalho é esse?”
Os dois anfitriões soltaram uma gargalhada.
“O nosso trabalho não é matar bicharada”, corrigiu o
professor Hammans. “É criar animais. E quando digo
criar não é no sentido de produção alimentar, mas no
sentido bíblico da palavra.”
“Bíblico? O que quer dizer com isso?”
O director do Departamento de Biotecnologia abriu os
braços e indicou toda a estrutura em redor.
“Este edifício chama-se Arca, lembram-se? Isso acontece
porque ele está envolvido no acto da criação.”
Apontou para os jarros arrumados nas prateleiras.
“Esses animais são experiências falhadas. Mas estamos a
afinar a técnica e temos um número crescente de casos
de sucesso.”
Tomás esboçou um esgar de incompreensão; nada daquilo
lhe parecia fazer sentido.
“Experiências de quê? Sucesso em relação a quê?”
Voltando-se para os convidados, Arkan arregalou as suas
sobrancelhas peludas e exibiu um grande sorriso.
“Clonagem.”
“Como?”
“É disso que o nosso centro se ocupa”, esclareceu o
presidente da fundação. “De clonagem.”
O historiador e os dois polícias entreolharam-se.
“Mas... mas... para quê?”
Arpad Arkan manteve o sorriso, como uma criança que
exibe os brinquedos aos filhos dos vizinhos, e voltou-
se para o seu subordinado.
“Explica-lhes, Peter.”
“Tudo?”
“Quase tudo. A parte final fica para mim.”
Foi a vez de o professor Hammans sorrir.
“Então é melhor começarmos pelo princípio.” Encarou os
três visitantes. “O que sabem vocês sobre a forma como
os genes funcionam?”
O historiador e os polícias vacilaram. Quem se
atreveria a explicar um assunto daqueles a um
especialista?
“Bem”, titubeou Tomás, “são os genes que determinam
cada uma das nossas características. Os olhos, o
cabelo, a altura... até o nosso feitio, se somos
pacientes ou irritáveis, se temos propensão para esta
ou aquela doença. Enfim, tudo.”
“Correcto”, disse o director do Departamento de
Biotecnologia do centro. “Mas como é que eles
funcionam?”
O português fez uma expressão vazia.
“Sabe, a minha especialidade é a história...”
Os dois polícias mantiveram-se calados e desviaram os
olhares, como se de repente achassem grande interesse
ao conteúdo macabro dos jarros que se alinhavam pelas
estantes da sala. Aquela área de conhecimento não era
manifestamente a deles.
O professor Hammans já esperava a reacção, pelo que se
dirigiu a uma secretária no canto da sala. Atrás dela
havia um quadro branco, como o das escolas. O cientista
pegou numa caneta de feltro azul-escura e desenhou no
quadro o que parecia um ovo estrelado.
“As células que constituem as plantas e os animais,
incluindo os seres humanos, têm a estrutura de um ovo”,
explicou. “Uma membrana exterior rodeia toda a célula e
mantém-na unida e protegida. O interior é formado pela
clara, ou citoplasma, um fluido que exerce várias
funções, e pela gema, ou núcleo.” Bateu com a ponta da
caneta na “gema” do ovo estrelado e olhou para os
convidados. “Para que serve o núcleo?”
“O núcleo é o centro de controlo”, respondeu Tomás.
Isso sabia. “É ele que comanda a célula.”
“O núcleo não comanda apenas a célula.” Fez um gesto
largo, como se quisesse englobar o universo. “É ele que
controla tudo. Tudo. A célula, o tecido, o órgão, o
corpo... até a espécie! O núcleo da célula controla a
própria vida no nosso planeta!”
Arnie Grossman ergueu uma sobrancelha céptica.
“Não estará a exagerar um pouco?”
Como em resposta, o professor Hammans voltou-se para o
quadro e, partindo da estrutura esquemática da célula,
fez novos desenhos, cada um uma ampliação de uma secção
do desenho anterior. Depois escrevinhou palavras a
identificar os pontos-chave do esquema.
“Vejamos o que se passa no núcleo de uma célula”,
propôs. “Se ampliarmos uma secção, descobrimos que o
núcleo é formado por filamentos enrodilhados, chamados
cromossomas. Se ampliarmos novamente uma secção,
verificamos que o cromossoma é constituído por dois
fios enrolados um no outro numa longa espiral. Chamamos
a estes dois fios ácido desoxirribonucleico, ou ADN.
Ampliando uma secção do ADN, percebemos que os dois
fios estão ligados um ao outro por quatro elementos-
base: adenina, timina, guanina e citosina, ou A, T, G e
C.” Redigiu as quatro letras no quadro. “São estas as
letras com que se escreve o livro da vida.”
“É isso um gene?”
“Um gene é uma secção do ADN. Uma determinada
combinação de pares A-T e G-C constitui um gene. E o
que faz o gene quando é activado? Produz proteínas que
transmitem as ordens dos genes, pondo as células a
trabalhar de um modo ou de outro. As proteínas
produzidas pelas células dos olhos são sensíveis à luz,
as do sangue transportam oxigénio... enfim, cada uma
tem as características necessárias para desempenhar as
funções para que foi criada.”
“O que está a dizer é que as células do coração têm
determinados genes, as dos rins têm outros, as da...”
“Não!”, cortou o professor Hammans. “Cada célula do
nosso corpo contém no seu núcleo o ADN completo. Ou
seja, o nosso ADN inteiro está espalhado por todo o
corpo. Mas, devido a um mecanismo ainda relativamente
desconhecido, só determinados genes são activados num
certo órgão. Por exemplo, as células do coração apenas
usam o ADN necessário para as suas operações. O resto
do ADN permanece adormecido. Um dos grandes mistérios
ainda por desvendar é justamente perceber como cada
célula sabe qual o gene que tem de activar. Mas o facto
é que a célula sabe. E, facto igualmente relevante,
descobrimos que um determinado gene produz uma enzima
específica independentemente do animal ou planta onde
se encontra inserido. Se eu colocar num animal o gene
humano que produz a insulina, esse animal começará a
gerar grandes quantidades de insulina no seu leite.”
Arqueou as sobrancelhas com movimentos rápidos. “Estão
a ver as vantagens, não estão?”
“Mamma
mia!”,
exclamou
Valentina,
percebendo
as
perspectivas que se abriam com esta inovação. “Pode-se
pôr os animais a produzir insulina para os diabéticos!”
“Isso, e muito mais! Lembram-se daquelas plantas que
viram no Edifício Éden? Temos lá umas plantas de arroz
onde inserimos um gene que produz vitaminas. As pessoas
dos países subdesenvolvidos que comam esse arroz terão
assim uma refeição mais rica. Estamos também a inserir
um gene no milho que reduz a necessidade de água. Esse
milho é assim perfeito para as zonas desérticas e, tal
como o arroz rico em vitaminas, ajudará a combater a má
nutrição no terceiro mundo.”
“Incrível!”
Sentindo-se
impaciente,
Arnie
Grossman
espreitou
ostensivamente o relógio.
“Tudo isso é muito bonito”, disse. “No entanto, como
sabem, estamos a investigar três homicídios e uma
tentativa de homicídio. Por que razão considera estes
pormenores relevantes para o nosso inquérito?”
Arpad Arkan interveio.
“Devido à falta de sexo.”
“Perdão?”
O professor Hammans percebeu de imediato a necessidade
de manter a conversa longe dos detalhes demasiado
técnicos, fascinantes para ele mas susceptíveis de
enfastiar um leigo.
“O nosso presidente está a falar de uma segunda função
dos genes: a reprodução”, disse o cientista. “Além de
produzirem enzimas, os genes reproduzem-se. Isso não
acontece com sexo, mas sempre que uma célula se divide.
Ao criar-se uma nova célula, o que sucede no nosso
corpo cerca de cem mil vezes por segundo, os
cromossomas da célula original duplicam-se. Isto é
muito importante, porque significa que,quando criamos
um ser vivo a partir do material genético de outro, o
ADN do novo ser é exactamente igual ao do que forneceu
os genes.”
“Como os gémeos?”
“Bom exemplo! Os gémeos verdadeiros partilham o mesmo
ADN.” Abriu as mãos, como um ilusionista a mostrar o
seu último truque. “Ou seja, são clones um do outro.”
Valentina mordeu o lábio.
“E assim chegamos à clonagem.”
“Nem mais!”, assentiu o professor Hammans. “Sempre que
clonamos uma planta ou um animal, estamos a fazer uma
cópia com recurso ao mesmo ADN.”
“Mas como se faz isso?”
“O processo é simples numa planta, como qualquer
agricultor sabe. Já nos animais é mais complexo.”
Voltou ao desenho do ovo estrelado no quadro. “Pegamos
na célula de um ovo acabado de ovular e, com uma
pipeta, retiramos-lhe o núcleo. Depois pegamos numa
célula do indivíduo que queremos clonar e colocamo-la
ao lado da célula do ovo sem núcleo. Retiram-se-lhes os
nutrientes, de modo a colocá-las numa espécie de estado
suspenso, e aplica-se uma dose de electricidade. As
duas células fundem-se numa única. Depois faz-se uma
nova descarga de electricidade, imitando o fluxo de
energia que acompanha a fertilização de um ovo pelo
esperma. Lembrem-se que um ovo, independentemente do
seu tamanho, é uma célula. Julgando que foi fertilizada
pelo esperma, a célula começa a dividir-se, produzindo
um novo núcleo para cada nova célula. E voilà! O animal
clonado começa a crescer!”
“E assim que clonam animais?”
“Exactamente assim”, confirmou o cientista alemão. “A
primeira experiência foi realizada em 1902 por um
conterrâneo meu, Hans Spemann, que conseguiu clonar uma
salamandra. Em 1952 foi clonado um sapo e, em 1996, foi
a vez de se produzir o primeiro mamífero: a ovelha
Dolly. Isso abriu um novo mundo, como deve calcular. Se
era
possível
clonar
mamíferos,
imagine
só
as
perspectivas que se abriram! Desde então clonaram-se
ratos, porcos, gatos... eu sei lá!”
Os visitantes passaram de novo os olhos pelos animais
encerrados nos jarros alinhados nas estantes da grande
sala, e observaram-nos já não com horror, mas com
estupefacção.
“Se é possível clonar mamíferos”, murmurou Tomás, quase
com medo de formular a pergunta, “porque não seres
humanos?”
O professor Hammans trocou um olhar com Arpad Arkan,
como se lhe perguntasse o que devia responder. O
presidente da fundação fez um sinal afirmativo com a
cabeça, dando luz verde ao seu subordinado para fazer a
revelação. O cientista indicou com a mão os jarros
macabros que enchiam a sala e fitou o historiador
português.
“O que pensa o senhor que estamos aqui a fazer?”
LV
O tronco do pinheiro inclinava-se naturalmente para o
muro, decerto empurrado ao longo dos anos pela força do
vento, e alguns ramos chegavam a enredar-se no arame
farpado que se enrodilhava no topo. De mãos nas ancas,
a avaliar a árvore e a sua posição privilegiada,
Sicarius não conteve um sorriso.
“Uns incompetentes!”, murmurou com satisfação. “Erguem
um muro e esquecem-se de cortar as árvores que permitem
saltá-lo!...”
O giro ao longo do muro havia produzido resultados.
Bastou percorrer quatrocentos metros em torno do
perímetro do Centro de Pesquisa Molecular Avançada para
identificar aquela vulnerabilidade no dispositivo de
segurança do complexo. Sicarius não tinha dúvidas de
que, se continuasse a inspeccionar o muro, facilmente
localizaria outros pontos fracos. Mas o tempo urgia.
Para quê continuar à procura se já encontrara aquilo de
que precisava?
Pegou na corda e lançou-a sobre a árvore. A primeira
tentativa não resultou, mas à segunda conseguiu enlaçar
um braço sólido do tronco. A corda subia, dobrava o
tronco lá em cima e regressava cá a baixo, formando
assim uma espécie de baloiço. O operacional amarrou uma
das pontas à cintura e olhou em redor, para se
certificar de que ninguém o observava. O local era
abrigado por vários arbustos, dando-lhe condições
adequadas para actuar à luz do dia.
Agarrou a outra ponta da corda com firmeza e começou a
içar o corpo. Sicarius era um homem ágil, fruto do
treino rigoroso a que se submetia diariamente, e em
alguns segundos chegou à copa da árvore. Acomodou-se no
braço mais forte do tronco e vistoriou o complexo. Como
suspeitava, não havia guardas por ali; eles limitavam-
-se a vigiar a entrada. Era possível que fizessem
rondas e o assaltante precisava de tempo para lhes
estudar as rotinas, mas o tempo constituía um luxo de
que não dispunha naquelas circunstâncias. De qualquer
modo, concluiu, seria preciso algum azar para penetrar
no perímetro justamente na altura em que estivesse a
decorrer uma ronda.
Procurou também sinais de câmaras de vigilância. Não
havia avistado nenhuma quando espreitara pelo portão,
uns vinte minutos antes, e nesse momento também não
vislumbrou quaisquer sinais delas. Era provável, porém,
que se encontrassem no interior dos edifícios.
Depois de uma derradeira espreitadela para o perímetro,
testou a resistência do tronco, para se assegurar de
que aguentava o seu peso, e respirou fundo.
“Vamos a isto!”
Deslizou devagar pelo braço do tronco. Aquela parte da
árvore descaiu um pouco, vergada pelo peso do homem
nela encavalitado, mas aguentou. Sicarius avançou com
mil cautelas até se colar ao muro. O tronco tinha-se
inclinado ligeiramente, mas a borda superior do muro
estava ainda ao seu alcance. Tirou o alicate que trazia
guardado no bolso e encaixou-lhe os dentes numa secção
do arame farpado.
Apertou com força.
Claque.
Cortou o arame farpado num ponto e depois prosseguiu
para a secção seguinte. Os claques secos do alicate a
decepar o arame sucederam-se, como se um jardineiro
aparasse uma sebe, e em dois minutos abriu-se uma
clareira no enrodilhado que protegia o topo do muro.
Uma vez a operação completada, olhou de novo para o
interior do complexo, assegurando-se de que não havia
sido avistado. Tudo permanecia calmo.
Satisfeito, Sicarius pendurou-se no muro e içou o corpo
até ao topo. Empoleirado lá em cima, não perdeu tempo.
Recuperou a corda e atirou-a ao solo. Depois lançou-se
para o interior do perímetro. Foi um salto de três
metros, amortecido pela relva macia e pela destreza com
que deu a cambalhota no instante em que tocou no chão.
Rolou pelo relvado e de imediato pôs-se de pé. Pegou na
corda, de que provavelmente precisaria para mais tarde
sair dali, e correu para o arbusto mais próximo.
Já estava dentro.
LVI
A revelação deixou os três visitantes boquiabertos.
Tomás, em particular, mal acreditava no que acabara de
escutar. “Vocês estão a clonar seres humanos?”
Apercebendo-se do choque que haviam causado com a
revelação, os dois anfitriões soltaram uma gargalhada
nervosa.
“Ainda não”, respondeu Arpad Arkan. “Não chegámos aí.”
O sorriso desapareceu e o rosto tornou-se sério. “Mas,
em última instância, é esse de facto o objectivo final
das nossas pesquisas. Queremos ser capazes de clonar
seres humanos.”
“O que quer dizer com isso, queremos?”, questionou
Arnie Grossman. “Se já se clonam ovelhas e ratos e sei
lá mais o quê, o que vos impede de clonar seres
humanos?”
O professor Hammans, que se calara momentaneamente, fez
um gesto na direcção do conteúdo macabro dos jarros
alinhados nas prateleiras da sala onde se encontravam.
“Aquilo”, disse. “Está a ver todos esses animais que aí
guardamos? São o resultado de sucessivas experiências
falhadas. A grande verdade é que a técnica de clonagem
requer ainda uma importante afinação.”
“Que afinação?”, insistiu o polícia israelita. “Se já
se clonaram animais, as afinações estão feitas!...”
O director do Departamento de Biotecnologia do centro
abanou negativamente a cabeça.
“Para se produzir a ovelha Dolly, houve mais de
duzentas experiências que falharam”, revelou. Pegou na
caneta de feltro e redigiu o número 277 no quadro. “A
clonagem
de
Dolly
só
resultou
à
ducentésima
septuagésima sétima vez. As experiências mostram que
apenas cerca de um por cento dos embriões clonados
chegam a nascer. Claro que andamos a desenvolver novas
técnicas e estamos convencidos que, num futuro mais ou
menos próximo, a percentagem de sucesso será muito mais
elevada.”
“Suficientemente elevada para clonarem seres humanos?”
O professor Hammans caminhou na direcção de uma estante
e acocorou-se junto a um jarro. No interior via-se o
que parecia o corpo de um macaco em miniatura a flutuar
no formol.
“Há ainda diversos problemas a resolver”, indicou.
“Antes de chegarmos ao homem, temos tentado clonar
outros primatas e... não conseguimos. Só aqui no nosso
Centro de Pesquisa Molecular Avançada efectuámos mais
de mil tentativas nos últimos três meses.” Fez um gesto
de desânimo. “Nem uma única funcionou. Dessas mil
experiências, apenas umas cinquenta resultaram num ovo
clonado que se começou a dividir, mas nenhum atingiu a
fase madura, que permite o nascimento.” Indicou o
macaco minúsculo no interior do jarro. “Este embrião
foi o que chegou mais longe.”
“Mas porquê?”, quis saber Tomás. “Qual é o problema?” O
cientista reergueu-se, esboçou um esgar de dor ao
endireitar-se e encarou o grupo.
“As análises que fizemos aos embriões abortados mostram
que
pouquíssimas
células
destes
clones
falhados
continham os núcleos com os cromossomas. Em vez de se
localizarem na gema do ovo, esses cromossomas clonados
estavam espalhados pela clara. Em muitos casos as
células nem sequer tinham o número adequado de
cromossomas e era por isso que não conseguiam
funcionar. Curiosamente, e apesar desses problemas
todos, algumas dessas células defeituosas continuaram a
dividir-se.”
“O problema de os cromossomas não estarem no núcleo...
isso também acontecia com os outros animais?”
O professor Hammans apontou para o jarro com o macaco
minúsculo.
“Só com os primatas”, sublinhou. “Como devem calcular,
temos andado à volta desta dificuldade e já conseguimos
perceber por que razão ela existe.” Voltou para junto
do quadro e indicou o ovo estrelado que havia
desenhado. “Sabem, quando uma célula se divide em duas
normalmente os seus cromossomas também se dividem em
dois. Um grupo vai ordeiramente para uma célula e o
outro grupo é puxado para a outra célula, de modo a
compor dois núcleos iguais. No caso dos primatas, no
entanto, as coisas não se processam assim. Quando chega
a hora de os dois grupos de cromossomas irem cada um
para a sua célula, eles não se conseguem alinhar
ordeiramente. Em vez disso, posicionam-se de forma
caótica e por isso vão parar aos sítios errados das
células.”
“Porquê?”
“As nossas análises mostram que faltam duas proteínas
ao embrião clonado. São essas proteínas que organizam
os cromossomas. Nos animais em geral essas proteínas
encontram-se espalhadas pela clara do ovo, mas, no caso
dos primatas, percebemos que estão concentradas junto
aos cromossomas dos ovos por fertilizar. Ora quando se
leva a cabo uma clonagem a primeira coisa que se faz é
justamente retirar esses cromossomas. O que se passa é
que, quando se procede a essa operação na célula dos
primatas, acaba-se também por se retirar acidentalmente
as proteínas, uma vez que elas estão demasiado perto
dos cromossomas. Como elas desaparecem, os cromossomas
não se conseguem alinhar ordeiramente no momento da
divisão das células.” Bateu com a ponta da caneta no
ovo estrelado garatujado no quadro. “É justamente esse
problema que estamos a tentar resolver nos nossos
laboratórios.”
A explicação técnica extraiu um bocejo enfadado de
Arnie Grossman. O inspector-chefe da polícia israelita
apoiou-se numa perna, impaciente por avançar na
conversa e chegar ao que realmente lhe interessava.
“Por favor, esclareçam-me!”, pediu. “O que tem isso a
ver com os homicídios que estamos a investigar?”
A pergunta deixou o professor Hammans sem resposta;
aquele assunto não era da sua competência. Teve de ser
o seu superior hierárquico a responder.
“Calma, já lá chegamos!”, disse Arkan. “O nosso
director do Departamento de Biotecnologia esteve apenas
a expor o maior problema relacionado com a clonagem de
primatas e que estamos a tentar solucionar aqui no
Centro de Pesquisa Molecular Avançada. Para poder
responder a essa pergunta, é importante que percebam
que existe um segundo problema técnico que tem ainda de
ser resolvido. Como estamos muito concentrados na
resolução do primeiro problema e precisamos de apressar
a investigação, resolvemos recorrer ao outsourcing para
lidar com esse segundo problema. Estudámos o mercado
para procurar um parceiro que nos ajudasse a lidar com
essa outra dificuldade e descobrimos que existia uma
instituição que nos poderia auxiliar. Trata-se da
Universidade de Plovdiv, na Bulgária, que está muito
avançada na pesquisa de...”
“O
professor
Vartolomeev!”,
exclamou
Valentina,
interrompendo-o num sobressalto. “Foi por isso que o
senhor falou com o professor Vartolomeev!”
Arpad Arkan anuiu.
“De facto, essa foi a verdadeira razão pela qual
contactei o professor Vartolomeev. Ele chefiava a área
de Biotecnologia da Universidade de Plovdiv e tinha
pesquisas tão inovadoras nesta área que até se dizia
que acabaria por ganhar o Prémio Nobel da Medicina.
Através dos meus contactos, arranjei maneira de a
Universidade Hebraica de Jerusalém o convidar para uma
palestra. Quando o professor chegou a Israel, chamei-o
discretamente à fundação e, depois de lhe explicar o
projecto em pormenor, ele aceitou articular as
pesquisas do seu departamento na Universidade de
Plovdiv com o nosso trabalho no Centro de Pesquisa
Molecular Avançada.” Sorriu. “Isto, claro, também a
troco de uma generosa doação para a sua universidade.”
A explicação foi seguida por Tomás com atenção. Havia,
porém, um ponto que o historiador percebeu não estar
esclarecido.
“O senhor falou num segundo problema, cuja resolução
foi entregue ao professor Vartolomeev. Que problema é
esse?” O presidente da fundação desviou o olhar para o
professor Hammans, endossando-lhe a resposta a essa
questão técnica.
“Há uma dificuldade grave com os animais clonados”,
revelou o cientista alemão. “Eles são, em geral,
doentes e têm uma esperança de vida mais curta do que o
normal. A ovelha Dolly, por exemplo, só viveu seis
anos. Apesar de ser jovem para a sua espécie, sofria de
artrite e de obesidade e teve de ser abatida devido a
uma infecção pulmonar progressiva. O principal problema
é que envelheceu prematuramente. Essa é, de resto, uma
das características dos animais clonados. Enquanto essa
questão não for resolvida, receio que não possamos
clonar seres humanos.”
“Foi essa tarefa que entregámos ao professor Vartolo-
meev”, atalhou Arkan. “Podíamos ter-nos dedicado à
questão, claro. O problema é que os nossos recursos
estavam todos direccionados para resolver a dificuldade
das proteínas coladas aos cromossomas e que impedem a
clonagem de primatas. Como a Universidade de Plovdiv
estava já
muito avançada
na
pesquisa
sobre
o
envelhecimento prematuro dos clones, achei melhor
entregar-lhes
essa
investigação.
Mera
gestão
de
recursos.”
“Espere aí”, insistiu Tomás, habituado a esclarecer os
assuntos até ao mais ínfimo pormenor. “Por que razão os
animais clonados envelhecem tão prematuramente?”
O professor Hammans voltou-se para o quadro e escreveu
uma palavra. Telómeros.
“Já ouviu falar nisto?”
O historiador cravou os olhos na palavra. Tentou
dividi-la, procurando-lhe a raiz etimológica de modo a
descobrir o seu significado, mas não foi capaz.
“Telómeros?”, interrogou-se. Abanou a cabeça. “Não faço
a mínima ideia do que seja...”
O cientista indicou a extremidade do cromossoma que, no
início da sua explicação, havia desenhado no quadro.
“Está a ver aqui as pontas dos cromossomas? Estas
pontas são protegidas por estruturas de ADN chamadas
telómeros. Sempre que os cromossomas se dividem, os
telómeros ficam um pouco mais pequenos. Ora eu há pouco
disse-vos que ocorrem no nosso corpo cerca de cem mil
divisões de células por segundo, lembram-se? Isto é
muita divisão. Se a cada divisão de uma célula, e
consequentemente de um cromossoma, os telómeros ficam
mais pequenos, imaginem o que isso representa ao fim de
algum tempo! Os telómeros tornam-se de tal modo
minúsculos que deixam de conseguir proteger os
cromossomas. É nessa altura que a célula morre.”
“O que está a dizer”, resumiu o português, “é que esses
telómeros funcionam como uma espécie de relógio
biológico para a morte...”
“Exactamente!”,
exclamou
o
professor
Hammans,
satisfeito por ter sido entendido à primeira. “Mas não
pense num relógio. Pense antes numa ampulheta que vai
perdendo os seus grãos de areia. Quando o último grão
cai, a célula morre.”
Tomás assentiu.
“Estou a ver.”
O director do Departamento de Biotecnologia apontou
para os jarros com os restos das experiências falhadas.
“Qual é o problema dos animais clonados?”, perguntou em
tom retórico. “É que os cromossomas que usamos para a
clonagem vêm de uma célula que já se dividiu milhentas
vezes. Por isso os seus telómeros já nascem muito
reduzidos. Com telómeros mais curtos, os animais
clonados começam a sua vida mais envelhecidos do que os
outros animais. É justamente essa a razão pela qual
vivem menos tempo.”
“E é também por isso que vocês não arriscam a clonagem
de um ser humano.”
“Claro! Temos o problema técnico de manter na célula
clonada as duas proteínas que garantem a separação
ordenada dos cromossomas e temos o problema ético de
criar um ser humano que vai viver doente e durante
pouco tempo. São estes os dois problemas que impedem a
clonagem de pessoas. Temos, pois, de os resolver para
poder passar à fase seguinte do processo.”
Arnie Grossman, todo ele desassossego impaciente,
aproveitou esta resposta para tentar progredir na
investigação.
“Isso explica a contratação do professor Vartolomeev
pela fundação”, observou o polícia israelita. “E as
outras duas vítimas? Qual o papel delas em todo este
esquema?”
Estas questões relacionadas com os homicídios eram
invariavelmente
respondidas
pelo
presidente
da
fundação.
“Comecemos pelo professor Alexander Schwarz”, propôs
Arkan. “Como sabem, era professor de Arqueologia da
Universidade de Amesterdão. Acontece que uma das áreas
que estamos a pesquisar de uma forma bastante agressiva
é justamente a do ADN fóssil.”
“ADN fóssil?”, admirou-se Tomás. “Isso não pertence à
ficção científica?!”
O professor Hammans caminhou de novo em direcção às
estantes e imobilizou-se junto a um jarro. No interior
flutuava o que parecia um pedaço minúsculo de carne.
“Está a ver este feto?”, perguntou. “Sabe o que isto
é?”
O português curvou o lábio inferior.
“Um músculo?”
O cientista abanou a cabeça.
“E o resultado de um novo tipo de pesquisa genética que
estamos a desenvolver e para a qual precisámos da
colaboração do professor Schwarz, e em especial dos
seus talentos na área da arqueologia”, disse. “O ADN
antigo.”
“Antigo como?”
“Antigo como o de espécies já extintas, por exemplo.”
De testa franzida, o historiador português olhou de
novo
para
o
jarro
indicado
pelo
director
do
Departamento de Biotecnologia do centro.
“Isso é um feto de uma espécie já extinta?”
“Correcto.”
Tomás aproximou-se do jarro e fitou com atenção o
minúsculo pedaço de carne que flutuava no interior.
Tentou adivinhar-lhe as formas, mas percebeu que isso
era impossível com um espécime tão prematuro.
“Que raio de espécie é esta?”
O professor Hammans sorriu, um brilho de satisfação a
cintilar-lhe no olhar macilento.
“Um Neandertal.”
LVII
Os movimentos do intruso eram precisos e furtivos, como
os de um felino no encalço da presa. Ocultado pelas
folhas do arbusto onde se abrigara, Sicarius extraiu do
bolso o pequeno pager especialmente preparado para a
operação e consultou o ecrã. O sinal indicava um ponto
a piscar a norte-nordeste. Olhou naquela direcção e
identificou
o
maior
edifício
do
complexo,
com
estruturas curvas e abertas, como as de um navio
gigante.
“Então é ali que está o mestre...”, sussurrou.
Daí a pouco estudaria melhor o edifício. De momento
tinha outras prioridades. Varreu o horizonte com os
olhos, procurando assegurar-se de que o caminho estava
livre.
Assim era.
A seguir avaliou a distância que precisava de
percorrer. Tinha pela frente uns bons trezentos metros.
Isso dava uma corrida de uns quarenta segundos;
parecia-lhe
demasiado
tempo
e
achou
que
seria
imprudente fazer tudo de uma vez só. Procurou por isso
pontos intermédios e escolheu uma árvore e uma sebe que
se lhe afiguraram adequadas. Cobriria a distância em
três etapas, cada uma de aproximadamente cem metros.
Isso significava que só estaria exposto durante uns
doze segundos de cada vez. Achou que se tratava de um
risco razoável.
Como um sprinter a largar do bloco de partida, Sicarius
deixou o arbusto onde se havia escondido e correu com
toda a velocidade de que era capaz em direcção à
árvore. Chegou à oliveira e imediatamente desapareceu
nela, espalmando-se contra o tronco contorcido como se
também ele fosse uma parte da árvore. Esperou uns
segundos e depois olhou em redor, primeiro para se
certificar de que não havia sido avistado, depois para
garantir que o caminho continuava livre.
Repetiu o processo até chegar à sebe para trás da qual
se atirou. A linha de vegetação aparada era baixa e
apenas fornecia uma protecção horizontal, pelo que
teria de se deitar. Permaneceu alguns instantes
estendido no relvado a recuperar o fôlego. Depois
ergueu a cabeça e voltou a examinar o terreno em volta
para determinar se poderia ou não concluir de imediato
a terceira etapa. Avistou nesse instante dois homens de
bata a passarem à conversa pelo jardim, a uns meros
quarenta metros de distância, e encolheu a cabeça.
Depois de as vozes se afastarem, voltou a inspeccionar
o perímetro. O caminho tinha ficado livre. Levantou-se
de repente e completou a última etapa, que terminou
encostado a uma parede. Chegara ao edifício. Abrigou-se
num canto discreto e consultou de novo o pager. O sinal
parecia vir do outro lado.
“Está quase.”
Contornou a grande estrutura, desta vez evitando os
movimentos rápidos. Esforçou-se por caminhar devagar e
manter-se na sombra, os olhos a espreitarem a relva
como se procurasse ervas daninhas. Quem o avistasse de
longe não acharia nada suspeito; limitar-se-ia a pensar
que era um jardineiro e deixá-lo-ia em paz.
Avançou assim com grande discrição, movendo-se
casualmente de forma a dar a impressão de que estava à
vontade e se integrava com naturalidade naquele
cenário. Aqui e ali ia lançando olhares disfarçados ao
pager, orientando assim a sua progressão. O sinal foi
crescendo de intensidade até um ponto em que a sua
força começou a diminuir. Sicarius parou e voltou para
trás, procurando identificar a posição onde o sinal era
mais enérgico.
“É aqui.”
Tratava-se de um ponto do exterior do edifício onde não
havia janelas, apenas uma grande parede de cimento.
Calculou a distância em função da intensidade do sinal
e concluiu que, em linha recta, o mestre estaria a uns
meros dez metros de distância.
Dez metros.
Olhou em redor e reconheceu o ponto mais próximo de
entrada no edifício. Tratava-se de uma porta de serviço
situada a uns setenta metros de distância. Era por ali
que entraria se o mestre se mantivesse no local onde se
encontrava nesse momento e enviasse os dois bips
combinados.
“Ei! Tu!”
Sicarius estacou, quase horrorizado, os movimentos
congelados, o coração a disparar.
Havia sido avistado.
LVIII
“Quem viu o filme Parque jurássico?”
Quando o professor Hammans fez a pergunta foi com a
perfeita consciência de que ela enquadraria a pesquisa
em termos compreensíveis a leigos e adequados para
descrever as investigações sob a sua responsabilidade
no Centro de Pesquisa Molecular Avançada.
Os dois polícias ergueram de imediato as mãos em
resposta à pergunta, mas Tomás não alinhou no jogo.
“Não estamos a falar de ficção científica”, disse o
português, quase irritado com o que lhe parecia uma
forma demasiado leviana de tratar um problema daquela
natureza. “Estamos a lidar com ciência e com a
realidade.”
“Mas, meu caro professor”, argumentou o anfitrião, “o
Parque Jurássico aborda uma questão científica real.”
O historiador cruzou os braços e esboçou uma expressão
céptica, a cabeça inclinada de lado, como um adulto a
mostrar a uma criança que não estava a engolir as
patranhas que ela lhe contava.
“Clonar dinossauros?”, questionou. “Chama a isso uma
questão científica real?”
O alemão hesitou.
“Bem, não diria clonar dinossauros”, admitiu. “Mas
sabia que desde a década de 1990 os cientistas andam a
tentar extrair ADN de dinossauro?”
“Isso é possível?”
“Há quem ache que sim”, considerou o cientista. “Embora
primeiro seja necessário contornar o problema da
fossilização. A pesquisa tem incidido no ADN que se
encontra nos ossos dos dinossauros, mas, como sabe, a
fossilização implica que os componentes orgânicos
naturais dos ossos sejam substituídos por materiais
inorgânicos, como cálcio e silício. Isso significa que
quimicamente já não estamos a lidar com a mesma coisa,
não é verdade? Como a maior parte dos ossos dos
dinossauros está fossilizada até ao núcleo, o ADN
original já foi dissolvido. A nossa esperança é
identificar ossos cujo núcleo não esteja fossilizado.
Uma equipa de uma universidade do Utah chegou a
anunciar, em 1994, ter encontrado ADN nos ossos de um
dinossauro com oitenta milhões de anos, e no ano
seguinte surgiram outros dois estudos a revelar ter
sido detectado ADN extraído de um ovo do cretácico.
Infelizmente acabou por se concluir que o ADN
descoberto não era de dinossauro, mas ADN moderno que
contaminara
as
amostras.”
Esboçou
uma
expressão
resignada. “Talvez um dia tenhamos sorte.”
Tomás lançou-lhe um olhar corrosivo, como quem diz que
aquela resposta não o surpreendia.
“Ou seja, não é possível clonar dinossauros.”
Embora a contragosto, o professor Hammans acabou por
balançar afirmativamente a cabeça.
“Assim é, de facto”, admitiu.
“Já lidei com esse problema durante umas peritagens que
acompanhei para a Fundação Gulbenkian”, revelou o
historiador. “Disseram-me que o ADN vai perdendo
qualidade com a passagem do tempo.”
“Não é só isso”, explicou o cientista. “O problema da
conservação do ADN está igualmente relacionado com a
temperatura e a humidade existentes no local onde se
conserva o espécime de onde é extraída a amostra. O
material genético apresenta frequentemente rupturas e
tem hiatos, com pedaços de ADN a desaparecerem da
sequência. A própria estrutura química do ADN pode
sofrer alterações.”
“Então qual é o ambiente mais adequado para encontrar
material genético de qualidade?”
“O ambiente dos seres vivos, claro. As células vivas
estão forçosamente intactas, não é verdade? Tratando-se
de tecido já morto, a situação é diferente. Nesse caso
podemos estabelecer como regra que, quanto mais frio e
seco é o ambiente em redor da amostra com que
trabalhamos, melhor a qualidade de conservação do ADN.
Já os ambientes quentes e húmidos são, receio bem,
muito destrutivos.”
“Tem alguma ideia de quais os parâmetros de conservação
do ADN nos tecidos mortos?”
“Eu diria que, sendo realista, podemos contar com mais
de cem mil anos em situação de permafrost e oitenta mil
anos nos espécimes preservados em condições de frio no
interior de cavernas e no alto das montanhas. Quando as
amostras estão guardadas em locais quentes... enfim, a
situação é muito diferente. A esperança de conservação
no calor reduz-se a quinze mil anos e, com muito calor,
a uns meros cinco mil anos.”
Tomás ergueu a mão esquerda e acenou, como a despedir-
-se.
“Ou seja, adeus dinossauros!”
O cientista não se deu todavia por vencido e indicou o
jarro com o embrião conservado em formol.
“De qualquer modo não estamos exactamente a falar de
dinossauros, pois não? O que tenho ali é um embrião de
Neandertal.”
“E então?”
“Meu caro, temos estado a trabalhar com ossos de
Neandertal com trinta mil anos e preservados em
ambientes frios. Essas condições estão perfeitamente
dentro dos nossos parâmetros de conservação adequada de
material genético.”
“Mas basta encontrar umas partes de ADN para clonar um
homem de Neandertal?”
“Claro que apenas algumas partes não chegam”,
reconheceu o professor Hammans. “Precisamos do genoma
inteiro da espécie. Mas não se esqueça de que cada
célula no corpo de um ser vivo, planta ou animal,
contém todo o seu código genético, incluindo o genoma.
Portanto, o que precisamos é de encontrar um núcleo
completo ou, não estando completo, que tenha um genoma
que seja reconstituível. Para lá dos ossos, as buscas
incidem também em dentes. Além de ter a vantagem de
estar selada, a polpa dentária degrada-se lentamente,
preservando o ADN. E há ainda que considerar, claro, o
material genético nos cabelos.”
O historiador acocorou-se diante do jarro com o embrião
e estudou-o de perto; parecia uma amálgama de carne.
“E no caso do Neandertal?”
“Como vê, estamos a trabalhar nele. Não tivemos ainda
sucesso, como mostra o facto de esse embrião não ter
sobrevivido, mas estou convencido de que é uma questão
de tempo.” O cientista aproximou-se também e inclinou-
-se para o jarro, pousando a mão no vidro como se o
quisesse acariciar. “Este embrião vem de um espécime de
Neandertal descoberto em Mezmaiskaya, no Cáucaso russo.
O ADN deste espécime foi parcialmente sequenciado, mas
a experiência não resultou. Os nossos novos esforços
estão agora centrados em espécimes encontrados na gruta
Vindija, na Croácia, recorrendo às sequências do
Projecto Genoma Neandertal.”
Tomás reergueu-se.
“Mas o Neandertal não era um primata? Se bem me lembro,
o professor disse há pouco que existem problemas
técnicos relacionados com a clonagem de primatas que
não foram resolvidos...”
O alemão ergueu o dedo.
“Ainda”, sublinhou. “Não foram resolvidos ainda. Como
já lhe expliquei, estamos a trabalhar nesses problemas.
A nossa ideia é desenvolver pesquisas paralelas sobre a
clonagem de primatas para preparar o trabalho seguinte,
que é a clonagem de seres humanos. Mas é evidente que
só passaremos a essa fase quando estiverem solucionados
os problemas técnicos relacionados com as proteínas que
ordenam os cromossomas no momento da separação dos
núcleos e os problemas com os telómeros que afectam a
esperança e a qualidade de vida dos animais clonados.”
Tomás cruzou os braços e lançou um olhar perscrutador
na direcção do cientista.
“Ou seja, o objectivo final do trabalho neste Centro de
Pesquisa Molecular Avançada é clonar seres humanos.”
O professor Hammans quase respondeu, mas hesitou e,
inseguro quanto ao que dizer, desviou o olhar para o
seu
superior
hierárquico,
como
se
solicitasse
instruções.
“Também”,
disse
Arpad
Arkan,
encarregando-se
da
resposta a esta questão. “Também.”
“Também, como?”, admirou-se o historiador. “Não é isso
o que vocês estão a tentar fazer aqui?”
“Sem dúvida!”, confirmou o presidente da fundação.
“Clonar seres humanos é um objectivo da nossa
instituição.”
“Um objectivo? Que quer dizer exactamente com isso? Há
outros objectivos?”
“Claro que há!” Abriu os braços, exibindo todo o espaço
em redor. “A nossa instituição é muito grande e temos
vários projectos em curso ao mesmo tempo. O maior é
mais importante do que a simples clonagem de seres
humanos.”
Tomás ficou embasbacado.
“Que projecto pode ser maior do que esse?”
Arkan sorriu e começou a caminhar em direcção à porta
da sala, fazendo um gesto ao grupo para o acompanhar.
“Venham daí”, convidou-os. “Vou levar-vos ao coração do
Centro de Pesquisa Molecular Avançada.”
Os três visitantes entreolharam-se, mas a um novo sinal
acabaram por seguir o anfitrião. O professor Hammans
despediu-se deles, alegando ter trabalho a fazer num
laboratório, e o grupo internou-se no edifício.
Percorreram longos corredores, passando por mais
laboratórios. Em dois deles havia pessoas a trabalhar
com máscaras e em escafandros brancos, como se
estivessem a operar no espaço sideral ou na Lua.
“É para evitar a contaminação”, explicou Arkan perante
o olhar inquisitivo dos seus acompanhantes. “Estes
laboratórios lidam com espécimes antigos num ambiente
totalmente esterilizado.”
Ao longo do percurso apenas viram a luz do dia quando
circundaram um pátio interior onde estavam instaladas
mesinhas ao ar livre. Viam-se alguns técnicos de bata
branca a beber café ou refrigerantes e a comer saladas
ou sanduíches e a conversar em tom ameno. Mas depressa
o caminho os conduziu de volta à luz artificial e ao
labirinto de corredores que caracterizava o interior do
edifício.
Desembocaram num pequeno átrio voltado para uma parede
cilíndrica de betão. Havia uma porta blindada ao
centro, com uma grande janela circular no meio, como a
de uma nave espacial, e um guarda armado com uma Uzi a
proteger a entrada.
“Chegámos ao coração da Arca”, anunciou Arkan com
orgulho. “Na verdade, é mais do que o coração do
edifício.” Pousou a mão na porta blindada. “O que está
para lá desta porta é o coração de todo este complexo.
Trata-se, se quiserem, da raison d'être do projecto que
alimenta o Centro de Pesquisa Molecular Avançada.”
“Está a falar de quê?”
O anfitrião arqueou as suas grossas sobrancelhas e
estreitou os olhos com ar sigiloso, misterioso até.
“Do nosso segredo mais bem guardado.”
LIX
Sicarius rodou lentamente o corpo e olhou para trás,
consciente de que tinha sido avistado. Viu um homem de
bata branca junto à entrada de serviço a olhar na sua
direcção; fora decerto ele que o interpelara.
“Chamou-me?”
“Sim. Preciso que me ajudes a transportar um saco de
fertilizantes para o Éden.”
O intruso ficou momentaneamente sem saber o que fazer.
Precisava de acompanhar o posicionamento do mestre no
marcador, para não lhe perder a pista, mas não podia
dar nas vistas. Se recusasse a ajuda que lhe era
solicitada, como reagiria o homem que o interpelara?
Por outro lado, se lhe fosse dar o auxílio que lhe era
pedido, a coisa poderia correr mal. Quem lhe garantia
que o desconhecido não começaria a fazer perguntas
incómodas que acabassem por desmascará-lo? Sentiu-se
dividido por alguns instantes, sem saber como proceder,
mas o seu treino para lidar com imprevistos levou a
melhor e ele acabou por se decidir.
“Onde está o saco?”
“No armazém de jardinagem.”
“Dê-me um quarto de hora e eu já lá apareço, está bem?
Estou só a procurar um rato que anda aqui a dar cabo
dos canteiros!...”
O homem ficou um momento paralisado, como se avaliasse
a resposta. Sicarius sentiu o coração bater com força e
quase conteve a respiração. Será que ele ia engolir a
desculpa? O desconhecido acabou por assentir e abrir a
porta de serviço para se afastar.
“Está bem”, disse ele. “Mas não demores muito. O Ehud
está furioso porque alguém se esqueceu de lhe levar os
fertilizantes!”
O homem desapareceu no interior do edifício e Sicarius
respirou fundo. Olhou para o pager e viu o sinal que
piscava no visor a movimentar-se.
“Que raio!...”
O intruso hesitou, sem saber para onde dirigir-se. Para
a esquerda? Para a direita? Esforçando-se por pensar
com clareza, pousou os olhos no ecrã e aguardou que a
nova situação se definisse. O indicador de potência
mostrou-lhe que o sinal começara a enfraquecer, indício
seguro de que o seu marcador secreto se deslocava e
começara a afastar-se.
“Para onde vais, mestre?”, murmurou com ansiedade, os
olhos cravados no pager. “Para onde?”
Deu uns passos para a esquerda e verificou que o sinal
se tornou ainda mais fraco. Inverteu a direcção e
voltou para a direita em passo acelerado. A intensidade
do sinal aumentou de imediato, o que o tranquilizou. O
marcador estava a caminhar para a direita. O intruso
prosseguiu assim o percurso na mesma direcção,
progredindo
paralelamente
à
parede
exterior
do
edifício, a atenção sempre fixa na força do sinal que
piscava no ecrã do pager.
O sinal foi ganhando intensidade até que atingiu um
valor máximo e depois começou a diminuir. O intruso deu
meia volta e procurou o ponto onde ele era mais forte.
Quando o encontrou, fez novo cálculo. O marcador
situava-se nesse instante a quinze metros de distância
em linha recta para o interior do edifício.
Sicarius olhou em redor, buscando o acesso mais próximo
para entrar quando recebesse a ordem. Viu uma abertura
no relvado, a uns meros dez metros de distância, e foi
inspeccionar o local. Havia ali umas escadas a descer
para a base do edifício e que desembocavam numa saída
de emergência.
Perfeito.
O intruso acocorou-se, fingindo que era um jardineiro a
apanhar ervas daninhas, e pousou o pager sobre a relva,
consciente de que a qualquer momento teria de passar à
acção.
O bip do mestre é que lhe daria a ordem.
LX
A porta blindada que barrava o acesso à grande câmara
metálica tinha aspecto de ser incrivelmente compacta. O
grupo aproximou-se dela e Tomás apercebeu-se de que,
debaixo da janela circular, semelhante às escotilhas
dos navios, a porta ostentava uma placa prateada com
caracteres hebraicos.
antfTpn un?
t h: - v 1
Impelido pela curiosidade, o historiador leu a
expressão gravada na placa e arregalou os olhos. Como
um autómato, pronunciou as duas palavras quase sílaba a
sílaba.
“Kodesh Hakodashim.”
Valentina notou o olhar siderado do português e voltou-
-se para Arnie Grossman. O polícia israelita parecia
igualmente surpreendido pela informação que lia na
placa da porta.
“O que é?”, quis saber, subitamente inquieta. “O que
quer isso dizer?”
Os dois estavam demasiado surpreendidos para
responderem de imediato, pelo que foi Arkan quem, com o
orgulho desenhado no rosto, lhe traduziu a expressão
hebraica. “Santo dos santos”, disse com pompa. “O
coração do Templo.”
“Qual templo? O de Jerusalém?”
“Claro. Haverá outro?”
A italiana sacudiu a cabeça.
“Não percebo”, confessou. “O Templo não é em Jerusalém?
Em que sentido é isto o santo dos santos?”
Foi Tomás, que entretanto recuperara da surpresa de ver
ali aquela designação, quem lhe respondeu.
“O Kodesh Hakodashim, ou santo dos santos, era uma
câmara situada na parte oeste do Templo de Salomão,
perto do actual Muro das Lamentações”, explicou o
historiador. “Daí a importância desse muro para os
judeus. O santo dos santos estava protegido por um véu
e guardava a arca da aliança, sendo este o local onde a
presença de Deus se sentia com mais força na Terra. O
Templo de Salomão foi mais tarde destruído e a arca da
aliança desapareceu. Quando o segundo Templo foi
construído por Herodes, após o exílio dos judeus na
Babilónia, colocou-se no santo dos santos uma pequena
elevação no lugar que a arca tinha ocupado, para
simbolizar a sua presença. No entanto, os judeus
sustentavam que Deus continuava fortemente presente na
câmara, pelo que ela se manteve sagrada.”
Valentina seguia a explicação com os olhos presos à
porta blindada.
“Estou a entender”, disse. “Essa expressão está aí num
sentido metafórico. Quer dizer que a coisa mais
importante deste complexo é guardada ali dentro.”
“Também”, anuiu Arkan, “mas não só.”
“Que quer dizer com isso?”
O presidente da fundação assentou as mãos nas ancas e
contemplou a janela redonda a meio da porta.
“Esta porta é o véu”, disse, com uma expressão
subitamente solene. “Para lá dela está o Kodesh
Hakodashim.” Fez uma curta pausa, para obter efeito
dramático. “No sentido literal da palavra.”
A declaração fez Tomás arrebitar o sobrolho e, logo a
seguir, revirar os olhos, como se não tivesse paciência
para ouvir disparates.
“Não brinque com ela”, observou. “No sentido literal,
isso quereria dizer que Deus está a deambular para lá
dessa porta. Ora uma coisa dessas não é verdade, como é
evidente.”
“Estou a dizer-lhe que a câmara diante de nós é o
Kodesh Hakodashim”, repetiu Arkan, sempre com ar
grandiloquente.
“No
sentido
literal.
Não
tenha
dúvidas.”
O historiador riu-se e apontou para a janelinha
circular. “Deus está ali dentro?” O tom da pergunta era
jocoso. “E o Pai Natal? Também?”
O anfitrião não respondeu. Fez sinal ao guarda e de
imediato o homem tirou uma chave do bolso e destrancou
uma porta. O grupo olhou para lá dela e viu um
balneário com chuveiros.
“Toda a gente para o banho!”
A ordem colheu os visitantes de surpresa.
“Para quê? O que se passa?”
O presidente da fundação apontou para a porta blindada.
“Faz parte do protocolo para poder aceder ao santo dos
santos”, justificou. “Qualquer pessoa que entre lá tem
de estar totalmente esterilizada, de modo a não
contaminar a câmara.”
A primeira a tomar banho foi Valentina, seguindo-se os
três homens. Tomás teve de ir para baixo de um chuveiro
e foi ensaboado da cabeça aos pés com uma solução
especial. No final tinha o guarda a esperá-lo com uma
toalha branca, com que se cobriu.
Quando regressou à antecâmara, viu Arkan abrir um
armário corrido ao longo da parede. O interior estava
repleto de grandes peças de roupa branca pendurada em
cabides, com capuzes cobertos por visores e selados no
interior de um grande plástico transparente. O
anfitrião retirou quatro dessas peças, rompeu o
plástico
protector
e
entregou
três
aos
seus
acompanhantes.
“Vistam isso!”
Tomás desdobrou a peça que lhe coube e analisou-a de
uma ponta à outra. Tratava-se de um escafandro como os
que tinha visto serem usados em alguns laboratórios do
edifício.
“O que se passa?”, gracejou. “Estamos no Carnaval ou
que?
“Vista!”, insistiu o anfitrião, indicando a porta
blindada com um movimento da cabeça. “Também faz parte
do protocolo para entrar lá dentro.”
O grupo obedeceu e cada um foi para um vestiário
individual. O historiador sentiu maiores dificuldades
em meter-se no escafandro devido à mão direita
engessada, que não assentou correctamente na luva,
tendo acabado por ficar como um chumaço na extremidade
do braço.
Terminaram de se vestir e voltaram para a antecâmara,
onde o guarda os ajudou a selar os visores.
Experimentando uma leve sensação de claustrofobia,
Tomás sentia-se como um astronauta; respirava por um
circuito alimentado por duas botijas fixas nas costas,
semelhantes às dos mergulhadores.
Depois de se certificar de que estavam todos
preparados, Arkan aproximou-se da entrada e abriu uma
tampa, revelando uma cavidade no interior da porta
metálica. Mesmo atrás dele, o português espreitou-lhe
sobre o ombro e percebeu que havia um teclado pregado à
base da cavidade, cada tecla com uma letra ou um
número.
“O que é isso?”
“É para inserir o segredo que destranca a porta”,
retorquiu o presidente da fundação. “Não se esqueça de
que vamos entrar no santo dos santos. Isso significa
que estaremos na presença de Deus. Um sítio destes tem
de ser adequadamente protegido, não lhe parece?”
A forma como Arkan falava deixava transparecer a
convicção de que acreditava literalmente em tudo aquilo
que dizia, o que baralhou Tomás. O historiador começou
a perguntar a si mesmo se haveria algum fundamento real
para tanta certeza. Seria aquela câmara realmente o
santo dos santos? Sentir-se-ia ali fisicamente a
presença de Deus? Como era tal coisa possível? A
hipótese mais provável parecia-lhe ser que o seu
anfitrião tinha enlouquecido. Estava decerto delirante
e sofria de ilusões de grandeza. Porém, se era esse o
caso, tratava-se de uma alucinação cara e que envolvia
grandes recursos.
O historiador olhou em redor, quase como se fosse um
inspector das Finanças. Aquelas instalações, mais o
equipamento, os cientistas e todo o pessoal que nelas
trabalhava,
tinham
ar
de
ser
realmente
muito
dispendiosas. Com certeza que, se tudo aquilo não
passasse de um devaneio louco de um alucinado, ninguém
teria seguido Arkan. No entanto, ali estava aquele
enorme centro de investigação a operar. Tinha, pois, de
ser coisa genuína. Ora se não se tratava de uma
loucura, de que se tratava afinal? Poderia Arkan estar
mesmo a falar a sério?
Com a curiosidade a ferver-lhe nas veias, o português
espreitou pela janela redonda para tentar perceber o
que se encontrava no interior da câmara. Notou nesse
instante que havia uma frase colada ao vidro em
caracteres medievais góticos de difícil leitura.
llBcr alíen 6ípfefn íst Tluf), ín aíTen tüípfefn
spürest §u Raum eínen íòauclj;
Me t)õgefeín scfjwíççen ím TÜafôe.
TÜarte nur, 6afôe. Xufiest 5u aucfj.
Esforçou-se por decifrar aquelas letras difíceis e
entender o que estava ali escrito; apercebeu-se de que
se tratava de um verso em alemão e, após destrinçar as
primeiras palavras, tomou consciência de que aquele
texto lhe era familiar.
“‘Por todos estes montes reina a paz”’, recitou ele com
súbito deleite, “‘em todas estas frondes a custo
sentirás sequer a brisa leve; em todo o bosque não
ouves nem uma ave. Ora espera, suave. Paz vais ter em
breve.’”
Arkan voltou a cabeça para trás e sorriu.
“Bonito, não acha?”, perguntou. “É o motto da minha
fundação.”
Inebriado com a musicalidade das palavras recitadas em
alemão, Tomás balançou afirmativamente a cabeça.
“É realmente um belo poema”, concordou. “Mas o que está
ele aqui a fazer?”
O seu anfitrião voltou-se para a frente e inseriu a mão
enluvada na cavidade onde se encontrava o teclado.
“Tem uma relação com o segredo que destranca esta
porta”, confessou. “Mandei escrever o poema nesse vidro
para nunca o esquecer.”
Girou sobre si mesmo, de modo a ocultar o teclado da
vista dos visitantes, e pôs-se a digitar o segredo. A
visão estava tapada pelas costas de Arkan, mas Tomás
escutou o som da palavra de código a ser introduzida; é
que, ao ser premida, cada tecla emitia um tique
electrónico.
Tique-tique-tique-tique-tique-tique.
O historiador contou seis tiques consecutivos e, a
mente de criptanalista instintivamente a funcionar, de
imediato percebeu o segredo. Arkan dissera que a
palavra de código estava relacionada com o motto da
fundação? E os seis tiques emitidos pelo teclado
mostravam tratar-se de uma palavra com seis letras? A
resposta era de uma simplicidade infantil.
Goethe.
O segredo que permitia destrancar a porta blindada era
o nome do autor do poema que servia de inspiração ao
trabalho da Fundação Arkan. G-o-e-t-h-e. Seis letras.
O mecanismo da fechadura levou um breve instante a
processar a palavra de código inserida por Arkan. Em
menos de um segundo, a porta emitiu um som metálico
final e destrancou-se com um zumbido suave.
Bip.
LXI
Bip.
Embora suave, a mensagem no pager soou na cabeça de
Sicarius com a força explosiva de um gongo. Como se um
programa
silencioso
tivesse
sido
activado
nesse
instante no seu cérebro, o assaltante pegou no
dispositivo e verificou a posição e a força do sinal
emitido pelo marcador. Permanecia imóvel a quinze
metros de distância em linha recta para o interior do
edifício. E, no entanto, acabara de lhe enviar a
mensagem de activação da fase final da operação.
“Dois minutos, mestre”, sussurrou Sicarius. “Estarei aí
em dois minutos!”
Com o coração aos saltos e o corpo vitalizado pela
injecção de adrenalina que aquele bip lhe despejara no
sangue, dirigiu-se em passos rápidos à abertura cavada
no relvado e desceu as escadas até à porta de
emergência. Cruzou a entrada discreta e entrou no
edifício
por
um
corredor
estreito.
A
passagem
apresentava-se iluminada por luzes brancas e difusas,
como as dos hospitais, e ouvia-se no ar um zumbido
indefinido. A pontuar aquela zoada de fundo estavam
pancadas violentas e ritmadas, que ao fim de alguns
instantes o intruso percebeu serem as batidas do seu
próprio coração.
Entrara na fase crucial da missão. Havia trabalhado
muito para chegar até ali e correra demasiados riscos
para agora deitar tudo a perder. Não podia permitir que
a noção da importância do momento e a adrenalina que
lhe circulava no sangue o levassem a deixar escapar o
domínio das emoções. Deitou a mão à cintura para sentir
a presença da sica. O toque na superfície fria da adaga
sagrada lembrou-lhe a protecção divina que a lâmina lhe
conferia e, como um sedativo, serenou-o.
“Deus o quer!”
O treino tomou nesse instante controlo do corpo. Tal
como no Vaticano, em Dublin, em Plovdiv e no quarto do
American Colony, Sicarius deixou a partir desse momento
de ser um homem e tornou-se um autómato, uma máquina
programada para cumprir a sua missão, fosse qual fosse
o preço. Deslizou com agilidade ao longo do corredor,
os
sentidos
despertos,
a
atenção
centrada
nos
pormenores, os olhos vidrados pela obsessão de concluir
a operação.
Chegou a um corredor largo e deteve-se. Detectou uma
câmara de vigilância no alto da parede, mesmo junto ao
tecto, e hesitou. Verificou a posição do sinal no ecrã
do pager. O seu marcador estava à direita. Espreitou
naquela direcção e viu o novo corredor prolongar-se.
Examinou o espaço em detalhe e vislumbrou um diagrama
do edifício pregado à parede.
Respirou fundo, já em absoluto domínio das emoções, e
começou a caminhar com descontracção. Entrou no
corredor em passo normal, como se fizesse parte da
equipa que operava no complexo e se movesse por ali
perfeitamente à vontade, e dirigiu-se ao quadro para o
consultar.
Totalmente
exposto
ao
olhar
frio
e
silencioso da câmara de vigilância, aproximou-se da
parede onde se encontrava afixado o quadro. A planta
assinalava o nome do edifício, Arca, e indicava os
diversos
percursos,
laboratórios,
compartimentos,
armazéns e câmaras existentes dentro da estrutura, e
ainda a posição onde ele se situava.
Estudou o pager e viu que o sinal começara a
enfraquecer, indício de que o seu marcador reentrara em
movimento. Calculou a distância do marcador em linha
recta e comparou-a com as posições desenhadas no
diagrama do quadro, para perceber para onde devia
dirigir-se e qual o trajecto a tomar.
Identificou a posição do marcador na planta do edifício
e leu o nome do compartimento onde ele se encontrava.
“Kodesh Hakodashim”, murmurou. “O santo dos santos.”
Vacilou, surpreendido com a designação, e olhou em
redor com uma expressão interrogadora. “O que é isto? O
Templo?”
Mas não havia tempo a perder com charadas; para mais,
não era de certeza nessa altura que obteria respostas.
Voltou a concentrar-se na missão. Comparou a posição do
santo dos santos com o ponto onde se encontrava nesse
momento e percebeu, com a ponta do dedo a deslizar pelo
itinerário estabelecido no diagrama, que lhe bastaria
percorrer o corredor e virar na segunda porta à
direita.
Era lá que estava o alvo.
Uma vez o percurso delineado, partiu de imediato.
Percorreu o corredor em passos largos e quando chegou à
segunda porta à direita parou. Consultou mais uma vez o
pager para se certificar de que se posicionara no sítio
certo. O sinal mostrou-se mais forte do que nunca e
Sicarius calculou que o marcador se encontrava a três
ou quatro metros de distância em linha recta. Era ali o
destino. Respirou fundo e avançou.
Abriu a porta com cuidado e ouviu vozes. Hesitou.
Deveria entrar ou seria melhor aguardar? A verdade é
que o mestre o instruíra para só passar ao ataque
depois de receber a segunda mensagem. A primeira, o bip
que acabara de receber no pager, não passara de uma
ordem para se pôr em posição, coisa que nesse momento
fazia. Porém, para poder cumprir adequadamente esta
primeira ordem precisava de perceber o que o esperava
do outro lado. Deveria arriscar?
Com mil precauções, meteu a cabeça e espreitou para o
interior. Do lado de lá estava uma antecâmara com uma
parede cilíndrica de betão à frente e uma porta de aço
maciço aberta no meio. Avistou algumas pessoas de
costas para ele e vestidas com escafandros brancos a
franquearem a passagem e, embora não lhe visse o rosto
bendito, percebeu que uma delas era o mestre.
A porta blindada fechou-se atrás do grupo com um
zumbido ténue, voltando para o exterior uma placa
prateada que assinalava Kodesh Hakodashim em caracteres
hebraicos.
Se
alguma
dúvida
lhe
restasse,
ela
dissipara-se nesse preciso momento.
Era ali.
LXII
A porta blindada fechara-se e os três visitantes
olhavam em redor, num misto de curiosidade e cautela,
manifestando um enorme respeito pelo lugar onde se
encontravam. Tinham entrado numa vasta câmara sem
janelas
e
com
vários
corredores,
formados
por
equipamento sofisticado e mesas de trabalho. As paredes
estavam cobertas por uma sequência de portas de um
branco liso, como as dos frigoríficos. O ar tinha uma
pressão ligeiramente superior à normal, para impedir a
invasão
de
microrganismos