Olhou naquela direcção e viu a rapariga do quiosque a

estender-lhe o jornal com um sorriso luminoso.


“Ah, Daniela!” Deu dois passos e colou-se ao quiosque

com uma moeda na mão. “Onde tenho eu hoje a cabeça,

valha-me Deus? Claro que quero o Maritsa! Claro!”


Daniela entregou-lhe o periódico e, acto contínuo,

acenou-lhe com um pequeno livro.


“A Hermes publicou mais um daqueles livrinhos de que

tanto gosta. Quer levar este?”


O professor espreitou o título e a capa.

“Amanhã”, decidiu. “Hoje basta-me o jornal.”

Vartolomeev fez tenção de se afastar, mas a rapariga

prendeu-lhe o braço.


“O senhor hoje tem uma visita.”

“Eu? Uma visita?”

Daniela apontou para o vulto que se encontrava lá ao

fundo, junto à casa.


“É um estrangeiro”, sussurrou. “Está à sua espera.”


O professor lançou um olhar interrogativo na direcção

do vulto e recomeçou a andar, cheio de curiosidade.

Seria o correio com o resultado das amostras?

Vartolomeev acreditava firmemente que era possível

resolver o problema do encurtamento dos telómeros,

mantendo assim os cromossomas intactos. Talvez as

últimas experiências tivessem sido bem sucedidas, quem

sabe? Aqueles resultados eram na verdade cruciais para

toda a investigação. Se conseguisse solucionar esse

colossal problema científico, tinha a certeza absoluta

de que dessa vez o Prémio Nobel da Medicina seria mesmo

seu.


O vulto tornou-se um homem cujas feições o cientista

teve dificuldade em reconhecer quando se aproximou

dele. É que o desconhecido estava à sombra da árvore e

os olhos do professor Vartolomeev, como de resto o seu

corpo, já não gozavam da saúde de outrora. Mesmo assim

percebeu que o indivíduo ocultava um objecto na mão e

as esperanças recrudesceram. Seria uma carta? Uma

encomenda? Talvez os resultados das experiências? Ah,

como era importante aquele momento! Sentindo a

ansiedade apertar-lhe o estômago, o cientista ajeitou

os óculos para ver melhor.


Foi nesse instante que o desconhecido desatou a correr

ao seu encontro. O professor estacou, apanhado de

surpresa. Mais espantado ficou quando enfim reconheceu

o objecto que o homem trazia na mão. Não se tratava de

nenhum envelope com o resultado das experiências. Era

uma faca. Obedecendo ao instinto, o cientista voltou-se

para fugir.


Tarde de mais.


XXI


O empregado do Silk Road Café não podia ter chegado em

melhor hora. Distribuiu o chá, as panquecas libanesas e

as baclavas pela mesa, e isso bastou para desanuviar a

tensão e trazer o sorriso de volta ao rosto encantador

de Valentina.


“Desde criança que me contam sempre a mesma história

sobre a vida de Cristo”, disse ela enquanto se

deliciava com a primeira baclava. “Que conversa é essa

de que Jesus não nasceu em Belém e cada texto do Novo

Testamento contém uma narrativa diferente? As palavras

podem ser diferentes, claro. Mas que eu saiba a

história é sempre a mesma.”


Tomás pegou de novo no seu exemplar da Bíblia.


“Acha que sim?”, perguntou num tom de desafio enquanto

folheava as páginas do livro. “Então por onde quer

começar? Pelo nascimento de Jesus? Pela morte? Por

onde?”


A italiana encolheu os ombros.


“É-me indiferente”, disse. “Você falou em Belém, não

falou? Que tal começarmos por aí?”


Ao escutar a sugestão, o historiador foi direito ao

início do primeiro dos evangelhos.


“Belém remete-nos para o princípio”, observou. “Os dois

únicos evangelhos que abordam o nascimento de Jesus são

o de Mateus e o de Lucas.” Baixou o tom de voz, como se

fizesse um aparte. “Mantenho os nomes dos evangelistas

por uma questão de comodidade, claro. Na verdade não

foram eles quem escreveu estes evangelhos, como já lhe

expliquei.” Retomou o tom original. “Mateus conta a

história de Maria ser uma virgem que concebe pelo

Espírito Santo e depois fala nos magos que seguiram uma

estrela até Jerusalém em busca do rei dos judeus. O rei

Herodes informa-se sobre o caso e diz-lhes que foi de

facto profetizado o seu nascimento em Belém. A estrela


conduz os magos até uma casa de Belém onde vive a

família de Jesus e onde eles oferecem presentes ao

bebé. Com receio da ameaça que o rei recém-nascido pode

representar, Herodes dá ordens para se matarem todas as

crianças de Belém. É então que Jesus e Maria fogem para

o Egipto.”


“É essa exactamente a história que sempre me contaram.”

Tomás galgou dezenas de páginas do livro até chegar ao

terceiro evangelho.


“A história de Lucas também começa com a narrativa da

imaculada concepção, quando Quirino era o governador da

Síria, e depois diz que o casal decidiu ir para Belém,

de onde eram os antepassados de José. Jesus nasce numa

manjedoura, ‘por não haver para eles lugar numa

hospedaria’, e os pastores vão prestar tributo ao

menino. A seguir Jesus é levado ao Templo, em

Jerusalém, para ser apresentado a Deus. Depois a

família regressa a Nazaré.”


Valentina hesitou.


“Pois, é... é essa a história que eu conheço.”


O seu interlocutor levantou a mão direita, como um

polícia a mandar parar o trânsito.


“Espere aí!”, disse ele. “As duas histórias são

diferentes, já reparou?”


“Bem... têm um ou outro pormenor diferente, é verdade.

Mas apenas em minudências. O essencial está lá.”


Tomás apontou para a Bíblia.


“Desculpe, mas as histórias são muito diferentes!

Mateus põe a imaculada concepção a ocorrer em Belém,

enquanto Lucas diz que ela sucedeu em Nazaré. Mateus

faz os eventos decorrerem no tempo de Herodes, enquanto

Lucas defende que tudo aconteceu na época de Quirino,

que só foi governador da Síria dez anos depois da morte

de Herodes. Mateus diz que a família vivia numa casa em


Belém, Lucas afirma que tudo se passou numa manjedoura

de Belém. Mateus conta que o menino foi visitado por

magos, Lucas só fala em pastores. Mateus diz que a

família fugiu para o Egipto para escapar a Herodes, mas

Lucas põe a família a visitar o Templo de Jerusalém e a

regressar a Nazaré.” Cravou o olhar na italiana. “São

histórias diferentes!”

“Não”, argumentou ela. “São histórias complementares.”

“Complementares? A imaculada concepção ocorreu em

Nazaré ou em Belém? Uma hipótese elimina a outra, não a

complementa! Isso aconteceu no tempo de Herodes ou de

Quirino?

Os

dois

tempos

são

diferentes

e

os

acontecimentos não podem ter ocorrido em simultâneo!

Jesus nasceu numa casa ou numa manjedoura? Não pode ter

nascido nos dois sítios ao mesmo tempo! A família fugiu

para o Egipto ou regressou directamente a Nazaré? Se

foi para o Egipto, não seguiu directamente para Nazaré,

e vice-versa! Que eu saiba, uma possibilidade exclui a

outra!

Não

podem

ser

as

duas

verdadeiras

simultaneamente! Percebe?”


Valentina passou a mão pelo rosto e massajou a face com

a ponta dos dedos.


“Pois, realmente...”


O historiador pegou de novo no seu exemplar da Bíblia,

que brandiu no ar como um troféu.


“Este problema percorre todo o Novo Testamento”,

declarou. “Todo.” Pousou o livro e voltou a folheá-lo.

“Há incoerências e contradições ao longo de todos os

textos, mas não quero massacrá-la com uma análise

episódio a episódio, por isso vou apenas mostrar-lhe o

fim da história.” Localizou as partes que buscava.

“Como sabe, a vida de Jesus termina na cruz, não é

verdade? Marcos, Lucas e Mateus afirmam que a execução

decorreu na sexta-feira de Páscoa, João afirma que foi

no dia anterior. Não pode ter sido simultaneamente na

sexta-feira e na véspera, pois não? Mas adiante. O que

dizem os Evangelhos que sucedeu então? Os quatro


concordam que, ao terceiro dia, Maria Madalena foi ao

sepulcro e o encontrou vazio. A partir daqui é a

confusão total.”


“Isso não é verdade!...”


O historiador fez um gesto enfático para o livro.


“Leia

você

mesma!”,

exclamou.

Apontou

para

os

versículos. “João afirma que Maria Madalena foi

sozinha, mas Mateus diz que ela foi acompanhada por uma

segunda Maria, Marcos acrescenta-lhes Salomé e Lucas

substitui Salomé por Joana e adiciona-lhes ‘outras

mulheres’. Afinal em que ficamos? Maria Madalena foi

sozinha ou foi com mais mulheres? E quantas mulheres

exactamente?

E

quem

eram

elas?

Os

Evangelhos

contradizem-se uns aos outros e não podem estar todos

certos. A pergunta seguinte é esta: quem encontrou ela,

ou elas, ao chegar ao sepulcro? Mateus diz que deram

com ‘um anjo’, mas Marcos afirma que foi ‘um jovem’,

Lucas garante que foram ‘dois homens’ e João não fala

em ninguém. Em que ficamos? E a seguir, o que sucede?

Na verdade não sei, porque os Evangelhos voltam a

contradizer-se. Marcos assegura que as mulheres ‘não

disseram nada a ninguém’, mas Mateus afirma que elas

‘correram a dar a notícia’.” Fez um ar perplexo. “Está

tudo doido?” Folheou o livro. “Se deram a notícia,

deram-na a quem? Mateus diz que foi ‘aos discípulos’,

mas Lucas indica que foi aos discípulos ‘e a todos os

restantes’ e João afirma que elas foram ter ‘com Simão

Pedro e com o outro discípulo’, que não nomeia. Afinal

qual dos Evangelhos diz a verdade?”


Valentina quase encarava o seu interlocutor a medo.

“Não é possível conciliá-los?”


“Isso é o que os teólogos cristãos têm andado este

tempo todo a tentar fazer”, disse ele. “Contudo, não

creio que se possa conseguir isso sem mutilar

gravemente os textos ou fingir que não estão aqui

escritas coisas que estão de facto escritas. A verdade

é que Jesus ou nasceu no tempo de Herodes ou nasceu no

tempo de Quirino. E ou morreu na sexta-feira de Páscoa


ou morreu na véspera. Não há ginástica que resolva

todas

estas

contradições.”

Ergueu

a

mão,

em

advertência. “E olhe que eu apenas levantei a ponta do

véu. Se estudar os Evangelhos episódio a episódio, vai

encontrar múltiplas situações destas. Ga-ran-ti-do!”


A inspectora da Polizia Giudiziaria não sabia bem o que

dizer. Era verdade que nestes episódios cada evangelho

contradizia todos os outros a cada versículo. Ela

própria acabara de o verificar no exemplar da Bíblia

usado por Tomás.


“Então, quer dizer...”, gaguejou. “Isso significa que

não é possível ter nenhuma certeza sobre Jesus!...”


“Isso é verdade sobre qualquer figura histórica. Em

história nunca se tem a certeza absoluta de nada,

apenas se calculam probabilidades em função dos

indícios existentes. Em relação a Jesus há algumas

certezas relativas. Os historiadores dão como seguro

que estamos perante um rabino de Nazaré que viveu na

Galileia, era um dos filhos do carpinteiro José e da

sua mulher Maria, foi de facto baptizado por João

Baptista e arranjou um grupo de seguidores composto por

pescadores, artesãos e algumas mulheres da região, a

quem pregou a chegada do reino de Deus. Por volta dos

trinta anos partiu para Jerusalém, protagonizou um

incidente no Templo, foi preso, julgado sumariamente e

crucificado. Tudo isto é informação considerada segura.

O resto... bem, o resto é incerto.”


“Mas como sabe que esses pormenores são verdadeiros?

Como se chega lá?”


“Porque várias fontes diferentes os relatam, incluindo

as mais remotas”, explicou Tomás. “As epístolas de

Paulo são os textos mais antigos do Novo Testamento,

escritas uns dez a quinze anos antes do primeiro

evangelho, o de Marcos. Mas o Evangelho segundo Marcos

começou a ter grande circulação antes de essas

epístolas serem copiadas pelas congregações. Portanto,

Marcos e Paulo de certeza que não se usaram mutuamente

como fontes. Se os dois dizem a mesma coisa, isso


reforça a credibilidade dessa informação porque estamos

perante fontes antigas comprovadamente diferentes. E

muita dessa informação é duplamente credível por ser

embaraçosa. Lembra-se daquilo que lhe disse? Quanto

mais embaraçosa teologicamente for uma informação, mais

confiança temos de que não foi inventada?”


“Sim, já me falou nisso.”


“Veja a vida de Jesus na Galileia, por exemplo. Nenhuma

profecia antiga indicava que o Messias viveria na

Galileia.


E

muito

menos

em

Nazaré,

uma

terriola

tão

insignificante que nem sequer é mencionada no Antigo

Testamento. Que cronista cristão inventaria informação

tão inoportuna?”


“Mas ele nasceu em Belém. Diz você que isso é

invenção?”


O historiador pegou na Bíblia e folheou até ao texto de

um dos últimos profetas do Antigo Testamento.


“Claro que é”, confirmou. “O nascimento, em Belém não

passa de um episódio arquitectado para satisfazer uma

profecia das Escrituras. O profeta Miqueias, referindo-

se a Bet-Ephrata, ou Belém, disse em 5:1: ‘Mas tu, Bet-

Ephrata, tão pequena entre as famílias de Judá, é de ti

que me há-de sair aquele que governará Israel.’ Perante

isto, o que fizeram Mateus e Lucas? Puseram Jesus a

nascer em Belém! Conveniente, não? Mas as contradições

entre os dois evangelistas quanto ao nascimento de

Jesus são tantas que se traem mutuamente e revelam a

ficção. Ambos sabiam que Jesus era oriundo de Nazaré,

mas tinham de conciliar esse facto incómodo com a

profecia de Miqueias. O que fizeram? Cada um inventou a

sua maneira de tirar Jesus de Nazaré e de o pôr a

nascer em Belém. Repare, a verdade é esta: se ‘aquele

que governará Israel’ nasceu de facto em Belém, como é

profetizado por Miqueias e garantido pelos autores de

Lucas e Mateus, por que razão Marcos e João não falam

nisso? Nem sequer Paulo. Como poderiam ignorar evento


tão relevante, que tão espantosamente confirmava a

velha profecia? A resposta só pode ser uma. Mateus e

Lucas fizeram Jesus nascer em Belém apenas para

satisfazer essa profecia e assim convencer os judeus de

que Jesus era de facto o rei profetizado nas Escrituras

por Miqueias.”

“Um

pouco

como

a

história

da

Virgem

Maria?”

“Precisamente! Os mesmos Mateus e Lucas disseram que

Maria concebeu virgem também para tentarem satisfazer o

que pensavam ser outra profecia bíblica.” Indicou a

fotografia do papel com a charada de Dublin. “E o mesmo

se passa com este 141414. É uma tentativa de fazer

recuar a genealogia de Jesus a David, de maneira a ir

ao encontro das profecias das Escrituras.”


“Estou a entender.”


“Isto é, de resto, uma constante nos Evangelhos. Os

evangelistas

tentaram

em

todas

as

oportunidades

apresentar provas de que os diversos aspectos da vida

de Jesus mais não eram do que coisas que as Escrituras

profetizavam sobre o Messias. Procuraram desse modo

provar aos judeus que Jesus era o salvador profetizado.

Se os factos não o confirmavam, inventavam-nos.

Inventaram que Jesus nasceu em Belém, inventaram que a

mãe o concebeu virgem, inventaram que era descendente

de David.”


Valentina franziu o sobrolho.


“Está a insinuar que o Antigo Testamento nunca

profetizou o nascimento de Jesus?”


O rosto de Tomás abriu-se num sorriso.


“Não estou a insinuar”, disse. “Estou a afirmar.”


XXII


O médico examinava o corpo enquanto dois polícias

vedavam o acesso àquele sector da rua e se esforçavam

por convencer os mirones a afastarem-se. Um bafo opaco

de neblina prateada ensombrava o final da manhã,

pintando as ruelas de tonalidades tristes.


Agarrada ao lenço e com os olhos inchados de lágrimas,

Daniela fungava ainda. O homem magro fitava-a com uma

expressão de serena impaciência.


“Conte lá o que aconteceu.”


Uma nova lágrima brotou do canto do olho da rapariga,

mas ela esforçou-se por dominar os nervos.

“Nem

sei

como

explique,

senhor...

senhor...”

“Pichurov”, identificou-se o homem magro, todo ele

feito de uma impaciência paciente. “Inspector Todor

Pichurov.”


Mais um soluço de Daniela.


“O professor passou por mim, comprou-me o jornal e... e

foi para casa.” Apontou para a árvore, quase a medo.

“Neste sítio estava o homem à espera dele e...”


“Que homem, menina Daniela?”


“O estrangeiro.” Novo soluço. “Estava à espera do

professor.”


“Como era ele?”


“Não reparei bem, vi-o de relance. Mas pareceu-me ser

um homem novo e bem constituído. Estava vestido de

negro.” O inspector tomou nota.


“E o que aconteceu a seguir?”


“Como o professor se afastou, peguei no telefone e

liguei à Desi por causa de uns livros que ela e a

Iveline iam...”


“Quem são essas?”


A rapariga assoou-se ruidosamente.


“Umas amigas.” Limpou o nariz avermelhado e secou as

lágrimas que lhe molhavam a face. “Estava eu a meio da

conversa quando... quando...”


Daniela recomeçou a chorar. O polícia revirou os olhos

e suspirou, esforçando-se por se manter paciente.

Odiava lidar com familiares e amigos de vítimas de

homicídios;

a

choradeira

era

constante

e

os

comportamentos

repetidos

e

previsíveis.

Deixou-a

acalmar-se e esperou o momento adequado para a incitar

a retomar o seu testemunho. “Quando o quê?”


“Quando ouvi o grito.”


Oprimida pela penosa recordação daquele berro dos

infernos, o choro baixo da rapariga do quiosque

transformou-se

num

uivo

prolongado.

O

inspector

Pichurov bufou; tinha de aguardar ainda uns instantes.

Aproveitou a nova pausa para tomar mais notas e deixou

passar uns trinta segundos antes de voltar a intervir.


“Que palavras gritou o professor Vartolomeev?”


A moça tinha o rosto mergulhado no lenço, mas abanou a

cabeça.


“Não foi ele. Foi o estrangeiro.”


“O estrangeiro?”, estranhou o polícia, parando

momentaneamente

de

escrever.

“Então

o

professor

Vartolomeev é que é assassinado e quem grita é o

estrangeiro?,”


Daniela fez que sim com a cabeça.


“Foi um grito de... de angústia, de dor... sei lá.”


O inspector Pichurov esboçou um esgar intrigado, mas

anotou a observação.


Ela soluçou.


“Olhei e vi o estrangeiro a fugir e... e o professor

estendido no chão.” Mais lágrimas de pranto. “Vim a

correr e foi então que vi o sangue e...”


Desatou de novo a chorar, agora convulsivamente, o

corpo sacudido em soluços contínuos. O polícia percebeu

que teria de ser um pouco mais paciente e, para queimar

tempo, passeou os olhos em redor. Reparou nesse

instante numa pequena folha de papel pousada por baixo

de uma pedra, aos pés do cadáver.


Ajoelhou-se e pegou no papel. Achou o conteúdo bizarro.

Ergueu-se e virou-o para a rapariga.


“Sabe o que isto é?”


Daniela espreitou por trás do lenço e passou os olhos

congestionados de lágrimas pelos rabiscos, mas acabou

por sacudir negativamente a cabeça.


“Não faço ideia.”

“E depois?”

O inspector Pichurov voltou a estudar o papel e ficou

um longo momento a reflectir. Pensativo, passou os

dedos pelo cabelo, que começava a escassear-lhe no topo

da cabeça, e estreitou os olhos no momento em que

capturou na mente a imagem dos relatórios que tinha

visto essa manhã no computador, mesmo antes de sair à

rua para vir tratar daquele caso.


“Pois a mim faz-me lembrar uma coisa.”


XXIII


O superintendente O’Leary não dera ainda sinais de

vida, mas Valentina e Tomás estavam de tal modo

embrenhados na análise das questões suscitadas pelas


charadas encontradas nos locais dos crimes que nem

deram pela passagem do tempo.


“Sempre ouvi dizer que a vida de Jesus estava

profetizada no Antigo Testamento”, disse a inspectora

da Polizia Giudiziaria. “Agora vem você garantir-me o

contrário. Que história é essa?”


O historiador desenhou com a mão um gesto vago no ar.

“Ponha-se na cabeça da gente daquele tempo”, sugeriu.

“O grande problema dos primeiros seguidores de Jesus

era convencer os restantes judeus de que o Messias

prometido pelos profetas das Escrituras tinha enfim

chegado e era aquele desgraçado que os Romanos haviam

crucificado.” Pegou na caneta e escreveu Messias no

guardanapo. “Messias vem de mashia, palavra hebraica

que significa ungido, ou christus, em grego, expressão

usada no Antigo Testamento para indicar pessoas

especialmente escolhidas por Deus, como reis e

sacerdotes. Já vimos que no Antigo Testamento Deus

prometeu a David que haveria sempre um descendente seu

no trono de Israel, promessa quebrada com o exílio na

Babilónia. Naquele tempo as pessoas eram muito

supersticiosas. Se as coisas corriam bem, atribuíam os

bons tempos à graça de Deus; se corriam mal, diziam que

o Senhor os estava a punir por se terem desviado do

caminho. Assim sendo, os fiéis interpretaram a quebra

da promessa de que o trono de Israel seria sempre

ocupado por um descendente de David como uma punição de

Deus por um desvio da virtude. Os judeus suspiravam

assim por um descendente de David que reconciliasse

Deus com os Seus filhos. Miqueias tinha profetizado que

em Belém nasceria ‘aquele que governará Israel’ e

reconciliará Deus com o Seu povo. O prometido. O

mashia.”


“Ou seja, Jesus.”


“Isso era o que argumentavam os seguidores de Jesus,

mas não o que pensava a generalidade dos restantes

judeus”, lembrou. “Acontece que a profecia de Miqueias

não era a única sobre o Messias. Os Salmos referem em

2:2 que ‘Sublevam-se os reis da terra, os príncipes

conspiram entre si contra o Senhor e contra o seu

ungido’. A palavra ungido diz-se mashia em hebraico, ou

Messias, e falam em 2:7-9 num decreto de Deus a

proclamar: ‘Tu és meu filho, hoje mesmo te gerei. Pede-

me e eu te darei as nações por herança e os confins da

terra por domínio. Quebrá-las-ás com ceptro de ferro.’

Os Salmos de Salomão prevêem mesmo que esse descendente

de David terá ‘força para destruir os governantes

ímpios’. E Daniel diz em 7:13 que teve uma visão em que

viu ‘aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser

semelhante a um Filho do homem’, e que ‘O Seu império é

um império eterno que não passará jamais, e o Seu reino

nunca será destruído’. Já Esdras teve uma visão de uma

figura que designou ‘Filho do homem’ em que o viu

‘soltar da boca uma corrente de fogo e dos seus lábios

sair um hálito flamejante’. Quer isto dizer que os

judeus estavam à espera de um descendente de David que

fosse tão poderoso que pudesse quebrar as nações !com

ceptro de ferro’ e ‘destruir os governantes ímpios’, ou

então de um ser cósmico, esse tal ‘Filho do homem’, que

governasse um império eterno e soltasse ‘da boca uma

corrente de fogo’.” Fitou a italiana. “E agora

pergunto-lhe: quem lhes saiu na rifa?”


“Jesus.”


“Um rabino pobre da Galileia, cujo exército não passava

de um punhado de pescadores e artesãos analfabetos,

mais algumas mulheres que lhes pareciam desencaminhadas

por terem abandonado os seus lares. Era este o

descendente de David que governaria com ceptro de

ferro,

expulsaria

os

Romanos

e

destruiria

os

governantes ímpios? Era este o Filho do homem que teria

um ‘império eterno’? Este... este maltrapilho? Os

judeus riram-se. Era inacreditável! E o pior foi que,

em vez de se impor como um rei poderoso, alguém que

reunia um grande exército e repunha a soberania de Deus

em Israel, Jesus foi preso, humilhado e crucificado


como um vulgar bandido, destino que nenhum profeta

alguma vez vaticinou. Nestas condições, qual o judeu

que acreditaria que era Jesus o rei profetizado por

Miqueias, o Messias previsto nos Salmos, o Filho do

homem augurado por Daniel e Esdras?”


Valentina enrodilhara os dedos no cabelo encaracolado

enquanto acompanhava a explicação.


“Pois...”, admitiu. “Era difícil acreditar.”


“Quando Jesus morreu, os seus seguidores ficaram

desanimados. O líder afinal não era o Messias. Só que

depois veio a história da ressurreição. Isso era um

sinal, a prova de que ele tinha o especial favor de

Deus! Jesus era mesmo o Messias! Ficaram todos

excitados. O problema é que os restantes judeus não

estavam

a

ir

na

conversa,

sobretudo

porque

o

crucificado não correspondia ao perfil do Messias.

Paulo admite mesmo, na Primeira Carta aos Coríntios, em

1:23, que a noção de o Messias ser crucificado era um

‘escândalo para os judeus’. O que fizeram os seus

seguidores? Puseram-se a atribuir a Jesus elementos que

constavam das antigas profecias, de modo a convencer os

outros judeus. Jesus era de Nazaré, terra nunca

mencionada nas Escrituras? Está bem, mas arranjou-se

maneira de o pôr convenientemente a nascer em Belém

para satisfazer a profecia de Miqueias. O pai de Jesus

era um mero carpinteiro? Está certo, mas confabulou-se

que ele afinal descendia de David, como requerido nos

Salmos. A tradução em grego das profecias de Isaías

dizia que a mãe do Messias seria uma virgem? Pois lá se

improvisou uma imaculada concepção feita à medida. E o

que fazer da crucificação, que nunca ninguém profetizou

e atrapalhava sobremaneira esta construção messiânica,

constituindo ‘escândalo para os judeus’? Como resolver

esse imbróglio? Os evangelistas deitaram mãos à obra e

puseram-se a reler as Escrituras à lupa. E o que

descobriram eles? Que Isaías escreveu uns versículos

sobre o sofrimento de um servo de Deus não nomeado.”


Valentina lançou uma espreitadela à Bíblia.


“Onde está isso?”


“Em 53:3-6”, indicou Tomás, pondo-se a ler o texto de

Isaías. “‘Desprezado e evitado pelos homens, como homem

das dores, experimentado nos sofrimentos; diante do

qual se tapa o rosto, menosprezado e desestimado. Na

verdade, ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou

as nossas dores; nós o reputávamos como um leproso,

ferido por Deus e humilhado. Mas foi castigado pelos

nossos crimes, esmagado pelas nossas iniquidades; o

castigo que nos salva pesou sobre ele, fomos curados

nas suas chagas. Todos nós andávamos desgarrados como

ovelhas, cada um seguia o seu caminho; o Senhor

carregou sobre ele a iniquidade de todos nós.’” O

português respirou fundo e ergueu as mãos para o céu,

num gesto teatral. “Aleluia! Estava encontrada a

profecia da morte do Messias! Deus é grande!”


“Desculpe, mas essa descrição assenta que nem uma luva

na paixão de Jesus!”


O historiador indicou as páginas abertas diante dele.

“As pessoas vêem aqui o que quiserem ver”, sentenciou.

“A verdade é que Isaías em parte alguma diz que o servo

da sua profecia era o Messias. Os historiadores

acreditam até que este texto está relacionado com o

sofrimento dos judeus na Babilónia. Mas que interessava

isso? A profecia encaixava no episódio da crucificação.

E descobriram-se também uns versículos dos Salmos a

propósito de alguém que sofre e que começam com esta

frase em 22:2: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me

abandonastes?’ e concluem assim em 22:8: ‘Todos os que

me vêem escarnecem de mim; torcem os lábios, meneiam a

cabeça.’ Logo os primeiros cristãos acharam que isso

era um texto a profetizar o que aconteceu a Jesus.

Conclusão: os Salmos também previram a sua morte!” A

italiana agitou-se de novo.


“Espere aí!”, cortou. “Jesus disse essa frase na cruz,

tenho a certeza. «Meu Deus, meu Deus, porque me

abandonaste?» Ele disse mesmo isso! Eu já li isso! Essa

profecia está mesmo certa!”


Tomás fitou-a como um professor que acabou de escutar

uma resposta errada durante uma oral.


“Já vi que não percebeu o que lhe tenho tentado

explicar”, observou. Voltou a folhear o seu exemplar da

Bíblia. “Essa frase está no final de Marcos, quando

Jesus se encontra já pregado à cruz, em 15:34: ‘E à

hora nona Jesus exclamou em voz alta: «Eloi, lama

sabachthani?», que quer dizer: «Meu Deus, meu Deus,

porque Me abandonaste?»’ Uma frase semelhante aparece

em Mateus.” O historiador pousou o indicador no

versículo. “Isto, minha cara, é mais um esforço dos

evangelistas para colar Jesus às profecias. Atribuíram-

lhe esta frase para poderem dizer que se cumpriram as

palavras das Escrituras e deste modo convencer os

restantes judeus. Está a perceber?”


“Como pode ter a certeza de que Jesus não proferiu essa

frase?”


“Certezas, minha cara, em história nunca ninguém tem”,

lembrou ele. “No entanto, a semelhança desta frase com

os versículos dos Salmos torna-a altamente suspeita,

como é evidente. Lembre-se que nenhum seguidor de Jesus

esteve com ele na hora final, como admitem os próprios

evangelistas. Os homens ‘fugiram todos’, conforme

estabelece Marcos em 14:50, e as mulheres estavam ‘a

observar de longe’ a crucificação, como diz o mesmo

Marcos,

em

15:40.

Nenhum

deles

se

encontrava

suficientemente perto da cruz para ouvir as últimas

palavras do seu líder.”


“Os apóstolos podem ter mais tarde interrogado um

legionário que estivesse perto da cruz...”


“Os apóstolos estavam era cheios de medo e receavam ser

também executados. A última coisa que queriam era

chegar-se perto de legionários, uma vez que os Romanos

tinham por hábito matar os líderes que criavam

problemas e também os seus seguidores. Há muitos

exemplos disso. Mas admitamos que os apóstolos

conseguiram falar com um legionário. Será que o romano

entenderia o aramaico de Jesus? E terá sido fiel na


reprodução do que o moribundo disse? A verdade é que

não temos um testemunho directo, é tudo com base no

‘alguém disse que alguém disse’.” Fez um gesto

impreciso no ar. “De resto, a narrativa da paixão

parece construída em redor do que está escrito no Salmo

22 e não em testemunhos presenciais.”


“Então tem tudo a ver com o Antigo Testamento...”


“De uma ponta à outra!”, confirmou Tomás. “Todos os

Evangelhos estão impregnados de palavras, frases e

expressões reminiscentes das velhas Escrituras. Os

Salmos falam no Messias? Os Evangelhos dizem que Jesus

é o Messias. Daniel e Esdras descrevem um Filho do

homem? Os Evangelhos chamam a Jesus o Filho do Homem.

Os Salmos apelidam o rei David de Filho de Deus? Os

Evangelhos designam Jesus Filho de Deus. Os Salmos

dizem que Deus disse a David: ‘Tu és meu filho, hoje

mesmo te gerei’? Marcos põe Deus a dizer a Jesus após o

baptismo: ‘Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti pus

toda a Minha complacência.’ Os Salmos descrevem alguém

que sofre a dizer: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me

abandonastes?’ Marcos faz Jesus dizer na cruz: ‘Meu

Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?’ Tudo é

reminiscente do Antigo Testamento!” Estreitou as

pálpebras. “Mesmo os episódios da vida de Jesus.”


Valentina esboçou uma careta.


“Que quer dizer com isso?”


“Não tinha reparado? O Êxodo descreve uma ordem do

faraó para que se matassem todos os meninos judeus

quando Moisés era bebé, não descreve? O que fez Mateus?


Arranjou uma ordem semelhante de Herodes quando Jesus

era bebé. O Êxodo relata a saga dos judeus a fugirem do

Egipto? Mateus relata a aventura da família de Jesus a

fugir para o Egipto. Moisés foi à montanha receber as

tábuas da lei? Mateus leva Jesus à montanha para

comentar alguns aspectos dessa mesma lei. Moisés

separou as águas do Nilo? Jesus caminhou sobre as águas

do Mar da Galileia. Os judeus andaram quarenta anos


perdidos no deserto? Três evangelistas põem Jesus

quarenta dias no deserto. Moisés arranjou o maná para

alimentar os judeus? Jesus apresentou aos discípulos o

pão da vida. Até os milagres e os exorcismos,

amplamente descritos nos Evangelhos, têm antecedentes

bíblicos em Elias e Isaías!” Indicou a Bíblia. “Os

autores do Novo Testamento não estavam a escrever

história.

Estavam

a

tentar

convencer

os

seus

contemporâneos de que Jesus respondia às profecias e

preenchia os requisitos das Escrituras. Nem mais nem

menos.”


Os dois ficaram em silêncio um longo momento, como se

medissem as implicações de tudo aquilo.


“Ajude-me, Tomás”, disse Valentina por fim, tentando

reencontrar terreno seguro no meio daquela avalanche de

informação. “Temos dois historiadores degolados quando

faziam pesquisas em manuscritos antigos do Novo

Testamento e, em ambos os casos, o assassino deixou-nos

mensagens enigmáticas. O que está ele a dizer-nos?”


“Não é claro ainda? O tipo está a mostrar-nos problemas

sérios que existem no Novo Testamento. A primeira

charada alude à origem do mito da Virgem Maria.”

Indicou a fotografia que O’Leary lhes tinha deixado. “A

segunda charada aborda os esforços dos evangelistas

para associar Jesus a profecias das Escrituras sobre a

ligação genealógica entre o Messias e o rei David.”

Cravou os olhos na italiana. “O nosso homem está a

dizer-nos que o Novo Testamento não passa de uma

colagem fraudulenta ao Antigo Testamento.”


“Mas porque nos diz ele isso? Qual a ligação entre esse

assunto e estas mortes?”


O historiador encolheu os ombros.

“A polícia é você.”

Um grupo de agentes invadiu nesse instante a esplanada

do Silk Road Café; à cabeça vinha Sean O’Leary com as

faces muito coradas e o semblante compenetrado.


“Superintendente!”, saudou-o Valentina com um esgar

surpreendido. “Por onde tem o senhor andado?”


O irlandês fez um gesto vago na direcção da rua.

“Fui interrogar a testemunha ao hospital.”

“E então? Disse alguma coisa de interessante?”


O’Leary tirou o bloco de notas do bolso no seu

característico jeito desajeitado.


“Quer saber pormenores?”, perguntou, os olhos a

deslizarem já pelas anotações. “Chama-se Patrick

McGrath, um desempregado que os amigos conhecem por

Paddy. E um homeless e estava ali no jardim a tentar

dormir quando o crime ocorreu.”


“Ele consegue identificar o homicida?”


O superintendente torceu os lábios enquanto consultava

os seus apontamentos.


“Viu o homicídio na escuridão da noite e à distância”,

disse. “Infelizmente não teve oportunidade de observar

o rosto do assassino nem notou nada de particular na

sua fisionomia.” “Ah, que pena!...”


O polícia irlandês fungou, sem tirar os olhos do bloco

de notas.


“Mas houve uma coisa estranha. Perguntei-lhe se era

verdade que esta madrugada disse aos paramédicos que a

morte do professor Schwarz tinha sido um acidente. Ele

confirmou. Aliás, insiste em repetir a mesma coisa.”


Valentina fez um gesto a desvalorizar esse testemunho.

“É absurdo!”, considerou ela. “Não se degola ninguém

por acidente. O que o leva a afirmar isso?”


“Ele alega que, depois de cair em cima do professor

Schwarz, o assassino se pôs aos berros. Diz a nossa


testemunha que era um urro de agonia, uma espécie de

lamento.”


A italiana trocou um olhar intrigado com Tomás.

“Agonia? Lamento? O que quer ele dizer?”


O’Leary parecia embaraçado.


“Pois... não sei. Apertei-o um pouco quanto a esta

questão, mas o homem garante que o assassino lamentou a

morte do professor Schwarz com um grito de sofrimento.”


Valentina abanou a cabeça.


“Não há dúvida de que essa testemunha estava com os

copos”, sentenciou. “Oiça, tenho os meus homens em Roma

a reconstituir a vida da primeira vítima, a professora

Escalona, ao longo do último ano. Precisava que me

fizesse a mesma coisa em relação ao professor Schwarz.

Temos de saber onde esteve, quando, o que foi lá

fazer... Essas coisas.”


“Isso já está a ser preparado. Dou-lhe amanhã um

relatório preliminar.”


“Será interessante cruzar as duas reconstituições e ver

se existem pontos em comum nos trajectos recentes das

duas vítimas, o que nos permitirá...”


Nesse instante o telemóvel do superintendente tocou e

ele, pedindo licença, atendeu de imediato.


“Está sim?” Fez uma curta pausa e endireitou-se de

repente. Quase se pôs em sentido. “Sim, sou eu, sir.”

Uma pausa mais longa, durante a qual o polícia foi

arregalando os olhos. “O quê?” Mais uma pausa. “Onde?

Esta manhã?


Mas... mas como é isso possível?” Ainda uma pausa.

“Imediatamente? Mas eles acabaram de chegar, sir!...”

Nova pausa. “Sim, sir. Vou já falar com eles. Muito

bem, sir.” Quase fez continência. “É para já, sir.

Obrigado, sir.”


O irlandês desligou o telefone e as faces coradas

tinham desaparecido; estava lívido, como se tivesse

visto um fantasma. Olhou para os dois convidados com

cara de caso.


“O nosso homem atacou outra vez!”

“Quem?”

“O serial killer”, disse com uma ponta de impaciência.

“Voltou a fazer das suas!”


Valentina e Tomás deram um salto nas cadeiras.

“Morreu mais alguém?”

O’Leary fez que sim com a cabeça.

“Na Bulgária.”

Os dois interlocutores abriram a boca, estupefactos.

“O quê?”

O superintendente acenou com o telefone, como se se

tratasse de uma entidade superior, de autoridade

absolutamente indiscutível.


“Querem-vos lá o mais depressa possível.”


XXIV


Uma fina neblina branca cobria a cidade, envolvendo-a

num manto de luz angelical. Os picos nevados do

Vitosha, o vulcão adormecido à distância como uma

sentinela silenciosa, elevavam-se acima da névoa e

davam a impressão de estar cobertos por iogurte

derramado, os veios brancos de neve a entornarem-se

pela serra nua.


Os primeiros sinais registados por Sicarius de que

estava a chegar ao destino foram os grandes blocos de

apartamentos de linha soviética que enxameavam a

periferia como formigueiros gigantes plantados em

largos espaços de um verde cru e acinzentado; faziam

pensar numa boa ideia mal concretizada. As tabuletas em

caracteres cirílicos indicavam Grad, mas foi só quando

o automóvel desembocou no emaranhado elegante das ruas

bem arranjadas do centro, circulando entre belos

edifícios de traça francesa ou em estilo balcânico, que

o automobilista pegou no telemóvel e fez a chamada.


“Cheguei a Sófia.”


Do outro lado da linha, o mestre parecia ansioso.

“E a missão?”, quis saber. “Correu bem?”

“Como previsto.”


A voz ao telefone suspirou de alívio.


“Ufa! Ainda bem que acabou. Já estava em cuidados.”


Em contraste com os arredores, onde a traça soviética

se misturava com linhas modernas, o centro da capital

búlgara respirava ordem e exibia uma arquitectura

clássica de bom gosto. A atenção de Sicarius foi,

aliás, atraída nesse instante pela Igreja Russa, um

edifício que parecia saído de um conto de fadas, com

cúpulas verdes e douradas que emprestavam à cidade um

toque de presépio moscovita.


“O que faço agora? Tem uma nova missão para mim?”

O mestre riu baixinho.

“És uma máquina, Sicarius”, ronronou com satisfação.

“Um digno filho de Deus. Para já não. Volta para casa.”


A ordem deixou o operacional um tudo-nada decepcionado.

“Acabou? Não há mais?”

“Eu não disse isso”, corrigiu o mestre. “Isto está


longe de ter acabado. Ainda vou precisar de ti.”


“Ainda bem.”


“Mas não de momento. Volta para casa. O teu trabalho

foi inestimável e estou certo de que o guerreiro

precisa de repouso.”


Sicarius respirou fundo, resignando-se à decisão.

“Está bem. Adeus.”

E desligou.


O carro passava nessa altura pela grande catedral de

Alexandre Nevski, com as suas espectaculares cúpulas

bizantinas. Sicarius abrandou para apreciar melhor o

edifício e depois virou em direcção ao aeroporto.

Passou por uma rua estreita e movimentada, os passeios

repletos

de

transeuntes,

uns

a

caminharem

despreocupadamente e outros a espreitarem as vitrinas

das lojas. Algumas montras exibiam produtos búlgaros,

outras expunham marcas internacionais e aqui e ali

viam-se néones coloridos a publicitar casinos.


Foi nesse instante que Sicarius sentiu a irritação

trepar-lhe pelo estômago.


“ímpios”,

vociferou

entre

dentes.

“Impuros

e

pecadores.”


XXV


O sol batia com um hálito acolhedor sobre o casario

quando o automóvel da polícia búlgara que trazia Tomás

e Valentina do aeroporto de Sófia deu finalmente


entrada no perímetro urbano. Uma tabuleta assinalou a

chegada a Plovdiv.


“Sabem quantos anos tem esta cidade?”, perguntou o

motorista com evidente orgulho. “Seis mil!” Virou a

cabeça e sorriu para os passageiros no banco de trás.

“Seis mil anos, já viram?” Voltou-se de novo para a

frente. “Incrível!” Tomás tinha os olhos colados aos


blocos de apartamentos de arquitectura soviética;

conhecia bem aquele lugar pelos livros de História da

faculdade.


“Foi fundada no Neolítico”, observou com uma expressão

sonhadora. “É a cidade mais velha da Europa.”


Uma vez cruzado o rio Maritsa, os blocos de cimento da

periferia deram lugar a um centro arejado, com

edifícios de traça tradicional encravados amiúde em

ruínas antigas. O mais desconcertante era a visão dos

montes verdes cobertos de rochedos escarpados e

coroados com casas que se erguiam abruptamente a meio

da urbe.


O motorista apontou para o maior desses promontórios,

cravado em pleno centro como se uma pedra gigantesca

ali tivesse de repente tombado do céu.


“Stariot Grad”, indicou. “A cidade velha.”


Os dois passageiros ergueram os olhos para o topo do

promontório, fascinados por aquela imagem fantástica.


“Foi ali que construíram as primeiras habitações, há

seis mil anos?”, quis saber o historiador.


“Exacto”, confirmou o búlgaro ao volante. “E foi ali

que ontem ocorreu o crime.”


De cenário histórico, aos olhos curiosos dos recém-che-

gados, Stariot Grad passou de imediato a palco de um

homicídio.


“Vamos agora para lá?”


“Para Stariot Grad?”, admirou-se o motorista. “Não.

Tenho ordens de vos deixar na Glavnata.”


Ao chegarem à Glavnata deram com uma rua soalheira de

peões, larga e encaixada numa fileira de edifícios

coloridos, com fachadas de clara influência francesa,

os andares superiores adornados por belas varandas, as

lojas a ocuparem o rés-do-chão.


Valentina e Tomás foram levados para uma esplanada,

onde um homem magro de imediato se levantou de uma

cadeira e os acolheu de mão estendida para os

cumprimentar.


“Todor Pichurov”, anunciou. “Inspector da polícia

búlgara. Sejam bem-vindos a Plovdiv.”


Os visitantes apresentaram-se e instalaram-se à mesa.

Pediram cafés e trocaram amabilidades com o anfitrião a

propósito da beleza da cidade e do facto de o dia estar

excelente, em contraste com a neblina que haviam

encontrado nessa manhã ao desembarcarem em Sófia.


Mas a italiana não queria perder tempo e à primeira

oportunidade entrou no assunto.


“Então o que se passa?”, perguntou. “Disseram-me que

precisavam da nossa ajuda por causa de um crime. Que

aconteceu exactamente?”


O polícia búlgaro abriu uma pasta que estava pousada

sobre a pequena mesa circular da esplanada e extraiu a

fotografia de um homem de barba grisalha rala e olhar

compenetrado.


“Este é o professor Petar Vartolomeev”, identificou.

“Tratava-se de um dos cidadãos mais notáveis da nossa


cidade. Era professor catedrático de Medicina Molecular

aqui na Universidade de Plovdiv. Vivia num edifício

histórico de Stariot Grad, a Casa de Balabanov. Ontem

de manhã, quando vinha das aulas, foi esfaqueado por um

desconhecido que o esperava à porta de casa. Fui

chamado de urgência, mas quando cheguei ao local já o

professor estava morto.”


Valentina aproveitou a pausa para intervir.

“Professor de Medicina Molecular?”

“Um dos mais reputados do mundo no seu campo”,


confirmou Pichurov. “Todos os anos se dizia que ia

ganhar o Nobel da Medicina.”

A italiana sacudiu a cabeça.

“Desculpe, mas não percebo. Nós estamos a investigar

dois crimes que ocorreram na Europa ocidental e que

envolvem dois historiadores que andavam a consultar

manuscritos antigos do Novo Testamento. Uma paleógrafa

foi assassinada em plena Biblioteca Vaticana, o outro

era um arqueólogo, morto diante de uma biblioteca em

Dublin. Mas o senhor está a falar-nos de um médico e,

com franqueza...”


“Cientista molecular.”


“O que seja”, retomou Valentina, sempre no mesmo tom.

“Um professor catedrático na área da Medicina, se

prefere.


Para todos os efeitos, esta vítima não é um

historiador. O senhor fez-nos cruzar a Europa de uma

ponta à outra e vir aos Balcãs por causa desta morte. O

que o levou a pensar que havia uma ligação entre o seu

caso e os nossos dois historiadores?”


O inspector búlgaro exibiu uma fotografia do cadáver da

vítima, tombado no chão, de barriga para baixo e a

cabeça mergulhada numa vasta poça de sangue.


“O professor Vartolomeev foi degolado.”


A italiana olhou de relance para a imagem e respirou

fundo, subitamente impaciente.


“É desagradável”, disse com frieza. “Não sei como é

aqui na Bulgária, mas as degolações no meu país são

muito raras. No entanto, e à parte esse pormenor

repugnante, não vejo o que poderá ter este caso em

comum com aqueles que estou...”, olhou para Tomás e

corrigiu, “... que estamos a investigar.” Pichurov

coçou o nariz.


“Por coincidência, momentos antes de ser alertado para

a ocorrência, estava a consultar o site da Interpol,

como faço todas as manhãs, e cruzei-me com o seu

relatório preliminar sobre o crime no Vaticano”, disse.

“Crime estranho, convirá.”


“Muito.”


“Interessei-me pela coisa e apercebi-me de que horas

depois

ocorreu

um

homicídio

com

características

semelhantes em Dublin. Como sou uma pessoa de natureza

curiosa, fui espreitar o relatório deste segundo crime

e voltei a cruzar-me com o seu nome, o que me

surpreendeu. Percebi que estava a ajudar os irlandeses

e que era acompanhada por um historiador português.”


Valentina deitou um olhar cúmplice a Tomás.


“De facto, assim é”, confirmou. “E então? Onde quer

chegar?”


“Achei os dois casos curiosos”, disse. “As charadas

deixadas pelo assassino pareceram-me intrigantes. Mas

não pensei mais nisso, sobretudo a partir do momento em

que fui chamado de urgência a Stariot Grad para lidar

com um homicídio que tinha ocorrido junto à Casa de

Balabanov. Quando cheguei lá, apercebi-me de que a

vítima era o professor Vartolomeev. Descobri que ele

tinha sido degolado.”


“E foi aí que pensou nos casos que estou a investigar.”

O inspector abanou a cabeça.


“Na verdade, não. Achei estranho, claro. Também aqui na

Bulgária são raros os homicídios por degolação. Quando

ocorrem têm sempre uma natureza ritual.”


“Como em todo o mundo.”


“Naturalmente que me questionei sobre o assunto. Por

que razão haveria alguém de matar o professor

Vartolomeev? E por que motivo o faria deste modo? Um

assassínio ritual? Aqui, em Stariot Grad? E com um dos


nossos mais respeitados concidadãos?” Esboçou uma

careta. “Não faz sentido.”


“Então o que o levou a estabelecer a ligação desse

homicídio com os nossos casos?”


O polícia búlgaro voltou a meter a mão na sua pasta.

“Foi uma coisa que descobri ao lado do corpo”, disse,

retirando um plástico selado com uma folha de papel no

interior. “Isto.”


Virou a folha para os seus dois interlocutores.


Tomás e Valentina debruçaram-se de imediato sobre o

enigma e perceberam o raciocínio do anfitrião.


“É o nosso homem!”, exclamou Valentina, apontando para

o primeiro sinal, à esquerda. “Veja aqui. Até desenhou

o símbolo da pureza da Virgem Maria, exactamente como

no Vaticano.”


O historiador olhava para a charada com uma expressão

de perplexidade, como se o que estava a ver não fizesse

sentido.


“Não pode ser!...”


“É o nosso homem!”, insistiu a inspectora da Polizia

Giudiziaria, rendida à evidência. “É mesmo ele!”


“Eu sei que é ele”, assentiu Tomás. “Mas o símbolo da

pureza da Virgem Maria...” Abanou a cabeça. “Esse

símbolo não faz sentido ao lado do que ele desenhou a

seguir.”


A italiana quase se indignou.


“Ora essa! Porquê?” Fez um gesto a indicar a charada.

“Pelo contrário, faz todo o sentido! Ele assinou o

homicídio

do

Vaticano

com

esta

flor-de-lis

esquematizada e voltou a utilizá-la agora para assinar

este novo crime. Parece-me tudo claro. Qual é a

admiração?”


O académico português mirava o enigma como se estivesse

hipnotizado, esforçando-se por extrair dele o sentido

que lhe escapava. Porque raio tinha o assassino

desenhado ali aquele símbolo? O contexto não batia

certo. Talvez a resposta estivesse no contexto. Na

verdade, raciocinou, se calhar deveria começar a

interpretação pelo resto do enigma. Ora o que tinha ele

ali? Tinha uma palavra escrita em... em...


“Já sei!”, exclamou Tomás de repente.


Os dois polícias voltaram os olhares para ele.

“O quê? Que se passa?”

O historiador virou-se para Valentina e depois para Pi-

churov e de novo para Valentina, muito excitado, e

exibiu o papel selado dentro do plástico.


“Já sei!”


As atenções voltaram-se para a charada que lhe dançava

entre os dedos.


“Conseguiu decifrar?”, espantou-se o búlgaro. “Já?”

A italiana sorriu e aplaudiu.


“Bravo, Tomás!”, exclamou, com evidente orgulho nele,

quase como se o português fosse o seu herói. “Bravo!”


Ao vê-la tão feliz, Tomás sentiu-se atrapalhado.

Encolheu-se num gesto reflexo, recolheu a mão que

brandia a charada e baixou os olhos tingidos de

embaraço.


“Não sei se vai ficar contente depois de me escutar”,

disse ele a Valentina, quase sem coragem para a

encarar. “Acho até que vai ter vontade de me

degolar!...”


“Eu?!”, admirou-se ela. “Que disparate! Porque diz

isso?”


O olhar do historiador desviou-se para a charada

encerrada no plástico selado.


“Este enigma remete-nos para mais uma fraude da

Bíblia.” A face de Valentina toldou-se como se de

repente tivesse sido coberta por uma sombra densa.


“Oh, não!”, exclamou ela, irritada. “Sou mesmo ingénua!

Devia ter desconfiado!”


Tomás inclinou-se para a sua pequena mala de viagem e

pôs-se a vasculhar no interior com a mão esquerda.

Fixou a mão num objecto e extraiu-o da mala, pousando-o

sobre a mesa. Tratava-se do exemplar da Bíblia que já


lhe havia sido útil em Dublin. Levantou os olhos

embaraçados e colou-os enfim aos da italiana.


“A fraude da divindade de Jesus.”


XXVI


O empregado ziguezagueou entre as mesas da esplanada da

Glavnata a equilibrar a bandeja e, naquele menear

profissional, aproximou-se da mesa onde o historiador e

os dois polícias se encontravam. Distribuiu os cafés e

afastou-se para atender os clientes que entretanto se

tinham instalado numa mesa ao lado.


De novo à vontade, Tomás pegou no plástico que protegia

a folha encontrada junto ao corpo do académico búlgaro

e apontou para os três símbolos desenhados no papel.


“Este enigma remete-nos para duas questões teológicas

centrais do cristianismo”, explicou. “São questões

diferentes, mas relacionadas entre elas.”


O inspector Pichurov mexeu-se no seu lugar.


“O professor falou na divindade de Jesus”, observou,

ansioso por ir direito ao assunto. “E disse que se

tratava de uma fraude. Como é que essa gatafunhada

levanta tal questão?”


O historiador indicou os símbolos do meio e da direita,

“Estão a ver isto? Sabem o que é?”


Os polícias prenderam os olhos nos dois caracteres.

“Parecem

sinais

alienígenas”,

brincou

Valentina.

“Daqueles

que

vemos

desenhados

nas

naves

dos

extraterrestres em filmes de ficção científica. Star

Trek e coisas do estilo.”


Tomás riu-se.


“Realmente, estes caracteres parecem um pouco

bizarros”, admitiu. “Mas não são símbolos dos ET

pintados em naves espaciais. São letras gregas grafadas

na Bíblia.”


Os dois polícias arregalaram os olhos, surpreendidos.


“Isso?”


O historiador assentiu.


“O símbolo do meio é um teta e o da direita é um

sigma”, identificou. “Quando juntas num manuscrito

bíblico e com um traço no topo, teta-sigma dão a

abreviatura de um dos nomina sacra."


“Que é isso?”


“Um nome sagrado. Neste caso, Deus.”


O inspector Pichurov franziu o sobrolho numa expressão

céptica, como quem dizia que aquela não engolia ele.


“O assassino deixou o nome abreviado de Deus ao pé da

vítima?”, questionou. “A que propósito?”


“Isso é o que iremos ver”, disse Tomás, ignorando o tom

incrédulo do polícia búlgaro. “O mais interessante é

que, à luz do que o nosso serial killer já revelou nas

duas mensagens anteriores, isto constitui sem dúvida um

piscar de olho ao Codex Alexandrinus e a uma aldrabice

habilidosa feita nesse manuscrito por um escriba.”


A referência pareceu familiar a Valentina.


“Está a referir-se ao documento antigo que a professora

Escalona estava a consultar na Biblioteca Vaticana?”


“Isso era o Codex Vaticanus”, esclareceu o historiador.

“Mas esta nova charada remete-nos para o Codex Alexan-

drinus, um manuscrito do século V oferecido pelo

patriarca de Alexandria ao rei de Inglaterra e que se

encontra guardado na Biblioteca Britânica. É também um

dos manuscritos mais antigos e completos da Bíblia, com

a versão grega do Antigo Testamento, a que faltam

apenas dez folhas, e o Novo Testamento, excepto trinta

e uma folhas, que desapareceram.”


“Como

sabe

que

este

teta-sigma

se

refere

especificamente a esse códice?”


“Trata-se de uma suposição sustentada no tipo de

raciocínio desenvolvido até agora pelo nosso homem”,

explicou o académico português. “Já percebemos que ele

parece obcecado com as fraudes no Novo Testamento. Ora

acontece que existe de facto uma anomalia no Codex

Alexandrinus, localizada justamente numa referência

abreviada a Deus. Uma referência com teta e sigma.”


“Não estou a perceber!...”


Tomás pousou o papel da charada na mesa e pegou na sua

Bíblia, que se pôs a folhear.


“Um dos problemas da tese de que Jesus era uma

divindade nasce de ele não se ter referido a si mesmo

nesses termos de uma forma explícita nos textos mais

antigos”, explicou. “Apenas no último evangelho, o de

João, escrito por volta de 95, Jesus indica com clareza

a sua natureza divina. João cita Jesus em 8:58 a dizer

isto: ‘Antes de Abraão existir, Eu sou.’ É uma

referência clara ao Êxodo.


A italiana apontou para os dois símbolos,3:14, onde

Deus diz a Moisés: ‘Eu sou Aquele que sou.’ Ou seja, o

Jesus de João apresenta-se como o Deus das Escrituras.”


“Ah-ha!”


“Curiosamente, Jesus não faz o mesmo nas fontes

anteriores a João”, apressou-se Tomás a sublinhar. “Nem

Paulo, nem Marcos, nem Mateus, nem Lucas, que

escreveram os seus textos antes do autor do Evangelho

segundo João, põem Jesus a dizer-se Deus.” Fez uma

careta irónica. “Ter-se-ão esquecido? Terão achado esse

pormenor irrelevante? Seria uma coisa sem importância?”

Ergueu o dedo. “Quanto mais antiga é a fonte, menos

divino Jesus aparece. O primeiro evangelho a ser

escrito foi o de Marcos. Que Jesus nos é apresentado

por Marcos? Um ser humano que nunca se reivindica Deus.

O mais que Jesus faz é, durante o seu julgamento, e

pressionado pelo alto sacerdote que lhe pergunta se é

ele ‘o Messias, Filho do Deus Bendito’, responder em

14:62: ‘Sou’, adiantando que ‘vereis o Filho do Homem


sentado à direita do Poder e vir sobre as nuvens do

céu.’ Mas atenção que, na cultura hebraica, o masbia

não é Deus, apenas alguém escolhido por Deus. Nunca em

Marcos vemos Jesus afirmar ser Deus.”


O inspector Pichurov, que assistia pela primeira vez a

uma conversa de análise crítica do Novo Testamento,

voltou a remexer-se na cadeira.


“Desculpe, eu de Bíblias percebo pouco”, disse. “Mas

não é Marcos que o apresenta como o Filho de Deus?”


“Todos os evangelhos apresentam Jesus como o Filho de

Deus. E depois? No contexto da religião judaica, a

expressão Filho de Deus não significa Deus-Filho, como

agora se pretende, mas descendente do rei David,

conforme estabelecido nas Escrituras. Nos Salmos, Deus

diz a David, um ser de carne e osso, que ele é o Seu

filho, coisa que confirma em Samuel II. Uma vez que os

Evangelhos apresentam Jesus como um descendente do rei

David, é natural que o designem por Filho de Deus, o

título de David. E, atenção, o Filho de Deus pode até

ser a própria nação de Israel, conforme estabelecido no

Antigo Testamento por Oseias, em 11:1, onde Deus diz:

‘Quando Israel era ainda menino, Eu o amei, e chamei do

Egipto o Meu filho.’ Ou em Êxodo 4:22: ‘Assim fala o

Senhor: Israel é o Meu filho primogénito.’ Em suma,

diz-se que é Filho de Deus alguém que tem uma relação

especial com Deus. Isso não significa que esse alguém

seja Deus.”


Valentina lançou um olhar sobranceiro ao seu colega

búlgaro, intimando-o a calar-se.


“Ele já me tinha contado isso”, disse. “Depois explico-

-lhe tudo.”


Pichurov encolheu-se no seu lugar e, percebendo que

havia pormenores que o ultrapassavam naquela conversa,

remeteu-se ao silêncio.


“Sendo assim, Marcos jamais afirma, ou insinua sequer,

que Jesus é Deus”, retomou Tomás. “Os evangelhos que se


lhe seguiram foram os de Mateus e Lucas. Também estes

nunca disseram que Jesus é Deus. Os três evangelistas

põem até Jesus a afirmar que não tem poderes para

decidir quem se sentará à sua direita e à sua esquerda,

e a dizer que nem sabe o dia e a hora em que chegará o

Reino de Deus. Ou seja, e ao contrário de Deus, Jesus

não é omnipotente nem omnisciente. O grande debate

entre estes três evangelistas e Paulo não é pois o

problema de Jesus ser Deus, questão que nem sequer se

levanta, mas determinar quando é que Deus atribuiu a

Jesus o Seu favor e o transformou num ser humano

especial. O primeiro evangelista, Marcos, dá a entender

que isso aconteceu no momento em que João Baptista

baptizou Jesus. Foi nessa altura que ‘dos céus veio uma

voz: «Tu és o Meu Filho muito amado, em Ti pus toda a

Minha complacência»’, conforme estabelecido em 1:11,

frase inspirada numa citação dos Salmos hebraicos. Ou

seja, Marcos considera que Jesus se tornou Filho de

Deus no momento do baptismo. Já Lucas e Mateus defendem

que isso aconteceu na altura do nascimento, com a

imaculada concepção.”


“E Paulo?”


“Esse apresenta ainda outra versão. É interessante

notar que nos Actos dos Apóstolos, um texto do autor de

Lucas a descrever o que fizeram os apóstolos depois da

morte de Jesus, não encontramos nenhuma declaração de

um discípulo a considerar que Jesus é Deus. Os

apóstolos limitam-se a pregar que Jesus é alguém a quem

Deus conferiu poderes especiais. Pedro é até citado em

2:36 a dizer ‘Deus estabeleceu, como Senhor e Messias,

a esse Jesus por vós crucificado’, relacionando

implicitamente o título de Messias com a crucificação,

conceito explicitado em 13:33 por Paulo, segundo o qual

Deus cumpriu a Sua promessa ‘ressuscitando Jesus, como

está escrito no salmo segundo: «Tu és Meu Filho, Eu

gerei-te hoje!»’, insinuando assim que esse estatuto

especial foi entregue, não quando Jesus nasceu, não

quando Jesus foi baptizado, mas boje, o dia em que ele

ressuscitou. Ou seja, Paulo e Pedro aparecem até a

sugerir que, em vida, Jesus nem sequer era Filho de

Deus! Isso só aconteceu com a sua morte.” Os olhos de


Tomás dançaram entre os dois polícias que o escutavam.

“Para os textos mais antigos não está em causa Jesus

ser Deus, mas apenas perceber quando é que Deus lhe

conferiu o estatuto especial de o tornar Seu filho, na

acepção judaica de descendente de David. Foi na

imaculada concepção? Foi no acto de baptismo? Ou foi no

momento em que ressuscitou?”


“Se bem entendi”, observou Valentina, “só o último dos

evangelhos estabelece que Jesus é Deus.”


“O Evangelho segundo João”, confirmou o historiador.

“Quer isto dizer que, quanto mais perto no tempo um

texto está dos acontecimentos, mais humano é Jesus.

Quanto mais se afasta, mais divino ele se torna. O que

parece natural. Com o passar dos anos, a memória

histórica do ser de carne e osso foi-se perdendo, sendo

substituída por elementos míticos de exaltação do herói

a um estatuto de divindade. O ser humano Jesus

transforma-se gradualmente num ser humano especial

escolhido por Deus e, mais tarde, torna-se o próprio

Deus. É uma espécie de processo de construção divina. E

a questão é esta: porque haveremos nós de afirmar que

Jesus era Deus se ele próprio não o fazia nos primeiros

textos do Novo Testamento?” Recomeçou a folhear a sua

Bíblia. “Os teólogos cristãos andaram muito tempo a

queimar as pestanas à volta deste problema, até

encontrarem uma importante referência numa epístola de

Paulo, a Primeira Carta a Timóteo.” Parou de folhear e

pousou a mão numa página. “Está aqui.” Procurou a

referência.

“Vejamos

o

versículo

3:16:

‘Deus

manifestou-se

na

carne,

foi

justificado

pelo

Espírito.’” Olhou para os seus interlocutores com uma

expressão interrogativa, claramente a interpelá-los.

“‘Deus manifestou-se na carne’? Que Deus se manifestou

na carne? A quem se está Paulo a referir?”


Valentina hesitou, receando dizer algum disparate, mas

o historiador fez um sinal a encorajá-la e ela avançou.


“O Deus que se manifesta na carne é Jesus, parece-me a

mim.” Vacilou. “Ou não?”


“Claro que é Jesus!”, confirmou Tomás, tranquilizando-

-a quanto à sua interpretação. “Aliás, essa é ainda

hoje a tese oficial da Igreja. Jesus é Deus a

manifestar-se em carne. Mas a questão essencial não é

essa. O mais importante é que esta frase é de Paulo.”


Ao aperceber-se das implicações dessa constatação, a

italiana quase deu um pulo na cadeira.


“Paulo é o primeiro dos autores do Novo Testamento!”,

exclamou. “As suas cartas foram escritas dez a quinze

anos antes do primeiro evangelho! Isso significa que

temos o autor mais antigo a referir-se a Jesus como

Deus!”


Tomás sorriu.


“Vinte valores para a signora Valentina Ferro!”,

anunciou, como se estivesse a atribuir uma nota na

faculdade. “É isso mesmo! Esta citação é fundamental

porque significa que o mais antigo dos autores do Novo

Testamento, e consequentemente o mais próximo dos

acontecimentos, não se referiu a Jesus como uma mera

figura humana especialmente escolhida por Deus. Paulo

apresentou Jesus como se ele fosse o próprio Deus. Com

Jesus, ‘Deus manifestou-se na carne’. É verdade que nas

restantes epístolas Paulo atribuiu um estatuto divino a

Jesus, mas só depois da ressurreição, não em vida. Daí

que esta frase tenha uma importância crucial, porque

põe o autor mais antigo a expor uma teologia que só

apareceu mais tarde, a de que em vida Jesus era Deus.”


A inspectora da Policia Giudiziaria, já habituada às

súbitas reviravoltas do seu interlocutor, hesitou.


“De certeza que me vai apresentar aí um qualquer

problema”, disse, cheia de prudência repentina. “E acho

que já sei qual é: só existe um manuscrito onde Paulo

afirma tal coisa.”


O historiador regressou à linha que havia lido.


“Não, pelo contrário”, assegurou. “Este versículo da

Primeira Carta a Timóteo é o que consta na maior parte

dos manuscritos antigos que chegaram até nós.”


“Então qual é o problema?”


“O problema é que, se formos consultar este versículo

no Codex Alexandrinus, verificamos que a linha sobre o

teta-sigma, e que indica assim tratar-se da abreviatura

de um nomen sacrum, foi traçada com uma tinta diferente

da usada no texto em redor. Examinando melhor esta

anomalia, percebe-se que se trata de algo que um

escriba acrescentou posteriormente, portanto é uma

adulteração fraudulenta que desvirtua o texto.” Apontou

para a primeira letra grega da palavra, (§), constante

na charada. “Estudando com cuidado o teta, percebe-se

que a linha horizontal traçada no meio da letra não foi

originalmente colocada naquele sítio. Trata-se antes de

um ponto de tinta usada no texto do verso da página e

que

atravessou

o

pergaminho

para

ali

aparecer

acidentalmente.”


Os dois polícias seguiam a explicação com um ar muito

atento, os olhos a saltitarem entre o historiador e a

charada deixada pelo assassino.


“E então? Qual a consequência dessa alteração?”


“As letras originais desse versículo não são teta-

sigma, que daria Deus abreviado, mas ómicron-sigma,

palavra que significa aquele." Desenhou numa folha de

papel os dois caracteres da charada e a sua tradução, =

Deus, e por baixo a nova versão, o primeiro símbolo sem

o traço no interior e a respectiva tradução, OS =

Aquele. Depois voltou à página da Bíblia aberta na

Primeira Carta a Timóteo. “Ou seja, o texto original

copiado pelo escriba do Codex Vaticanus em 3:16 não é

‘Deus manifestou-se na carne, foi justificado pelo

Espírito’, mas ‘aquele manifestou-se na carne, foi

justificado pelo Espírito’. É uma coisa totalmente


diferente, uma vez que Jesus deixa assim de ser Deus.”

Fechou o livro. “O perturbador é que a mesma alteração

feita intencionalmente por escribas foi detectada em

quatro outros manuscritos antigos da Primeira Carta a

Timóteo, contaminando assim as cópias posteriores, em

particular as medievais, que reproduziram e eternizaram

a adulteração.”


“Nesse caso, o que me está a dizer é que Jesus não é

originalmente equiparado a Deus.”


“Exacto”, confirmou o académico. “Nem ele provavelmente

alguma vez declarou ser Deus, nem os apóstolos assim o

encaravam. Isso é uma construção posterior. Aliás, e

como já lhe expliquei, os próprios apóstolos relataram

coisas que inviabilizam que se equipare Jesus a Deus.

Por exemplo, o baptismo. Marcos revela em 1:5 que os

judeus iam ter com João Baptista ‘e eram baptizados por

ele no rio Jordão, confessando os seus pecados’. Depois

diz que Jesus também foi baptizado, admitindo assim que

ele tinha pecados para confessar. Se Jesus fosse Deus,

seria credível que pecasse? E Mateus, em 24:36, põe

Jesus a predizer o fim dos tempos e a afirmar: ‘Quanto

àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe, nem os anjos

do Céu, nem o Filho; só o Pai.’ Ou seja, Jesus não era

omnisciente. Assim sendo, pergunto eu, poderia ele ser

Deus?”


“E então os milagres que Jesus fazia?”, insistiu

Valentina. “Isso não prova que ele era Deus?”


Tomás riu-se.


“Os milagres não têm nada a ver com a suposta divindade

de Jesus”, retorquiu. “Tal como acontece hoje nas

feiras, naquele tempo também existiam curandeiros e

pessoas com poderes especiais, ditos milagrosos. A

antiguidade está cheia de gente assim. Apolónio de

Tíana, um conhecido filósofo, era também curandeiro e

exorcista. O Antigo Testamento mostra-se repleto de

milagres levados a cabo por Moisés, Elias e outros. O

próprio historiador judeu Josefo afirmava ser capaz de

fazer curas milagrosas e exorcismos. Até na Galileia,


uma geração depois de Jesus, viveu um famoso curandeiro

chamado Hanina ben Dosa, a quem se atribuem milagres.

Umas décadas antes de Jesus, apareceu naquela região um

homem chamado Honi, célebre por conseguir atrair a

chuva. Apolónio, Moisés, Elias, Josefo, Hanina e Honi

eram alegadamente capazes de fazer milagres, mas

ninguém achava que eram Deus. Dizia-se que estas

pessoas tinham ‘poderes’, e apenas isso.”


“Está bem, não digo que Jesus fosse Deus”, concedeu a

italiana, “mas há-de concordar que, se ele era capaz de

fazer milagres, tinha pelo menos algo de divino!...”


“Oiça, o que é isso algo de divino? Que eu saiba o

cristianismo

diz-se

uma

religião

monoteísta.

Os

cristãos, tal como os judeus, defendem que só há um

Deus. Quer isto dizer que ou Jesus é o próprio Deus ou

é um ser humano. Não pode é ser um deus mais pequeno,

ou um ser humano com qualidades divinas. Percebe? Isso

iria contra o monoteísmo proclamado pelos cristãos.”


A inspectora da Polizia Giudiziaria baixou os olhos e

assentiu, vencida pela argumentação.


“Pois, tem razão.”


O historiador apontou para o primeiro dos três símbolos

da charada encontrada ao lado do cadáver em Stariot

Grad.


“E essa é justamente a questão suscitada por esta flor-

-de-lis.”


“Está a referir-se ao símbolo da pureza da Virgem

Maria?” Tomás abanou a cabeça.


“Neste contexto, o assassino já não se está a referir à

questão da Virgem Maria, como na charada que deixou na

Biblioteca Vaticana”, corrigiu. “Está a referir-se ao

outro sentido simbólico da flor-de-lis.”


Valentina esboçou um esgar de surpresa.


“A flor-de-lis tem mais de um sentido?”


O seu interlocutor acenou afirmativamente.


“Este é também o símbolo da Santíssima Trindade”,

esclareceu.

“A

mais

bizarra

das

invenções

do

cristianismo.”


XXVII


O som de uma batida rap acelerada irrompeu na

esplanada, interrompendo inopinadamente a conversa.

Tomás olhou em redor, quase atarantado, tentando

perceber de onde vinha aquela estranha música, e acabou

por se fixar no rosto corado do inspector Pichurov. De

ar comprometido, o polícia deitou a mão ao bolso das

calças enquanto exibia um sorriso embaraçado.


“Peço desculpa”, disse. “É o meu telemóvel.”


O anfitrião atendeu e desatou a falar em búlgaro. Menos

de meio minuto depois desligou o telemóvel, fez sinal

ao empregado e largou uma nota sobre a mesa.


“Vamos andando”, disse. “A viúva do professor Varto-

lomeev chegou agora do mar Negro, onde estava a banhos.

Temos de ir a Stariot Grad falar com ela.”


Tomás e Valentina ergueram-se da mesa.

“Ah, com certeza!”

O inspector Pichurov virou-se para a colega italiana.

“Também me disseram do escritório que a sua gente em

Roma e a polícia irlandesa acabaram de nos enviar uns

documentos urgentes. São para lhe entregar a si.”


“Que documentos?”


“Parece que se trata de reconstituições do que fizeram

as vítimas de Roma e de Dublin nos últimos doze meses.

Pediu isso?”


“É verdade. Onde estão?”

“Disse-lhes que os levassem para Stariot Grad.”

Abandonaram a esplanada e caminharam pela Glavnata em

direcção ao lugar onde o inspector Pichurov havia

deixado a sua viatura de serviço. O final de manhã

revelava-se realmente aprazível, com o sol a banhar a


vasta rua de peões e o chilrear melodioso dos pássaros

a embalar os transeuntes.


O polícia búlgaro levava o dossiê do caso numa mão e na

outra o plástico onde a terceira charada permanecia

selada. Valentina fez-lhe sinal a pedir o plástico e,

enquanto caminhava ao lado de Tomás, indicou os

rabiscos que o assassino fizera no papel.


“Já percebemos que os símbolos do meio e da direita são

teta e sigma, do alfabeto grego, e remetem para o

problema da divinização de Jesus”, recapitulou. “Agora

não percebo bem o papel desta flor-de-lis esquematizada

à esquerda. Diz você que, neste contexto, ela

representa a Santíssima Trindade?”


“Desculpe, mas qual a relevância da Santíssima Trindade

nesta conversa? Porque se referiu o assassino a ela?”


“Correcto.”


Tomás pegou no plástico com a charada.


“Porque

a

Santíssima

Trindade

está

directamente

relacionada com a atribuição do estatuto de divindade a

Jesus”, explicou.


“Relacionada como?”


O historiador fixou os olhos pensativos no piso da Gla-

vnata, que percorriam em ritmo de passeio.


“Oiça, a partir do momento em que o Evangelho segundo

João começou, no ano 95, a dizer que Jesus era Deus,

criou-se um problema teológico sério. Em primeiro

lugar, se Deus é Deus e Jesus também é Deus, então

quantos deuses temos?”


Pichurov, que seguia à frente, voltou a cabeça para

ele.


“Na minha contagem dá dois deuses.”


O historiador exibiu o seu exemplar da Bíblia.


“Mas não eram as Escrituras que diziam que só havia um

Deus? Como conciliar a atribuição do estatuto de Deus a

Jesus com a afirmação do monoteísmo? Em segundo lugar,

se Jesus é Deus, isso significa que não era um ser

humano?”


“Claro que era um ser humano!”, exclamou Valentina.

“Morreu na cruz, lembra-se?”


“Então, se era um ser humano, isso significa que não

era Deus?”


A italiana olhou-o, atrapalhada com a pergunta.

“Bem... também era Deus.”

“Humano ou Deus? Em que ficamos?”

“Metade uma coisa, metade outra.”

Tomás torceu os lábios e esboçou uma expressão céptica.


“Hmm... tudo isto parece um pouco dúbio, não acham? A

verdade é que foram justamente estes problemas que

dividiram os seguidores de Jesus. Havia um grupo, os

ebionitas, que defendia que a conversa da divindade era

um disparate, Jesus não era deus nenhum, não passava de

um ser humano que Deus tinha escolhido por se tratar de

uma pessoa particularmente respeitosa da lei, e apenas

isso. Mas outros grupos puseram-se a adorar Jesus como

se ele fosse Deus. Os docetas entendiam que Jesus era

uma entidade exclusivamente divina que apenas parecia

ser humana. Não tinha fome, não tinha dor, não

sangrava, embora parecesse sofrer de todos esses males

do corpo. Defendiam que havia dois deuses, o dos judeus

e Jesus, sendo este o maior. E depois havia os

gnósticos, que afirmavam existirem muitas divindades e

que Jesus era uma delas, pertencente a uma raça de

deuses superior à do Deus dos judeus. Achavam que Jesus

era um ser humano cujo corpo foi temporariamente

ocupado por Deus, designado Cristo. Cristo entrou no


corpo de Jesus no momento do baptismo, e terá sido por

isso que nesse instante Deus disse ‘Tu és o Meu Filho

muito amado, em Ti pus toda a Minha complacência’, e

Cristo abandonou o corpo quando Jesus se encontrava

pregado à cruz, tendo sido por isso que Jesus disse

‘Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?”’


“Que trapalhada!”, observou Valentina.


“Os cristãos de Roma, que viriam a tornar-se a

ortodoxia,

posicionaram-se

a

meio

deste

debate.

Afirmaram que Jesus era Deus e homem em simultâneo.”


“Uma decisão verdadeiramente salomónica”, constatou o

inspector Pichurov com um sorriso. “Metade Deus, metade

homem.”


“Não, não!”, corrigiu Tomás. “Para se demarcarem da

posição gnóstica e estabelecerem que Jesus e Cristo

eram a mesma entidade, os cristãos romanos disseram que

Jesus era, ao mesmo tempo, Deus e homem. Para se

demarcarem dos ebionitas, afirmaram que era cem por

cento

Deus.

E

para

se

demarcarem

dos docetas

sublinharam que era cem por cento homem. Ou seja, Jesus

é ao mesmo tempo cem por cento humano e cem por cento

Deus.”


O polícia búlgaro sacudiu a cabeça, sem entender.

“Cem por cento as duas coisas? Isso não é possível!”

“Mas foi o que ficou decidido. Além do mais, a

ortodoxia considerou que Deus-Pai era uma entidade

diferente de Deus-Filho. Mas ambos são Deus.”


O inspector Pichurov deteve-se a meio da Glavnata e fez

uma careta, como se não tivesse entendido.


“Então temos dois deuses.”


“Não. É apenas um. Deus-Pai e Deus-Filho.”


Os dois interlocutores esboçaram uma expressão confusa.


“Mas... mas isso dá dois.”


“Não segundo a Igreja”, sorriu Tomás, fazendo um gesto

de impotência como se ele próprio não fosse capaz de

entender o que estava a dizer. “Deus-Pai e Deus-Filho

são entidades diferentes. Mas os dois são um único

Deus.”


“Espere aí”, disse Pichurov, tentando dar sentido ao

que estava a escutar. “De acordo com a Igreja, Jesus é

Deus?”


“É.”


“E Deus-Pai é Deus?”

“Claro.”

“Jesus é Deus-Pai?”

“Não.”

“Então há dois deuses! Deus-Pai e Deus-Filho!”


“Não, segundo a Igreja. Os dois são distintos, Jesus

senta-se à direita do Pai e os dois são Deus, mas só há

um Deus.”


Valentina ergueu o sobrolho.


“Bom, isso não faz realmente muito sentido”, admitiu.

“Com certeza essa ideia evoluiu depois para qualquer

coisa mais lógica...”


“Só evoluiu no sentido em que a Igreja, não contente

com toda esta confusão, decidiu acrescentar-lhe ainda

uma terceira entidade. Como em 14:16 o Evangelho

segundo João põe Jesus a apresentar o Espírito Santo

como ‘outro consolador, para estar convosco para

sempre’ quando Jesus voltar para o Céu, a Igreja achou

por bem instituir esta nova entidade de contornos

difusos, o Espírito Santo, também como Deus.” Fez um

gesto grandioso. “Voilà! A Santíssima Trindade!”


“Porque faz essa expressão sarcástica?”, protestou a

italiana. “As três entidades são três expressões

diferentes de Deus. Qual é o problema?”


“Não!”, corrigiu o historiador. “Eu sei que é difícil

de entender, mas segundo a doutrina oficial são três

entidades totalmente distintas umas das outras. Todas

diferentes, mas todas são Deus, embora só exista um

Deus. E Jesus é cem por cento Deus e cem por cento

homem. Esta foi a tese estabelecida no célebre Concílio

de Niceia, convocado em 325 para resolver todas as

disputas teológicas e unificar o cristianismo, e que

vigora ainda hoje.” Fez um gesto enfático. “Ainda

hoje!”


A inspectora da Polizia Giudiziaria sacudiu a cabeça,

como se tivesse esperança de que assim as peças se

encaixassem de alguma forma dentro do seu próprio

crânio.


“Há três deuses diferentes e são todos um Deus?”,

estranhou. “Jesus é cem por cento divino e cem por

cento humano? Realmente, essa aritmética não bate

certo!...” “Pois não.”


“Como é que a Igreja resolveu o problema?”

Tomás riu-se.

“Disse que era um mistério.”

“Um mistério... como?”

“A Igreja percebeu que é um absurdo afirmar que Jesus é

cem por cento humano e cem por cento Deus. Não faz

sentido! E percebeu que é também incompreensível

defender que Deus, Jesus e o Espírito Santo são três

entidades divinas totalmente distintas umas das outras

e, porém, só existe um Deus. Mas não quis recuar nas

suas posições paradoxais. Então o que fez? Fugiu em

frente. Incapaz de resolver estas contradições, mas não

querendo dar razão aos ebionitas, ou aos gnósticos, ou


aos docetas, limitou-se a declarar que isto é tudo um

grande mistério.” Mudou o tom de voz, como se fizesse

um aparte. “No que, aliás, até tem razão: é um mistério

porque não faz nenhum sentido.” Retomou o tom normal.

“E assim, como quem esconde o lixo debaixo do tapete

para fingir que ele não existe, lavou as mãos da

trapalhada teológica que montou. E aqui está, em todo o

seu esplendor, o mistério da Santíssima Trindade.”


Chegaram junto da viatura de serviço da polícia

búlgara. O anfitrião retirou a chave do bolso, mas não

entrou de imediato.


“De certeza que isso faz sentido e nós é que somos

burros”, observou. “Mas o que eu quero perceber é qual

a relação entre esse assunto e a charada deixada pelo

autor dos crimes que estamos a investigar.”


O olhar dos três descaiu para o objecto na mão de

Tomás, o plástico com a folha de papel encontrada junto

à vítima de Stariot Grad.


“Por algum motivo que me escapa, o nosso homem quis

nesta mensagem chamar a atenção para as ficções criadas

em torno da divindade de Jesus e da Santíssima

Trindade”, disse ele. “Se a segunda parte desta charada

incide na adulteração que conduziu ao teta-sigma que

transformou Jesus num Deus, talvez o primeiro símbolo

se relacione também com adulterações do Novo Testamento

relativas à Santíssima Trindade.”


“Também aí houve adulterações?”


“Claro que houve. Basta ler o Novo Testamento para

perceber que em parte alguma se fala na Santíssima

Trindade. Nem mesmo no Evangelho segundo João!”. Abriu

o seu exemplar da Bíblia. “A excepção, claro, é a

Primeira Carta de João, onde, em 5:7-8, está escrito:

‘Porque três são os que testificam no céu, o Pai, a

Palavra e o Espírito Santo: e estes três são um. E há

três que prestam testemunho na Terra, o Espírito, a

água e o sangue; e os três estão de acordo.’”


Valentina lançou-lhe um olhar desconfiado.

“Vai dizer-me que isso é falso.”

“Duplamente”, confirmou Tomás. “Em primeiro lugar, as

três Cartas de João que constam do Novo Testamento são

fraudes. O apóstolo João, que os Actos dos Apóstolos

revelam ser ‘analfabeto’, não as escreveu. Confrontada

com este problema, a Igreja diz que a epístola pode não

ter sido escrita por João, mas mesmo assim o seu

conteúdo é ‘inspirado’ por Deus. É uma maneira de

ignorar o problema embaraçoso de existirem textos

canónicos fraudulentos, embora essa prática na altura

não fosse considerada condenável. Mesmo que se aceite

essa ficção, o facto é que este versículo nem sequer

fazia parte da carta original. Nenhum manuscrito grego

o contém desta maneira. O texto foi adulterado para

meter à força a referência ao Pai, ao Filho e ao

Espírito Santo, num exemplo claro de adaptação dos

factos à teologia.”


“E diz você que essa era a única referência no Novo

Testamento à Santíssima Trindade?”


“A única”, insistiu o historiador. “E é duplamente

falsa.” Soprou, como se assim o versículo se desfizesse

em pó. “Já não resta mais nada.” Voltou a folhear a

Bíblia. “O que fica é a simples constatação de que

Marcos põe um escriba a perguntar a Jesus qual o

primeiro de todos os mandamentos e Jesus responde desta

forma em 12:29: ‘O primeiro é: «Ouve, Israel: O Senhor,

nosso Deus, é o único Senhor.»’ Ou seja, Jesus limita-

se a proclamar o Shema, a afirmação judaica de que só

há um Deus. Jesus não faz em parte alguma alusão a uma

Trindade nem a um Espírito Santo, e muito menos à

possibilidade de ele próprio ser Deus. Ao longo de toda

a Bíblia, a palavra Deus aparece cerca de doze mil

vezes. Pois não há uma única vez em que a palavra três

ou trindade surja no mesmo versículo onde está a

palavra Deus. E em parte alguma, quando Deus ou Jesus

falam e se referem a si próprios, dizem ou insinuam

‘Eu, os três’.”


Fez-se uma pausa e o inspector Pichurov destrancou o

automóvel e convidou os seus dois acompanhantes a

acomodarem-se no interior. Tomás instalou-se ao lado do

condutor, Valentina no banco de trás. O búlgaro meteu a

chave na ignição e, antes de ligar o motor, olhou para

o lado.


“Onde é que isso tudo nos deixa nesta investigação?”,

quis saber.


O historiador encolheu os ombros.


“O nosso assassino é evidentemente um erudito em

questões teológicas”, disse. “Parece apostado em

demonstrar que quase tudo o que sabemos sobre Jesus é

uma mentira. E cheira-me que só perceberemos o que está

verdadeiramente a acontecer se descobrirmos o que une

as três vítimas. Será esse ponto em comum entre elas

que nos conduzirá ao autor destes crimes.”


Os dois polícias assentiram.


“Tem razão”, concordou Valentina. “Essa também me

parece ser a única maneira de deslindar estes casos.”


O consenso estava estabelecido no interior do carro.

Percebendo

que

se

encontravam

atrasados,

e

determinado a não perder mais tempo, Pichurov ligou a

ignição, fez pisca à esquerda, verificou pelo espelho

retrovisor lateral se tinha a via livre e carregou no

acelerador.


XXVIII


O ambiente no interior da Casa de Balabanov era de

profunda consternação. Quando subia as escadas de

madeira, Tomás ouviu o choro abafado da viúva no

primeiro andar e teve vontade de fugir dali; sentia-se

um intruso na desgraça alheia, como um abutre que vive

dos despojos da morte. Mas os polícias que o

encaminhavam nem hesitaram; afinal era uma situação a

que estavam habituados. Resignando-se, o historiador

remeteu-se ao seu papel.


A escadaria desembocou num grande salão no primeiro

andar, bem iluminado pelas múltiplas janelas que o

cercavam.

O

salão

fazia

ligação

a

vários

compartimentos, como um polvo a espraiar os seus

múltiplos tentáculos, e os visitantes aperceberam-se de

movimento numa das salinhas de esquina. Era decerto ali

que se encontrava a viúva, pelo que se encaminharam

para lá.


“Dober den”, cumprimentou o inspector Pichurov ao

penetrar na salinha. “Kak ste?”


Uma mulher com o rosto chupado e os olhos

congestionados estava sentada numa cadeira ao canto e

acolheu os recém-chegados com um olhar interrogador. O

polícia pôs-se a dialogar com ela em búlgaro. Instantes

depois apontou para a italiana, disse o nome dela e

depois indicou o historiador. Tomás escutou o seu nome

entre a algaraviada eslava e ainda entendeu a palavra

portugalski, jnas o resto escapou-lhe. A conversa em

búlgaro acabou no entanto por se revelar curta e foi

interrompida

quando

a

viúva

encarou

os

dois

estrangeiros e se dirigiu a eles em inglês.


“Sejam bem-vindos”, disse, com uma voz arrastada.

“Lamento

que

tenham

vindo

nestas

circunstâncias

penosas. Oferecer-vos-ia chá se me sentisse com forças,

mas assim...” Uma grossa lágrima deslizou pelo rosto

enrugado

da

mulher,

deixando

o

historiador

constrangido.


“Oh, não se preocupe”, balbuciou. Não sabia o que dizer

naquelas

circunstâncias.

Deveria

apresentar

condolências, claro, mas, não conhecendo ele a vítima

nem a sua interlocutora, pareceu-lhe que os pêsames

seriam artificiais. Tudo o que conseguiu dizer foi:

“Isto é uma coisa terrível...” Tomás deixou a frase em

suspenso, mas Valentina, experiente naquelas situações,

não perdeu tempo.


“Vamos apanhar a pessoa que fez isto”, garantiu com a

convicção de quem acabara de fazer do caso uma questão

pessoal. “A polícia italiana está empenhada em

descobrir

o

criminoso

e

contamos

com

ajuda

internacional.” Indicou Tomás, como se fosse ele a dita

ajuda internacional. “No entanto, primeiro precisamos

da sua cooperação.”


A viúva abanou a cabeça com tristeza.


“Não sei se me encontro em condições de vos ajudar”,

disse ela. “Quando ontem me deram a notícia eu estava a

banhos na nossa casa de Verão em Varna.” Pousou a palma

da mão no peito. “Ah, foi um choque! Ando há quase

vinte e quatro horas com sedativos e sinto-me um pouco

entorpecida.” “Eu compreendo”, afirmou Valentina num

tom caloroso, toda ela compaixão profissional. “Queria

apenas saber se notou alguma coisa anormal nos últimos

tempos. O seu marido andava preocupado? Receberam

alguma ameaça? Passou-se qualquer coisa de estranho?”


A mulher abanou a cabeça.


“Não, nada. Estava tudo bem. O Petar andava nas suas

coisas, claro. Sempre entusiasmado, como era o seu

timbre. Passava a vida metido na faculdade, a dar aulas

ou lá nas suas pesquisas. Às vezes tinha de fazer umas

viagens ao estrangeiro, mas nada de anormal.”


“Ai sim? Ele viajava? E onde foi ele nos últimos

tempos?”


“Não tenho bem a certeza”, disse ela, os olhos

encovados a traírem a fadiga. “Esteve em Nova Iorque,


foi a Israel, deu um salto a Helsínquia...” Fez um

esforço de memória. “Ah, passou por Itália!...”


A referência ao seu país chamou a atenção da inspectora

da Polizia Giudiziaria.


“Onde foi ele, em Itália?”


“Ah, isso já não sei. Andou por lá em conferências e

coisas do género.” Fez um gesto incomodado. “Talvez

seja melhor irem à faculdade. Eles é que tratam das

viagens...”


O inspector Pichurov inclinou-se para a sua colega

italiana.


“Os meus homens já estão na universidade a recolher

informação”, segredou-lhe. “Se quiser, encaminho-lhe

depois os pormenores.”


A viúva aproveitou aquela pausa para se erguer da

cadeira. Com uma expressão condoída, fez um gesto a

indicar aos visitantes que a deixassem passar.


“Estou muito cansada”, disse. “Se me dão licença, vou

para o meu quarto repousar um pouco.”


“Com certeza”, assentiu Valentina. “Só tenho mais uma

pergunta para lhe fazer, se não se importar.”


A mulher continuou a caminhar, embora com passos

curtos, como vergados pelo pesar.


“Diga.”


“O seu marido era um homem religioso?”

A viúva parou, estranhando a pergunta.

“Nem por isso. O Petar não ligava a essas coisas. Inte-

ressava-se mais por ciência, está a ver?”


“Mas não consultava a Bíblia nem nada? Nunca lhe falou

de manuscritos antigos e coisas do género?”


A senhora Vartolomeev esboçou uma careta atónita, como

se não entendesse a pertinência da pergunta.


“O minha senhora”, retorquiu com uma ponta de acidez,

“pois se lhe estou a dizer que ele não se interessava

por

esses

assuntos!...”

Endireitou

o

corpo,

empertigando-se, e retomou a marcha, agora com passos

mais convictos. “Se me dão licença, retiro-me para os

meus aposentos. Boa tarde!”


A viúva desapareceu para além de uma porta e deixou os

polícias a olharem uns para os outros na salinha do

canto. Valentina fez a expressão de quem tinha tentado

obter alguma coisa de útil, mas os colegas búlgaros

responderam-lhe com uma expressão facial fria e

distante. Embaraçada pelo fracasso, bateu em retirada e

recolheu-se com Tomás ao salão central. O inspector

Pichurov

ficou

para

trás

a

conversar

com

os

subordinados, mas pouco depois juntou-se aos visitantes

no salão com algumas folhas de papel entre os dedos.


“Estão aqui os documentos enviados de Dublin e de

Roma”, anunciou. “Contêm a relação das viagens das

outras duas vítimas nos últimos doze meses.”


A italiana arrancou-lhe os papéis com um gesto sôfrego

e pousou de imediato os olhos neles. Quase se assustou

com o que viu.


“Ui, a professora Escalona fartou-se de viajar!”,

exclamou. Virou o documento na direcção do historiador.

“Olhe para isto! São mais de quarenta viagens!”

Espreitou o segundo documento. “Que horror! O Schwarz

ainda foi pior!” Também exibiu o texto. “Este homem

devia ser o holandês voador! Madonna, são umas

cinquenta viagens!”


Tomás espreitou as duas listas.


“É realmente muita coisa”, concordou. “Oiça, veja só

quais os sítios onde ambos estiveram na mesma altura.”


Valentina pegou numa caneta e assinalou os destinos

comuns. Fez dezasseis cruzes. Depois verificou os dias

das respectivas viagens, em busca de coincidências de

datas, e reduziu o número de cruzes a cinco.


“Hmm, interessante”, murmurou. “Estiveram ambos em Roma

ao mesmo tempo. A Escalona foi ver manuscritos no

Vaticano e o Schwarz andou envolvido em escavações

dentro do Coliseu.” Fez uma pausa. “Andaram os dois

pela Grécia na mesma altura. Ele nas ruínas de Olímpia,

ela na biblioteca do Mosteiro de Roussanou.” Nova

pausa. “Israel é outro ponto em comum. Ele foi lá

inspeccionar ossários na Autoridade das Antiguidades de

Israel, ela participou numa conferência sobre os

manuscritos do Mar Morto.”


“Até aqui, tudo muito normal”, observou o académico

português. “O professor Schwarz sempre envolvido em

actividades ligadas à sua especialidade, a arqueologia,

e a Patricia no meio de manuscritos, como seria de

esperar de uma paleógrafa com a sua reputação. Não há

nada de anormal nas outras duas viagens em comum?”


“Paris”, disse a italiana. “A professora Escalona foi

participar numa peritagem de dois palimpsestos.”


“Parece-me normal. E o professor Schwarz?”


“Fez uma simples visita de turismo.” Cravou os olhos

azuis em Tomás. “O turismo é uma excepção no perfil

geral das viagens que ele efectuava. Pode querer dizer

alguma coisa.”


“Pode ser que sim”, concordou o historiador, “mas

também pode ser que não. Escolher Paris como destino

turístico parece-me uma coisa perfeitamente normal.”

Desviou a atenção para os documentos. “E a última

viagem?”


Valentina verificou a derradeira cruz.


“Estiveram ambos em Nova Iorque ao mesmo tempo. Ela de

passagem para Filadélfia para ir ver um qualquer

manuscrito antigo que está lá guardado...”


“Deve ser o pergaminho Pl, o primeiro fragmento de

papiro alguma vez catalogado. Contém versículos do

Evangelho segundo Mateus e data do século III. Uma

preciosidade.” Desviou os olhos para a lista das

viagens do professor Schwarz. “E ele?”


“Foi lá tratar de umas questões de financiamento para a

Universidade de Amesterdão.”


Os dois trocaram um olhar, esperando contra todas as

esperanças.


“Se calhar foi aqui que eles se cruzaram”, observou

Tomás. Fez um gesto a indicar a salinha ao lado. “Não

foi em Nova Iorque que a nossa viúva disse que o marido

também esteve?”


Os olhos de Valentina brilhavam.


“Nova Iorque”, repetiu, como se se tratasse de um nome

mágico. “Acha mesmo que é esse o ponto que une os

três?” O português encolheu os ombros.


“Pode ser, não acha? Alguma coisa terão em comum, para

serem assassinados da mesma forma.”


Estavam ambos a ponderar as diversas hipóteses quando o

inspector Pichurov, que se havia afastado para dar

instruções aos seus subordinados, voltou a aproximar-

se.


“Haide!”, disse em búlgaro, fazendo com a mão um gesto

a chamá-los. “Vamos embora. A viúva está muito afectada

pelo que aconteceu e pediu silêncio.”


“Ah, compreendo.”


Meteram pelas escadas e começaram a descer. Eram de

madeira e os degraus rangiam a cada passo, como se

protestassem pelo peso que tinham de suportar.


“Coitada!”, desabafou Pichurov. “Parece que a senhora

Vartolomeev ficou muito perturbada quando lhe contaram

que o assassino lançou um berro a lamentar a morte do

marido. Perguntou que raio de animal mata uma pessoa e

depois se põe a fingir que...”


“O quê?”, interrompeu-o Tomás, estacando a meio das

escadas como se um raio tivesse acabado de o paralisar.

“Repita lá o que disse!”


Os dois polícias ficaram a olhar para o historiador,

surpreendidos com a sua reacção.


“Bem, dizia que ela perguntou que raio de animal é

que...” “Não. Antes. O que disse antes?”


“Antes?”, admirou-se o búlgaro, sem entender nada.

“Antes, como?”


“Disse que o assassino gritou?”


“Ah, sim. Temos uma testemunha, a beldade do quiosque,

que diz que o assassino lançou um berro, como se

lamentasse ter morto o professor Vartolomeev. Estranho,

não é?”


Tomás atirou um olhar a Valentina, que acabara de

perceber a reacção do português.


“Lembra-se do que revelou a testemunha de Dublin?” “Tem

razão!”, exclamou ela. “O bêbado contou a mesma coisa.

O assassino de Dublin também gritou, como se chorasse a

morte do professor Schwarz.” Hesitou. “O que quererá

isso dizer?”


O historiador fez um ar pensativo. Tinha os olhos

baixos, colados à madeira da escada, mas no seu cérebro

só passavam imagens de páginas e páginas dos milhares


de livros de história que ao longo dos anos tivera de

ler por causa da sua profissão.


“Os sicarii!”, exclamou de repente. “São os sicarii!”

A italiana esboçou uma expressão inquisitiva.

“Os... quem? Que diabo está para aí a dizer?”


Tomás indicou com a cabeça os documentos que ela tinha

nas mãos, com a lista dos destinos de viagem das duas

primeiras vítimas.


“Já sei o que têm as nossas três vítimas em comum.”

“Ai sim? O quê?”

O português olhou para a porta que dava para a rua,

como se não houvesse mais tempo a perder.


“Jerusalém.”


XXIX


O sol banhava o topo do muro com intensidade, mas a

sombra cortava uma recta pelas enormes pedras e

abrigava os fiéis do ardor inclemente. Depois de

ajeitar o tallit sobre a cabeça e os ombros e de

assegurar que o tefilin sbel rosb estava adequadamente

apertado em torno da testa e os tzitzit se encontravam

devidamente atados nas bordas, como requerido pelas

Sagradas Escrituras, Sicarius deitou a mão ao rolo de

pergaminho.


Deu um passo para a frente, encostou a cabeça à pedra

fria, estendeu o rolo e começou a murmurar as palavras

sagradas dos Salmos, nas Escrituras.


“‘Para Vós, Senhor, elevo a minha alma!’”, entoou,

lendo o texto impresso no pergaminho. “‘Meu Deus, em

Vós confio, não seja eu confundido! Não exultem contra

mim os meus inimigos! Na verdade, quantos esperam em

Vós...’” O som do telemóvel irrompeu inesperadamente do

bolso, atraindo para Sicarius os olhares incomodados

dos fiéis que rezavam em redor. Embaraçado, o crente

deitou à pressa a mão ao bolso e, às cegas e de

memória, localizou o botão vermelho e premiu-o,

desligando

o

aparelho.

A

tranquilidade

fora

restabelecida.


“ ‘Na verdade, quantos esperam em Vós não serão

confundidos’”, recitou, retomando a leitura sagrada.

“‘Confundidos serão os traidores sem qualquer motivo.”’


Sicarius permaneceu meia hora a recitar os Salmos em

voz baixa diante do grande muro de pedra, o tronco a

balouçar para a frente e para trás, os dedos a

desenrolarem o pergaminho. Depois voltou a deitar a mão

ao bolso, localizou os papéis que trazia preparados com

versículos do Cântico dos Cânticos e inseriu-os nas

pequenas aberturas entre as pedras gigantescas.


Terminada a tarefa, retirou-se com todo o respeito e

foi preparar as suas coisas para abandonar o local.

Quando atravessou a enorme praça, voltou a ligar o


telemóvel, localizou a chamada que o havia interrompido

a meio da oração e ligou para o número.


“Lamento não ter atendido, mestre”, desculpou-se.

“Estava em oração no HaKotel HaMa’aravi.”


“Ah, peço desculpa. Não sabia que tinhas ido rezar ao

Muro das Lamentações. Está aí muita gente?”


Sicarius olhou em redor.


“O costume.” Torceu os lábios. “Foi para saber isso que

me ligou?”


“Sabes bem que não. Queria apenas avisar-te de que me

chegaram uns zunzuns aos ouvidos...”


“Que zunzuns?”


“Eu cá sei”, disse, enigmático. “Preciso é de me

assegurar que estás pronto para mais uma operação.”


O coração de Sicarius deu um salto.


“Com certeza, mestre. Para que país quer que eu vá


“Não terás de viajar”, retorquiu a voz ao telemóvel. A

operação irá decorrer cá em Jerusalém.'’’’


“Aqui?”, admirou-se o operacional. “Quando?”

O mestre fez uma pausa antes de responder.

“Era breve. Mantém-te preparado.”


XXX


O bar do American Colony tinha um certo ar de tugúrio

lúgubre, como se estivesse encravado nas masmorras de

uma fortaleza medieval sombria, o que de resto pareceu

a Tomás o ambiente adequado para o encontro com o

inspector-chefe da polícia israelita.


“Shalom!”, cumprimentou o homem mal os dois recém-

-chegados cruzaram a porta do bar do hotel. “Sou Arnald

Grossman, do departamento de homicídios da polícia

israelita. Podem chamar-me Arnie. Bem-vindos a

Jerusalém!” O anfitrião era um homem de sessenta anos,

alto e bem constituído, olhos claros e cabelo grisalho,

a denunciar o louro já perdido da juventude. Ofereceu

um whisky a Tomás e um martini a Valentina, e desatou a

tagarelar sobre os infindáveis problemas de segurança

do seu país.


Ao fim de alguns minutos de conversa de circunstância,

a inspectora da Polizia Giudiziaria achou que estava na

altura de entrar no assunto que ali os trouxera.


“Estamos convencidos que está em Israel a solução para

uma série de crimes ocorridos há três dias na Europa”,

disse ela. “No espaço de vinte e quatro horas foram

assassinados três académicos em países diferentes.

Temos razões para acreditar que a chave dos casos se

encontra aqui.”


Grossman semicerrou os olhos, como um jogador de póquer

a avaliar os adversários.


“Estou familiarizado com o sucedido”, declarou. “Li os

relatórios da Interpol e o material que acompanhou os

pedidos urgentes que nos fizeram chegar. Mas não

percebo bem os motivos pelos quais vocês acreditam que

esses casos se resolvem aqui.”


“Bem... as três vítimas estiveram em simultâneo em

Israel”, explicou Valentina. “A professora Patricia

Escalona era uma paleógrafa muito reputada e veio cá há


três meses participar numa conferência sobre os

manuscritos do Mar Morto. O professor Alexander Schwarz

esteve na mesma altura em Jerusalém a inspeccionar os

ossários protocristãos guardados na Autoridade das

Antiguidades de Israel para um artigo que estava a

escrever para a Biblical Arcbaeology Review. Na mesma

data, o professor Petar Vartolomeev proferiu uma

palestra no Instituto Weizmann de Ciência.” O polícia

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