ou
de
qualquer
pó
indesejável, e um termómetro digital na parede
registava um grau Celsius. Pelos vistos fazia frio, mas
o escafandro mantinha toda a gente aquecida.
“É isto o Kodesh Hakodashim?”, quis saber Tomás,
estudando a câmara com atenção. “É mesmo o santo dos
santos?”
Arpad Arkan acenou afirmativamente.
“Já vos disse que sim.”
O grupo manteve-se silencioso durante alguns segundos,
na expectativa, os olhares projectados em todas as
direcções. Mas nada acontecia e Arnie Grossman, o mais
impaciente dos três visitantes, não se conteve.
“Se isto é o Kodesh Hakodashim, onde está Deus? Não
deveria Ele deambular fisicamente neste lugar?”
“Ele está aqui”, confirmou o anfitrião. “Encontra-se
nesta câmara. Em pessoa.”
Os olhos dos visitantes voltaram a procurar vestígios
da presença divina, como se ela fosse um corpo
material. Porém, nada viam de extraordinário para além
de todo o equipamento que quase transformava a câmara
num labirinto. Talvez se explorassem todos os seus
caminhos encontrassem alguma coisa.
“Onde?”
Arkan meteu por um dos corredores e fez sinal aos três
de que o seguissem. Colunas de armários e equipamento
faziam de parede do corredor, que ao fim de uma centena
de metros foi dar a um pequeno largo. A meio desse
espaço aberto estava uma mesa com um microscópio,
ampolas, seringas e tubos de ensaio, mas o mais
importante era o que se apresentava em frente.
Tratava-se da porta de um enorme congelador. O que o
distinguia do resto era o emaranhado de luzes vermelhas
cruzadas em todas as direcções, como uma rede de linhas
rectas. Para requerer um dispositivo de segurança assim
tão sofisticado, o que quer que ali estivesse guardado
era decerto precioso.
Antes de começar a falar, o presidente da fundação
esperou que todos se pusessem à vontade naquele espaço.
“Algum de vós já ouviu falar de Armon Hanatziv?”
“Claro”, retorquiu de imediato Grossman, puxando dos
seus galões de polícia. “É um bairro uns cinco
quilómetros a sul da cidade velha de Jerusalém, mesmo
ao pé do monte Moriah. O que tem ele?”
“Sabe como se chamava antigamente?”
O inspector-chefe da polícia israelita curvou os lábios
numa expressão de ignorância.
“Não sabia que Armon Hanatziv já teve outro nome...”
O olhar de Arkan desviou-se para Tomás; queria observar
a expressão do historiador quando pronunciasse o nome
antigo do bairro.
O académico português esboçou uma careta indefinida,
como se o nome lhe parecesse vagamente familiar.
“Talpiot... Talpiot...”, murmurou, fazendo um esforço
de memória. “Isso de facto lembra-me alguma coisa...”
O anfitrião sorriu.
“Vou dar-lhe uma ajuda”, disse. “Numa manhã da
Primavera de 1980, um bulldozer estava a operar no
bairro de Armon Hanatziv para abrir espaço destinado à
construção de um novo projecto imobiliário. No decurso
dos trabalhos, o bulldozer embateu inadvertidamente
numa estrutura enterrada no solo. Os operários foram
ver o que era e depararam-se com o que parecia uma
fachada de pedra pertencente a uma construção antiga
debaixo da terra. Havia uma abertura e um estranho
sinal esculpido no topo da fachada, por cima da
abertura. Era um ‘V’ invertido por cima de um pequeno
círculo.” Pegou numa caneta e fez um desenho num papel.
“Assim.”
“Talpiot.”
Tomás contemplou o desenho com um olhar entendido.
“Parece o símbolo pregado na fachada da Porta de
Nicanor, uma das entradas no Templo”, observou.
“Conhecemo-lo graças a imagens que aparecem nas moedas
do período.”
“E o que significa?”
O historiador fez um ar pensativo.
“A Porta de Nicanor assinalava o ponto final da
peregrinação a Jerusalém”, indicou. “Esse símbolo
representava o olho da pureza, também designado olho da
ascensão. Sabe, o círculo dentro de um triângulo é um
símbolo paleo-hebraico. Em termos literais, é um olho a
espreitar por uma porta.”
“Diria que se trata de uma descoberta interessante?”
Tomás fez um sim enfático com a cabeça.
“Muito!”
“Pois os trabalhadores também acharam curioso”, disse
Arkan. “Mas havia trabalho para fazer e eles depressa
esqueceram a descoberta. Os bulldozers recomeçaram a
remover terras e a dinamite voltou a ser usada para
quebrar rochas.”
“Espere aí!”, interrompeu-o Grossman. “Por lei, quando
se faz um achado destes, todo o trabalho tem de ser
interrompido. Só pode ser retomado depois de os
arqueólogos autorizarem.”
“A lei é muito bonita, sim senhor”, registou o
anfitrião com ironia. “Mas, como tenho a certeza de que
sabe, todos os meses são feitas dezenas de descobertas
semelhantes em Jerusalém e a última coisa que os
construtores desejam é parar os trabalhos sempre que
umas velharias lhes aparecem quando estão a aplanar
terreno para erguer mais uns prédios. No fim de contas,
quem lhes paga os prejuízos que sofrem por terem os
trabalhos suspensos durante dias a fio, se não mesmo
meses?”
O polícia israelita assentiu. O problema era por demais
conhecido em Israel.
“Pois é, ninguém respeita a lei.”
“Acontece que, depois de os trabalhos serem retomados,
uns miúdos da vizinhança esgueiraram-se pela abertura
da fachada e encontraram alguns crânios no interior da
estrutura enterrada no solo. Puseram-se até a jogar à
bola com eles. A ver tudo isto estava o filho de uma
arqueóloga, que, devido à profissão da mãe, sabia que
todo o sector em torno do monte Moriah era rico em
achados arqueológicos de grande importância.”
“Não admira!”, observou Tomás. “O monte Moriah é o
monte onde estava construído o Templo. Tudo o que ele
contém há-de ser de importância.”
“Assim é, de facto. De modo que o miúdo foi alertar a
mãe. A arqueóloga pediu ajuda ao marido e seguiram os
dois para o local. Deram com as crianças a brincar com
os restos mortais e puseram-se aos berros, afugentando-
-as. Com as crianças fora do caminho, inspeccionaram os
ossos que elas deixaram no chão. Eram restos de pelo
menos dois crânios, já feitos em cacos pelos pontapés.
A arqueóloga e o marido recolheram esses vestígios e
guardaram-nos em sacos de plástico. Quando o casal
regressou a casa, ela ligou para a Autoridade das
Antiguidades de Israel, que enviou de imediato técnicos
para analisar o achado. Uma equipa de três arqueólogos
esgueirou-se
pela
estreita
entrada
da
estrutura
soterrada e inspeccionou o interior. Rastejaram uns
metros e o espaço abriu-se, permitindo que se pusessem
de pé. Tinham chegado a uma câmara inferior, onde o ar
estava estagnado e cheirava a giz húmido e a terra
bolorenta. Apontaram as lanternas para o chão e
perceberam que a terra ali era vermelha. Tratava-se da
famosa terra rossa.”
“Sei muito bem”, indicou Grossman com um semblante
conhecedor. “É típica de Jerusalém.”
“Os arqueólogos viraram então as lanternas para as
paredes e ficaram embasbacados com o que viram. Quando
percebeu o que estava lá dentro, o chefe da equipa saiu
imediatamente da estrutura subterrânea e mandou parar
todos os trabalhos.”
Fez uma pausa na narrativa e passeou o olhar pelas três
pessoas que o escutavam.
“Fazem ideia do que tinha acabado de ser descoberto?”
“A arca da aliança?”, gracejou o polícia israelita. “Ou
terão sido antes as tábuas da lei que Deus deu a
Moisés?”
Arkan disparou um olhar fulminante para Grossman,
tornando claro que dispensava aquelas larachas.
“Um importante mausoléu funerário”, revelou, levemente
irritado por o inspector-chefe lhe ter estragado o
efeito. “Havia seis receptáculos cavados em três das
quatro paredes da câmara inferior, e cada receptáculo,
designado kokhim em hebraico e loculi em latim,
continha um ou mais ossários. Ao todo, a equipa
contabilizou dez ossários cobertos de terra rossa. Os
ossários foram retirados um a um e remetidos para o
armazém da Autoridade das Antiguidades de Israel,
embora aparentemente um deles tenha acabado por
desaparecer algures pelo caminho, decerto vendido a um
antiquário qualquer. Seja como for, os arqueólogos
voltaram ao interior do mausoléu e inspeccionaram a
câmara baixa ao pormenor. Descobriram três crânios
dispostos no chão em triângulo, disposição que dava a
impressão de
resultar
de
um
qualquer
tipo
de
cerimonial.”
Arnie Grossman consultou o relógio. A impaciência era
um vulcão que lhe regurgitava nas entranhas e ameaçava
explodir a todo o instante.
“Oiça, o que interessa isso?”, perguntou, à beira da
erupção. “Estamos a conduzir uma investigação criminal
e essa história de arqueólogos não interessa para nada!
Porque não nos diz imediatamente, e sem rodeios, o que
queremos saber?”
“Estou a dizer-vos o que vocês querem saber!”,
retorquiu Arkan com acidez. “Mas para perceberem o que
tenho para vos revelar, e mostrar, precisam primeiro de
conhecer estes pormenores. Sem eles, o resto não faz
sentido.”
O inspector-chefe da polícia israelita esboçou um gesto
largo, a indicar tudo em redor.
“O senhor começou por nos dizer que isto aqui era o
santo dos santos e coisa e tal”, exclamou. “Chegou até
a afirmar, blasfémia das blasfémias, que Deus está
fisicamente nesta câmara! E agora vem-nos com essa
conversa de ossários e mais não sei quê!”
“Calma”, aconselhou Valentina, pondo-lhe a mão no ombro
para o conter. “Vamos primeiro ouvir tudo até ao fim e
depois decidiremos o que fazer. Se isto for uma manobra
dilatória, é só uma questão de fazer uso do mandado que
o juiz passou.”
Travado pelos argumentos da colega italiana, Arnie
Grossman respirou fundo e, quase com fumo a exalar-lhe
pelas narinas, dominou o desassossego.
“Prossiga.”
Arpad Arkan não parecia minimamente preocupado, o que
intrigou Tomás. Ou estava muito seguro de que tinha de
facto uma grande revelação a fazer, ou então guardara
uma carta na manga para se escapar no derradeiro
momento.
“Uma vez no armazém da Autoridade das Antiguidades de
Israel, os nove ossários de Talpiot foram medidos,
fotografados e catalogados com a referência IAA 80/500-
509”, disse o presidente da fundação, retomando o
relato num tom imperturbável. “IAA refere-se às
iniciais do nome inglês da instituição, Israel
Antiquities Authority, o 80 ao ano da descoberta, 1980,
e o 500-509 ao número de entrada dos ossários na lista
dos artefactos catalogados nesse ano.”
“Tudo isso são minudências técnicas”, interrompeu
Tomás. “O que tinham esses ossários de especial?”
“Respondo-lhe com outra pergunta”, devolveu Arkan. “Tem
ideia se é comum os ossários judaicos conterem nomes?”
O historiador abanou a cabeça.
“Que eu saiba, apenas uns vinte por cento dos ossários
descobertos
em
Jerusalém
dispõem
de
referências
inscritas.”
O anfitrião confirmou.
“Assim é. Acontece que, no caso de Talpiot, seis dos
nove ossários tinham de facto nomes grafados na pedra.
Já isso os tornava raros. Mas o que fez deles uma
descoberta verdadeiramente singular foram os nomes que
registavam.”
Nova pausa para interpelar o historiador.
“Consegue imaginar que nomes eram esses?”
Tomás encolheu os ombros.
“Não.”
“O ossário IAA 80/500 era o maior, apresentava-se
ornado por rosetas com pétalas e estava coberto de
terra seca. Os arqueólogos limparam a terra e
detectaram uma inscrição em grego a dizer Mariamnu eta
Mara. O ossário 80/501 era igualmente decorado com
rosetas e tinha uma inscrição em hebraico a dizer
Yehuda bar Yehoshua. O 800/502 registava, também em
hebraico, o nome Matya. O 800/504 dizia Yose e o
800/505 registava Marya, sempre em hebraico.”
“O senhor disse que seis ossários tinham inscrições”,
observou Tomás, atento aos pormenores.
“Mas só mencionou cinco.”
Arkan sorriu.
“Já vi que é bom observador”, constatou. “De facto,
saltei o 80/503 de propósito. Esse não estava inscrito
em grego nem em hebraico. Encontrava-se em aramaico. As
letras apresentavam-se obscurecidas por camadas grossas
de pátina, não sei se sabe o que é.”
“Trata-se de verdete”, esclareceu o historiador. “Um
processo de mineralização com o qual os arqueólogos
lidam frequentemente.”
O anfitrião inclinou a cabeça.
“Não me diga que ainda não chegou ao nome que está
nesse sexto ossário de Talpiot...”
De olhos semicerrados, Tomás ia relacionando a
informação com os registos na sua memória. De repente
arregalou os olhos, atingido em cheio pelo impacto da
descoberta.
“Espere aí!”, exclamou num tom alterado. “Agora me
lembro onde ouvi falar de Talpiot! Isso não é o local
onde descobriram o ossário com o nome de... de...”
O presidente da fundação cruzou os braços e cravou os
olhos em Tomás, consciente de que ele era o único dos
seus interlocutores naquela câmara que entenderia o
verdadeiro alcance do que significava o nome inscrito
no ossário IAA 80/503.
“Yebosbua bar Yehosef.”
O académico português abriu a boca, estarrecido.
“Não pode ser!”
“Garanto-lhe.”
“Está a falar a sério?”
Os dois polícias registaram a estupefacção estampada no
olhar de Tomás e perceberam que algo lhes escapava
naquela conversa.
“O que é?”, perguntou Valentina. “O que significa
isso?”
O historiador levou alguns segundos a recuperar do
choque. Ainda atordoado, virou-se devagar para a
italiana e olhou-a como se tivesse a mente em ebulição.
“Hã?”
“O nome inscrito nesse ossário”, insistiu ela. “O que
tem ele de especial?”
Tomás sacudiu a cabeça e, como se regressasse ao
presente, focou os olhos nela.
“Yehoshua bar Yehosef?”, perguntou. “Não sabe o que
isso quer dizer?”
“Claro que não! Esclareça-me, se fizer o favor.”
“Joshua, filho de José.”
Valentina esboçou uma expressão vazia; era evidente que
aquele nome nada lhe dizia.
“Joshua? E então?”
“ Yehoshua é uma antiga forma de Joshua. Esse é o nome
formal, claro, mas os hebraicos tendiam a usar
diminutivos. Em vez de dizerem Yehoshua, diziam Yeshu.”
A italiana manteve o mesmo olhar oco. Nada daquilo lhe
parecia minimamente notável.
“E depois?”
O português olhou de relance para Arkan, como se
quisesse certificar-se de que entendera bem. A
expressão levemente orgulhosa do presidente da fundação
deu-lhe a confirmação. Voltou a encarar Valentina e
deu-lhe enfim a resposta.
“Yeshu significa Jesus”, esclareceu. “Entende?”
Valentina esbugalhou os olhos.
“Perdão?”
“Jesus, filho de José.”
LXIII
Logo que a porta blindada se fechou, o homem armado que
guardava a antecâmara do Kodesh Hakodashim viu o
intruso espreitar pela entrada e interpelou-o.
“Precisa de ajuda?”
Não se pode dizer que Sicarius tivesse sido apanhado de
surpresa; afinal estava treinado para lidar com
imprevistos e ser detectado naquele local era uma
eventualidade que previra atempadamente. Tinha por isso
resposta já preparada.
“Chamaram-me dos serviços de manutenção”, disse,
entrando na antecâmara com confiança. “Parece que há
por aqui problemas técnicos.”
Olhou com atenção para tudo em redor. Dava a impressão
de procurar a origem de uma avaria, quando na verdade
estava a inspeccionar o local para recolher informação
que lhe permitisse actuar com eficácia. Havia uma
câmara de vigilância no tecto, apontada para a porta
blindada com a janela circular no meio.
“Problemas?”, admirou-se o guarda. “Que problemas? A
central de segurança não me avisou de nada.”
“São questões de natureza eléctrica”, alegou Sicarius,
os olhos ainda a dispararem em todas as direcções para
identificar potenciais ameaças à operação. “Um curto-
circuito, ou coisa do género. Não há por aqui nada
fundido?”
O guarda pegou no intercomunicador que trazia colado ao
peito.
“Vou verificar com a central”, disse, estranhando a
situação. “Eu devia ter sido informado.”
Aquele intercomunicador era outra ameaça, percebeu o
intruso. Mais ainda nesse preciso instante, em que o
guarda iria pedir informações à central de segurança.
Isso era algo que convinha evitar; do outro lado
poderiam vir questões difíceis de responder.
“Isto não é o Éden?”, quis saber Sicarius, papagueando
o nome proferido pelo homem que o interpelara no
jardim. “Não notou nenhuma avaria?”
O guarda ergueu o sobrolho.
“Estamos na Arca!”, anunciou.
“A avaria é no Éden?”
“Foi o que me disseram.”
“Pois está no sítio errado.”
O intruso esboçou um ar contrariado.
“Oh, que chatice!”, exclamou. “Tenho uma loja de
artigos eléctricos em Nazaré e fui chamado de urgência
para vos ajudar.” Fez um gesto vago no ar, simulando
frustração. “Acho que me perdi! Nunca aqui tinha
entrado e isto é enorme!”
O homem armado sorriu e, já tranquilizado, devolveu o
intercomunicador ao seu lugar. A explicação parecia-lhe
verosímil; o complexo era realmente enorme e ele
próprio quase se tinha perdido da primeira vez que ali
entrara.
“Estou a perceber a confusão”, disse enquanto tirava do
bolso uma folha. Desdobrou-a e mostrou uma planta do
complexo que pousou no chão para a poderem ver melhor.
“Está a ver este edifício aqui?” Indicou um ponto
assinalado na planta. “É a Arca, onde nos encontramos
agora.”
Deslizou o indicador para o ponto que se encontrava ao
lado.
“O Edifício Éden é este aqui.”
Sicarius pousou a mão sobre o coração, num gesto de
profundo agradecimento.
“Ah, muito obrigado!”
O guarda acompanhou-o à saída e despediu-se dele. Ficou
a vê-lo afastar-se e regressou ao seu posto de
vigilância junto à porta blindada que dava acesso ao
Kodesh Hakodashim. O que ele não podia saber é que, lá
fora, o “electricista” não se tinha ido embora. Em vez
disso, fizera meia volta e estava nesse instante
encostado à porta de passagem à antecâmara.
Sicarius preparava-se para lançar o ataque.
LXIV
Os três visitantes fitavam Arpad Arkan com uma
expressão pasmada, como se tivessem ouvido e não
acreditassem.
O
anfitrião
sorria-lhes
de
volta,
satisfeito com o impacto da revelação que acabara de
fazer.
“Os nossos arqueólogos encontraram o túmulo de Jesus?”,
questionou-o Arnie Grossman.
Sacudiu a cabeça, como se quisesse acordar.
“Estamos a falar de Jesus Cristo?”
Arkan mantinha o seu sorriso largo.
“Conhece mais algum Jesus, filho de José?”
O polícia israelita trocou um olhar com a colega
italiana, a pedir-lhe ajuda.
“Desculpe, mas não sei se entendi bem”, disse
Valentina, igualmente perturbada com o que havia
escutado. “Se esse ossário fosse de Jesus, do nosso
Jesus, não deveria estar escrito Jesus Cristo?”
Foi a vez de o anfitrião desviar o olhar para Tomás,
como se lhe endossasse aquela resposta.
“Antigamente as pessoas não tinham nome de família”,
explicou o historiador. “Dispunham de um nome próprio e
em geral eram conhecidas pelo nome do pai ou pelo nome
da sua terra ou da profissão que desempenhavam.
Dizia-se, por exemplo, João, filho de Pedro. Ou João
Alfaiate. No caso de Jesus, podia ser conhecido pelo
nome da terra de onde era oriundo, Jesus de Nazaré, ou
então pelo nome do pai, Jesus, filho de José. Neste
contexto, Cristo não era um nome. O pai dele não se
chamava José Cristo e a mãe Maria Cristo. Cristo era
uma designação. A palavra Messias dizia-se mashia em
hebraico e aramaico e christus em grego. Como a seita
dos nazarenos se expandiu rapidamente entre os gentios,
graças a Paulo, e como a maior parte dos gentios falava
grego, passou a dizer-se Jesus, o Messias, ou Jesus, o
Cristo, expressão que o próprio Paulo cedo contraiu
para Jesus Cristo. Mas o próprio Jesus nunca deve ter
escutado a palavra cristo na vida.”
“Ou seja”, concluiu Valentina, “estranho seria se o
nome Jesus Cristo aparecesse num ossário judaico.”
“Nem mais.”
“E acredita mesmo que esse ossário seja do nosso Jesus
Cristo?”
Tomás considerou por momentos a pergunta. A inspectora
da Polizia Giudiziaria acabara de lhe solicitar um
parecer técnico e parecia-lhe aconselhado ser prudente.
“Isso já é outra questão”, disse. “Seria necessário
investigar melhor o assunto para lhe poder dar
respostas definitivas.”
A observação do historiador suscitou uma reacção
imediata por parte do presidente da fundação.
“Ora essa!”, indignou-se Arkan, levantando a voz. “Como
pode duvidar do que acabei de lhe dizer? Acha que estou
a mentir? Pensa que ando a aldrabar as pessoas?”
Na sede da fundação em Jerusalém, dias antes, Tomás
tivera já um breve e conturbado contacto com o
temperamento volátil do seu anfitrião, quando o vira a
discutir em tons desabridos com Valentina. A última
coisa que pretendia agora era envolver-se numa
discussão emocional em registo semelhante.
“Não penso que queira aldrabar ninguém”, apressou-se a
tornar claro, num esforço para apaziguar Arkan.
“Mas pode ter-se enganado.”
O presidente da fundação, no entanto, por esta altura
já tinha o rosto enrubescido, a fúria a crescer-lhe no
corpo como uma locomotiva que ganhava velocidade, e a
hipótese suscitada pelo historiador serviu apenas para
lhe incendiar ainda mais a ira.
“Como se atreve?”, protestou, lançando inadvertidamente
alguns perdigotos na direcção dos interlocutores.
“Julga que sou um diletante que anda para aqui a
brincar? Pensa que não estou a fazer ciência rigorosa?
Acha porventura que não passo de um amador? Eu?”
O apaziguamento não era afinal o caminho, percebeu
Tomás tarde de mais. Mas o confronto também não, como
havia verificado dias antes, quando Arkan e Valentina
discutiam violentamente em Jerusalém. Talvez o caminho
do meio fosse o mais adequado para lidar com o seu
exaltado interlocutor.
“Penso que preciso de provas”, disse num tom neutro,
como se estivesse a participar numa amena cavaqueira.
“Uma coisa dessas é tão grande que requer verificação
cuidadosa, não é verdade?”
“Provas? Quer provas?”
“Se as tiver.”
O anfitrião vacilou e, tão depressa como se exaltara,
serenou.
“O que precisa de saber exactamente?”
O registo da discussão tornara-se de novo
surpreendentemente normal. Não que Tomás se queixasse.
Na verdade, parecia-lhe o tom adequado para prosseguir
a conversa, até porque tinha uma mão-cheia de questões
a esclarecer.
“Tudo”, indicou o historiador. “Para começar, parece-me
importante perceber como pode ter tanta certeza de que
a descoberta de Talpiot se refere mesmo a Jesus de
Nazaré.”
Arkan cravou nele um olhar meditativo, como se
ponderasse coisas mais importantes do que aquela que o
seu interlocutor lhe tinha pedido.
“Vamos fazer assim”, acabou por dizer.
“Vou-lhe apresentar um conjunto de perguntas-chave e
será você mesmo, com os seus conhecimentos nesta área,
que chegará às conclusões certas. Parece-lhe bem?”
A sugestão surpreendeu o português. Considerou a ideia
e não viu inconvenientes em alinhar no jogo.
“Tudo bem”, aceitou. “Dispare a primeira.”
O anfitrião manteve a expressão pensativa, avaliando
qual a melhor questão para abrir o questionário.
Delineou a estratégia e, firmando a ideia na mente,
ergueu o indicador no ar.
“Então aqui vai”, disse.
“Apesar das inscrições, os ossários não estão datados.
Assim sendo, como podemos nós saber que correspondem ao
período de Jesus?”
“Essa é fácil”, retorquiu Tomás. “A lei judaica
determina que os mortos devem ser enterrados antes do
pôr do Sol. Por volta de 430 a. C., a deposição dos
corpos numa cave, numa gruta ou num túnel escavado na
pedra
começou
a
ser
considerada
em
Jerusalém
equivalente a um enterro. No entanto, a prática de usar
ossários só se iniciou pouco antes do nascimento de
Jesus e terminou no ano 70, quando os Romanos
destruíram a cidade e o segundo Templo. Assim sendo,
por definição, qualquer ossário que se encontrar em
Jerusalém foi obrigatoriamente construído pouco antes,
durante ou pouco depois do período de vida de Jesus.
Foi nessa estreita faixa de tempo que os corpos
começaram a ser envolvidos em mortalhas de linho ou de
lã e inseridos em caves no enterro primário. Mais
tarde, depois da completa decomposição dos corpos, iam-
se buscar os ossos e eles eram depositados em ossários
de família entretanto construídos. Esse era o enterro
secundário e definitivo.”
Arkan assentiu, satisfeito com a resposta.
“Mas quantos judeus usavam os ossários como prática
funerária?”,
perguntou,
sabendo
perfeitamente
a
resposta.
“Todos?”
“Oh, não. Só uma minoria. A maior parte dos judeus
continuou a enterrar os seus mortos na terra, como
requeria a lei.”
Agora que pensava nisso, o historiador pôs-se a ligar
pontos que até esse momento apenas considerara em
separado.
“Sabem, o recurso aos ossários era uma prática
sobretudo dos judeus apocalípticos, que achavam que o
mundo estava prestes a acabar. Acreditavam que em breve
Deus desceria à Terra para impor o Seu reino e que,
quando isso acontecesse, todos ressuscitariam para o
dia do juízo final. Ao depositarem os seus mortos em
ossários, os judeus apocalípticos pensavam que assim
era facilitado o processo de ressurreição. É, aliás,
curioso que estes ossários tivessem sido construídos
junto ao monte Moriah, o monte onde se encontrava o
Templo. É que eles achavam que Deus reinaria justamente
a partir do Templo, pelo que depunham os mortos naquele
sítio de modo a ficarem mais perto do local onde tudo
iria acontecer.”
“Diria que Jesus e os seus seguidores eram judeus
apocalípticos?”
A pergunta foi certeira.
“Claro que sim”, reconheceu Tomás, percebendo
perfeitamente para onde o seu anfitrião o estava a
conduzir.
“É muito provável que recorressem a este tipo de
enterro.” Hesitou. “Aliás, há até fortes indicações de
que o fizeram justamente com o cadáver de Jesus.”
Olhou em redor, como se procurasse alguma coisa. “Tem
aí alguma Bíblia?”
O presidente da fundação abriu uma gaveta e tirou de lá
um livro volumoso, que depositou sobre a mesa.
“Meu caro, estamos no santo dos santos”, gracejou.
“Claro que aqui temos sempre uma Bíblia.”
O historiador folheou o volume.
“Ora repare o que escreveu Marcos em 15:43, referindo-
-se ao enterro de Jesus”, disse, pondo-se a ler o
trecho. ‘“José de Arimateia, respeitável membro do
Conselho, que também esperava o Reino de Deus, foi
corajosamente procurar Pilatos e pediu-lhe o corpo de
Jesus.’” Levantou a cabeça. “Ou seja, ao indicar que
este José ‘esperava o Reino de Deus’, Marcos está a
dizer que ele era igualmente um judeu apocalíptico.
Como é natural, José de Arimateia decidiu enterrar
Jesus à maneira dos judeus apocalípticos, processo que
Marcos relata em 15:46.” Retomou a leitura. “‘Depois de
comprar um lençol, desceu o corpo da cruz e envolveu-o
nele. Em seguida, depositou-O num sepulcro cavado na
rocha e rolou uma pedra contra a porta do sepulcro.’”
Bateu com a ponta do dedo no texto. “O que Marcos está
a descrever aqui é o enterro primário. Jesus não foi
propriamente enterrado, mas colocado numa câmara cavada
na rocha. Isto só se fazia quando se planeava ir mais
tarde buscar os ossos e transferi-los para a sua morada
definitiva, o ossário, onde ficariam até a pessoa
ressuscitar para o dia do juízo final.”
“No caso de Jesus, terá havido enterro secundário? Os
seus ossos terão depois sido transferidos para um
ossário?”
Tomás fez uma careta.
“Bem...
a
acreditar
nos
Evangelhos,
não.
Ele
ressuscitou antes de isso poder ser feito.”
Arkan manteve os olhos presos fixamente no seu
interlocutor.
“De certeza?”, perguntou. “Ora leia aí o que escreveu
Mateus em 28:13.”
O historiador procurou a passagem no exemplar da
Bíblia.
“‘Os Seus discípulos vieram de noite e roubaram-n’0
enquanto dormíamos’”, leu. Fitou o anfitrião.
“Mateus diz que isto era um boato que os judeus puseram
a circular para explicar o desaparecimento do cadáver
de Jesus.”
“É interessante que houvesse esse boato, não lhe
parece?”, questionou Arkan.
“Tão interessante que Mateus se viu forçado a dizer que
os Romanos puseram um guarda a noite inteira a vigiar o
sepulcro, pormenor que Marcos não relatou e que
constituiu evidentemente uma forma de tentar desmentir
o boato, tão forte ele se mostrava.”
Tomás releu em silêncio os versículos de Mateus
referentes ao que sucedeu depois da crucificação.
“Tenho de concordar consigo”, acabou por admitir.
“A ressurreição de Jesus não é uma questão histórica,
mas de fé. Pertence ao domínio do sobrenatural. Se ela
não passar de uma fantasia de mentes supersticiosas,
como me parece aliás natural, é evidente que o corpo de
Jesus foi transferido para outro local. Assim sendo,
estamos
de
facto
perante
um
caso
de
enterro
secundário.”
“E para que local terá ele sido transferido?”
“Estando nós a lidar com judeus apocalípticos, parece-
-me evidente que só poderá ser um ossário perto do
monte Moriah, de modo que o corpo estivesse o mais
perto possível do Templo para ressuscitar no dia do
juízo final.”
Com os olhos sempre fixos no seu interlocutor, Arkan
tamborilou os dedos na superfície da mesa, como se
esperasse que Tomás tirasse as devidas conclusões do
que acabara de dizer.
“Os ossários eram usados no século I pelos judeus
apocalípticos em enterros secundários”, relembrou o
presidente da fundação.
“Jesus e os seus seguidores eram judeus apocalípticos
do século I e a descrição que os Evangelhos fazem do
que sucedeu depois da sua morte coincide com a primeira
fase de um enterro secundário. Ou seja, é altamente
provável que os ossos de Jesus tenham sido depositados
num ossário junto ao monte Moriah.”
Arqueou as sobrancelhas peludas.
“O que inevitavelmente nos remete para a descoberta de
Talpiot, não é verdade?”
Tomás acariciou o queixo com os dedos, numa pose
pensativa.
“É possível”, reconheceu. “Não digo que não.” Ponderou
a hipótese mais um instante.
“Há, porém, alguns problemas que é preciso resolver
para aceitar que estejamos perante o túmulo de Jesus de
Nazaré. O primeiro resulta de estes ossários estarem
reservados a famílias endinheiradas. Ora Jesus era um
zé-ninguém. Que se saiba, a família não tinha posses.”
Arkan olhou-o de um modo estranho, como se soubesse
qualquer coisa.
“Ai não? Qual era a profissão de José, o pai de Jesus?”
“Carpinteiro”, devolveu o historiador quase
automaticamente. “Toda a gente sabe.”
“Onde está isso escrito?”
Tomás consultou de novo a Bíblia.
“No Evangelho segundo Mateus, em 13:55”, indicou, lendo
o versículo. ‘“Não é Ele o filho do carpinteiro?’”
“Essa é a tradução tradicional”, notou Arkan. “Qual a
palavra grega usada originalmente pelo autor de
Mateus?”
“Tekton.”
“O que significa tekton exactamente?”
O historiador abriu e fechou a boca. Tinha acabado de
perceber a objecção do seu interlocutor.
“Em
bom
rigor
significa
construtor.
A
palavra
carpinteiro não é, de facto, a tradução correcta.
Tekton é um homem qualificado, senhor do seu negócio e
que trabalha na construção.”
“Ou seja, um empresário na área da construção”,
simplificou o anfitrião. “Se fosse hoje, dir-se-ia que
José era um construtor civil. Parece-lhe uma profissão
de gente pobre?”
Tomás passou a mão pelo cabelo. Como era possível que
nunca tivesse pensado nisso?
“Bem... não necessariamente”, reconheceu. “Tekton é
alguém que trabalha com as mãos. É certo que podia ser
um construtor civil, mas numa terriola como Nazaré não
deveria ser abastado. Poderia ser de classe baixa.”
“Lembre-se que o filho, Jesus, era educado. Conhecia as
Escrituras de uma ponta à outra e sabia pelo menos ler,
o que na época era relativamente raro. Esses indícios
não apontam para uma família indigente e a viver na
miséria, pois não?”
“Está bem”, concedeu o português.
“Aceitemos que possuíam dinheiro, embora a este
respeito não tenhamos a certeza de nada. Mesmo que
fossem remediados, teriam o suficiente para um ossário?
Não se esqueça de que tudo indica que José terá morrido
cedo e portanto deixou de poder providenciar às
necessidades da família...”
“A
eventual
morte
prematura
de
José
é
pura
especulação”, sublinhou Arkan.
“Nada nos Evangelhos estabelece explicitamente tal
coisa. O facto é que estamos a falar de uma família
educada que trabalhava na área da construção civil. É
muito natural que, se acreditassem na ressurreição dos
mortos no dia do juízo final, as pessoas desta família
tivessem meios para investir num ossário como o de
Talpiot. Mas, mesmo que não dispusessem de dinheiro,
alguns dos seus seguidores podiam arranjá-lo. Esse José
de Arimateia, por exemplo. Não é Marcos que diz que ele
pertencia ao conselho de sábios que governava o Templo,
o sinédrio? Se assim era, teria forçosamente de ser
abastado. Aliás, os Evangelhos tornam claro que foi ele
quem tratou do enterro de Jesus.” Encostou a palma da
mão ao peito.
“Ponhamo-nos no lugar dos nazarenos. Se eu acreditasse
que a chegada do reino de Deus estava iminente e que
Jesus era de facto o mashia previsto pelas Escrituras,
não acham que consideraria a construção de um ossário
para Jesus um bom investimento? Decerto Jesus, quando
ressuscitasse para o dia do juízo final, daria ao seu
Pai, Deus, uma palavra a meu favor. Não seria isso útil
para eu ter entrada directa no reino de Deus?”
Tomás acenou afirmativamente.
“Sim, tem razão”, reconheceu. “Mesmo que Jesus não
tivesse dinheiro, os seus seguidores arranjá-lo-iam
para lhe construir o ossário. Todos queriam cair nas
boas graças do Messias, sobretudo agora que aí vinha o
grande julgamento.”
“Então diga lá”, pediu Arkan em jeito de conclusão, “é
ou não provável que, não tendo ocorrido ressurreição
física do corpo de Jesus, os seus ossos tenham sido
depositados num ossário junto ao monte Moriah, com
vista privilegiada para o Templo?”
“Sim, isso é provável”, aceitou Tomás. “O problema é
ter a certeza de que a descoberta de Talpiot
corresponde ao ossário certo.”
“E porque não há-de corresponder? Quer que lhe faça a
demonstração?”
“Não estou cá para outra coisa...”
Em resposta, Arkan puxou uma gaveta da mesa e retirou
do interior uma pasta de dossiê com vários documentos
arquivados. Abriu-a e mostrou-lhe a primeira folha com
uma referência no topo e a fotografia de letras
esculpidas na superfície branca de um ossário.
“Esta é a inscrição que está no ossário 80/503”, disse.
“Encontra-se redigida em estilo cursivo e é de difícil
leitura. Contudo, a maioria dos caligrafistas concorda
que a inscrição diz Yehoshua bar Yebosef, ou Joshua
filho de José. Como observou há pouco, Jesus, aliás
Yeshu, é um diminutivo de Yehoshua, uma das formas do
nome Joshua.”
Os três visitantes inclinaram-se sobre a página e
estudaram a inscrição cravada no ossário.
“Sim, mas quantos Joshua não existiriam naquele tempo?”
Arkan soergueu a sobrancelha.
“Está a referir-se a Joshuas que fossem judeus
apocalípticos e tivessem meios, provenientes da sua
família ou dos seus seguidores, para terem os ossos
depositados numa câmara com vista para o Templo?”
Fungou. “Havia alguns.”
O historiador voltou a acariciar o queixo com a ponta
dos dedos, avaliando os méritos de avançar para uma
análise estatística. Pareceu-lhe um terreno promissor.
“Tenho ideia de que Yebosbua era um nome relativamente
comum”, observou. “Verificou a frequência com que ele
surge nos ossários judaicos do século I?”
O anfitrião pigarreou.
“Nos mais de duzentos ossários catalogados pela
Autoridade das Antiguidades de Israel, o nome Yebosbua
aparece nove por cento das vezes e o nome Yebosef surge
catorze por cento. Extrapolando para os oitenta mil
homens que viveram em Jerusalém durante todo o período
em que se usaram ossários, isto significa que sete mil
chamar-se-iam Yebosbua e onze mil seriam Yebosef.”
“Tem de concordar que estamos perante dois nomes muito
comuns”, verificou Tomás. “Demasiado comuns para que
possamos estar confiantes de que o Yebosbua bar Yebosef
do ossário de Talpiot corresponda a Jesus de Nazaré.”
“Sim, mas é preciso avaliar quantos dos sete mil
Yebosbua de Jerusalém poderiam ter um pai chamado
Yebosef’, lembrou Arkan.
“Ora se multiplicarmos as percentagens, 0,9 de Yehoshua
vezes 1,4 de Yehosef vezes oitenta mil pessoas
correspondentes à população masculina de Jerusalém,
ficamos com... com... mil. Ou seja, em todo este
período só houve em Jerusalém uns mil Yehoshua que eram
filhos de alguém chamado Yebosef.”
“E um valor bem mais restrito”, observou o historiador.
“Mesmo assim, mil homens chamados Jesus com um pai
chamado José são ainda um número demasiado elevado para
que se possa reivindicar o que quer que seja com os
achados de Talpiot.”
Arkan esboçou uma expressão meditativa.
“Há ainda outras importantes considerações estatísticas
que
têm
de
ser
equacionadas”,
acrescentou.
“Designadamente a presença de nomes diferentes.”
“O que têm eles de especial?”
“Esses nomes têm muito que se lhes diga”, notou o
anfitrião. “E, claro, há ainda a questão do ADN.”
Tomás pareceu ainda mais admirado.
“ADN? Qual ADN?”
O presidente da fundação sorriu, sabendo muito bem que
se aprestava a largar o seu mais forte trunfo.
“Não sabia?”, exclamou com fingida surpresa. “Foi
detectado material genético no ossário 80/503.”
“O quê?”
O pasmo estampado no rosto do académico português, e
também na face dos dois polícias que acompanhavam a
conversa, era absoluto, o que encheu Arkan de um imenso
sentimento de satisfação. Acabara de jogar o jackpot
dos jackpots.
“Nós recolhemos o ADN de Jesus.”
LXV
O vulto negro do “electricista” irrompeu pela
antecâmara do santo dos santos. Apanhado de surpresa, o
homem que guardava a porta blindada ergueu a Uzi e
apontou-a para a entrada, pronto a abrir fogo. Ao
reconhecer o intruso, baixou o cano da arma automática
e suspirou de alívio.
“Ufa!”, bufou. “Você pregou-me um susto! O que está
aqui a fazer? Não me diga que se perdeu outra vez!...”
Sicarius trazia na mão um pequeno invólucro cilíndrico
amarelo, semelhante ao dos insecticidas. Esticou o
braço e, de um ângulo que a lente não captava, apontou-
o para a câmara de vigilância fixada no tecto.
“A avaria é aqui”, disse num registo tranquilo, como se
fizesse aquilo todos os dias.
“É para resolver agora.”
Sem perceber muito bem o que se passava, o guarda viu-
-o premir o botão do pequeno cilindro e observou o
spray cobrir de tinta negra a câmara de vigilância,
obscurecendo por completo a lente.
“Que é isto?”, quis saber, de olhos fixos na câmara, a
tentar compreender o procedimento. “Que fez à lente?”
Sem que se apercebesse do que lhe acontecia, sentiu-se
rodopiar, viu tudo a andar à roda e, quando deu por
ela, estava estendido no chão e tinha o intruso em cima
dele. Tentou virar a arma para o atacante, mas a Uzi
foi-lhe de imediato arrancada, o mesmo acontecendo com
o intercomunicador.
“Que está a fazer?!”, exclamou, atarantado.
“Enlouqueceu?”
Tentou rebolar pelo chão, num primeiro esforço para se
libertar.
“Largue-me!”
O segurança deu consigo totalmente encarcerado pelos
braços de Sicarius e, por mais que se contorcesse, não
se conseguia livrar daquele aperto férreo. Percebeu que
o seu agressor devia ter um treino avançado de judo ou
de luta greco-romana, porque parecia conhecer todas as
maneiras de imobilizar um adversário.
“Quieto!”, soprou-lhe Sicarius ao ouvido. “Não te
mexas!”
Paralisado já o guarda se encontrava, e decerto que não
por vontade própria. Pensou que a qualquer momento
deveria receber ajuda da central de segurança, mas de
imediato se lembrou de que o atacante havia regado de
tinta negra a câmara de vigilância e percebeu então
aquele primeiro movimento com o spray. A lente fora
tapada e a central ia pensar que se tratava de uma mera
avaria. Ou seja, estava entregue a ele mesmo; ninguém
viria a correr para o ajudar.
“O que quer?”, perguntou, alarmado por se encontrar
inteiramente à mercê daquele intruso possante. “Porque
está a fazer isso?”
Sicarius mantinha os lábios colados ao ouvido direito
do guarda.
“Dá-me a senha”, sussurrou num registo assustadoramente
sereno. “Preciso de entrar lá dentro.”
“Você está louco? Quer entrar no Kodesh Hakodashim?”
“A senha.”
O guarda abanou a cabeça furiosamente.
“Não sei!”, exclamou.
“Só o presidente é que a tem. Eu limito-me a fazer a
guarda à porta.”
Sentiu o agressor mexer um braço e, instantes depois,
viu a ponta de uma enorme lâmina dançar-lhe à frente
dos olhos.
“A senha.”
“Já lhe disse que não sei!”, berrou de volta. “Sou
apenas o guarda!”
Com um movimento brusco, Sicarius pegou na sua vítima e
endireitou-a à bruta, obrigando-a a sentar-se. Puxou a
corda que trazia à cintura e amarrou o tronco do homem,
imobilizando-lhe também os braços.
Uma vez o guarda fora de acção, ergueu-se e foi até à
porta. Verificou que havia uma chave na fechadura e
rodou-a, trancando o acesso à antecâmara. Depois foi
buscar uma cadeira e fixou-a contra o puxador,
reforçando assim o bloqueio da entrada. Recuou dois
passos e contemplou o trabalho. A porta não ficara
blindada e poderia ser arrombada por alguém que
estivesse mesmo determinado a entrar ali. Todavia, para
as considerações práticas que tinha em mente, aquele
dispositivo
garantia-lhe
a
tranquilidade
de
que
precisava.
Voltou para junto do seu prisioneiro e olhou-o de cima
para baixo, a sica a dançar-lhe nas mãos.
“Não te volto a perguntar mais nenhuma vez”, informou-
o, apontando para a porta blindada que dava acesso ao
Kodesh Hakodashim.
“Qual é a senha para entrar ali dentro?”
“Já lhe disse que não sei”, devolveu o guarda num tom
de desafio. “Eu limito-me a fazer a segurança.”
Sicarius tirou um rolo branco do bolso das calças e
esticou um pedaço, que cortou com a adaga. Era uma fita
adesiva. Aproximou a fita do rosto do prisioneiro e
colou-a à boca, amordaçando-o. O guarda deixou de poder
falar. A seguir empurrou-o com o pé, forçando-o a
deitar-se de novo, e inclinou-se para lhe agarrar no
pulso, que espreitava por baixo das cordas.
Puxou o pulso com força e obrigou-o a assentar a mão no
chão, a palma para baixo. Depois aproximou a sica do
dedo mindinho e premiu com força. O guarda começou a
gemer e a espernear, mas não tinha modo de se libertar
nem de gritar. Sicarius fez movimentos rápidos para
serrar e o sangue jorrou pelo chão com esguichos
sucessivos.
“Hmm!”, vagiu o segurança, os olhos esbugalhados na
loucura da dor. “Hmmm!”
Em alguns segundos o dedo estava amputado. A vítima
arrulhava em desespero, os olhos injectados, a
respiração ofegante e gotas de transpiração a banharem-
-lhe a face, mas os sons que emitia eram abafados pela
fita adesiva que lhe selava a boca. O agressor aguardou
uns instantes, deixando o homem acalmar-se e recuperar
o fôlego, até que o encarou com um olhar gelado.
“A senha?”
O homem fitou-o nos olhos e hesitou em dar a resposta.
Sicarius não esperou. Voltou a espalmar a mão
ensanguentada contra o chão e pousou a lâmina sobre o
polegar. A vítima recomeçou a gemer e a espernear em
desespero, sabendo demasiado bem o que aí vinha, e o
agressor fitou-o de novo nos olhos.
“Vais-me dar a senha ou vou ter de te cortar todos os
dedos desta mão, depois os da outra, e depois os dos
pés? Como é que preferes?”
O guarda pôs-se a fazer que sim com a cabeça, como se
tivesse decidido falar. Sicarius pegou na borda da fita
e arrancou-a com um movimento brusco.
“Agh!”, gemeu o homem. “Preciso de... ajuda médica.”
Arfou.
“Por favor!...”
“A senha?”
O homem suspirou e, sabendo que não tinha alternativas,
o coto ensanguentando do dedo a menear-se no ar e o
rosto a contorcer-se de dor, revelou o segredo que
permitiria ao intruso abrir a porta blindada e violar a
santidade do Kodesh Hakodashim.
LXVI
As expressões alteradas do rosto dos três visitantes
que se encontravam no interior do Kodesh Hakodashim
espelhavam com o rigor de um espelho a estupefacção que
deles se apoderara quando Arpad Arkan lhes fez a
revelação.
“Havia material genético nos ossários de Talpiot?”
O presidente da fundação assentiu com entusiasmo, um
brilho de excitação infantil a cintilar-lhe nos olhos.
“Extraordinário, não é?”
Tomás encarou os seus companheiros, quase atordoado.
Tudo aquilo lhe parecia demasiado incrível para ser
verdadeiro, e os dois polícias mostravam-se igualmente
surpreendidos.
“Mas... mas... é possível?”
O sorriso de Arkan transformou-se numa risada alegre.
“Então não é? Se conseguimos extrair ADN dos espécimes
de mamutes e de homens de Neandertal com trinta mil
anos, por que razão não haveremos de obter material
genético de pessoas que morreram há apenas dois mil
anos? Não se esqueça do que nos disse o professor
Hammans há pouco. Nas temperaturas mais quentes, o ADN
sobrevive uns cinco mil anos. Ora os ossários de
Talpiot são bem mais recentes do que isso!...”
O historiador experimentou a estranha sensação de
sonhar acordado. Aquilo parecia-lhe uma coisa surreal.
Respirou fundo e fez um esforço para reordenar a mente
e pensar com clareza.
“Está bem, vocês detectaram ADN no ossário 80/503”,
registou, discorrendo em voz alta para benefício dos
companheiros mas também para facilitar o seu próprio
raciocínio. “E então? O que interessa isso se ninguém
tem certeza alguma sobre a identidade da pessoa cujos
ossos foram aí depositados?”
Mas Arkan não parecia alimentar a menor dúvida a esse
respeito.
“É Jesus de Nazaré.”
“Como pode afirmar tal coisa com essa certeza?”,
contestou o historiador.
“Como acabámos de ver, a hipótese de o Yebosbua bar
Yebosef referenciado no ossário ser o nosso Jesus,
filho de José, é de uma em mil! Parece-me uma taxa de
probabilidade baixíssima!”
O seu interlocutor levantou a mão.
“Seria, se não se desse o caso de haver outros ossários
na mesma câmara”, sublinhou. “E esses ossários têm
nomes de figuras que os Evangelhos associam a Jesus de
Nazaré. E é aí que o cálculo de probabilidades se
altera significativamente.”
“Figuras associadas a Jesus? Do que está o senhor a
falar?”
O anfitrião folheou o dossiê que havia pousado na mesa
diante dele e imobilizou-se na segunda folha. Tal como
a anterior, esta página continha um número de
referência e uma fotografia com o pormenor de uma
inscrição num ossário.
“Comecemos pelo 80/505”, sugeriu Arkan. “Este ossário
regista o nome Marya em caracteres hebraicos. Parece-
lhe familiar?”
“Não tem de ser necessariamente a mãe de Jesus”,
argumentou o historiador, analisando a inscrição.
“Creio que Maria era também um nome muito comum na
época...”
“Na verdade, tratava-se do nome feminino mais usado
naquele tempo. Em trezentas e vinte e oito referências
foram registadas setenta Maryam, nome hebraico que, na
sua versão latina, se pronunciava Maria ou Marya.”
Tomás fez a conta de cabeça.
“Isso dá... deixe cá calcular a percentagem... cerca de
vinte por cento de mulheres chamadas Maria. Está a ver?
É muita Maria!”
“É verdade que sim. Vinte por cento das mulheres judias
eram Maryam. Mas o Novo Testamento refere-se à mãe de
Jesus sempre como Maria, não Maryam. E qual o nome que
aparece neste ossário? Marya. É no mínimo perturbador,
há-de reconhecer.”
Arkan virou para a terceira folha, também com um número
de referência e a fotografia de uma outra inscrição.
“Vejamos agora o ossário 80/504”, sugeriu. “Tem
inscrito o nome Yose. Como sabe, trata-se de um
diminutivo de Yebosef. Yose está para Yehosef como Zé
está para José.”
“De facto...”
O historiador fez um gesto enfaticamente negativo com a
mão.
“Não pode ser o pai de Jesus!”, sentenciou com grande
convicção. “Os Evangelhos apenas mencionam José na
infância de Jesus, o que nos leva a presumir que ele
morreu cedo.”
“E então?”, questionou o presidente da fundação.
“Não se esqueça de que Talpiot é um sepulcro secundário
para ossos. O que impedia os familiares de transferirem
os ossos de José para o mausoléu privado da família com
vista para o Templo? Aliás, é até natural que o
fizessem, se acreditassem realmente que o dia do juízo
final estava iminente! Ou acha impossível?”
O português ponderou a possibilidade.
“Tem razão”, admitiu, vergado pela força do argumento.
“Se a família de Jesus mandou construir um sepulcro
secundário, o mais natural é que trasladasse os ossos
do patriarca para lá, sobretudo se pensasse que isso
ajudaria a manter todos os familiares unidos quando
ressuscitassem para o juízo final.”
“Outra hipótese é tratar-se de outra pessoa ligada a
Jesus”, considerou Arkan. “Leia-me aí, por favor, o
versículo 6:3 de Marcos.”
Tomás abriu o exemplar da Bíblia que tinha nas mãos e
localizou o trecho.
‘“Não é Ele o carpinteiro filho de Maria e irmão de
Tiago, de José, de Judas e Simão?”’
Levantou os olhos.
“Está a insinuar que o Yose de Talpiot poderá ser José,
irmão de Jesus?”
“Porque não? Embora Yehosef, ou José, seja um dos nomes
mais comuns da época, o facto é que a inscrição Yose é
anormal. Trata-se do único caso em que um ossário da
época apresenta este diminutivo de Yehosef.”
Exibiu dois dedos.
“O que nos dá dois familiares de Jesus chamados José. O
pai e o irmão. O ossário 80/504 podia perfeitamente
pertencer a qualquer deles.”
“Hmm”, anuiu o historiador.
“E os outros ossários?”
Os dedos de Arkan procuraram a quarta folha do dossiê.
Mais uma referência, mais uma fotografia com uma
inscrição.
“Temos o ossário 80/500”, indicou o anfitrião. “A
inscrição regista Mariamnu eta Mara.”
Cravou os olhos no seu interlocutor.
“Sabe o que isso quer dizer?”
Tomás acenou afirmativamente com a cabeça e contraiu as
pálpebras enquanto perscrutava a imagem, ponderando as
implicações suscitadas por aquela inscrição.
“Essa dá que pensar”, reconheceu. “Mariamnu é uma
espécie de declinação de Mariamne, versão grega de
Miriam,
ou
Maria.
Mariamnu
eta
Mara
significa
literalmente de Maria, conhecida por Senhora. Senhora,
no sentido de dona ou patroa.”
O anfitrião mirou-o com a sombra de um sorriso
desenhada nos lábios, sempre como alguém que sabia de
antemão a resposta às perguntas que fazia.
“Conhece alguém nas Escrituras que seja referido por
esse nome, Mariamne?”
O historiador folheou pensativamente a Bíblia que lhe
pesava nas mãos. Aquele grosso exemplar continha o
Antigo Testamento, o Novo Testamento, os escritos
apócrifos e centenas de páginas de anotações e
comentários. Procurou o índice e passou os olhos pelos
títulos dos diversos textos.
“Por acaso, sim”, acabou por dizer.
“Mas não nos manuscritos canónicos.”
Apontou para um dos títulos assinalados no índice.
“O nome Mariamne aparece aqui nos Actos de Filipe, um
texto apócrifo sobre a vida do apóstolo Filipe.”
Indicou outro título.
“E também em fragmentos gregos do Evangelho segundo
Maria Madalena. Isto para não falar em textos antigos
de Orígenes e Hipólito, que se referiram a Mariamne.”
“Nesses textos todos, quem era essa Mariamne?”
Evitando responder directamente à pergunta, Tomás
sacudiu a cabeça em negação.
“Não, não pode ser!”, exclamou. “Isso já me parece uma
fantasia desenfreada! Não é possível!”
“Diga lá”, insistiu Arkan. “Quem é a Mariamne que
aparece nos apócrifos e nos textos de Orígenes e de
Hipólito?”
O académico deixou descair os ombros e rendeu-se. Se
lhe faziam uma pergunta directa e pertinente, com que
direito podia evitar a resposta, por fantástica que
parecesse?
“Maria de Magdala”, disse com uma certa relutância.
“Também conhecida por Maria Madalena.”
Um brilho de triunfo perpassou pelo rosto do presidente
da fundação.
“É curioso, não é?”
“Não quer dizer nada!”, cortou Tomás. “Os manuscritos
apócrifos não foram escritos por pessoas que conheceram
Jesus. A esmagadora maioria desses textos é do século
II ou do século III. Com excepção talvez do Evangelho
segundo Tomé, a informação que consta nos apócrifos não
é fidedigna.”
“É verdade”, aceitou Arkan.
“Mas também é um facto que esses escritos usavam por
vezes tradições que lhes chegavam. O uso do nome
Mariamne em referência a Maria Madalena podia ser uma
dessas tradições.”
“Admissivelmente. E então?”
Em resposta, os olhos do anfitrião pousaram na Bíblia
que dançava nervosamente nas mãos do seu interlocutor.
“Esse exemplar contém os textos apócrifos, não é
verdade? Leia-me aí o Evangelho segundo Filipe,
versículo 32.”
Tomás dedilhou as páginas e localizou o trecho.
“‘Havia três que caminharam com o Senhor: Mafia, sua
mãe e sua irmã e Madalena, a quem chamavam sua amante.
Uma Maria era sua irmã e sua mãe e sua amante.’”
“E agora o versículo 55.”
“‘A consorte de Cristo é Maria Madalena. O Senhor
amava-a mais do que a todos os discípulos e beijava-
a.’”
“Finalmente, o Evangelho segundo Maria Madalena”, pediu
Arkan. “Leia o versículo 5:5, que cita palavras de
Pedro a Maria Madalena.”
O historiador saltou algumas páginas até encontrar o
texto apócrifo que lhe era indicado.
“‘Sabemos que o Senhor te amava mais do que às outras
mulheres.’”
As sobrancelhas felpudas de Arkan movimentaram-se para
cima e para baixo, como se elas próprias falassem.
“Curioso, hem?”
Tomás encolheu os ombros.
“A única coisa que isto prova é que havia muita boata-
ria a propósito da relação entre Jesus e Maria
Madalena”, sentenciou.
“Mas não há nada de historicamente fiável. É verdade
que Marcos e Lucas referem que Jesus era acompanhado
por mulheres nas suas viagens. Algumas delas pareciam
abastadas e ajudavam-no, como era o caso da Maria
oriunda de Magdala, uma aldeia piscatória junto ao Mar
da Galileia, por isso designada Maria Magdalena, ou
Maria Madalena.
Lucas diz em 8:3 que ela servia Jesus ‘com os seus
bens’.
Em parte alguma é ela aliás referida como prostituta,
reputação que só ganhou no século VI pela boca
maledicente do papa Gregório.
Os quatro evangelhos canónicos referem que as mulheres
foram
os
únicos
seguidores
que
assistiram
à
crucificação e que se mantiveram fiéis a Jesus até ao
fim, tendo sido elas quem deu pela falta do corpo. No
entanto, nenhum dos textos mais antigos menciona que
Jesus fosse casado ou tivesse qualquer amante.”
“Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo disse que os
irmãos de Jesus e os apóstolos eram casados”,
argumentou Arkan. “Além disso, ao recomendar que os
fiéis mantivessem o celibato, Paulo deu o seu próprio
exemplo, mas não o de Jesus. Se Jesus fosse solteiro,
decerto daria o exemplo do Messias, que tinha ainda
maior autoridade do que o seu. Porque não o fez?
Saberia que não era solteiro?”
“Isso é pura especulação”, sublinhou o historiador.
“O facto é que em parte alguma está escrito que Jesus
casou.”
“No entanto, o sepulcro de Talpiot inclui o ossário de
Mariamne, identificada nos Actos de Filipe, no
Evangelho segundo Maria Madalena e nos textos de
Orígenes e Hipólito como Maria Madalena.”
O historiador fez uma careta.
“Coincidência, decerto.”
“Mais ainda, este ossário com o nome Mariamne foi
encontrado ao lado do ossário com o nome Jesus, filho
de José, como se faz quando se põe marido e mulher lado
a lado num cemitério.”
“Outra coincidência.”
Arkan sorriu, o olhar carregado de ironia.
“Já estamos a contabilizar demasiadas coincidências”,
observou, folheando o dossiê em busca da fotografia
seguinte.
“A próxima coincidência é a do ossário 80/501,
pertencente a Yehuda bar Yehoshua. Pode traduzir-me
esse nome, por favor?”
Tomás verificou a inscrição que constava na imagem.
“Judas, filho de Jesus.”
“Curioso, não é?”
“Nenhum dos evangelhos canónicos refere que Jesus tenha
tido um filho”, lembrou Tomás.
“Nem um.”
“Os Evangelhos são peças de teologia, como muito bem
sabe”, contrapôs o presidente da fundação.
“Não dizem tudo. Dizem apenas o que interessava aos
seus autores para convencer os seguidores de Jesus a
manterem a fé.”
“É verdade”, concordou o historiador. “O facto de não
haver referências nos Evangelhos a um filho de Jesus
não significa que ele não existisse. Mas também não
significa que existisse. A verdade é que sobre isso
nada sabemos.”
“Assim é”, concordou Arkan. “Finalmente, o ossário
80/502 está referenciado com o nome Matya, ou Mateus.”
Exibiu a imagem que constava do dossiê.
“Está a insinuar que se trata do ossário do apóstolo?”
“Não estou a insinuar nada”, sublinhou o anfitrião.
“Este nome aparece no sepulcro de Talpiot. Haveria
algum Mateus na família de Jesus? Tal como no caso de
um eventual filho, os Evangelhos são omissos em relação
a isso.
Sugiro portanto que descontemos estes dois nomes, Judas
e Mateus.
Onde é que isso nos deixa?”
“Deixa-nos num sepulcro repleto de nomes comuns naquela
época”, constatou Tomás, desvalorizando o achado.
“Se tirarmos o Judas e o Mateus, ficamos com quatro os-
sários, dois referentes a duas Marias, uma delas na
versão helenizada de Mariamne, um José e um Jesus,
filho de José. Acontece que a Palestina do século I
está cheia de pessoas chamadas Jesus, José e Maria.”
“É verdade”, reconheceu o anfitrião. “Mas há um outro
nome a acrescentar a esses.”
“Qual?”
“Lembra-se de eu ter dito que foram encontrados dez
ossários em Talpiot, mas um deles desapareceu?
Uns anos mais tarde surgiu um ossário que fez sensação
devido a uma inscrição em aramaico a registar Ya’akov
bar Yehosef akhui di Yeshua.” Arqueou as sobrancelhas
lanzudas.
“Sabe traduzir isto, não sabe?”
“Jacob, filho de José, irmão de Jesus.”
“Jacob era o nome original. Com o tempo, latinizou-se
no Ocidente e transformou-se em Tiago.”
Tomás fez um esforço de memória.
“Tenho ideia disso”, disse.
“Mas esse achado não foi considerado uma fraude?”
“Essa foi a acusação feita pela Autoridade das
Antiguidades de Israel, mas não teve acolhimento em
tribunal”, disse Arkan.
“Ao contrário dos ossários de Talpiot, de autenticidade
inquestionável, o ossário de Tiago não possuía origem
arqueológica certificada. O seu dono dizia que o
ossário havia sido encontrado em Silwan, um subúrbio de
Jerusalém, mas não apresentou provas.
A Autoridade das Antiguidades de Israel nomeou uma
equipa de quinze peritos para analisar a descoberta.
Os peritos concluíram que o ossário era genuíno e que
parte da inscrição, a que diz Tiago, filho de José, era
igualmente genuína, mas a outra parte, irmão de Jesus,
era provavelmente uma falsificação, uma vez que
suspeitavam que a pátina tinha sido implantada
fraudulentamente
nessa
parte
da
inscrição.
O
proprietário foi detido por fraude.”
“Ah! Isso invalida o ossário!...”
“Calma”, pediu o anfitrião, indicando que a história
não tinha chegado ao fim. “Acontece que mais tarde,
durante o julgamento, o proprietário confessou ter
roubado o ossário do lote encontrado em Talpiot. De
resto, as análises aos vestígios de terra rossa do
ossário de Tiago eram iguais às da terra rossa dos
ossários de Talpiot e a assinatura das pátinas também
apresentava semelhanças perturbadoras. Já comparações
semelhantes com ossários oriundos de outros locais
fracassaram. Além disso, as dimensões do ossário de
Tiago correspondiam grosso modo às medições feitas
pelos arqueólogos ao décimo ossário de Talpiot, antes
de ele ter desaparecido, embora ninguém se lembre de
ver lá qualquer inscrição.
O julgamento durou cinco anos.
Após mais de cem sessões e de se escutarem umas cento e
trinta testemunhas, um perito da Universidade de
Telavive admitiu que a pátina sobre o nome de Jesus não
tinha sido falsificada e o veredicto do caso ficou
selado.
A sentença, lida em Outubro de 2010, ilibou o dono do
ossário de ter forjado a inscrição.”
Tomás cruzou os braços e assobiou de modo apreciativo.
“E esta?”, admirou-se.
“Isso significa então que o décimo ossário de Talpiot
era mesmo o de Tiago, filho de um José e irmão de um
Jesus. Qual a popularidade do nome Ya’akov entre os
judeus do século I?”
“Baixa”, indicou Arkan com um brilho nos olhos.
“Na casa de um por cento.”
Fechou o dossiê e arrumou-o na gaveta.
“Contactámos peritos em estatística e eles disseram-
-nos que, ao contrário do que possa parecer à primeira
vista, a conjugação de todos estes nomes num único
sepulcro é extremamente rara.”
O português esboçou uma expressão de surpresa.
“Rara como? Pois se a maior parte são nomes comuns!...”
“A raridade está em reunir estes nomes todos num único
sepulcro e em eles terem relação com figuras centrais
do Novo Testamento.
Repare que temos aqui Jesus, José, Maria, Mariamne e
Tiago.
Mais ainda, Jesus e Tiago aparecem ambos explicitamente
referenciados com a expressão filho de José, e Tiago
aparece ainda identificado como irmão de Jesus, o que
coincide com a informação de diversas fontes diferentes
do século I, como os Evangelhos, as epístolas de Paulo
e os textos de Josefo a estabelecer que Jesus de Nazaré
teve um pai chamado José, uma mãe chamada Maria e um
irmão chamado Tiago.
Mais ainda, é muito raro um ossário referenciar alguém
como irmão de alguém.
Só se conhece mais um caso desses.
O facto de o ossário de Tiago o identificar como irmão
de Jesus só é possível se esse irmão, Jesus, for alguém
de grande notoriedade. Assim sendo, pedimos aos
matemáticos especializados em análise estatística que
fizessem um cálculo profissional da possibilidade de,
no caso do sepulcro de Talpiot, estarmos perante os
restos mortais de Jesus de Nazaré e da sua família.
Tendo por base toda a população masculina de Jerusalém
ao longo do século I e a taxa de incidência de cada um
destes nomes no universo total de ossários, mais a
relação entre eles, os matemáticos chegaram a um número
a que chamaram P factor, ou factor de probabilidade. Um
em trinta mil.”
O valor não deixou Tomás impressionado.
“Uma hipótese em trinta mil de se tratar de Jesus de
Nazaré? Não me parece grande coisa...”
Arkan soltou uma gargalhada e abanou a cabeça.
“Não”, corrigiu-o ainda a rir. “Uma hipótese em trinta
mil de não se tratar de Jesus de Nazaré. Ou, se
preferir, vinte e nove mil novecentas e noventa e nove
hipóteses em trinta mil de ser o nosso Jesus!”
O historiador arregalou os olhos.
“O quê?”
“O sepulcro de Talpiot é o sepulcro de Jesus.”
O presidente da fundação falava com absoluta convicção.
Sem saber que argumentos invocar para contrariar essa
conclusão, Tomás cruzou o olhar com os dois polícias,
que acompanhavam toda a conversa em silêncio, e
percebeu que dali não viria ajuda; aquela não era
decididamente a especialidade deles.
Em boa verdade, interrogou-se, precisava de ajuda para
quê? O sepulcro de Talpiot havia sido vistoriado por
arqueólogos profissionais poucas horas depois da sua
descoberta, em 1980. Nove dos seus dez ossários foram
remetidos directamente para os armazéns da Autoridade
das Antiguidades de Israel e nunca de lá saíram. Isto
garantia que o sepulcro não era nenhuma fraude, coisa
que de resto ninguém alguma vez sequer insinuara.
A única questão em debate era determinar se o ossário
com o nome de Jesus, filho de José e os ossários com os
nomes de José e de Tiago, filho de José, irmão de Jesus
e os dois a referenciar Maria pertenciam ou não a Jesus
de Nazaré e à sua família.
Os matemáticos fizeram as contas aos diversos factores
envolvidos e, com elevadíssimo grau de probabilidade,
haviam concluído que sim.
O que percebia ele de estatística? Com que direito
questionava essa conclusão dos matemáticos?
De facto, se Jesus não ressuscitou fisicamente, o seu
corpo teria por força de ser enterrado nas redondezas.
Que a família ou os seus seguidores tivessem pago por
um sepulcro com vista para o Templo, onde acreditavam
que Deus estava prestes a instalar-se para estabelecer
o Seu reino, era uma coisa que se lhe afigurava
absolutamente natural. Provável até. Assim sendo, qual
era a dúvida?
“O ADN”, disse de repente para o seu anfitrião. “Ainda
não nos explicou essa história do ADN.”
“O que quer saber?”
“Tudo!”, pediu.
“A começar pelo essencial, claro. Onde estão essas
amostras?”
“Aqui.”
“Aqui, onde? Em Israel?”
Arpad Arkan indicou com as mãos o espaço em redor.
“Aqui mesmo”, insistiu. “Nesta câmara.”
Os três visitantes voltaram a cabeça em todas as
direcções, surpreendidos com a revelação.
“Como?”
O espanto dos convidados arrancou um sorriso luminoso
ao presidente da fundação, invadido por um sentimento
de alegria genuína.
Arkan voltou-se para o grande congelador protegido pelo
emaranhado de luzes vermelhas e digitou um código no
teclado assente num pequeno pilar ao lado da porta. Os
fios de luz desligaram-se de imediato, desfazendo o
dispositivo exterior de segurança.
O anfitrião meteu a mão na porta do congelador e abriu-
-a. Do interior foi exalada uma nuvem de vapor gelado
que, ao desfazer-se, revelou uma pequena caixa de vidro
com um tubo de ensaio lá dentro. A fechadura da caixa
continha um teclado miniatura com dez algarismos.
“Estamos no santo dos santos”, lembrou.
“Eu não vos tinha dito que Deus se encontrava
fisicamente neste lugar?
Quem é Jesus, na teologia cristã, senão Deus em carne?
Se Jesus é Deus, e se temos aqui guardado o ADN de
Jesus, isso significa que Deus se encontra fisicamente
nesta câmara.”
O presidente da fundação digitou o número de código e,
acto contínuo, a caixa de vidro emitiu o característico
som digital de uma fechadura electrónica a destrancar.
Bip.
LXVII
Bip.
A mensagem apareceu de repente no ecrã do pager. Era
esperada havia já algum tempo. Sicarius deteve o olhar
nela durante
dois
longos
segundos,
de
modo
a
certificar-se de que tinha visto bem. Não havia
dúvidas. O mestre acabara realmente de lhe dar a ordem
final.
Atacar.
O assaltante inseriu no teclado a senha que o guarda
lhe havia fornecido após o interrogatório sangrento.
Com um suave bip electrónico, a fechadura destrancou-se
e a porta blindada que dava acesso ao Kodesh Hakodashim
abriu-se enfim. O ar glacial do interior da câmara
embateu no rosto de Sicarius e envolveu-lhe o corpo,
colhendo-o de surpresa.
“Brrr!”, tiritou. “Que gelo!”
Virou a cabeça para trás e observou, para lá da porta
entreaberta do armário, os escafandros pendurados em
cabides. Deveria vestir um deles? Sentiu-se tentado,
pensou até que seria a atitude mais avisada, dado o
frio que vinha do santo dos santos, mas acabou por
abanar a cabeça negativamente.
Não, decidiu. Iria despender uns dois minutos a meter-
se no escafandro e o mestre dera-lhe a ordem para
atacar já.
Não tinha tempo a perder. Havia que entrar, localizar o
alvo e actuar. Nada mais interessava. Tinha uma missão
para levar a cabo e executá-la-ia.
A hora chegara.
Retirou a sica do cinto e deu um passo, uma mão a
empurrar a superfície glacial da porta blindada.
Em pose felina, espreitou para o interior da câmara e
estudou o espaço imediatamente à sua frente. Apesar de
todo o equipamento sofisticado e dos armários visíveis
à entrada do santo dos santos, não vislumbrou por ali
vivalma. Tudo parecia silencioso e aquele sector da
câmara apresentava-se deserto, o que o tranquilizou.
“Perfeito!”, murmurou.
“Ele é de facto um génio! Pensou em tudo!”
A actuação do mestre parecia-lhe engenhosa. Decerto
arrastara toda a gente para outra área de câmara, de
modo a deixar-lhe a via aberta para entrar e montar a
cilada.
Com o espaço imediatamente depois da entrada no Kodesh
Hakodashim assim deserto, Sicarius poderia penetrar na
câmara sem obstáculos. Estavam desse modo reunidas
todas as condições para avançar, embora sempre com
cautela, emboscar-se na melhor posição e surpreender o
alvo.
Lançou um derradeiro olhar para trás, certificando-se
de que deixara as coisas no seu respectivo lugar e nada
esquecera. No tecto, a câmara de vigilância permanecia
com a lente coberta de tinta negra e na parede
encontrava-se a caixa que comandava o sistema de
segurança
do
santo
dos
santos,
já
devidamente
neutralizado.
A porta de acesso à antecâmara estava trancada e com
uma cadeira a bloquear a fechadura. No chão jazia o
corpo inerte do guarda, a garganta rasgada pela adaga
sagrada, a mancha de sangue vermelho-escuro a começar a
secar sobre o piso. Ou seja, Sicarius deixava tudo como
devia ser.
Cheio de confiança, deu dois passos e deixou a porta
blindada encerrar-se automaticamente atrás dele.
A armadilha fechara-se.
LXVIII
O produto dentro do tubo de ensaio parecia líquido e
exibia uma cor amarelo-esbranquiçada. Manejando o tubo
quase com reverência, Tomás ergueu-o contra a luz de
uma lâmpada e inclinou-o devagar para ver como a
substância no seu interior se comportava. Manteve a
mesma forma, indício de que tinha solidificado no
congelador.
“Diz o senhor que aqui dentro está material genético?”,
perguntou Tomás num murmúrio fascinado.
“E é o ADN de... de Jesus?”
Os olhos subjugados de todos os presentes fixavam o
tubo de ensaio e a estranha substância no seu interior.
“Exacto.”
As luzes da lâmpada atravessavam o produto congelado,
cintilando numa miríade de estrelas minúsculas, como se
o tubo contivesse de facto a centelha divina.
“É incrível!”
Os dois polícias estenderam as mãos, também queriam
pegar no tubo de ensaio, mas Arpad Arkan antecipou-se e
arrancou-o das mãos do historiador.
“Cuidado!”, disse. “O ADN é delicado.”
Ninguém conseguia descolar os olhos da substância
congelada no interior do tubo; parecia que ela os
dominava a todos como o pêndulo de um hipnotizador.
“Como foi possível?”, interrogou-se Tomás.
“Como conseguiram vocês extrair ADN do ossário?”
O anfitrião levantou pela primeira vez o olhar do tubo
e sorriu; aquela história era das que gostava de
contar.
“Lembram-se de vos ter dito que foi detectada pátina
nos ossários?”
“Claro”, anuiu o historiador. “A pátina é um composto
químico com que os arqueólogos lidam frequentemente.
Chamam-lhe verdete e parece que protege os metais da
corrosão. E então?”
“A pátina cresce em camadas e funciona de facto como
uma concha protectora.
Acontece que, se se tornar suficientemente grossa, pode
preservar traços de ossos e de sangue seco.”
“Foi aí que encontraram o ADN?!”
O olhar de Arkan irradiava luz.
“Nem mais!”, exclamou.
“Os primeiros investigadores detectaram restos de
tecido de mortalha nas pátinas situadas no fundo dos
ossários referenciados com os nomes Yehoshua bar
Yehosef e Mariamn-u eta Mara. A mortalha continha
vestígios de fluidos corporais internos e lascas de
ossos, as maiores das quais não excediam o tamanho de
unhas. Este material foi enviado para um laboratório no
Canadá especializado em ADN antigo, sem que se
explicasse a sua origem para não condicionar os
resultados. Os técnicos do laboratório estudaram os
vestígios e acharam-nos muito secos e pequenos.
Processaram as amostras numa câmara semelhante a esta,
onde só se pode trabalhar com escafandros, e concluíram
que o ADN estava muito danificado.
Não se conseguiu extrair material genético do núcleo
das células, pelo que os peritos se concentraram antes
no ADN mitocondrial, que passa da mãe para os filhos.
O laboratório canadiano teve sucesso na extracção deste
tipo
de ADN,
embora
o
tenha
encontrado muito
fragmentado.
Comparando vários marcadores, os técnicos detectaram
diferenças significativas entre as duas amostras nas
sequências A-T e G-C, ou adenina-timina e guanina-
citosina, indício seguro de poliformismo.”
“O que é isso?”, quis saber Tomás com impaciência.
“Traduza numa linguagem acessível, por favor.”
“Variação genética”, esclareceu Arkan.
“As parelhas A-T e G-C eram diferentes.”
“E então?”
“Os dois indivíduos sujeitos a análise genética não
partilhavam a mesma mãe. Ou seja, não tinham relação de
sangue, pelo menos por via materna. Por isso, se
ocupavam o mesmo sepulcro e os seus ossários foram
encontrados lado a lado, provavelmente seriam marido e
mulher.”
A testa do português contraiu-se num esgar de
incredulidade.
“Como?”, admirou-se.
“O ADN mitocondrial provou que eram marido e mulher?”
“Não, a análise genética apenas provou que não tinham a
mesma origem materna”, esclareceu o anfitrião.
“Que seriam marido e mulher é mera dedução, resultante
da disposição dos ossários no sepulcro de Talpiot.”
“Estou a ver. Mais alguma coisa?”
“Ficou determinado que o ADN mitocondrial de Jesus era
coincidente com o das populações do Médio Oriente.”
Os três visitantes acompanhavam embasbacados a
explicação, a atenção a dançar entre o tubo de ensaio e
Arkan.
“Dio mio!”, exclamou Valentina, quebrando um longo
silêncio.
“Miguel Angelo e todos os pintores enganaram-se!
Jesus não era loiro de olhos azuis!”
“Longe disso.”
“E... e essas análises de ADN? Foram mesmo feitas?”
O presidente da fundação riu-se.
“Acha que estou a inventar?”, perguntou com uma
gargalhada.
“Foram executadas em 2005 no laboratório de Paleo-ADN
da Universidade Lakehead, no Ontário.”
Os olhos de Tomás mantinham-se presos ao tubo de ensaio
que se encontrava nas mãos do seu interlocutor.
“Foi lá que lhe arranjaram essa amostra?”
Arkan fitou o tubo de ensaio.
“Isto?” Girou o tubo de ensaio na mão enluvada.
“Não, esta é outra história.”
“Então onde arranjou essa amostra?”
O anfitrião respirou fundo, exalando uma leve nuvem de
vapor que por momentos lhe embaciou a máscara do
escafandro.
“Depois das primeiras análises feitas no Canadá, a
Autoridade das Antiguidades de Israel manteve os
ossários encerrados no seu armazém em Bet Shemesh”,
explicou.
“Enquanto tudo isto se passava, eu andava ocupado com
projectos relacionados com a paz no Médio Oriente.
O lema da minha fundação, como sabem, é um poema de
Goethe sobre a paz. Só que as coisas nesse campo não
estavam a correr nada bem.
O processo israelo-palestiniano era constantemente
torpedeado de diversas formas e a guerra alastrava pelo
planeta, com os fundamentalistas islâmicos a espalharem
o terror por toda a parte e os Americanos a responderem
às cegas.
Percebi que só um grande golpe de asa permitiria
desbloquear esta situação horrível. Mas o quê? Nada
parecia resultar e a esperança estava perdida.
Até que um dia, encontrava-me eu em casa a ver
televisão, vi um documentário sobre os ossários de
Talpiot.”
“Foi aí que teve a ideia?”
“Não de imediato. Achei as descobertas intrigantes,
claro, e na manhã seguinte, já no final de uma reunião
com os meus colaboradores na fundação, a conversa
derivou para o documentário. Foi então que um dos meus
colaboradores, um cristão, fez uma observação que gerou
um clique na minha cabeça.
E porque não?, pensei eu. De modo que foi assim que
nasceu a ideia.”
“Que ideia?”
“Já lhe explico. O nosso primeiro passo foi tentar
perceber o que se poderia fazer com os ossários.
Pelo que eu tinha visto no documentário, o método de
recolha das amostras para extracção do ADN deixava
muito a desejar.
Nós já tínhamos a funcionar aqui em Nazaré este Centro
de Pesquisa Molecular Avançada.
Na altura o único edifício que existia era o Éden,
montado para pesquisas na área transgénica.
Queríamos desenvolver milho, trigo e outras plantas
geneticamente modificadas de modo a crescerem sem
precisarem de muita água. Sempre me pareceu que uma das
razões para a violência no nosso mundo está relacionada
com a pobreza e a fome, e a produção destes cereais
transgénicos seria um contributo valioso da minha
fundação para alimentar as populações do terceiro mundo
e assim contribuir para a paz entre os homens.”
Arnie Grossman impacientou-se.
“Desculpe, mas o que tem essa história da carochinha a
ver com a descoberta de Talpiot?”
“Tudo”, disse Arkan.
“À frente do Departamento de Biotecnologia do centro já
contávamos com o professor Peter Hammans, o cientista
alemão que vocês conheceram há pouco. Perguntei-lhe se
o novo projecto da fundação era viável. Ele enumerou-me
as dificuldades, mas também me apontou caminhos para
chegar às soluções.
Graças aos meus contactos com o governo israelita,
consegui autorização para visitar o armazém da
Autoridade das Antiguidades de Israel em Bet Shemesh.
Contactei
o
professor
Alexander
Schwarz,
da
Universidade de Amesterdão, que me foi indicado como um
dos melhores arqueólogos do planeta e perito em
arqueologia bíblica, e fui com ele e com o professor
Hammans visitar o armazém.
Chegámos lá e ficámos de boca aberta. Era um depósito
gigantesco, cheio de prateleiras e com mais de mil
ossários, todos eles numerados, datados e empilhados do
chão até ao tecto. Impressionante!”
Tomás ardia de curiosidade.
“Encontraram os ossários de Talpiot?”
“Demos com eles num canto longínquo do armazém,
arrumados em três prateleiras.
As condições de preservação não eram, infelizmente, as
ideais, mas o professor Hammans percebeu que havia mais
fragmentos de ossos conservados no interior das pátinas
e isso constituiu uma excelente notícia, porque
implicava que essas amostras estavam protegidas. O ADN
que flutua naturalmente no ar não as contaminara.
Pegámos no ossário 80/503 e trouxemo-lo aqui para
Nazaré, prometendo devolvê-lo no prazo de uma semana.”
“O 80/503 é o ossário assinalado Jesus, filho de
José...!”
“Correcto.
Levámo-lo para um laboratório esterilizado no Éden e
começámos a extrair os fragmentos protegidos pela
pátina.
Estavam muito secos e, tal como tinha acontecido no
laboratório canadiano, a extracção do ADN do núcleo das
células revelou-se muito difícil.
Andámos meses à volta do problema, até que tivemos um
incrível golpe de sorte. Uma lasca de osso envolvida em
camadas particularmente densas de pátina encerrava duas
células intactas. Era um verdadeiro milagre.
Com grande cuidado, conseguiu-se extrair o ADN dos
núcleos dessas células. Estava quebradiço e apresentava
algumas lacunas, o que constituiu uma grande decepção.”
“Não era possível reconstituir o ADN completo.”
“Esse era de facto o problema. Acontece que o professor
Hammans comparou os marcadores dos dois núcleos e
percebeu que as rupturas e lacunas se encontravam em
pontos diferentes. O que faltava num núcleo, o outro
tinha. A esperança renasceu.
O professor Hammans disse-me que precisávamos de
tecnologia de ponta para, combinando os dois núcleos,
reconstituir todo o ADN ali encerrado. Era difícil e
levaria tempo, mas não era impossível.
Reuni o conselho de sábios da fundação e expliquei-lhes
o projecto. Ele foi aprovado e decidimos usar todos os
recursos ao nosso dispor para alargar a investigação no
nosso Centro de Pesquisa Molecular Avançada à área
animal.
Construímos a Arca em tempo recorde e dotámo-la do
equipamento mais sofisticado que existia, com
laboratórios ultramodernos.
Começámos a fazer clonagem de animais simples, como
salamandras e lagartos. Depois passámos aos mamíferos e
a seguir aos primatas, fase em que nos encontramos
neste momento.”
Valentina franziu o sobrolho.
“Para quê essas pesquisas?”
“Como já lhe expliquei, pretendemos clonar seres
humanos”, disse.
“Será esse o passo seguinte e foi para nos ajudar a
resolver algumas dificuldades técnicas que contratámos
o professor Vartolomeev.”
A italiana fez um gesto largo, a indicar todo o
equipamento em redor.
“Nesse
caso,
este
complexo
serve
para
clonar
pessoas...” O presidente da fundação abanou a cabeça.
“Não. Esse é apenas o passo seguinte.”
“Então o que estão vocês a tentar fazer? Qual é o
objectivo final de todo este exercício?”
A pergunta deixou Arpad Arkan momentaneamente calado.
Por detrás do visor, os seus olhos pequenos, como
pontos negros entre a penugem das sobrancelhas densas,
saltitavam por cada um dos seus interlocutores,
avaliando como iriam reagir à revelação. O anfitrião
ergueu por fim o tubo de ensaio que segurava na mão,
exibindo-o como se fosse um troféu desportivo, e rompeu
a curta pausa.
“Vamos clonar Jesus.”
LXIX
Um zumbido.
Tudo o que se ouvia no interior do Kodesh Hakodashim
era
o
zumbido
monocórdico
e
ininterrupto
dos
congeladores e do ar condicionado a funcionar. Sicarius
movia-se com mil cautelas, os sentidos despertos e
atentos ao menor dos sinais, mas aquela zoada monótona
dificultava-lhe a tarefa de localizar o alvo.
“Maldição!”, rosnou entre dentes.
“Onde estão eles?”
O som constituía uma contrariedade que o deixava
enervado, mas não havia nada a fazer e o treino
ensinara-lhe que tinha sempre de se adaptar às
circunstâncias. Esforçando-se por dominar a irritação,
Sicarius internou-se devagar na câmara, o corpo
inclinado para a frente em posição de ataque, os olhos
a varrerem o espaço em busca de ameaças, a sica em
punho, pronta a ser usada.
Fazia um frio incrível, o termómetro na parede
registava um grau Celsius e as narinas do intruso
expulsavam grossas nuvens do vapor; parecia um dragão a
exalar fumo de fúria pelo nariz.
Definitivamente, não viera preparado para aquelas
condições polares e se calhar fizera muito mal em não
ter vestido o escafandro. Nesse momento já era tarde,
sabia; não tinha de se preocupar com nada daquilo. Só a
missão interessava.
Vozes.
Ouviu vozes à distância e quase suspirou de alívio e
satisfação. Aqueles sons constituíam indício seguro de
que a sua presença não havia sido detectada. Além
disso, identificara por fim a posição do alvo.
Assim sendo, dispunha de ampla oportunidade para
escolher o local da emboscada e o momento mais adequado
para atacar. Poderia pedir melhor?
Seguiu a direcção do som da conversa e avançou por um
corredor em passo lento, o olhar a disparar para a
esquerda e para a direita, preocupado com manter-se
invisível.
À medida que progredia ia ouvindo as vozes a crescerem,
cada vez mais próximas, até que vislumbrou o primeiro
vulto.
Imobilizou-se, procurando fundir-se com a penumbra. Deu
um passo cauteloso para o lado e encostou-se a um
armário cheio de ampolas e mergulhado na sombra.
Sentindo-se dissimulado na escuridão, estudou o vulto
com cuidado. Era um escafandro branco, cuja máscara
ocultava
o
rosto,
dificultando
a
identificação.
Decorria por ali uma conversa e, quando o vulto virou a
cabeça para dizer alguma coisa, conseguiu identificá-
lo.
Era o mestre.
Reconfortado por confirmar visualmente a presença do
seu aliado, Sicarius deu uns passos em frente e
procurou uma outra posição igualmente abrigada, mas com
um ângulo mais favorável para observar o que se passava
ali adiante.
Do seu novo abrigo o campo de visão alargou-se.
Detectou outro vulto e percebeu que se tratava do
historiador português. E reconheceu as outras duas
figuras.
Os alvos estavam enfim todos confirmados e encontravam-
-se juntos, o que lhe facilitava a tarefa. Dialogavam
animadamente uns seis metros adiante, junto a uma mesa
e a um frigorífico enorme com a porta aberta, e
pareciam discutir alguma coisa relacionada com uma
ampola congelada que bailava entre os dedos de um
deles.
Era aquilo.
Sicarius pôs-se em posição e preparou-se para lançar o
ataque.
LXX
Não que a revelação fosse totalmente surpreendente para
Tomás.
O historiador já havia juntado as peças do puzzle e
desde que tinha ouvido o professor Hammans explicar as
experiências efectuadas no Centro de Pesquisa Molecular
Avançada que intuía os contornos do verdadeiro projecto
que alimentava aquele complexo científico.
Mesmo assim vacilou, chocado, quando confrontado com a
formulação crua daquela ideia extraordinária.
“Clonar Jesus?”, interrogou-se, atordoado sob o efeito
da revelação.
“Isso é uma loucura!”
Os dois polícias ao lado mal se conseguiam manter
quietos, também eles abalados pela dimensão do que
haviam escutado, mas Arpad Arkan mantinha o seu sorriso
inocente, como se fruísse de toda a perturbação que ele
próprio tinha acabado de suscitar.
“Não vejo porquê.”
O historiador voltou-se para Valentina e Grossman, em
busca de apoio.
“É uma coisa... sei lá, incrível!”
Esboçou uma careta de perplexidade, como se essa fosse
a única maneira de expressar a estupefacção que lhe
tolhia as palavras.
“Jesus clonado? Onde diabo querem vocês chegar com
isso?”
Uma serenidade beatífica enchia a face do anfitrião.
“Lembram-se de eu ter falado num encontro que houve na
fundação depois de ver o documentário sobremos ossários
de Talpiot?
Na altura estávamos muito desanimados com a forma
agreste
como
se
desenrolavam
as
relações
internacionais. O processo de paz israelo-árabe não
atava nem desatava, a Al-Qaeda matava gente por todo o
lado, havia guerras no Iraque, no Afeganistão... eu sei
lá!
Foi nesse quadro depressivo que um dos meus assessores
fez a tal observação que desencadeou um clique na minha
mente.”
“O senhor já falou nisso”, observou Tomás, “mas não
contou o que ele disse.”
“Lembro-me como se fosse hoje. O homem afirmou que, a
julgar pela forma como as coisas se encaminhavam, só
Jesus seria capaz de restabelecer a concórdia no
planeta. Ele estava a gracejar, claro, mas...”
Deixou a frase em suspenso.
“Foi aí que teve a ideia.”
“Foi mesmo aí! Ouvi aquela observação e imediatamente
pensei na descoberta de Talpiot e no ADN que havia sido
encontrado no ossário de Jesus!”
Deu uma palmada na cabeça, como se reproduzisse assim o
que havia sucedido naquele instante.
“Pimba! As peças encaixaram-se na minha mente! E se
fosse possível recuperar o ADN completo de Jesus? E se
fosse viável cloná-lo? E se Jesus voltasse a caminhar
na Terra? O que mudaria? Seria possível a humanidade
permanecer indiferente ao regresso do homem cujo
pensamento mudara o mundo? Seria Jesus capaz de nos
fazer viver em paz? Era uma ideia... como direi? Única.
Explosiva. Grandiosa. Tratava-se de uma daquelas
epifanias tão extraordinárias e inspiradoras que
encerrava o potencial de, por si só, alterar o curso da
história. Se Jesus nos mudara ao longo de apenas trinta
anos de vida, seria possível que nos mudasse outra vez?
Porque não tentar? O que tínhamos a perder?”
O raciocínio de Arkan tornava-se transparente, e toda a
actividade da sua fundação também.
“Estou a perceber”, murmurou Tomás.
“Foi aí que convenceu o conselho de sábios a avançar
com o projecto.”
“Primeiro consultei o professor Hammans em segredo,
para avaliar a viabilidade técnica da ideia. A seguir
fomos buscar o professor Schwarz, recrutado também com
grande confidencialidade. Só depois de termos ido a Bet
Shemesh levantar o ossário 80/503 para análise
laboratorial e de termos isolado dois núcleos com os
cromossomas de Jesus é que reuni o conselho de sábios e
expus a ideia. A primeira reacção foi de choque, como
devem calcular, mas os conselheiros acabaram por me
apoiar sem reservas. Nasceu assim o Projecto Yehoshua.”
“Mas porque o mantiveram secreto?”, quis saber o
historiador. “Porque não partilharam essa descoberta
com o mundo?”
“E atraíamos assim a atenção de todos os fanáticos que
por aí andam? E sujeitávamo-nos a actos de sabotagem da
parte dos mais variados extremistas? Como reagiriam os
fundamentalistas islâmicos e os judeus ortodoxos e os
cristãos radicais e mais não sei quem?”
Abanou vigorosamente a cabeça.
“Não! Se queríamos levar o projecto a bom porto,
tínhamos de o manter em segredo. Isso era essencial. E
foi o que fizemos. Todo o trabalho decorreu na mais
estrita das confidencialidades, o que nos garantiu a
tranquilidade necessária para alcançar progressos.”
“Contrataram o professor Schwarz por ser um perito em
arqueologia bíblica e o professor Vartolomeev devido às
suas pesquisas na área genética”, disse Tomás.
“E a professora Patricia Escalona? Ela era paleógrafa.
Para que precisavam dela?”
“Vocês têm de perceber que o Projecto Yehoshua era
tremendamente complexo e teve de ser desenvolvido em
várias vertentes”, explicou Arkan.
“Havia uma fortíssima componente científica. Foi para
isso que se construiu a Arca e se começou a trabalhar
na clonagem animal.
Mas o professor Schwarz chamou-me a atenção para um
pormenor que não podia ser descurado.
Vamos imaginar que conseguíamos resolver o problema dos
telómeros curtos, responsáveis pelo envelhecimento
prematuro dos animais clonados, e o problema das
proteínas coladas aos cromossomas, que impedia a
clonagem de primatas. Vamos imaginar que éramos bem
sucedidos na clonagem de seres humanos saudáveis. Vamos
imaginar que, uma vez ultrapassadas essas etapas todas,
estávamos finalmente em condições de clonar Jesus.”
Fez uma pausa, deixando este cenário instalar-se na
mente dos três visitantes.
“E se Jesus não fosse nenhum deus? E se a a sua
mensagem não fosse aquela que nós pensávamos que era?”
Fitou Tomás com intensidade, depois Valentina e por fim
Grossman.
“Quem era realmente Jesus?”
O historiador assentiu enfaticamente.
“Agora é tudo claro”, afirmou.
“Precisavam da professora Escalona para responder a
essa pergunta.”
“O nome dela foi-me sugerido pelo professor Schwarz,
que a tinha em elevada consideração.
A Universidade Hebraica de Jerusalém estava nessa
altura a organizar uma conferência sobre os manuscritos
do Mar Morto e convenci os organizadores a convidarem-
-na. O professor Schwarz marcou de propósito para os
mesmos dias uma visita destinada a inspeccionar outros
ossários na Autoridade das Antiguidades de Israel,
supostamente para um artigo da Biblical Arcbaeology
Review, e arranjámos maneira de o Instituto Weizmann de
Ciência convidar o professor Vartolomeev para uma
palestra na mesma data.
Aproveitando a presença simultânea dos três em Israel,
chamei-os à Fundação Arkan e tivemos uma longa
conversa. Os professores Schwarz e Vartolomeev já
sabiam ao que iam, claro, mas para a professora
Escalona foi tudo novidade.
Explicámos-lhe algumas partes do projecto e ela aceitou
juntar-se a nós, prometendo confidencialidade absoluta.
No entanto, quando começámos a discutir quem era
realmente Jesus, ela soltou uma gargalhada e disse uma
coisa que... enfim, disse algo que não vou esquecer.”
“O quê? Que disse ela?”
“A professora Escalona explicou-me que o grupo que
originalmente seguia Jesus, os nazarenos, não era mais
do que uma das várias seitas do judaísmo. O que pelos
vistos os distinguiu das restantes seitas judaicas foi
um dos seus líderes, Paulo, ter decidido estender a
mensagem aos gentios. Ao contrário da maior parte dos
judeus, os gentios aceitaram que Jesus era o mashia das
Escrituras e mostraram-se dispostos a aderir ao
movimento, desde que não tivessem de respeitar um
conjunto de preceitos judaicos, como não trabalharem ao
sábado, não ingerirem alimentos considerados impuros e,
sobretudo, ser circuncidados.
A professora Escalona sublinhou que estas práticas eram
respeitadas e pregadas pelo próprio Jesus. Mas ele
tinha morrido e os nazarenos não estavam a conseguir
convencer os restantes judeus de que o seu líder
crucificado pelos Romanos era o masbia.
O que fazer?
Paulo veio a Jerusalém por volta do ano 50 e convenceu
Pedro e Tiago, o irmão de Jesus, a serem flexíveis.
Depois de muito debaterem o problema, ficou acordado
que os gentios que aderissem ao movimento estavam
isentos das obrigações referentes ao sábado, à comida
impura e à circuncisão. Removidos estes obstáculos, a
mensagem dos nazarenos espalhou-se pelo Império,
Romano.
Foi tão bem sucedida que, em algumas décadas, havia
mais gentios a seguirem Jesus do que judeus.
Os nazarenos judeus tornaram-se assim minoritários e,
sobretudo após a destruição do segundo Templo, no ano
70, perderam poder e passaram a constituir uma mera
seita dentro do movimento cristão.”
“Eram os ebionitas”, disse Tomás, que conhecia bem
aquela história.
“O seu nome vem de ebionim, palavra hebraica que
significa pobres.”
“Precisamente! A professora Escalona explicou-me que os
cristãos de origem e costumes judaicos passaram a ser
designados ebionitas. Parece que defendiam que Jesus
era um homem de carne e osso, nascido de uma relação
sexual normal e que Deus o escolhera por ser muito pio
e conhecedor da lei. Além de Jesus, os ebionitas
reverenciavam o irmão dele, Tiago, e consideravam que
Paulo não passava de um apóstata que adulterara os
ensinamentos originais.
Por fim, aconteceu aos ebionitas uma coisa incrível.
Embora fossem herdeiros dos fundadores do movimento e
aparentemente portadores da verdadeira mensagem de
Jesus, viram-se declarados hereges e marginalizados,
acabando por desaparecer dos anais da história!”
“Sim, mas o que lhe disse a professora Escalona de
especial? Que comentário foi esse que o senhor nunca
mais esqueceu?”
Arkan sorriu.
“Disse-me que, se Jesus voltasse à Terra, a Igreja o
declarava herege!”
“Madonna, protestou de imediato Valentina.
“Como pode afirmar uma coisa dessas? Jesus, herege? Por
amor de Deus!”
“Estou apenas a citar as palavras da professora
Escalona”, lembrou o presidente da fundação.
“Se Jesus voltasse à Terra, a Igreja declarava-o
herege. Foram exactamente essas as suas palavras. Ela
defendia que a actual mensagem cristã era muito
diferente da mensagem original de Jesus. O tom
apocalíptico perdeu-se e o contexto judaico também.
Mas isso não era necessariamente mau, argumentou ela
nessa ocasião.
A professora Escalona chamou por exemplo a atenção para
o facto de Jesus ser até um judeu ultra-ortodoxo que
nem sequer aceitava o divórcio e dizia que uma mulher
divorciada que casasse outra vez estaria a cometer
adultério. Ora a lei judaica previa a lapidação dos
adúlteros, punição que Jesus jamais reprovou. Claro que
lhe lembrei logo o episódio da adúltera, em que Jesus
disse que atirasse a primeira pedra quem nunca tivesse
pecado.”
“O problema é que esse episódio é uma fraude”, recordou
Tomás. “Não consta dos textos originais do Novo
Testamento. É um acrescento posterior.”
“Foi justamente o que ela me revelou. Ou seja, a
mensagem de Jesus era estritamente judaica, para o bem
e para o mal. Claro que a lapidação para punir o
adultério foi considerada pelos gentios incrivelmente
bárbara. Como era possível que Jesus não a tivesse
invalidado? Daí que um escriba tenha inventado esse
episódio da adúltera, pondo o Messias a anular a
lapidação.
A professora Escalona disse também que a mensagem
universalista não era de Jesus, um judeu que se dirigia
especificamente a judeus, mas da Igreja.
E mesmo o amor, que está agora no centro do ensinamento
cristão, só é referido uma vez no primeiro evangelho.
Ou seja, o cristianismo tornou-se em certos aspectos
mais brando que a religião pregada pelo próprio Jesus,
o que ela considerava positivo.”
Suspirou.
“Contudo, para os efeitos do nosso projecto, o
importante é que ficámos com um problema complicado
entre mãos, não é verdade?”
O historiador soltou uma gargalhada.
“Estou mesmo a ver a vossa dificuldade”, observou.
“E se o Jesus clonado saísse um radical ortodoxo?”
A risada deixou Arkan escandalizado.
“Está a rir-se?”, questionou.
“Oiça, o problema era muito sério! Nós queríamos clonar
Jesus para trazer a paz ao mundo. A intenção era a
melhor possível.
E o que tínhamos nós ali? Uma historiadora a dizer-nos
que o tiro nos podia sair pela culatra! O homem que
pretendíamos clonar raciocinava de uma maneira
diferente daquela que julgávamos!
Jesus era um profeta apocalíptico que achava que o
mundo ia acabar a qualquer instante! Jesus tinha uma
visão ultra-ortodoxa do judaísmo, afirmando até que não
viera para anular as Escrituras, mas para as aplicar
com ainda maior rigor do que os próprios fariseus!
Jesus chegava a discriminar os gentios!”
“Estou a ver a vossa cara!”, disse Tomás.
“Como é que reagiram a tudo isso que a Patrícia vos
revelou?”
“Ficámos em estado de choque, como deve calcular!
Imagine a nossa surpresa! Nem queríamos acreditar no
que estávamos a ouvir!”
Abriu as mãos, imitando a sua própria reacção.
“E agora? O que vamos nós fazer? Como resolvemos este
problema?”
Retomou a postura normal.
“Foi então que o professor Schwarz nos chamou a atenção
para o facto de Jesus ser um produto da cultura judaica
que impregnava a sociedade onde nasceu e cresceu.
Se o homem que nós queríamos clonar fosse educado num
ambiente diferente, isso iria decerto moldá-lo de outra
maneira. No fim de contas, somos quem somos devido aos
nossos genes, mas também às circunstâncias que nos
rodeiam.”
“Muito verdadeiro.”
“Portanto, o Projecto Yehoshua mantinha-se válido.
Tínhamos, no entanto, de ser cautelosos com a forma
como
iríamos
educar