israelita estudou os seus dois interlocutores com olhos

argutos, como se os dissecasse.


“Tudo isso já eu sei”, acabou por dizer, no tom de quem

insinua que a ele não o enganavam facilmente. “Mas,

meus amigos, não nasci ontem. Vocês não me estão a

contar tudo.”


“Porque diz isso?”


Arnie Grossman suspirou, como se se enchesse de

paciência. “O facto de as três vítimas terem estado em

simultâneo em Israel constitui sem dúvida uma pista

interessante”, admitiu. “Mas não confere certezas sobre

coisa alguma.


É apenas um indício, uma coisa circunstancial.”

Inclinou-se

para

a

frente,

cravando

os

olhos

perscrutadores na italiana. “Decerto que algo mais vos

deu a certeza de que a chave dessa série de homicídios

se encontra aqui.”


Valentina esboçou um esgar todo ele feito de inocência

angelical.


“Não sei do que está a falar. Limitamo-nos a seguir uma

pista. As três vítimas estiveram ao mesmo tempo aqui em

Israel. Trata-se de uma coincidência perturbadora e que

requer investigação. Queremos saber se se encontraram e

onde. Apenas isso.”


O enorme polícia israelita abanou a cabeça.


“Mau, não nos estamos a entender!”, declarou em voz

baixa, num leve tom ameaçador. “Se querem a nossa


ajuda, têm de jogar limpo.” Bateu com o indicador na

mesinha que os separava. “Ou me contam tudo o que

sabem, e contam agora com todas as vírgulas, ou estou-

me nas tintas para a vossa investigação.” Cruzou os

braços, na pose de quem se põe à espera. “Escolham.”


Valentina cruzou o olhar com Tomás. O historiador

encolheu os ombros, indiferente; não sabia qual a

utilidade daqueles joguinhos entre polícias, nem queria

saber. Ela é que era a profissional, ela é que sabia o

que seria ou não adequado para revelar às outras

polícias, ela é que teria de tomar a decisão.


A inspectora da Polizia Giudiziaria percebeu a

mensagem. Respirou fundo e encarou o seu homólogo

israelita.


“Está bem”, cedeu. “Existe de facto um elemento

adicional que criou em nós a firme convicção de que a

solução para este mistério se encontra aqui em Israel.”


Grossman tirou o seu bloco de notas e a caneta e

preparou-se para começar a escrever.


“Sou todo ouvidos.”


“As nossas três vítimas morreram degoladas.”


“Eu reparei. O que quer dizer que estamos perante

assassínios rituais.”


“Exactamente. Acontece que temos testemunhas oculares

do segundo e do terceiro crime. Em ambos os casos, elas

disseram-nos que o assassino soltou um grito de

angústia, como se lamentasse as mortes, no instante em

que terminou as execuções.”


A informação levou o polícia a suspender as anotações e

a erguer o olhar, intrigado e desconcertado.


“Ele lamentou as mortes?”


“Exacto. Essa observação chamou a atenção do professor

Noronha, a quem pedi assistência no caso.”


Valentina voltou-se para Tomás, como se o convidasse a

retomar a palavra onde ela a deixara.


“De facto, esses dois testemunhos pareceram-me reminis-

centes de algo com que me cruzei quando estudei o

período entre a morte de Jesus, por volta do ano 30, e

a destruição do Templo de Jerusalém pelos Romanos, no

ano 70.” Apontou para Grossman, que voltara a tomar

notas. “Como o senhor observou há pouco, os homicídios

por degolação resultam em geral de práticas rituais. A

inspectora Ferro já me tinha falado nisso na noite do

primeiro homicídio no Vaticano, e até observou que a

vítima foi morta como um cordeiro. Mas na altura não

prestei grande atenção. Não me pareceu relevante.

Quando, porém, me apercebi de que o criminoso soltava

lamentos terríveis depois de cada execução, fez-se luz

na minha mente.”


“ Yehi or!”, murmurou o polícia quase automaticamente,

enunciando em hebraico a célebre expressão bíblica.

“Faça-se luz!”


“Foi o que me sucedeu. Yehi or! Como se tivesse sido

atingido por um relâmpago, lembrei-me nesse instante

das práticas de uma seita de assassinos judeus que

existiu aqui em Israel nas décadas que se seguiram à

crucificação de Jesus, e que...”


“Não me vai falar nos zelotas, pois não?”, atalhou

Grossman, com uma expressão desconfiada.


Tomás fez uma pausa e arregalou os olhos, como uma

criança que tivesse sido apanhada em flagrante com a

mão afundada no jarro dos rebuçados.


“Por acaso vou”, admitiu por fim. “De facto, lembrei-me

dos zelotas, que na altura tinham uma facção extremista

conhecida por sicarii.'”


O israelita corpulento fez um gesto de enfado.


“Isso foi há dois mil anos! Os zelotas... ou sicarii,

se prefere, já não existem! Vocês andam a caçar

fantasmas, que diabo!”


“Eu sei que os sicarii já não existem”, reconheceu o

historiador. “No entanto, as práticas de assassínios

rituais são as mesmas! Os sicarii esfaqueavam os

romanos em público com as suas sicae, as adagas

sagradas que escondiam por baixo dos capotes, e logo a

seguir às execuções punham-se a bradar aos céus em

grandes lamentos, como se estivessem consternados,

fingindo assim que nada tinham a ver com o sucedido, e

depois desapareciam entre a multidão e ninguém os

apanhava.”


“Isso são histórias antigas!”


“Pode ser que sim. Todavia, a prática é a mesma. Além

disso, duas das nossas vítimas são historiadores que

pesquisavam manuscritos do Novo Testamento, que abordam

justamente acontecimentos ocorridos na mesma zona do

globo e no mesmo período histórico. Agora some as

degolações e os lamentos rituais típicos dos sicarii ao

facto de as três vítimas terem estado há três meses em

Israel ao mesmo tempo. São demasiadas coincidências,

não lhe parece?”


Arnie Grossman ponderou a questão por momentos, como se

avaliasse a pertinência daquele raciocínio.


“Tem razão”, acabou por condescender. “Parecem de facto

demasiadas coincidências!...”


“Foi o que achámos”, disse o historiador, fazendo um

gesto largo a indicar o bar do American Colony. “De

modo que aqui estamos nós.”


Valentina, que se tinha mantido calada para deixar

Tomás desenvolver o raciocínio que os conduzira aos

sicarii, pareceu ganhar vida e encarou o seu homólogo

israelita.


“Já lhe expusemos todo o nosso raciocínio”, lembrou.

“Espero contar agora com a sua colaboração...”


“Com certeza”, assegurou Grossman enquanto recuava

algumas páginas no seu bloco de notas. “Tenho aqui a

informação que vocês me solicitaram no pedido que nos

remeteram por escrito. Não sei se vai ajudar, mas

espero que sim.”


Foi a vez de Valentina pegar na caneta e preparar-se

para registar os dados que ia receber.


“Então diga lá.”


“As suas três vítimas ficaram alojadas em hotéis

diferentes”, indicou. “A professora Escalona instalou-

se no King David, talvez o hotel mais famoso de

Jerusalém.”


“Típico dela”, observou Tomás com um sorriso. “A

Patrícia sempre apreciou o grande luxo.”


“O professor Schwarz ficou no Mount Zion Hotel, em

pleno Monte Sião”, acrescentou o polícia israelita,

imperturbável, “e o professor Vartolomeev foi para o

Ritz.” Virou de página e leu as anotações seguintes.

“Os três vieram cá fazer coisas diferentes e, tanto

quanto nos foi possível perceber, tiveram itinerários

separados.” Fechou o bloco de notas e esboçou um

sorriso conclusivo. “E é tudo.”


Os seus dois interlocutores ficaram a olhá-lo,

decepcionados.


“É só isso?”


“Receio bem que sim.”


“Mas... mas...”, titubeou Valentina, “não há nenhuma

possibilidade de que se tenham encontrado em algum

momento?”


Arnie Grossman respirou fundo.


“Oiça, ninguém pode garantir coisa nenhuma!”, disse.

“Jerusalém é uma cidade grande, mas não tão grande

quanto isso. Será que deram com o nariz uns nos outros

na Porta de Damasco, por exemplo? Sei lá! Se isto fosse

uma investigação prioritária, eu alocaria grandes

recursos e pode crer que, se eles se tivessem

encontrado, acabaríamos por sabê-lo. Mas, como deve

calcular, este problema é insignificante para a nossa

ordem de prioridades. Lidamos todos os dias com coisas

bem mais graves. Assim sendo, só pude destacar um homem

durante uma manhã para este assunto.”


“Mas então como fazemos agora?”


“Agora já temos em campo dois investigadores a tempo

inteiro. Com certeza que isso nos permitirá chegar a

algum lado.”


“Ai sim? É gente experiente do seu departamento?”


O anfitrião abriu o rosto num vasto sorriso e, pegando

no seu copo de whisky, recostou-se na cadeira e

descontraiu-se.


“Isso não sei”, riu-se, fazendo um gesto na direcção

dos seus interlocutores. “Os novos investigadores estão

à minha frente.”


Tomás e Valentina entreolharam-se.

“Está a falar de nós?”

O inspector-chefe Grossman engoliu o líquido dourado de

uma assentada e pousou pesadamente o copo sobre a

mesinha. A seguir cruzou a perna e pôs-se confortável,

uma expressão indisfarçável de gozo a bailar-lhe nos

olhos.


“Pensaram que vinham a Jerusalém de férias?”


XXXI


A circunspecta fachada de calcário cor-de-rosa abojar-

dado do Hotel King David era de impor respeito, mas

Tomás e Valentina estavam de tal modo preocupados com a

necessidade de encontrarem indícios que os pusessem na

pista certa que nem pararam para contemplar o edifício

histórico. Foi só quando cruzaram a porta rotativa de

entrada e calcorrearam o lóbi que verdadeiramente

sentiram o esplendor daquele lugar.


“Que hotel!”, exclamou Tomás enquanto apreciava o

átrio. Ao longo do corredor que unia as duas alas, o

chão era cortado por uma longa faixa branca com nomes e

assinaturas de hóspedes notáveis. Inclinou-se sobre a

faixa e leu um dos nomes. “Churchill esteve aqui

alojado!”


“Ele e mais uma catrefada de outras celebridades”,

acrescentou a italiana, estudando também as assinaturas

registadas no chão; viam-se os nomes garatujados de

Elizabeth Taylor, Marc Chagall, Henry Kissinger, Simone

de Beauvoir, do Dalai Lama, de Kirk Douglas, Yoko Ono e

uma infinidade de outros famosos. Depois lançou um

olhar apreciador à decoração. “Hmm... ma che bello!”


O átrio do hotel era de uma imponência babilónica, com

grandes colunas ricamente trabalhadas e vistosas

arcadas azuis a sustentarem o tecto, num espaço

ornamental cheio de elementos decorativos inspirados

nos vários estilos da região, incluindo arte fenícia,

egípcia, grega e assíria. Tratava-se sem dúvida de uma

entrada imponente.


Um empregado uniformizado aproximou-se dos recém-

-chegados.


“Em que vos posso ser útil?”


Como se estivesse preparada, Valentina exibiu de

imediato o seu crachá da Polizia Giudiziaria e um

documento que lhe fora passado pelas autoridades

israelitas.


“Sou da polícia italiana e procuro informações sobre

uma cliente vossa”, explicou. “Gostaria de falar com o

gerente do hotel, se faz favor.”


O empregado fez uma curta vénia e desapareceu tão

depressa quanto tinha surgido, mas voltou dois minutos

mais tarde na companhia de um homem baixo e

engravatado. O homem estendeu a mão aos visitantes e

exibiu um sorriso profissional.


“O meu nome é Aaron Rabin, sou gerente do King David.

Posso ajudar-vos?”


Valentina voltou a identificar-se. Depois de o gerente

inspeccionar o cartão da Polizia Giudiziaria e o

documento israelita e se prontificar a auxiliar no que

pudesse, a italiana extraiu da mala uma fotografia a

cores com o rosto de uma mulher sorridente.


“Esta

senhora

chamava-se

Patrícia

Escalona,

era

espanhola e foi assassinada há alguns dias”, disse.

“Temos a informação de que esteve há três meses alojada

neste hotel e gostaríamos de saber se algum dos seus

funcionários se lembra dela.”


O gerente pegou na fotografia e contemplou-a por alguns

instantes. Era evidente que aquele rosto não lhe

parecia familiar. Pediu licença e foi ao balcão da

recepção

conferenciar

com

os

empregados.

Os

recepcionistas viram a fotografia e chamaram o

concierge, que também estudou, a imagem. A certa altura

havia já um pequeno grupo reunido atrás da recepção.

Mais pessoas foram chamadas, incluindo dois bell-boys,

até que pareceu gerar-se um consenso, com várias

cabeças a acenarem afirmativamente.


O gerente regressou enfim para junto dos dois

forasteiros, acompanhado por um homem calvo que trazia

na mão a fotografia da professora Escalona.


“Apresento-vos Daniel Zonshine, da agência Jerusalem

Tours”,

anunciou

o

gerente,

indicando

o

seu

acompanhante. “Creio que ele vos poderá ajudar.”


Valentina

e

Tomás

cumprimentaram-no

e

Zonshine,

ultrapassadas as amabilidades formais, apontou para uma

loja na zona comercial do piso térreo do hotel.


“A minha agência tem uma sucursal aqui no King David.”

Exibiu a fotografia. “Acontece que esta senhora foi de

facto nossa cliente. Lembro-me dela porque falava muito

mal inglês e precisava de um guia que soubesse espanhol

e que, além de a levar aos locais onde precisava de ir,

lhe

pudesse

servir

de

intérprete

sempre

que

necessário.”


O rosto da italiana iluminou-se.

“Ah! E onde está esse guia?”

Zonshine consultou o relógio.

“O Mohammed deve entrar ao serviço daqui a pouco.”

Indicou uns sofás. “Porque não esperam aí? Quando ele

chegar, trago-o cá.”


Os dois visitantes instalaram-se na elegante esplanada

do restaurante do hotel, rodeada por um pequeno muro

coberto de flores e com vista para a piscina e o

jardim. Ao longe estendiam-se as muralhas da cidade

velha no sector da Porta de Jaffa. Apesar do calor,

pediram um chá de hortelã e ficaram a observar o

movimento na esplanada, onde jovens casalinhos de

judeus ortodoxos namoriscavam com infinito pudor, e a

comentar a decoração e o valor histórico do edifício.

Tomás contou que foi justamente ali no King David que,

após o colapso do Império Otomano, esteve instalada a

administração do Mandato Britânico. Por causa disso, o

movimento judaico Irgun fez explodir uma bomba naquele

hotel em 1946, precipitando a retirada britânica, que

conduziria à proclamação do estado de Israel, dois anos

mais tarde.


“Como pode ver”, observou Tomás, “o King David é um

hotel cheio de história, de tal modo que...”


A conversa foi interrompida por Daniel Zonshine, que

apareceu na esplanada na companhia de um rapaz magro e

de bigode preto, no corpo uma camisa a exibir o

logotipo da Jerusalem Tours.


“Este é o Mohammed”, apresentou-o. “Foi ele que

acompanhou a senhora em causa.”


“Salaam alekum!”


“Alekum salema”, devolveu Tomás, exibindo o seu árabe.

“Foi você o guia da professora Escalona?”


“Sim, senhor.”


“Lembra-se dos sítios que ela visitou enquanto cá

esteve?”


“A senorita fez um pouco de turismo na cidade velha e

deslocou-se

a

algumas

instituições

ligadas

à

investigação histórica, creio eu”, revelou. “Mas passou

a maior parte do tempo numa conferência na Universidade

Hebraica de Jerusalém. Do que me recordo, tratava-se de

umas palestras sobre as descobertas de Qumran.”


“Os manuscritos do Mar Morto?”

“Isso.”

“Ela andou sozinha?”


“Inicialmente, sim. Depois arranjou uns amigos e

dispensou-me.”


Tomás e Valentina trocaram um olhar.

“Uns amigos?”

“Sim. Uns ocidentais que a senorita conheceu na

Fundação Arkan. Ainda os acompanhei no dia seguinte a


uma visita à Autoridade de Antiguidades de Israel, mas

ela acabou por prescindir dos meus serviços e já não

voltei a vê-la.”


“Lembra-se do nome dos amigos da professora Escalona?”

O palestiniano abanou a cabeça.

“Não. Isto foi há três meses, não é? Além do mais,

tinham nomes esquisitos. Acho que nem na altura os

decorei...”


A inspectora da Polizia Giudiziaria retirou umas

fotografias da mala e mostrou-as ao guia. Eram imagens

com os rostos dos professores Alexander Schwarz e Petar

Vartolomeev.


“Eram estes?”


Ao ver as fotografias, Mohammed estreitou os olhos e

comparou-as com os arquivos da sua memória.


“Como disse, isto já foi há uns três meses e não estive

muito tempo com eles”, indicou, hesitante. “No meio de

tantos clientes, não é fácil lembrarmo-nos de todas as

pessoas que vemos.” Concentrou-se de novo nas imagens e

acabou por acenar afirmativamente. “Mas, sim. Acho que

são eles.”


“De certeza?”


O guia lançou um derradeiro olhar sobre as imagens,

para se certificar de que não se enganava.


“Tenho quase a certeza. Quanto mais vejo esses rostos,

mais eles me parecem familiares.”


“Onde disse que a professora Escalona os encontrou?”

“Na Fundação Arkan.”


“O que é isso?”


Mohammed hesitou e o seu superior hierárquico, que até

ali acompanhara o diálogo em silêncio, respondeu por

ele.


“É uma instituição muito prestigiada aqui em Israel”,

indicou Daniel Zonshine. “Desenvolve actividades em

várias áreas e tem a sede no Bairro Judeu da cidade

velha.” Valentina e Tomás trocaram uma nova miradela,

desta feita com uma expressão triunfante a cintilar-

lhes nos olhos. Tinham acabado de dar com a pista que

procuravam.


A Fundação Arkan.


XXXII


O ambiente no Bairro Judeu da cidade velha era de

absoluta tranquilidade. As ruas estavam quase desertas,

à excepção de uma ou outra pessoa que passava a caminho

do Muro das Lamentações ou se dirigia para a Praça Hur-

va. O chilrear dos pássaros parecia ecoar pelos becos

como melodia serena e as palavras das raras pessoas que

por ali circulavam reduziam-se a murmúrios.


Neste contexto, o ruído seco dos passos de Tomás e

Valentina a reverberar no chão empedrado ganhou

amplitude, mas os dois visitantes não se incomodaram.

Consultando o mapa do bairro, o historiador verificou a

posição das sinagogas sefarditas e indicou uma ruela

lateral.


“É por ali.”


Caminharam ambos na direcção apontada, mas Valentina

parecia mover-se com o piloto automático ligado,

limitando-se a seguir o vulto do companheiro. Tinha os

olhos mergulhados nos documentos que lhe haviam sido

enviados essa manhã de Roma e sabia que precisava de

acabar de os ler antes de chegar ao destino.


“Esta fundação é curiosa”, observou ela num tom

ambíguo; talvez estivesse apenas a falar consigo mesma,

mas nem isso era certo. “Muito curiosa, mesmo...”


“Em que sentido?”


A italiana levou alguns segundos a responder. Leu mais

um pouco e só quando terminou é que baixou os papéis e

encarou Tomás.


“Para já, tem interesses muito variados, com apostas em

áreas diversificadas do conhecimento”, disse. “A

fundação investe muito na pesquisa histórica, da

arqueologia à paleografia. Naturalmente que a sua área

de especialização incide no Médio Oriente, e em

particular em toda a região da Terra Santa. Ao que

parece, o seu espólio inclui uma colecção de artefactos


dos

tempos

bíblicos.

Mas

também

desenvolveu

investigação em vários domínios científicos, tendo

criado laboratórios especializados em coisas tão

diferentes como a física das partículas e a pesquisa

médica, por exemplo.” Assobiou, apreciativa. “Dio mio,

isto é um mundo!”


“Mas qual a filosofia que a orienta? A investigação

pura?” Valentina exibiu o topo de uma página dos

documentos que estivera a ler. Tratava-se de um

logotipo com uma frase escrita em grossos caracteres

góticos.


“‘Über allen Gipfeln”’ leu em voz alta, “‘ist Ruh, in

allen Wipfeln spürest du kaum einen Hauch; Die Vögelein

schweigen im Walde. Warte nur, balde. Ruhest du

auch.’’''’ Tomás ficou um longo instante especado a

olhá-la a 1er. “O que raio quer isso dizer?”


“‘Por todos estes montes reina a paz’”, recitou ela,

“‘em todas estas frondes a custo sentirás sequer a

brisa leve; em todo o bosque não ouves nem uma ave. Ora

espera, suave. Paz vais ter em breve.’”


O historiador fez uma careta incrédula.

“Você fala alemão?”

A italiana riu-se e exibiu o documento remetido de

Roma. “Este poema tem a tradução em italiano”, disse.

“Está a ver? É aqui em baixo.”


Foi a vez de Tomás sorrir.


“Ah, bom!” Esboçou uma expressão apreciativa. “São uns

versos bonitos, sim senhor. Quem os escreveu?”


“Ora, quem haveria de ser?”, retorquiu ela. “O maior de

todos os escritores alemães. Goethe.”


“Além de bonito, é um texto pacifista. Se o motto da

Fundação Arkan é mesmo esse, penso que estamos perante

uma instituição bem-intencionada.”


Valentina fez uma careta e ergueu o dedo, como se

quisesse interpor alguma cautela.


“Se!”, sublinhou. “Sabe, desconfio sempre daqueles que

passam a vida a pregar a paz. Por vezes são os piores.

Por detrás de uma conversa inócua ocultam desígnios bem

sinistros...”


O académico português estacou diante de um edifício

anónimo a meio da rua e verificou o número da porta.

Depois viu uma pequena placa dourada pregada por cima

da campainha com o nome Arkan Foundation esculpido no

metal.


“Então já vamos tirar a prova”, anunciou ele.

“Chegámos!” Carregou no botão e um crrrrrr eléctrico da

campainha soou no interior do edifício. Aguardaram uns

instantes até escutarem o som de passos a aproximarem-

se e a porta se abrir. Do outro lado viram uma rapariga

de cabelo negro e olhos curiosos.


“Shalom!”


“Good afternoon”, cumprimentou-a Tomás, sinalizando

assim que não iria falar hebraico. “Temos um encontro

marcado com o senhor Arkan, o presidente da fundação.

Ele está?”


Depois de se certificar da identidade dos dois

visitantes, a rapariga levou-os para uma sala e

ofereceu-lhes dois copos de água. Soltou a seguir um

cortês “aguardem um minuto, por favor”, e deixou-os a

sós. Pouco depois reapareceu, pediu-lhes que a

seguissem e conduziu-os até ao primeiro andar. Bateu à

porta com suavidade, ouviu-se uma voz de homem dar uma

ordem em hebraico do outro lado e ela indicou aos seus

acompanhantes que entrassem.


“Sejam bem-vindos”, cumprimentou-os o homem grande e de

sobrancelhas carregadas, à Brejnev, que os veio acolher

à porta. “Sou Arpad Arkan, o presidente da fundação. A


que devo o prazer da visita da polícia da bella

Italia?”


“Lamento incomodá-lo”, disse Valentina. “Estamos a

investigar a morte recente de três académicos europeus

em circunstâncias que nos parecem bizarras.”


A declaração da inspectora da Polizia Giudiziaria

toldou o olhar vivo do anfitrião.


“Ah, já soube!”, exclamou Arkan, de repente a falar

devagar como se medisse as palavras. “É terrível!

Fiquei chocadíssimo quando me deram a notícia!”


“As investigações aos três casos trouxeram-nos aqui a

Israel. Acabámos por perceber que as três vítimas se

cruzaram neste país.” Fez uma pausa, para estudar a

reacção do seu interlocutor. “Soubemos agora que o


local exacto onde se encontraram foi este mesmo.”

Apontou para o chão. “A Fundação Arkan.”


Calou-se, à espera do que Arkan tinha para dizer a

propósito desta revelação. Percebendo que as suas

reacções estavam a ser escalpelizadas, o presidente da

fundação respirou fundo e, quase com embaraço, desviou

o olhar para a janela.


“Não me tinha apercebido disso”, afirmou. “Mas é um

facto que os conhecia. Convidei-os a virem aqui ã

fundação.” Dedilhou a agenda que tinha aberta sobre a

secretária. “Fez anteontem três meses, veja lá. Mal

sabíamos nós a tragédia que se iria abater sobre

eles!...”


A inspectora italiana ponderava todas as palavras que

escutava, em busca de contradições, lacunas ou sentidos

ocultos, como um jogador de xadrez a avaliar cada

movimento do adversário.


“Pode saber-se o que vieram eles cá fazer?”


Arpad Arkan esboçou um gesto em direcção aos papiros e

aos pergaminhos emoldurados que estavam pendurados nas


paredes

do

gabinete.

Pareciam

antigos,

com

os

caracteres gregos e hebraicos em scriptio continua, e

apresentavam as bordas rasgadas e buracos no meio.


“A fundação possui um valioso espólio de manuscritos”,

explicou. “São alguns extractos da Bíblia ou então

outros

documentos

antigos

escritos

em

hebraico,

aramaico ou grego. Encomendei à professora Escalona uma

peritagem.” Apontou para o que parecia um vaso tosco

pousado no chão, mesmo ao lado da secretária. “E temos

também alguns ossários protocristãos. O professor

Schwarz foi-me aconselhado como perito nessa área.”

“E o professor Vartolomeev? Ele não era historiador...”

“Ah, o cientista da Bulgária? A fundação criou um

centro de pesquisa avançada na área molecular e

disseram-me que ele era uma autoridade a nível mundial.

Parece que todos os anos o seu nome é soprado para

ganhar o Prémio Nobel da Medicina. Convidei-o a

colaborar connosco e ele aceitou.” Abanou a cabeça,

combalido.

“O

seu

desaparecimento,

receio

bem,

constitui uma grande perda para a Fundação Arkan.

Depositávamos grandes esperanças no trabalho dele.”


“Estiveram os três juntos aqui na fundação?”


“Sim, estiveram juntos. Embora pertencessem a áreas

diferentes, falei com eles ao mesmo tempo.”


“Foi assim que se conheceram?”


“É provável”, admitiu. “De facto, não me deu a

impressão de que se conhecessem antes.”


Valentina fez um ar pensativo, como se considerasse a

maneira de formular a pergunta seguinte.


“Como explica o senhor que três pessoas que se

conheceram aqui no seu gabinete tenham sido executadas

três meses depois no espaço de menos de vinte e quatro

horas?”


O anfitrião pareceu atrapalhado com a pergunta.


“Pois... enfim, não sei como explicar”, titubeou. “É

realmente... quer dizer, é uma coincidência.” A palavra

surgiu-lhe como uma bóia de salvação, à qual se agarrou

de imediato. “Foi isso e apenas isso. Uma infeliz

coincidência.”


A italiana trocou um breve olhar com Tomás e voltou a

encarar o seu interlocutor, os olhos de um azul

glacial. “Para a polícia não há coincidências, senhor

Arkan.”


O presidente da fundação empertigou-se.

“O que está a insinuar?”

“Não estou a insinuar nada”, devolveu ela sem se deixar

intimidar. “Estou a dizer-lhe que, em ciência criminal,

as coincidências são para ser encaradas com grande

desconfiança. O facto é que três académicos que se

conheceram aqui no seu gabinete acabaram mortos três

meses depois em circunstâncias no mínimo bizarras. Não

sei se possa chamar coincidência a isso.”


Arpad Arkan ergueu o seu corpo volumoso e, com grande

veemência, apontou para a porta.


“Rua!”, vociferou. “Ponham-se na rua!”


Valentina e Tomás imobilizaram-se na cadeira,

estupefactos com aquela reacção. A insinuação que a

italiana havia feito era desagradável, sabiam, mas a

reacção

do

anfitrião

parecia-lhes

largamente

desproporcionada.


“Está a cometer um grave erro.”


“Quero lá saber!”, rugiu o homem das sobrancelhas

peludas, insistindo em apontar para a porta do

gabinete. “Quero-vos fora da minha fundação o mais

depressa possível! Rua!”


O tom intempestivo do anfitrião irritou Valentina, que

se ergueu e colou o nariz ao nariz de Arkan.


“Madonna! Mas com quem pensa que está a falar?”

“Saiam imediatamente ou chamo a polícia! Saiam daqui!”

“Cretino! Stupido! Stronzo!”

“Fora! Fora daqui!”


Os dois gritavam cara a cara um com o outro, os rostos

ruborizados e os perdigotos a voarem em todas as

direcções. Percebendo que estava a lidar com duas

cabeças quentes e que a situação ameaçava ficar fora de

controlo, Tomás agarrou na inspectora da Polizia

Giudiziaria e arrastou-a para fora do gabinete.

“Vamos embora”, disse num tom calmo. “Não vale a pena.”

“Rua!”, gritava Arkan, fora de si. “Quero-vos no olho

da rua! Quem pensam vocês que são para me virem

insultar na minha própria casa? Hã? Saiam daqui!”


“Imbecile! Scemo!”


As portas fecharam-se com fragor e, tão depressa como

tinha sido interrompida, a tranquilidade voltou ao

interior do edifício da fundação. Ainda a arfar, Arkan

desapertou a gravata, desabotoou o botão superior da

camisa e libertou o colarinho. Depois caiu pesadamente

na sua poltrona e respirou fundo, readquirindo o

controlo das emoções.


Os seus olhos desviaram-se para o telefone pousado ao

canto da secretária. Hesitou um instante, como se

combatesse a pulsão que tentava dominar-lhe a vontade.

Com um suspiro de rendição, resignou-se ao inevitável e

pegou enfim no aparelho.


“Está lá? És tu?”


XXXIII


“Sim, mestre. Sou eu. O que se passa?”


Sentado nos restos da velha muralha, os pés a dançarem

sobre o precipício e os restos do Palácio de Herodes,

assentes em três degraus escavados na face escarpada do

norte do promontório, Sicarius contemplou a extensão

árida do deserto da Judeia, cortada pela mancha azul do

Mar Morto como se o grande lago salgado fosse um oásis.

Sentiu o vento seco e quente soprar pela encosta do

maciço rochoso a afagar-lhe a face enquanto lhe sacudia

a túnica aos repelões.


“Hoje estou um pouco enervado”, confessou a voz do

outro lado da linha. Respirou fundo. “Lembras-te da

nossa última conversa?”


“Quando eu estava a rezar no HaKotel HaMa’aravi?”

“Sim”, confirmou o mestre.


“Disse-te que estivesses preparado.” Fez uma curta

pausa. “Estás Sempre.”


Nova pausa ao telefone.

“É hora”

O vento levantou uma súbita nuvem de poeira e Sica-


rius ajeitou o tallit que lhe cobria a cabeça,

posicionando-o de modo a proteger melhor os olhos. Lá

em baixo o vale estendia-se numa desconcertante

sinfonia de cores e tonalidades ao longo das margens

sinuosas do Mar Morto, passando do castanho da terra ao

ouro da areia, depois à orla branca do sal, ao verde

opalino da água que logo se torna azul-turquesa e a

seguir anil profundo, até desmaiar na outra margem,

para além da neblina, entre o cinzento-amarelado das

montanhas e dos desfiladeiros da Jordânia.


“Quem é o alvo?”


“São

dois

investigadores

enviados

pela

polícia

italiana. Chegaram agora a Jerusalém e meteram-se no

nosso caminho.” Fez um estalido com a língua. “Este é o

momento de actuar.”


“Onde estão eles alojados?”

“No American Colony."

“Hmm... o hotel dos espiões. Parece-me apropriado.”


“Muito. Estamos a falar de um casal."

“Trato dos dois?”

”Deixa a mulher em paz. É inspectora da polícia

italiana, não queremos meter-nos com essa gente. A

pessoa de quem vais tratar é o tipo que a acompanha. É

do género calado."


“São os mais perigosos...”


“Este é historiador e parece ter capacidade para

interpretar os enigmas que fomos espalhando. Chama-se

Tomás Noronha e é português. Vou enviar para o teu e-

mail um retrato que lhe tirámos esta tarde com toda a

discrição. Dar-te-ei também instruções pormenorizadas

sobre o que deverás fazer, incluindo a mensagem que

vais deixar."


“Esse historiador é o meu alvo prioritário?”


A voz do mestre tornou-se cavada, a exemplo do que

acontecia sempre que dava ordens importantes.


“Sim.”


Fez-se silêncio na linha, como se depois daquela

confirmação já não houvesse mais nada a dizer entre

eles.


“Mais alguma coisa?”


“É tudo. Já sabes o que tens a fazer.” O mestre mudou o

tom de voz, que se tornou inquisitivo. “Quando planeias

actuar?”


Os lábios finos de Sicarius contorceram-se e formaram o

que parecia o vestígio de um sorriso.


“Hoje.”


Sicarius desligou o telemóvel e lançou um derradeiro

olhar para a direita, contemplando o deserto da Judeia,

com a mancha azulada do Mar Morto no meio, e depois

para a esquerda, onde se alinhava a cadeia de

montanhas, desfiladeiros e penhascos que bordejavam o

vale. O Sol deitava-se no horizonte, flamejante em

tonalidades laranja e roxas, tão baixo que acentuava as

sombras recortadas pelas marcas do que restava dos

vários

campos

romanos

que

um

dia

cercaram

o

promontório, as estruturas desenhadas na terra como

vestígios de labirintos rectangulares. Era uma vista de

atordoar, cenário de uma beleza majestosa, a prova de

que Deus abençoara aquela terra agreste. O silêncio era

retemperador; apenas se escutava o sopro do vento que

batia de norte e o tisitar melancólico dos estorninhos

que adejavam sobre a estrutura montanhosa.


Com agilidade inesperada, Sicarius pôs-se em pé de um

salto e virou as costas àquele panorama grandioso.

Começou a caminhar em direcção à porta do Caminho da

Serpente. O sol poente ainda escaldava e a brisa

beijava-lhe o rosto ardente, afagando o cabelo e

temperando a pele, mas logo o sopro parou e o ar

incendiou-se. Sicarius sabia que o vento só soprava na

encosta norte; o resto do promontório permanecia

estático. As gotas de suor começaram a deslizar-lhe

pela face, a túnica depressa ficou encharcada por baixo

dos braços, sentiu a pele em brasa e o chão tornou-se

tão luminoso que quase o encandeava.


Passou pelos restos dos alojamentos dos zelotas e

atirou uma miradela orgulhosa aos vestígios ainda

intactos da sinagoga; fora decerto naquele mesmo lugar

que Eleazar Ben Yair juntara os sicarii para o acto


final da tragédia que ali ocorrera dois mil anos antes.

As ruínas no topo do maciço rochoso eram os vestígios

mais sublimes que os seus antepassados lhe haviam

legado. Cabia-lhe agora mostrar-se à altura deles.


Foi ali, em Masada, que os sicarii esboçaram o

derradeiro e mais heróico acto de resistência contra os

invasores romanos. Quando os legionários da Décima

Legião conseguiram por fim romper as linhas de defesa,

os dois mil sicarii preferiram morrer a entregar-se ao

inimigo. Queimaram Masada e escolheram dez homens que

mataram todos os resistentes e se suicidaram de

seguida. Apenas duas mulheres escaparam para contar a

história.


Caminhando entre as ruínas, Sicarius sentiu-se voar no

tempo. Ouvia nas pedras os urros da discussão, a voz de

Eleazar a proclamar “escolhamos a morte e não a

escravidão”, os gemidos diante da angústia da decisão,

as vozes resignadas dos sicarii a aprovarem a escolha

fatídica do chefe, e depois os gritos da chacina, os

homens a matarem os filhos, a seguir as mulheres, por

fim uns aos outros até o silêncio se abater sobre o

promontório e apenas se escutarem os estorninhos que

esvoaçavam na fortaleza caída, tetemunhas mudas do

drama que os Romanos encontraram, atónitos, quando na

manhã seguinte franquearam a muralha e deambularam

entre os cadáveres que se estendiam pelo chão ensopado

de sangue.


Pousou a mão na adaga sagrada que trazia à cintura e

sentiu-lhe a superfície polida. A sica, descoberta nas

escavações de Masada, havia sido utilizada nessa grande

matança final. Tudo aquilo sucedera há dois mil anos,

quando os pagãos destruíram o Templo e expulsaram o

povo da Terra Prometida. Dois mil anos.


Chegara a hora da vingança.


XXXIV


A gargalhada ecoou pelo átrio do American Colony e foi

tão sonora que atraiu os olhares dos recepcionistas e

dos clientes do hotel que por ali deambulavam.


“Dá-lhe vontade de rir?”, questionou Valentina com uma

ponta de ressentimento na voz. “Pois eu não acho graça

nenhuma!”


O inspector-chefe da polícia israelita parecia bem-

-humorado. Arnie Grossman abriu os braços, quase como

se estivesse a espreguiçar-se, e passou as suas grandes

manápulas pelo cabelo grisalho e ondulado, penteando-o

para trás.


“É boa, essa!”


“Não teve piada”, insistiu a italiana, sem nenhuma

vontade de se rir. “Foi muito desagradável!”


“Peço desculpa, mas mandar a polícia pôr-se na rua

requer uma certa chutzpah!”, observou Grossman, ainda

com o semblante divertido. “O nosso Arpad Arkan até

pode ser um malandro da quinta casa, mas não há dúvida

nenhuma de que é um figuraço! Só de imaginar essa cena

quase apanho um ataque de cólicas!...”


O polícia israelita contorcia-se de riso, para

exasperação de Valentina. A italiana fervia de

irritação no sofá, mas Tomás, que acabara de se sentar

depois de ter ido pedir aos recepcionistas a chave do

quarto, mostrava-se indiferente e até percebia a

reacção de Grossman. Visto de uma certa perspectiva, o

que lhes sucedera nessa tarde tinha de facto a sua

graça. Podia ser que com o tempo a bela inspectora

também o percebesse.


“Isso não interessa nada”, cortou Valentina, desejosa

de avançar na conversa para outros pontos que

considerava mais relevantes. “A nossa investigação

conduziu-nos a este ponto, a partir do qual não tenho


qualquer autoridade para intervir. Precisava de saber o

que pode agora fazer a polícia de Israel.”


Já recomposto, Arnie Grossman abriu as palmas das duas

mãos, como se a quisesse travar.


“Woah! Tenha calma!”, exclamou. “Vamos mais devagar.”

Inclinou-se para a frente e desfez o sorriso, como se

enfim se tivesse decidido a encarar o assunto a sério.

“Vamos por partes. Que conclusão tirou da conversa que

teve na fundação?”


“Que tudo aquilo é muito suspeito”, disse ela. “O homem

está evidentemente a esconder-nos alguma coisa.”


“Porque diz isso?”


“Primeiro, por causa da explosão intempestiva quando o

questionei sobre a coincidência de os três académicos

terem sido assassinados três meses depois de se terem

encontrado na fundação. A reacção desproporcionada do

Arkan mostra que ele está nervoso com isto. Ora quem

não deve não teme. Depois, porque a explicação dele não

bate certo. Repare nos factos: as três vítimas não se

conheciam umas às outras, o Arkan convidou-as para uma

conversa em que contratou os dois historiadores para

uma peritagem e o cientista para um instituto qualquer

e, quase por artes mágicas, as três pessoas até aí

desconhecidas tornaram-se inseparáveis. Segundo o guia,

as nossas vítimas juntaram-se no dia seguinte e foram

visitar a Autoridade das Antiguidades de Israel. Depois

a professora Escalona sentiu-se tão à vontade com os

seus novos amiguinhos que até dispensou o guia.” Fez

uma careta de perplexidade. “Os três tornaram-se

inseparáveis a propósito de quê? Por causa de um

encontro sem importância na Fundação Arkan? Como é que

uma mera conversa académica tem esse efeito?”


“Realmente...”


“E por que razão, sendo os três cientistas de

especialidades e áreas de investigação tão diferentes,

foi o Arkan falar com eles ao mesmo tempo? Não seria


mais lógico que tivesse uma reunião com um, depois com

outro e finalmente com o terceiro? Porquê os três ao

mesmo tempo?”


“A Valentina tem razão”, observou Tomás, que até ali

permanecera calado. “Nada disso faz sentido.”


Mas a italiana ainda não acabara de dizer o que lhe ia

na mente.


“Se eles se reuniram todos em simultâneo é porque o

presidente da fundação lhes queria falar sobre um

assunto de interesse comum. E que assunto seria esse?

Por que motivo o Arkan nos está a ocultar as coisas?

Que questões inconfessáveis nos anda ele a esconder?

Qual a relação dessa misteriosa conversa com as mortes

a que temos assistido? Como diabo...”


O inspector-chefe da polícia israelita fez um movimento

afirmativo com a cabeça.


“Seja”, atalhou, interrompendo o raciocínio da sua

homóloga. “Essa história parece realmente mal contada,

é evidente. Não me admiraria nada que o Arkan estivesse

metido num esquema qualquer de contornos duvidosos. Mas

temos de proceder com cautela.”


A italiana quase explodiu ao ouvir estas últimas

palavras.


“Como, proceder com cautela?” Apontou para a porta como

se o presidente da fundação ali estivesse. “Aquele

scemo

anda

a

esconder-nos

coisas!

Ele

tem

responsabilidades nestas mortes! E o que fazemos nós?”

Fez uma expressão caricatural, como se imitasse o seu

interlocutor. “Procedemos com cautela!...”


“Tenha calma”, pediu Grossman. “O Arpad Arkan é um

homem poderoso. Dispõe de muitos contactos nos meios

políticos e mexe com interesses que nos ultrapassam.”

Esfregou o indicador no polegar. “Há muito dinheiro

envolvido, e não apenas por cá. O tipo movimenta-se com

muita facilidade em certos círculos da finança


internacional. Além disso, a fundação apresenta-se como

uma instituição muito humilde, com toda uma conversa

sobre a paz que resulta bem junto da imprensa e da

política internacional. O motto da fundação é, aliás,

revelador, cheio de...”


“Está a referir-se ao poema de Goethe?”


O israelita arregalou os olhos, surpreendido.

“Ah! Já conhecem?”

“Fizemos o trabalho de casa...”


“Pois, esse poema que eles escolheram para motto é

muito pacifista e tem-se revelado incrivelmente útil à

fundação. A conversa da paz proporciona uma fachada

perfeita para as suas actividades mais nebulosas. E por

isso necessário proceder com o máximo cuidado.”


Valentina impacientou-se.


“Inspector Grossman, tudo isso pode ser verdade, mas

nós somos polícias, não somos? Então temos de actuar

como polícias. Em Itália a máfia também é um assunto

sensível, que mexe com a alta finança e a alta

política, e não é por isso que deixamos de a

enfrentar.”


“Está bem, mas mesmo assim...”, murmurou o israelita,

deixando a frase morrer. “Investigar a Fundação Arkan

pode ser um bico-de-obra. Há já algum tempo, aliás, que

a tenho debaixo de olho e sei bem do que estou a

falar.”


“Tem-na debaixo de olho?”, estranhou a italiana.

“Porquê?”


O inspector-chefe da polícia israelita calou-se por um

instante, como se ponderasse o que podia ou não

revelar.


“Digamos que tenho motivos para desconfiar das suas

actividades”,

indicou.

“Nunca

agarrámos

nada

de

concreto, mas por vezes correm uns boatos que me deixam

inquieto.”


“Boatos? Que boatos?”


Nova pausa hesitante de Arnie Grossman.

“Boatos”, repetiu. “Fiquemo-nos por aqui.”

Os três entreolharam-se, como jogadores de póquer a

esconder os respectivos jogos e a tentar adivinhar a

mão dos adversários. Valentina era a mais impaciente e

nervosa dos três, pelo que não constituiu surpresa que

tenha sido ela quem quebrou o silêncio desconfortável

que por alguns instantes se instalara entre eles.


“Então o que sugere que façamos?”


O polícia israelita desenhou no ar um gesto vago com a

mão.


“Não façam nada”, recomendou. “Vou dormir sobre o

assunto e amanhã digo-lhe alguma coisa, está bem?”

“Parece-me justo.”


Grossman voltou-se para Tomás.


“No entretanto, professor Noronha, talvez o senhor me

possa ajudar a ligar aqui algumas pontas soltas deste

caso.”


O pedido surpreendeu o historiador.

“O que deseja saber?”

O inspector-chefe tiquetaqueou com os dedos sobre o

braço do sofá, como se considerasse a forma adequada de

apresentar o problema. Fez um sinal com o polegar a

indicar o caminho para o bar.


“Lembra-se de, na nossa primeira conversa, me ter dito

que suspeitava que os sicarii estivessem envolvidos

nesta história?”


“Claro. As execuções rituais das nossas três vítimas

apresentam características semelhantes às perpetradas

pelos sicarii há dois mil anos. Em especial aquele

pormenor do grito de lamento logo que matavam o seu

alvo. Porquê?”


Arnie Grossman fez um esgar, passou os dedos pelo

queixo e desviou os olhos para o lado, numa expressão

ainda pensativa.


“Os relatórios que vocês me enviaram quando pediram a

nossa ajuda deixaram-me intrigado”, disse. “Estive a

ler aquela parte dos três enigmas largados pelo

assassino junto das três vítimas e a sua interpretação.

Se entendi bem, o senhor acha que essas charadas

apontam para fraudes no Novo Testamento.”


“É verdade”, aquiesceu o historiador. “Mas onde quer

chegar?”


“A questão é esta: que interesse poderiam ter os

sicarii, uma organização judaica, por fraudes na Bíblia

dos cristãos?”


“Quer mesmo saber?”

“Sou todo ouvidos.”

Tomás inclinou-se para a frente, como se fosse soprar

um grande segredo.


“O problema é que Jesus já tinha religião.”

“Perdão?”

O português voltou a recostar-se, cruzou a perna e

sorriu, os olhos divertidos a dançarem entre os rostos

expectantes de Arnie Grossman e Valentina Ferro.


“Era judeu.”


XXXV


O American Colony tinha fama de ser o hotel dos

espiões. Acomodado no sofá e envolvido pelo ambiente

intimista que o cercava, Tomás percebia porquê; o local

era perfeito para conversas discretas. Não que ele

tivesse algo a esconder, mas a investigação em que

estava envolvido requeria de facto uma certa dose de

discrição, considerando a natureza dos crimes que

haviam sido cometidos.


O problema, claro, é que ele acabara de fazer uma

afirmação explosiva para os ouvidos teologicamente

sensíveis de Valentina, e intuía que a italiana seria

tudo menos discreta na reacção às suas palavras. Nem

foi preciso esperar um segundo para perceber que essa

intuição estava certa.


“O que quer você dizer com isso de que Jesus era

judeu?”, admirou-se Valentina, quase ofendida. “Dio

mio, não foi ele o fundador do cristianismo?”


Tomás abanou a cabeça.


“Lamento ter de o dizer”, murmurou. “Mas não, Jesus não

fundou o cristianismo.”


“Madonna, protestou ela, o corpo agitado num frémito de

justa indignação. “Mas que disparate! Claro que fundou!

A palavra cristianismo vem de Cristo! Jesus Cristo! São

as palavras e os ensinamentos de Cristo que servem de

fundamento à religião! Como se atreve a dizer uma coisa

dessas? Como pode afirmar que Cristo não fundou o

cristianismo? Que absurdo vem a ser esse?”


“Jesus era judeu”, repetiu o académico português. “Sem

interiorizar

essa

verdade

fundamental,


nada

perceberemos sobre ele. Jesus era judeu. Os pais eram

judeus e tiveram um filho judeu a quem circuncidaram e

com quem viviam em Nazaré, uma povoação judaica situada

na Galileia dos judeus. Jesus falava aramaico, uma

língua relacionada com o hebraico e que era falada

pelos judeus naquela época. Teve uma educação judaica,


rezava a um deus judaico, acreditava em Moisés e nos

profetas judaicos, respeitava as leis judaicas e era de

tal modo versado nas Escrituras judaicas e na lei de

Moisés que até as ensinava e discutia. As pessoas

chamavam-lhe rabino. A expressão é, por exemplo, usada

por Marcos em 14:45: ‘Rabbi.’ A palavra rabino

significava, há dois mil anos, professor. Diz Marcos em

1:21: ‘Chegado o sábado, Jesus entrou na sinagoga e

começou a ensinar.’ Ou seja, Jesus frequentava a

sinagoga aos sábados, prática naturalmente judaica, e

usava uma técnica típica dos rabinos para ensinar as

Escrituras: as parábolas. Além disso, tinha costumes

judaicos e até se vestia como um judeu.”


“Como sabe isso? Acaso alguma vez viu fotografias

dele?” “Basta ler os Evangelhos. Mateus refere em 9:20

que uma mulher ‘tocou-Lhe na orla do manto’, e Marcos,

em 6:56, diz que os enfermos ‘rogavam-Lhe que os

deixasse tocar pelo menos a franja da Sua capa’. Orla

do manto? Franja da capa? Do que estavam eles a falar?

Obviamente era do tallit, o manto de oração usado pelos

judeus com as suas franjas, ou tzitzit, atadas conforme

as ordens constantes em Números, um dos livros do

Antigo Testamento. Isto é, Jesus vestia-se como um

judeu.”


“Você está a falar-me de costumes”, argumentou

Valentina. “Admito que eles fossem totalmente judaicos.

No fim de contas, ele vivia entre judeus, é verdade.

Mas o que distinguiu Jesus dos judeus foram os seus

ensinamentos!...”.


Tomás indicou a Bíblia que tinha nas mãos.


“Ao contrário do que pensa, os costumes judaicos

constituem uma parte central dos ensinamentos de

Jesus”, respondeu. “Os Evangelhos põem-no com

frequência a discutir ao pormenor questões relacionadas

com costumes. As roupas são apenas um exemplo. Em

Mateus 23:5, Jesus critica os fariseus porque ‘alargam

as filactérias e alongam as bordas dos seus mantos’,

dando a entender que as suas próprias filactérias, ou


tefilin, eram estreitas e as suas bordas do manto, ou

tzitzit, curtas.”

“Ah! Então Jesus estava em desacordo com os judeus!...”

“Valentina, isto é uma discussão normal entre judeus!

Os judeus discutiam, e discutem ainda, com grande

paixão este tipo de coisas! Uns acham que os tzitzit

devem ser longos, outros acham que devem ser curtos.

Uns entendem que as tiras de pergaminho onde se

escrevem extractos das Escrituras, ou filactérias,

devem ser largas, por uma questão de devoção, e outros

defendem que essas tiras devem ser estreitas, por uma

questão de modéstia. Não passava pela cabeça de um

romano ou de qualquer outra pessoa que não fosse judia

questionar os tzitzit ou as filactérias de um judeu ou

qualquer outra dessas minudências bizantinas. Isso é

algo que só um judeu fazia. Percebe? O facto de Jesus

debater este tipo de questão serve justamente de prova

de que ele era judeu da ponta das unhas à ponta dos

cabelos!”


A italiana ergueu o dedo, como se tivesse acabado de

lhe ocorrer uma ideia.


“Espere aí! Havia costumes judaicos que ele não

respeitava! A comida, por exemplo. Tenho ideia de que

Jesus negou as Escrituras quando declarou que não havia

comidas impuras...”


Tomás procurou na sua Bíblia.


“Isso está em Marcos”, disse, localizando o extracto.

“Diz Jesus, citado em 7:18: ‘«Não percebeis que tudo

quanto de fora entra no homem não pode torná-lo impuro,

porque não penetra no seu coração mas no ventre, e

depois é expelido em lugar próprio?» Assim, declarava

puros todos os alimentos.’”


“É isso mesmo. Jesus está ou não a contrariar as

Escrituras?”


“Talvez,

mas

não

necessariamente”,

retorquiu

o

historiador. “É importante salientar que há boas razões

para duvidar que Jesus tenha realmente declarado a

pureza de toda a comida, assim invalidando o Antigo

Testamento.”


“Ora essa! Porque diz isso?”


“Porque a declaração de pureza não está numa citação de

Jesus, mas num comentário de Marcos. Além disso, esse

comentário sofre contradição noutros textos do Novo

Testamento.” Localizou um extracto. “Mateus, por

exemplo, cita Jesus em 15:17 como tendo perguntado:

‘Não compreendeis que tudo aquilo que entra pela boca

passa para o ventre e é expelido em lugar próprio, ao

passo que tudo quanto sai da boca provém do coração, e

é isso que torna o homem impuro?’ Como pode ver, Mateus

não conclui que Jesus declarou toda a comida pura.”

Avançou umas páginas. “O mais importante é o que Lucas

diz nos Actos dos Apóstolos, em 10:14, quando, já

depois da morte de Jesus, uma voz ordena a Pedro que

coma comida impura e o apóstolo responde: ‘De modo

algum, Senhor! Nunca comi nada de profano, nem de

impuro!’ Ou seja, Pedro respeitava a comida kosher. Se

Jesus alguma vez tivesse decretado toda a comida pura,

Pedro também a comeria sem problemas. Mas o facto, é

que não comia. Logo, Jesus também não a devia comer.”


“Então como explica que Marcos ponha Jesus a anular as

leis dos alimentos previstas no Antigo Testamento?”


“É uma retroacção.”

“Uma retro... quê?”

“O debate sobre o que se podia ou não comer era típico

do tempo em que o autor de Marcos escreveu o Evangelho.

A mensagem cristã não atraiu os restantes judeus, para

quem era ridículo dizer que um rabino pobre da Galileia

que fora crucificado como um reles bandido era o

poderoso Messias previsto nas Escrituras, mas seduziu

muitos gentios. Isso levantou um problema novo. Seriam

esses gentios obrigados a respeitar todas as regras do


judaísmo? As três questões dominantes na comunidade de

cristãos passaram a ser a proibição de consumir

alimentos impuros e de trabalhar ao sábado, e a

obrigatoriedade

da

circuncisão.

Havia

grupos

de

cristãos judeus que insistiam que as regras judaicas

eram para manter, enquanto outros admitiam que não. É

evidente que muitos gentios gostavam de comer porco,

pretendiam trabalhar ao sábado, e sobretudo não queriam

de modo nenhum que lhes tocassem com lâminas no pénis,

pelo que a insistência no respeito dessas três regras

só servia para os desencorajar de aderir ao movimento.

A questão é que sem os gentios não havia modo de o

movimento florescer, uma vez que os judeus não aderiam.

Tornou-se então fundamental eliminar essas regras que

desagradavam aos gentios. Daí que a obrigatoriedade da

circuncisão ou a proibição de consumir alimentos

impuros e trabalhar ao sábado tivesse acabado por ser

anulada.

Mas

como

legitimar

teologicamente

essa

anulação? A melhor maneira, claro, era atribuir a ordem

ao próprio Jesus. Foi o que Marcos fez.”


Valentina soergueu o sobrolho.


“Os evangelistas podiam fazer isso?”

Tomás riu-se.

“As retroacções são muito normais nos Evangelhos”,

confirmou. “Por exemplo, Lucas põe Jesus a dizer em

21:20: ‘Mas quando virdes Jerusalém sitiada por

exércitos, ficai sabendo que a sua ruína está próxima.’

Ora os Romanos sitiaram e destruíram Jerusalém no ano

70, acontecimento que já tinha ocorrido quando Lucas

escreveu o seu texto. Sabendo desse evento traumático,

o evangelista pôs Jesus a profetizá-lo. Isso foi uma

retroacção. Quando as profecias são escritas após o

acontecimento, a profecia e o acontecimento têm uma

natural

tendência

a

coincidir,

não

é

verdade?

Acontecia, por isso, vermos Jesus a dar respostas nos

Evangelhos a problemas que não eram do seu tempo, mas

do tempo dos próprios evangelistas.”


“É o caso do debate sobre a comida pura?”


“Precisamente. Este debate não é do tempo de Jesus, mas

do tempo dos autores dos Evangelhos. Na Carta aos Gála-

tas, Paulo descreve até um desacordo que teve com Pedro

justamente por causa da comida kosher. Escreve Paulo em

2:12: ‘Antes de terem chegado alguns homens da parte de

Tiago, ele comia juntamente com os gentios; mas, quando

eles chegaram, retraiu-se e separou-se deles, com

receio dos da circuncisão.’ Pedro justificou-se em

2:15: ‘Nós somos judeus por nascimento, e não pecadores

dentre os gentios.’


Isto significa que Pedro, que privou com Jesus,

insistia em respeitar as leis judaicas da alimentação.

Isto faz pressupor que Jesus também as respeitava.”


A italiana franziu o sobrolho, uma objecção a

formar-se-lhe na mente.


“Está bem, Pedro respeitava as leis da comida kosher”,

admitiu. “Mas Paulo não. E Paulo também era um

apóstolo. Portanto, se Paulo não respeitava a regra da

pureza alimentar, porque não admitir que era ele quem

seguia o exemplo de Jesus?”


O historiador sorriu e abanou a cabeça.

“Porque Paulo nunca conheceu Jesus.”

“Oh, lá vem você com as suas histórias!”, exclamou ela.

“Pois se ele era um apóstolo!...”


“Pois é, mas Paulo é o único dos apóstolos que nunca

conheceu Jesus pessoalmente”, explicou. “Paulo só se

converteu quando teve uma visão de Jesus já depois da

crucificação. Esse foi o seu único suposto contacto com

Jesus e o que lhe permitiu reivindicar o estatuto de

apóstolo. Mais tarde partiu para Jerusalém e conheceu

Pedro e o irmão de Jesus, Tiago. O que ele sabia do

Jesus de carne e osso era portanto pela boca de Pedro e

Tiago, não por experiência pessoal. Isto significa que,

quando Paulo entra em desacordo com Pedro, é a posição

de Pedro que mais provavelmente representa a posição de

Jesus. Se Pedro tinha pudor em comer com os gentios e


Paulo não tinha, então provavelmente Jesus também teria

pudor. Aliás, é interessante notar que, neste confronto

com Pedro, Paulo não deu o exemplo de Jesus. Se Paulo

soubesse que Jesus não respeitava as leis da pureza da

comida, teria decerto invocado esse argumento para

derrotar Pedro. Contudo, não o fez, indício seguro de

que ou desconhecia a posição de Jesus sobre esta

questão ou tinha consciência de que ela lhe era

desfavorável.”


Arnie Grossman, que até ali se havia mantido calado a

assistir à conversa, remexeu-se no sofá.


“Pois, já percebemos que Jesus respeitava as leis dos

alimentos kosher”, disse, desejoso de que a conversa

avançasse. “Mas o que está a tentar provar?”


“Estou a dizer-vos que as principais disputas descritas

nos Evangelhos entre Jesus e os fariseus se centram nas

proibições de consumir comida impura e de trabalhar ao

sábado, que curiosamente são duas das três principais

questões em debate na comunidade de cristãos na altura

em que os Evangelhos foram escritos.”


“Acha que isso não é coincidência?”


“Claro que não! A preeminência destas polémicas nos

Evangelhos não reflecte necessariamente os debates do

tempo de Jesus, mas os debates posteriores, de quando

os gentios aderiram ao movimento. O que os evangelistas

estavam a tentar fazer era tranquilizar os gentios,

pondo na boca de Jesus afirmações que permitiam que

eles trabalhassem ao sábado e comessem alimentos

impuros, como estavam habituados a fazer. Se essas

interdições judaicas se mantivessem, era provável que a

grande maioria abandonasse o movimento.”


“Estou a entender.”


“Os evangelistas encheram os seus textos com todas as

histórias que encontraram que pudessem pôr Jesus a

desautorizar as Escrituras nestas duas questões. O

problema é que não detectaram muita coisa nas tradições


que consultaram. Em parte alguma, com excepção daquela

retroacção de Marcos sobre a comida kosher, vemos Jesus

a pôr em causa a lei. Ele limita-se a fazer como todos

os judeus, os do seu tempo e os actuais, isto é, apenas

discute interpretações na aplicação da lei, não a

própria lei. Os evangelistas tentam a todo o custo

polemizar minudências, num esforço desesperado para se

agarrarem a tudo o que podiam. Fizeram isso com a

comida impura, mas também com o sábado.”


“Sim, o sábado!”, exclamou Grossman. “Diz o senhor que

Jesus não questionou o trabalho ao sábado?”


“Claro que não. Repare, o Êxodo proíbe o trabalho ao

sábado, mas o que é isso de trabalho? É aqui que

começam as divergências. Como sabe, alguns judeus dizem

que apanhar espigas para comer não é trabalho, outros

acham que é. Tal como os restantes judeus, Jesus tinha

as suas opiniões sobre o assunto. Marcos descreve os

discípulos de Jesus a colherem espigas ao sábado,

questão que suscitou dúvidas dos fariseus. Jesus

respondeu em 2:25 com uma excepção fornecida pelas

Escrituras: ‘Nunca lestes o que fez David, quando teve

necessidade e sentiu fome, ele e os que estavam com

ele?’ Era uma referência a um episódio em que David e

os seus homens trabalharam ao sábado porque tinham

fome. Ou seja, Jesus jamais pôs em dúvida que o sábado

fosse um dia sagrado. Apenas questionou o que se podia

ou não fazer ao sábado. Mas é importante sublinhar que

entre os judeus era aceitável debater estas pequenas

regras. Até os fariseus discordavam entre si sobre o

trabalho ao sábado e discordavam dos saduceus sobre

essa e outras regras. Há textos de autores judaicos,

como Filo, a discutir o que se pode ou não fazer ao

sábado. Embora a nós, hoje, nos pareçam bizantinos e

irrelevantes, eram debates normais entre os judeus.”


“E o divórcio?”, atalhou Valentina, regressando à

conversa. “As Escrituras aceitam-no, mas Jesus proíbeo.

Ou nega isso?”


“Não, não nego nada”, replicou Tomás, voltando a

folhear a sua Bíblia. “É verdade que Jesus interditou o


divórcio, mas fê-lo exclusivamente no quadro das

próprias Escrituras. Basta ver como Marcos põe o

problema quando Jesus é questionado em 10:2-9:

‘Aproximaram-se uns fariseus e perguntaram-Lhe se era

lícito ao marido repudiar a mulher. Esta pergunta foi

feita para O experimentarem. Respondeu-lhes Ele: «Que

vos preceituou Moisés?» «Moisés permitiu passar carta

de divórcio e repudiá-la», responderam-lhe. Jesus

retorquiu-lhes: «Devido à dureza do vosso coração é que

Ele vos deixou esse mandamento. Mas, ao princípio da

criação, Deus fê-los homem e mulher. Por causa disso,

deixará o homem seu pai e sua mãe e passarão os dois a

ser uma só carne. Portanto, já não são dois, mas uma só

carne. Aquilo, pois, que Deus uniu não separe o

homem.»’ Ou seja, Jesus diz que Moisés apenas permitiu

o divórcio ‘devido à dureza do vosso coração’, não por

o

divórcio

ser

algo

intrinsecamente

sagrado.

Considerando que a questão punha a vontade de Deus em

conflito, Jesus estabeleceu que a união abençoada por

Deus é que era sagrada, não o direito ao divórcio. Isto

é, mais uma vez, uma interpretação perfeitamente

judaica. Os manuscritos do Mar Morto mostram que os

essénios, outro grupo de judeus, tinham pontos de vista

semelhantes sobre o casamento e o divórcio. Havia

judeus que apresentavam interpretações liberais e

outros

que

se

inclinavam

para

interpretações

conservadoras. Neste caso, Jesus flectiu para o lado

conservador.”


De novo, Valentina descruzou e cruzou as pernas com um

movimento rápido e impaciente.


“Va bene, va bene”, aceitou entre dentes, a voz atada

de relutância. “Jesus era judeu nos costumes. Aceito

isso. Mas a mensagem que ele nos trouxe não se limita a

essas questões da comida e do trabalho ao sábado, pois

não?”


“Claro que não”, admitiu o historiador. “É verdade que

esses assuntos dominaram os debates que manteve com os

fariseus ao longo dos Evangelhos. Mas é evidente que

Jesus abordou igualmente outras questões. Algumas delas


revelaram-se da maior relevância em termos éticos e

teológicos.”


“Ah!”, exclamou ela, triunfante. “É o que eu digo!

Jesus abordou questões de fundo. E foi justamente com

essas questões que ele rompeu com os judeus e fundou o

cristianismo!”


Tomás respirou fundo e olhou para Grossman, que se

remetera novamente ao silêncio. Depois voltou a encarar

a italiana e considerou como poderia articular a

réplica à afirmação que ela acabara de proferir.

Poderia ser meigo e diplomático, mas isso requeria

muito trabalho de imaginação e àquela hora já não se

sentia com forças para tanto. O melhor era manter-se

curto e directo, mesmo correndo o risco de se revelar

brutal.


“Minha cara”, disse. “Ainda não percebeu qual é a

consequência última de Jesus ser judeu?”


“Um judeu que fundou o cristianismo.”


“Não”, insistiu Tomás com um toque de impaciência.

“Cristo não era cristão.”


XXXVI


A noite já havia caído sobre Jerusalém. Aproveitando a

cobertura da treva densa, Sicarius aproximou-se com

cuidado da janela e, sempre com mil cautelas para não

ser avistado, espreitou para o interior. Viu três

pessoas sentadas em sofás a conversar e perscrutou-lhes

as faces. Uma era de uma mulher. Outra correspondia à

fotografia que o mestre lhe havia enviado por e-mail.


“Tomás Noronha”, murmurou.

O seu alvo.

Tendo-se assegurado de que o historiador não estava em

condições de interferir na sua acção, Sicarius voltou a

mergulhar na sombra. Atravessou a rua, passou ao lado

da escadaria estreita que conduzia à livraria, àquela

hora encerrada, e penetrou na zona residencial do

American Colony.


“Quinze”, murmurou, falando para si mesmo. “Quarto

quinze.”


Caminhou na noite à procura da porta do quarto de

Tomás. Obter o número havia sido a coisa mais simples

do mundo. Bastara ter-se instalado na recepção durante

a tarde, sentado numa posição privilegiada, e ter visto

o seu alvo chegar e pedir a chave do quarto. Os

recepcionistas entregaram-lhe a chave número quinze.


Movendo-se na obscuridade, Sicarius identificou a porta

treze, depois a catorze e chegou finalmente à quinze.

Olhou em redor para se certificar de que ninguém o

estava a observar. Com um movimento rápido, extraiu do

bolso a chave mestra, que havia furtado da sala das

empregadas de limpeza depois de sair da recepção, e

inseriu-a na fechadura. Acto contínuo, a porta abriu-

-se.


Sem perder tempo, Sicarius entrou no quarto, fechou a

porta e ligou a lanterna. O foco dançou de um lado para

o outro, perscrutando a área. Era a primeira vez que


via um quarto do American Colony e ficou surpreendido;

não imaginara que fosse tão espaçoso.


Esquadrinhou metodicamente o espaço, revistando todos

os cantos. Inspeccionou o quarto de banho, o armário, a

varanda e até o pequeno frigorífico. Tinha de escolher

o local adequado para se ocultar. Qual o melhor? O foco

da lanterna saltitava de lugar em lugar, como se fosse

a luz, e não o intruso, quem permanecia indeciso.


“Maldição!”, resmungou. “Já me esquecia!”


Aproximou-se da cama, larga e com o cobertor dobrado

aos pés, e inspeccionou-a. Tinha várias almofadas bem

gordas, o que lhe conferia volume. Meteu a mão no bolso

das calças e extraiu a folha de papel que trazia

dobrada. Desdobrou-a e fez incidir o foco da lanterna

sobre o seu conteúdo, para se certificar de que tinha

trazido o papel correcto.


Era este mesmo.


Deu um passo para a cama e pousou a folha de papel

sobre a mesinha-de-cabeceira, mesmo ao lado do pequeno

candeeiro. Recuou e contemplou a posição da folha.

Achou que estava tudo muito bem. Era realmente melhor

tratar de tudo com calma; depois de fazer o que tinha a

fazer, a confusão poderia ser demasiado grande.

Parecia-lhe importante deixar já resolvido o problema

da mensagem.


Voltou a luz da lanterna para a mão e consultou o papel

que havia imprimido com as instruções enviadas pelo

mestre para o seu e-mail. Não queria cometer erros e

considerava importante memorizar tudo sem falhas.


A seguir regressou ao centro do quarto e recomeçou a

girar o foco da lanterna em todas as direcções. Onde

diabo se haveria de esconder? Aqui? Ali? Acolá? E

se?...


Tinha acabado de descobrir o sítio adequado. Por Deus,

muito mais do que adequado! Que rica surpresa teria


aquele Tomás Noronha quando entrasse no quarto! Ah,

como estava ansioso por que o momento chegasse! Não

havia dúvidas, aquele esconderijo era... era...


Perfeito.

“Já sei!”


XXXVII


O dedo furioso de Valentina estava apontado na direcção

de Tomás e tremia com indignação, como o de uma vítima

em tribunal a denunciar ao juiz o seu algoz.


“Sabe o que você é?”, rugiu ela. “O Anticristo!”

O historiador riu-se.

“Eu?”


“Sim. O Anticristo!” Ergueu os olhos azuis, como se

quisesse comunicar directamente com o Altíssimo. “Dio

mio, porque me enviaste esta maldita criatura? É uma

provação? Um teste à minha fé? Este homem... este

herege... este demónio parece apostado em demolir tudo

o que me ensinaram! Agora diz que Cristo não era

cristão!” Ainda a olhar para o alto, fez um gesto

teatral na direcção do seu interlocutor. “Pai, afasta

de mim este cálice!”


Apesar do tom exageradamente dramático, ela parecia

falar a sério. Na dúvida sobre como reagir, Tomás

voltou a soltar uma gargalhada; pareceu-lhe mais seguro

encarar aquele protesto com humor.


“Se quiser eu calo-me.”


“Aleluia!”, exultou ela, erguendo os braços como se

agradecesse aos Céus. “Aleluia!” Pousou o olhar nele.

“Parece-me de facto melhor que se cale! Ufa, já não o

consigo ouvir!”


Arnie Grossman agitou-se no seu assento.


“Eh lá!”, exclamou, como um advogado a recorrer da

decisão. “Não é bem assim! Eu preciso de saber qual o

interesse que os sicarii têm em apontar as fraudes no

Novo Testamento. Essa explicação pode ser crucial para

identificar quem está por detrás destes homicídios...”


O olhar indeciso de Tomás bailou entre o israelita e a

italiana.


“Então, como é?”, quis saber. “Continuo ou calo-me?

Decidam-se!”


Valentina suspirou, vencida, com um gesto de rendição.

“Prossiga.”

O historiador fez uma pausa para reestruturar os seus

pensamentos e avaliar o melhor caminho para prosseguir.


“Bem, para dar essa explicação é fundamental que vocês

percebam que Jesus era judeu a cem por cento.”


“Só nos costumes”, interpôs Valentina. “Na ética e na

teologia introduziu inovações que, quer você queira

quer não, fundaram o cristianismo.”


Tomás cravou o olhar nela.


“Quais inovações? Sabe qual era a crença central de

Jesus?”


“Amai o próximo.”


O historiador voltou-se para Arnie Grossman.


“Qual é a crença fundamental dos judeus, a oração na

base da vossa religião?”


“Sem dúvida que é o Shema”, retorquiu ele de imediato.

Para exemplificar, o polícia israelita tapou os olhos

com a mão direita e entoou a prece, como fazia todos os

sábados na sua sinagoga ou diante do Muro das

Lamentações. “‘Escuta, ó Israel! O Senhor, nosso Deus,

é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo

o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas

forças!”’


Enquanto Grossman entoava o Shema, Tomás folheava a sua

Bíblia para localizar um trecho.


“O Shema está enunciado em Deuteronómio, 6:4”,

identificou. “Agora vou ler o que está escrito no

Evangelho segundo Marcos, 12:28-30: ‘Aproximou-se d’Ele

um escriba que os tinha ouvido discutir, e, vendo que

Jesus lhes tinha respondido bem, perguntou-Lhe: «Qual é

o primeiro de todos os mandamentos?» Jesus respondeu:

«O primeiro é: Ouve, Israel: O Senhor, nosso Deus, é o

único Senhor; amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu

coração, com toda a tua alma, com todo o teu

entendimento e com todas as tuas forças.»”’ Bateu com o

dedo no versículo. “Ou seja, quando questionado sobre

qual a sua crença central, Jesus não fala no amor ao

próximo. A sua crença central é o Shema judaico, o amor

a Deus e a crença no monoteísmo. É esta a crença

basilar de Jesus. É a crença de um judeu a cem por

cento.”


Valentina pegou no exemplar da Bíblia que estava aberto

nas mãos do português e verificou o texto.


“Está bem, Jesus diz aqui que acima de tudo está o

Shema”, admitiu. “Mas você não leu tudo! Veja o que

Jesus afirma a seguir: ‘O segundo é este: «Amarás o teu

próximo como a ti mesmo.» Não há outro mandamento maior

que estes.”’ Fez um ar triunfante. “Está a ver? Está a

ver? É verdade que Jesus pôs o amor a Deus acima de

tudo, como os restantes judeus. Mas logo a seguir

introduziu uma inovação teológica. Estabeleceu o amor

ao próximo como o segundo maior mandamento! Isto é uma

inovação! É esta ideia que funda o cristianismo!”


O historiador mantém o olhar pousado nela.

“Tem a certeza?”

“Então não tenho? Jesus ensinou o amor ao próximo. É

este ensinamento que separa o cristianismo do judaísmo!

O Deus dos judeus é cruel e vingativo, mas o Deus de

Jesus é benigno e cheio de compaixão. O Antigo

Testamento fala na justiça de Deus, o Novo Testamento

traz-nos o amor de Deus! É esta a grande revolução de

Jesus! O amor de Deus, o amor ao próximo.” Fez um gesto


largo, a indicar as pessoas em redor. “Toda a gente

sabe!”


Tomás recomeçou a folhear a sua Bíblia.


“Ai sim?” perguntou com uma ponta de ironia. “Então

vejamos o que está escrito no Antigo Testamento dos

judeus.” Identificou o trecho. “Diz Deus a Moisés em

Levítico, 19:18: ‘Não te vingarás nem guardarás rancor

aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a

ti mesmo. Eu sou o Senhor.’” Ergueu a cabeça. “Então?”


Valentina observava as páginas da Bíblia com um olhar

atrapalhado.


“Bem... quer dizer, enfim...”


“Você disse-me que a inovação de Jesus era o amor. Mas

afinal as Escrituras dos judeus já falam no amor. Como

é? Jesus inovou ou limitou-se a repetir um mandamento

da lei de Moisés?”


“Pois... está bem”, gaguejou ela. “Mas... mas as

Escrituras dos judeus não dão ao amor a ênfase que

Jesus lhe dá. E essa a inovação.”


O historiador fechou a Bíblia e deixou-a pousada no

regaço.


“Qual ênfase?”, questionou. “Sabe quantas vezes aparece

a palavra amor no Evangelho segundo Marcos? Apenas essa

vez! A frase narrada em Marcos 12:31 é o único momento

desse evangelho em que Jesus fala no amor ao próximo!”


“Mas... mas não foi essa a inovação de Jesus?”


“Qual inovação?”, insistiu. “Você tem de perceber que

Jesus se limitou a fazer o que qualquer judeu fazia e

ainda faz.” Indicou o livro. “Sabe, o Antigo Testamento

inclui textos para todos os gostos. Uns judeus

privilegiam umas leituras, outros privilegiam outras.

Jesus fez as suas escolhas. Mas é importante que

perceba que ele não inovou coisa nenhuma. Tudo o que


ele disse foi no quadro exclusivo do judaísmo. Jesus

privilegiava o amor? À luz do que está escrito no

Evangelho segundo Marcos, o mais antigo dos Evangelhos,

essa afirmação é muito questionável. Mesmo que a

aceitemos, é importante sublinhar que outros judeus

também privilegiavam o amor. O célebre rabino Hillel

reduziu as Escrituras a esta observação: ‘Não faças aos

outros o que não queres que te façam a ti; tudo o resto

é comentário, leiam e aprendam.’ Jesus era um judeu que

vivia segundo os costumes judaicos, acreditava no Deus

judaico e ensinava a lei judaica. Não se desviou do

judaísmo nem um milímetro!”


A italiana abanou a cabeça, recusando-se a aceitar a

ideia.


“Isso não é verdade!”, exclamou. “O que Jesus pregava

entrou em ruptura com o judaísmo! Tenho a certeza

absoluta! Ele revogou certos aspectos da lei judaica!”


Percebendo que tinha de recorrer à artilharia pesada,

Tomás voltou a abrir a sua Bíblia.


“Acha que sim?”, perguntou. “Então veja o que diz Jesus

no Evangelho segundo Lucas, 16:17: ‘É mais fácil que o

céu e a terra passem do que cair um só til da lei.’ Ou

seja, Jesus defendeu a aplicação da lei judaica até ao

último til! Diz Jesus no Evangelho segundo João, em

10:35: ‘A Escritura não pode ser anulada.’ Isto é, o

Antigo Testamento não é revogável nem abrogável! E diz

Jesus no Evangelho segundo Mateus, em 5:17-18: ‘Não

penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas: Não vim

revogá-la, mas completá-la. Porque, em verdade, vos

digo: Até que passem o Céu e a Terra, não passará um só

jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra.’

Quer dizer, Jesus não só disse que não veio revogar a

lei judaica como insistiu que ela será respeitada até

ao derradeiro jota!” Cravou os olhos em Valentina.

“Pergunto-lhe eu: acha que estas palavras são de alguém

que quer mudar a lei judaica?”


A inspectora da Polizia Giudiziaria deixou-se cair

sobre as costas do sofá, numa postura de total

rendição.


“Pois, realmente...”, murmurou. Abanou a cabeça, não em

negação, mas como se tentasse encaixar todas as peças

soltas na sua mente. “Mas, se assim é, o cristianismo

funda-se em quê? Não percebo...”


“A estranha verdade é que o cristianismo não se funda

na vida de Jesus, nem nos seus ensinamentos”, disse.

“Ele era um judeu que respeitava e pregava a lei

judaica. Havia pontos inquestionáveis nessa lei, mas

outros permaneciam abertos a interpretações. Uns judeus

mais liberais interpretavam-na de uma maneira, outros

mais conservadores interpretavam-na de outra. Os

fariseus, por exemplo, eram conservadores.”


“E Jesus?”


“Também o era. Foi por isso que entrou em competição

com os fariseus. Jesus e eles disputavam quem

interpretava a lei de forma mais estrita. Os fariseus

privilegiavam a letra da lei, Jesus dava também atenção

ao seu espírito. Isso é muito visível no Sermão da

Montanha, onde Jesus cita a lei e depois enuncia o que

considera ser o seu espírito. Por exemplo, não só as

pessoas não devem matar como nem devem ficar zangadas;

não só devem evitar o adultério como também devem

evitar o simples desejo; não só devem amar o seu

próximo como também devem amar o inimigo. É como se

Jesus estivesse em competição com os outros judeus. Não

lhe interessava apenas a letra da lei. Levava a lei

judaica tão a sério que chegava ao ponto de querer

respeitar o que achava ser a intenção por detrás dessa

letra.”


Valentina fez um ar pensativo.


“Daí que ele nunca se zangasse e vivesse com grande

austeridade.”


Tomás olhou-a durante dois segundos, na dúvida sobre se

deveria ou não contradizê-la. Acabou por decidir levar

a verdade até ao fim.


“Lamento decepcioná-la, mas Jesus era tudo menos

austero”, disse. “Há um extracto em Mateus e em Lucas

onde Jesus contrasta a austeridade de João Baptista com

a sua própria flexibilidade. Diz Jesus em Mateus 11:18:

‘Veio, efectivamente João, que não come nem bebe, e

dizem dele: «Está possesso»! Veio o Filho do Homem, que

come e bebe, e dizem: «Aí está um glutão e bebedor,

amigo de publicanos e pecadores!»’ Ou seja, Jesus

admite que gostava da pingoleta e que era um valente

garfo!”


A italiana riu-se.

“Chamem-lhe parvo!”

“E há indícios de que, apesar de pregar que ninguém se

deveria zangar, ele próprio se zangava.”


O sorriso de Valentina desfez-se.

“O quê? Nunca ouvi falar nisso!...”

Tomás localizou o extracto pertinente na sua Bíblia.


“É um versículo no Evangelho segundo Marcos”, disse.

“Está em 1:40-41: ‘Um leproso veio ter com Ele, caiu de

joelhos e suplicou-Lhe: «Se quiseres, podes limpar-me.»

Compadecido, Jesus estendeu a mão, tocou-lhe e disse:

«Quero, fica limpo.»’”


“Não vejo nada que indicie que Jesus ficou zangado”,

observou

a

italiana.

“Pelo

contrário,

ficou

compadecido.”


“Esta tradução usa uma palavra grega que aparece na

maior

parte

dos

manuscritos,

splangnistheis,

ou

compadecido. O problema é que há outros manuscritos que

usam a palavra orgistheis, ou zangado.”


“Mas, veja bem, dizer que Jesus ficou zangado quando

lhe apareceu um leproso não faz sentido”, argumentou

ela. “Mas dizer que ele ficou compadecido já faz.”


“É verdade”, admitiu Tomás. “E também é verdade que o

compadecido surge na maior parte dos textos. O problema

é que a palavra zangado aparece num dos mais antigos

manuscritos existentes, o Codex Bezae, do século V.

Mais importante que isso é que a mesma palavra surge

também em três manuscritos em latim traduzidos a partir

de cópias do século II, enquanto compadecido surge pela

primeira vez nos manuscritos do final do século IV.

Perante este impasse, qual a leitura mais embaraçosa

para os cristãos?”


“Bem... zangado é a palavra mais embaraçosa.”


“Proclivi scriptioni praestat ardua”, recitou. “A

leitura mais difícil é melhor do que a mais fácil.

Trata-se de um princípio elementar da análise histórica

de documentos. É mais natural que um copista cristão

transforme zangado em compadecido do que o inverso. Se

o copista manteve a palavra zangado, apesar de ser

embaraçosa, é porque provavelmente essa é que foi a

palavra originalmente escrita pelo autor de Marcos. É

impossível ter a certeza, claro, mas esta interpretação

é reforçada pelo facto de Mateus e Lucas terem copiado

este trecho de Marcos palavra a palavra, tendo apenas

suprimido a reacção de Jesus. Mateus e Lucas não dizem

que Jesus ficou compadecido ou zangado. Omitem a

reacção. Isso é um indício de que não terão gostado da

palavra originalmente usada por Marcos para descrever a

reacção de Jesus ao leproso. Se a palavra fosse

compadecido, não se vêem motivos para Lucas e Mateus

ficarem embaraçados e a eliminarem. Mas se a palavra

fosse zangado, já se compreende porque a suprimiram.”

Fechou a Bíblia. “De resto, este não é o único ponto

onde Jesus se zanga. Basta lembrar a fúria que ele teve

em Jerusalém quando visitou o Templo, por exemplo,

episódio bem documentado nos Evangelhos.”


Arnie Grossman consultou o seu relógio e, apercebendo-

se do adiantado da hora, deu uma sonora palmada nas


coxas e inclinou o tronco para a frente, fazendo

tenções de se levantar.


“Bem, meus amigos, já se faz tarde!”, exclamou, pondo-

se devagar de pé. “Acham que poderemos continuar a

conversa durante o jantar?” Apontou para Tomás. “É que

o senhor ainda não respondeu à minha pergunta: o que

estavam os sicarii a fazer quando deixaram aqueles

enigmas junto aos cadáveres?”


Valentina

e

Tomás puseram-se também

de

pé.

O

historiador encolheu os ombros e indicou a italiana.


“Por mim, já tinha respondido directamente à sua

pergunta”, devolveu. “O problema é que ela não vai

compreender a resposta se não perceber um conjunto de

questões.”


“Eu?”, admirou-se a inspectora da Polizia Giudiziaria.

“Agora a culpa é minha?”


Tomás ignorou-a e olhou para o israelita.


“Vá andando para o restaurante”, indicou. “Eu vou só

ali ao quarto mudar de roupa e já volto.”


“Eu também vou”, apressou-se a adiantar Valentina,

pegando na sua mala de senhora. Apontou para Tomás. “De

caminho, espero que responda à minha pergunta.”


“Qual delas?”


“Se o cristianismo não se funda na vida de Jesus nem em

novos ensinamentos sobre as Escrituras”, recordou,

“funda-se em quê, afinal?”


Tomás indicou o pequeno crucifixo de prata que ela

mantinha no pescoço.


“Funda-se na morte de Jesus.”


Quase numa reacção reflexa, a italiana levou a mão ao

pescoço e acariciou o pequeno crucifixo.


“Na morte? Desculpe, mas isso é apenas um aspecto do

cristianismo.”


Antes de se voltar para a porta do átrio e de se

dirigir para o quarto, o historiador respondeu-lhe.


“A morte de Jesus, minha cara, é tudo.”


XXXVIII


A noite de Jerusalém era quente e seca, sem uma brisa a

temperar o ar. Tomás e Valentina saíram do átrio do

American Colony para a rua, uma estreita faixa de

caminho privado, e procuraram as luzes amareladas da

zona residencial do hotel. Os quartos ficavam do outro

lado da rua, entre a verdura.


“Não estou a perceber o que acabou de me dizer”,

observou ela. “A morte de Jesus é tudo? Que significa

isso?”


Tomás ergueu os olhos para o firmamento e apreciou a

miríade de estrelas que enxameavam a treva profunda,

como pó de diamantes espalhado sobre um manto de veludo

negro.


“Decerto já ouviu na missa os padres dizerem que Jesus

morreu para nos salvar.”


“Ah, sim. Com certeza. Quem não ouviu?”


O historiador estreitou os olhos, enfatizando a

importância da pergunta seguinte.


“Mas salvar-nos de quê?”


“Bem... salvar-nos de... de... de tudo.”

“Tudo, o quê?”

“O mal, o pecado... sei lá.”


“Nesse caso, Jesus morreu na cruz e nós ficámos salvos

do mal e do pecado?”


Os olhos de Valentina saltitaram com embaraço pelo

espaço em redor, como se buscassem a resposta em

qualquer canto da rua que a noite turvara.


“Quer dizer... sim, acho eu.”


“Então já não há mal no mundo? Nem pecado?”

“Enfim... claro que há. Ainda há.”

“Mas não foi Jesus que morreu para nos salvar do mal e

do pecado? Então por que razão ainda existe mal e

pecado?” A italiana bufou e encolheu-se, como um balão

que de repente se esvazia.

“Oh, sei lá”, rendeu-se. “Isso é uma trapalhada!...”

Satisfeito por ter feito a demonstração que tinha em

mente, Tomás começou a andar e atravessou a pequena

rua.


“A história de que Jesus morreu para nos salvar sempre

me fez confusão”, admitiu. “De cada vez que ouvia essa

frase numa igreja, interrogava-me: morreu para me

salvar? Mas salvar-me de quê? De quê? Essa ideia não

fazia nenhum sentido na minha cabeça, era apenas uma

daquelas expressões enigmáticas que eu me limitava a

papaguear na catequese sem entender.” Desceu o olhar

para a Bíblia que tinha na mão. “Foi só quando estudei

o judaísmo que percebi enfim o que queria isso dizer.”


“Ai sim?”, admirou-se Valentina. “A resposta está no

judaísmo?”


“Minha cara, tudo o que envolve a vida e a morte de

Jesus tem a ver exclusivamente com o judaísmo”,

sentenciou ele. “Tudo.”


“Mas em que sentido?”


Passaram ao pé das escadinhas que conduziam à livraria

do hotel. Numa pequena vitrina encontrava-se um guia

turístico com a capa ilustrada por uma pintura a

reconstituir o Templo de Jerusalém.


“Está a ver aqui o Templo?”, perguntou, apontando para

a imagem. “Os judeus acreditavam que o lugar onde a

presença física de Deus mais se sentia era no Templo.”

Indicou um compartimento no centro do complexo


religioso. “Mais exactamente nesta câmara. Achavam que

esta sala era o mais sagrado de todos os lugares e

chamavam-lhe o santo dos santos. A sala continha a arca

da aliança, com as tábuas da lei que Deus havia

entregue a Moisés. Estava fechada por uma cortina e

ninguém podia lá entrar. Com uma excepção. Todos os

anos, por ocasião do Yom Kippur, o sumo sacerdote do

Templo penetrava no santo dos santos e fazia um

sacrifício. Sabe porquê?”


Valentina encolheu os ombros.

“Ignoro.”

“O Yom Kippur é o dia da expiação. Os judeus acreditam

que Deus regista o destino de cada pessoa num livro, o

livro da vida, e espera pelo Yom Kippur para ditar o

veredicto. Durante um determinado período, cada judeu

confessa os pecados que cometeu ao longo do ano, tenta

obter perdão por eles e assim reconciliar-se com Deus.

A reconciliação faz-se no Yom Kippur através do

sacrifício de um animal. No dia da expiação, o sumo

sacerdote entrava no santo dos santos e matava um

cordeiro, expiando primeiro os seus próprios pecados e

depois os pecados do povo. De resto, todos os judeus

convergiam para Jerusalém no Yom Kippur para fazer o

mesmo. Como muitos vinham de longe e era incómodo

trazerem animais durante toda a viagem para fazerem o

sacrifício em Jerusalém, preferiam comprá-los em tendas

de vendedores às portas do Templo. Era mais prático.

Mas com que moedas o faziam? As moedas romanas eram

inaceitáveis, porque tinham gravada a imagem de César e

isso era considerado uma afronta à soberania de Deus.

Foi por isso criada uma moeda do Templo. Os peregrinos

traziam moedas romanas, trocavam-nas por moedas do

Templo e com elas compravam os animais.”


“Costumes curiosos”, observou a italiana, sem perceber

a relevância daquela explicação. “E então?”


“Agora recuemos dois mil anos”, propôs o historiador.

“Jesus e os seus seguidores, todos eles judeus,

deslocaram-se a Jerusalém por alturas do Yom Kippur. O


que vieram cá fazer? Participar nas cerimónias do dia

da expiação, claro. Mas Jesus era, e digo isto sem

ofensa, um parolo da província.”


Valentina revirou os olhos, agastada.

“Oh, lá está você!”


“A sério! Ele veio das berças! Se ler com atenção os

Evangelhos, vai reparar que Jesus passou a vida inteira

na Galileia. As povoações que frequentava eram

terriolas da província, como Cafarnaum, Corozaim,

Betsaida e outras do género, onde só havia pacóvios.

Não frequentava as grandes urbes. As duas maiores

cidades da Galileia, Séforis e Tiberíades, nem sequer

são mencionadas no Novo Testamento!”


“Já percebi. Adiante.”


“De modo que, quando viu instituído às portas do Templo

o sistema de troca de moedas e de venda de animais para

sacrifício, Jesus ficou ofendido. Achou que se estava a

fazer um negócio à custa de Deus.” A sua voz mudou de

tom, como se ele fizesse um aparte. “O que, aliás, era

verdade, embora se tratasse de um sistema bem mais

prático do que obrigar as pessoas a andarem centenas de

quilómetros com os animais atrás. Mas muitos judeus não

gostavam deste negócio. Os manuscritos do Mar Morto

revelam que os essénios, outro grupo judeu, achava que

o Templo estava corrompido. Isso mostra que criticar

aquele sistema era uma prática normal entre os judeus.”

Retomou o tom normal. “Ao ver o negócio ali montado, o

que fez Jesus? Protestou, derrubou umas bancadas de

moedas e umas caixas com pombos, também vendidos para

sacrifícios, e proferiu umas ameaças. Se calhar um dos

seus seguidores disse que ele era o rei dos judeus, de

modo a credibilizar o protesto. É possível que o

próprio Jesus tivesse profetizado que aquelas práticas

um dia levariam Deus a destruir o Templo. Não foi nada

de muito sério, claro, mas bastou para atrair as

atenções das autoridades. Jerusalém estava cheia de

gente e qualquer altercação poderia degenerar num

tumulto generalizado, o que o sumo sacerdote e os


Romanos queriam a todo o custo evitar, como é

compreensível.”


“Daí que o tivessem mandado prender.”


“Devem ter feito umas perguntas e concluído que estavam

perante uma daquelas figuras meio alucinadas que

poderiam

trazer

problemas.

Mais

valia

anularem

preventivamente aquele foco potencial de distúrbios

numa quadra tão sensível como o Yom Kippur. Prenderam-

-no e sujeitaram-no a um julgamento sumário, como

mandava a lei.”


“E foi aí que a coisa correu mal”, observou a italiana.

“Jesus disse que era o Filho de Deus e isso era uma

blasfémia punível com a morte. Foi por isso que o

executaram.”


O historiador fez uma careta.


“Não foi bem assim”, corrigiu. “É verdade que essa é a

versão dos Evangelhos. Marcos descreve este diálogo

crucial entre o sumo sacerdote e Jesus durante o

julgamento, em 14:61-64: ‘O Sumo Sacerdote voltou a

interrogá-Lo: «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?»

«Sou, respondeu Jesus, e vereis o Filho do Homem

sentado à direita do Poder e vir sobre as nuvens do

céu.» O Sumo Sacerdote rasgou, então, as suas túnicas e

disse: «Que necessidade temos ainda de testemunhas?

Ouvistes a blasfémia! Que vos parece?» E todos

sentenciaram que Ele era réu de morte.”’


“Exactamente”, insistiu Valentina. “Foi a blasfémia que

o condenou à morte.”


Tomás abanou a cabeça.


“Não é possível”, disse. “Em primeiro lugar, nenhum dos

apóstolos presenciou este julgamento. Tudo o que

souberam foi de ouvir dizer. Em segundo lugar, uma

pessoa afirmar que ela própria era o Messias não

constituía blasfémia punível com a morte. Em terceiro

lugar, o que é bem mais importante, a punição por


blasfémia era executada por lapidação. Mas Jesus não

foi lapidado, pois não?”


A inspectora indicou o crucifixo que trazia ao pescoço.

“Foi crucificado, sabe-o bem.”


“Aí é que está o busílis da questão: Jesus foi

crucificado. Acontece que a crucificação era uma forma

romana de execução, não uma forma judaica. E era

reservada aos inimigos dos Romanos.” Indicou o

crucifixo

da

sua

interlocutora.

“Se

Jesus

foi

crucificado, isso significa que não foi morto por

blasfémia, mas porque os Romanos o consideraram uma

ameaça. Em 15:25-26, Marcos dá-nos uma pista: ‘Era a

hora terceira quando O crucificaram. Na inscrição, que

indicava o motivo da condenação, lia-se «O Rei dos

judeus». Ou seja, acharam que o título rei dos judeus

constituía um desafio à autoridade de César, o único

que tinha o poder de designar o monarca da Judeia. Foi

por isso que Jesus foi executado! Por os Romanos terem

entendido que estava a afrontar César!”


“Ah, estou a perceber...”


Recomeçaram a caminhar, dirigindo-se para os corredores

da zona residencial do hotel. Tomás folheou a sua

Bíblia e posicionou-se debaixo de um candeeiro para

poder ler o texto.


“Agora repare como Marcos descreve a morte de Jesus, em

15:37-38”, disse, localizando o trecho. “‘Soltando um

grande brado, Jesus expirou. E o véu do templo rasgou-

-se em duas partes, de alto a baixo.’ ”Ergueu os olhos

para a sua interlocutora. “O véu do templo rasgou-se? A

que véu está Marcos a referir-se?”

“À cortina que isolava o santo dos santos, presumo eu.”

“E presume bem. Agora vem a pergunta mais importante:

por que razão Marcos relacionou a morte de Jesus com o

momento em que essa cortina se rasgou?”


Valentina curvou os lábios, esboçando uma expressão de

absoluta ignorância.


“Sei lá.”


“A resposta a essa pergunta é-nos dada no Evangelho

segundo João. Em 1:29, o evangelista descreve deste

modo o encontro entre João Baptista e Jesus: ‘No dia

seguinte, João viu Jesus, que vinha ter com ele, e

disse: «Aí está o Cordeiro de Deus que vai tirar o

pecado do mundo.»’” O historiador levantou os olhos e

fitou a italiana. “Percebeu?”


“Hmm... não.”


Tomás respirou fundo, quase desanimado. Perante tudo o

que tinha acabado de explicar, era só uma questão de

unir os pontos.


“O sumo sacerdote sacrificava um cordeiro no Yom Kip-

pur para expiar os seus pecados e os de todos os judeus

para que todos se salvassem. Jesus morreu no Yom

Kippur. João chama a Jesus ‘o Cordeiro de Deus que vai

tirar o pecado do mundo’.”


A inspectora da Polizia Giudiziaria arregalou os olhos

e abriu a boca.


“Ah, estou a entender!”


“O que os evangelistas nos estão a dizer é que Jesus

era o cordeiro da humanidade! Ao morrer, expiou os

pecados de toda a gente, da mesma maneira que o

sacrifício dos cordeiros expiava os pecados dos judeus.

É nesse sentido, e só nesse sentido, que a sua morte

significa a salvação de todos nós. A interpretação

dessa morte só se compreende no quadro de referências

da religião judaica. Se sairmos do judaísmo, como

saímos, a morte dele enquanto acto de salvação deixa de

fazer qualquer sentido. É preciso perceber o Yom Kippur

e a religião judaica para entender por que motivo os

seus seguidores, todos eles judeus, interpretaram a

morte de Jesus como um acto de salvação.”


“Sim, tudo agora é claro!”, exclamou ela. Hesitou. “E a

cortina do santo dos santos? Como é que ela aparece

nesta história?”


“É outra referência teológica de grande importância que

só se entende no quadro do judaísmo”, esclareceu o

historiador. “A cortina separava o santo dos santos do

resto do templo. Ou seja, separava Deus dos Seus

filhos. E só se obtinha o perdão de Deus quando no Yom

Kippur o sumo sacerdote cruzava a cortina e entrava na

câmara para sacrificar um cordeiro. Mas ao morrer Jesus

tornou-se o cordeiro de Deus. Quando Marcos diz que a

cortina se rasgou logo que Jesus morreu, está a afirmar

que nesse instante deixou de haver separação entre Deus

e os Seus filhos. A destruição da cortina significa que

Deus se tornou directamente acessível, e não apenas

através dos sacrifícios no Templo. A morte de Jesus

trouxe a expiação a toda a humanidade.”


As portas dos quartos estavam a dez metros e os dois

dirigiram-se a elas. Valentina caminhava, mas ainda não

fechara a boca.


“A cortina do santo dos santos rasgou-se mesmo?” Tomás

riu-se.


“Claro que não”, respondeu. “Não há registo histórico

de tal coisa. Isto é pura teologia, são os evangelistas

a tentarem extrair um significado judaico da morte

inesperada da pessoa que acreditavam ser o Messias. O

importante é que a morte de Jesus só se compreende num

contexto judaico. E é a interpretação que dessa morte

vai ser feita pelos seus seguidores que traz a primeira

ruptura entre o judaísmo e o cristianismo. Daí que eu

tenha dito que a vida e os ensinamentos de Jesus não

fundaram o cristianismo. Provavelmente nunca lhe passou

pela cabeça criar uma nova religião. Ele era um judeu

até ao mais profundo do seu ser.”


“Nesse caso”, recapitulou ela, “o que concluo é que o

cristianismo não se funda na vida e nos ensinamentos de

Jesus.”


“Pois não. Funda-se na sua morte.”


Chegaram diante da porta do quarto de Valentina. A

italiana retirou da mala o cartão de plástico que

servia de chave e inseriu-o na fechadura. A porta

abriu-se e, antes de entrar, ela olhou para trás.


“Tudo isso é realmente muito interessante”, disse. “Mas

agora vou arranjar-me. Encontramo-nos daqui a quinze

minutos no restaurante?”


“Sim”, confirmou o historiador. “O nosso amigo da

polícia israelita está à espera no The Arabesque.”


“Então até já.”


Tomás pôs o braço sobre a aduela da porta e o seu rosto

esboçou uma expressão maliciosa.


“Não me convida a entrar?”


A italiana ia a fechar a porta, mas travou o movimento

e reprimiu um sorriso.


“Está a ver o meu quarto?”, perguntou, indicando com o

polegar o interior do compartimento atrás dela. “É o

santo dos santos.” Acariciou a porta. “Isto é a

cortina.” Apontou-lhe o indicador para o meio do peito.

“Que eu saiba, você não é o sumo sacerdote, pois não?

Portanto, tenha juízo!”


O português fez uma expressão de cachorro abandonado e

voltou-se para se ir embora, mas ainda lhe lançou um

derradeiro olhar por cima do ombro.


“Vista qualquer coisa bonita”, sugeriu com um sorriso

conformado. “E sexy.”


Valentina fingiu-se ofendida.

“Oh! Que parvo!”


E bateu com a porta.


XXXIX


O quarto estava escuro e Tomás, logo que fechou a

porta, tacteou a parede até localizar e carregar no

interruptor da iluminação. Houve um clique, mas a luz

não se acendeu.


“Porra!”


Foi um murmúrio de frustração. Tinha-se esquecido de

inserir a chave do quarto no interruptor; enquanto não

o fizesse, permaneceria às escuras. Às apalpadelas na

treva, o historiador identificou de novo o interruptor

e lá inseriu a chave. Como no Génesis bíblico, fez-se

luz.


Um homem.


A primeira coisa que Tomás viu foi um homem parado

diante dele. Deu um salto de susto e recuou um passo,

encostando-se à porta. Só então viu o rosto do homem.

Era ele próprio. Ou melhor, a imagem dele reflectida no

espelho pregado diante da entrada.


“Ufa!”, desabafou. O coração batia-lhe no peito com a

força do rufar de um tambor. “Que cagaço!” Olhou de

novo para o espelho e riu-se da sua figura, o corpo

espremido contra a porta de entrada como um animal

encurralado. “Caraças, ando nervoso!...”


Endireitou-se e entrou no quarto de banho para urinar,

mas, confiando que a iluminação do quarto servia

perfeitamente, não acendeu a luz. Arrependeu-se, porque

a iluminação era insuficiente e o pequeno compartimento

estava mergulhado na sombra mais completa. Teve

preguiça de voltar atrás, até porque se sentia aflito,

e preferiu procurar a sanita às apalpadelas.


Fez pontaria para o sítio onde presumia que fosse o

centro da retrete; o som gorgolejante do líquido a cair

no líquido indicou-lhe que estava a acertar em cheio no

alvo. Quando terminou puxou o autoclismo e, ainda às


escuras, foi lavar-se. Abriu a torneira e mergulhou as

mãos na água fresca.


Nesse instante sentiu uma presença atrás dele.


“O que é isto?”, perguntou, voltando-se para trás com

um movimento brusco. “Quem está aí?”


Ninguém respondeu.


Alarmado e com o coração aos pulos, Tomás deu um salto

para a porta e carregou por fim no interruptor. Acto

contínuo a luz acendeu-se e revelou o quarto de banho.

Estava deserto.


O historiador respirou fundo.


“Olhem-me para isto!”, murmurou, entre o irritado e o

aliviado. “Pareço um puto, que diabo!” Abanou a cabeça.

“Este caso está a dar-me cabo dos nervos!...”


Saiu para o quarto e foi escolher a roupa que ia vestir

para o jantar. Dirigiu-se ao roupeiro e abriu-o com um

movimento rápido. A maior parte do móvel permanecia

mergulhada na escuridão, mas nem fez caso. Havia três


peças de roupa penduradas nos cabides e escolheu um

blazer azul-escuro.


Queria impressionar Valentina e achou que, para a

noite, o blazer lhe acentuaria o charme mediterrânico.

Além do mais, usaria uma gravata verde que condizia bem

com os seus olhos. A italiana não lhe resistiria. Claro

que tinha de se moderar na forma cruel como dissecava o

Novo Testamento. Católica como ela era, aquilo não lhe

caía nada bem. Mas, em boa verdade, que podia ele

fazer? Mentir? Dourar a pílula? Não tinha nascido para

diplomata e acreditava que a verdade era para abraçar

como uma mulher que se entrega. Nua. E quanto mais crua

mais verdadeira.


Tirou o blazer e a gravata do roupeiro e depois virou-

-se para a camisa. Escolheu uma branca de seda, mas

constatou que as mangas não tinham botões. Depositou as


peças de roupa nas costas do sofá, tendo o cuidado de

não as amarrotar, e dirigiu-se à mesinha-de-cabeceira.

Tinha ideia de ter ali guardado os botões de punho que

o senhor Castro, velho amigo da loja que frequentava na

Avenida da Liberdade, lhe havia oferecido pelo Natal.

Pôs a mão na gaveta para a abrir, mas a sua atenção foi

desviada para um papel pousado ao pé do candeeiro da

mesinha.


“Que é isto?”


Não se lembrava de ter ali deixado qualquer papel.

Seria um recado dos funcionários da limpeza? Ou talvez

se tratasse de uma mensagem que a recepção lhe fizera

chegar ao quarto na sua ausência. Pegou no papel e

contemplou o seu conteúdo.


O que viu deixou-o de olhos arregalados.


“Veritatem dies aperit?”, interrogou-se. “Mas o que

raio vem a ser isto?”


Lançou um longo olhar perscrutador à mensagem, tentando

apreender o seu significado. Percebeu que havia algo de

estranhamente familiar e perturbador naquele papel. Mas

o quê? O mecanismo de raciocínio foi lento e rápido,

lento porque durou dois longos segundos, rápido porque

em apenas dois segundos caiu em si e compreendeu enfim

o que segurava nas mãos. Era um enigma semelhante a

outros que havia interpretado nos últimos tempos para a

polícia e que tinham sido encontrados junto a

cadáveres. Os enigmas dos sicarii.


Foi nesse instante que a cama pareceu levantar-se. Uma

figura de negro ergueu-se repentinamente dos lençóis,

como uma mola gigante a soltar-se do colchão, e saltou

de braços abertos para cima de Tomás.


“ímpio!”


O historiador sentiu primeiro o embate do desconhecido.

Perdeu o equilíbrio e bateu com as costas na parede,

estatelando-se no chão e derrubando um móvel. Uma jarra


tombou, estilhaçando-se com fragor no empedrado do

quarto.


A segunda coisa que sentiu, já estendido sobre o solo

frio e duro, foi o peso e a agilidade do assaltante. O

desconhecido enrodilhou-se na sua vítima como uma rede

elástica. Tomás tentou libertar-se, mas o homem era de

uma maleabilidade espantosa e conseguiu prender-lhe os

movimentos. Como se estivesse envolvido numa camisa-de-

-forças, o historiador apercebeu-se de que já nem se

conseguia mexer.


“Oiça”, disse, tentando naquelas circunstâncias parecer

o mais razoável possível. “Vamos conversar.”


O assaltante tinha-o bem preso, as costas para baixo e

a face voltada para o chão de pedra gelada. Tomás não o

conseguia ver, mas sentiu-lhe o calor da respiração

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