sobre a nuca.
“Já alguma vez sonhaste com o riso da morte?”,
perguntou o homem que o dominava, com uma voz baixa e
rouca. “Ou preferes conversar na antecâmara do
Inferno?”
O tom era intenso, quase fanático, mas o facto de o
desconhecido falar, mesmo que apenas para dizer coisas
estranhas, pareceu-lhe vagamente encorajador. Quem sabe
se o conseguiria convencer a largá-lo? Não que isso lhe
parecesse provável, sobretudo à luz dos três cadáveres
que aquele assassino deixara no seu rasto, mas valia a
pena tentar. No fim de contas, que tinha a perder?
A vida?
“Não há necessidade de violência”, murmurou, num
registo tão sereno que ele próprio ficou surpreendido.
“Diga-me o que pretende e estou certo de que poderemos
chegar a um entendimento.”
Ouviu uma gargalhada baixa atrás dele.
“Diz-me”, soprou-lhe o desconhecido ao ouvido. “Que
tentações me embriagam a transcendência da alma?”
“Não sei.” Forçou-se a si próprio a rir, de modo a
esconder o medo que lhe ateava o sangue e estrangulava
a voz. “Dinheiro não deve ser...”
Uma nova gargalhada sussurrada chegou-lhe aos ouvidos.
“Quero um cordeiro.”
Tomás sentiu o coração apertar-se-lhe. Considerando as
circunstâncias, não era o que mais gostaria de ouvir.
“Um... um cordeiro?”
“Sim, um cordeiro”, confirmou a voz baixa e rouca.
“Pequei e tenho de expiar os meus pecados. O sacrifício
de um cordeiro reconciliar-me-á com o Senhor.” O
desconhecido voltou a aproximar os lábios da orelha
direita da sua vítima. “Disseram-me que tens carne
tenra de bom cordeiro...” A situação estava a agravar-
se.
“Oiça, tenha calma”, implorou o historiador, sentindo o
tempo fugir-lhe. “Isso dos cordeiros são histórias
antigas que já não...”
“Histórias antigas?”, rugiu o agressor, a fúria a
irromper-lhe de repente na voz. “Como te atreves?”
“Tenha calma!”
O historiador sentiu um movimento rápido do homem por
cima dele e logo a seguir viu uma adaga de lâmina curva
diante dos olhos. Era o desconhecido que a exibia.
“E isto? Achas que é uma história antiga?”
A lâmina era enorme e reluzia como cristal, reflectindo
com mil brilhos a iluminação do quarto.
“Afaste isso”, pediu. “Alguém ainda se pode magoar!...”
O agressor soltou uma gargalhada, desta feita sonora e
aberta, e aproximou-lhe a lâmina dos olhos.
“Estás a ver esta adaga?”
“Demasiado bem. Não a pode afastar um bocadinho? Só um
bocadinho...”
“Tem dois mil anos”, sussurrou, ameaçador. “Foi usada
pelos meus antepassados para os sacrifícios do Yom
Kippur. Depois foi usada para enfrentar os legionários
pagãos.” Fez uma pausa. “Estou agora a usá-la para
resgatar de novo o meu povo. E tu, pobre criatura
tresmalhada, não passas de um cordeiro. O cordeiro que
Deus me entregou para expiar os pecados do meu povo.”
Logo que acabou de proferir a frase, o assaltante pegou
na adaga de outra forma, passando a segurá-la de uma
maneira muito agressiva. Tomás percebeu nesse instante
que o homem se preparava para a usar e que só dispunha
de alguns segundos para reagir.
“Socorro!”, gritou.
Ao mesmo tempo, sacudiu o corpo com violência. O
desconhecido desequilibrou-se por um momento e Tomás
sentiu de repente alguma liberdade de movimentos.
Tentou explorá-la para se libertar totalmente, mas o
agressor recompôs-se e voltou a prendê-lo com firmeza.
“Morre, cordeiro!”
Assentou a faca no pescoço da sua vítima e fez força.
Tomás sentiu a lâmina picar-lhe a pele pela parte
lateral do pescoço, junto às veias, e entrou em pânico.
Como um animal encurralado, fez um esforço titânico e
conseguiu libertar a mão direita. A adaga já lhe
rasgava a pele do pescoço e a dor aguda cegava-o, pelo
que deitou a mão à lâmina e agarrou-a com força,
travando a sua progressão.
“Larga-me!”
O assaltante pareceu ter sido apanhado de surpresa por
aquele movimento. Tomás conseguiu afastar a adaga do
pescoço, mas registou uma desagradável sensação de frio
na palma da mão. Pelo canto do olho viu sangue a
escorrer-lhe pelo braço e percebeu que a lâmina lhe
rasgava a mão direita. Teve uma vontade quase
irresistível de largar a adaga e proteger a mão ferida,
mas o instinto combateu essa vontade. Era melhor ter a
mão rasgada do que o pescoço.
O agressor reagiu mais uma vez. Conseguiu arrancar-lhe
a adaga e, com um jeito do corpo, imobilizou-lhe de
novo o braço direito. Com a vítima enfim dominada,
voltou a colar a ponta da lâmina à parte lateral do
pescoço e fez força. Não demasiada, para não efectuar
um corte rápido, mas o suficiente para a lâmina romper
a pele e Tomás perceber que estava perdido.
A vítima contorceu-se num último esforço, rodopiando e
dando uma cotovelada com o braço esquerdo no agressor.
O desconhecido gemeu, mas manteve o colete-de-forças
bem apertado.
“Dá um abraço a Belzebu!”
E fez força.
XL
O primeiro encontrão abanou a porta, mas ela não cedeu.
Logo a seguir veio o segundo, acompanhado por um
estrondo ainda maior. A porta manteve-se, porém,
trancada, resistindo à violência dos embates.
“Abram!”, gritou uma voz do outro lado. “Polícia!”
Sicarius mantinha a vítima presa entre os seus braços,
mas interrompeu os movimentos cirúrgicos da adaga. A
lâmina estava ensanguentada e da sua ponta pingavam
espessas gotas de um vermelho-vivo. Sem hesitar, como
se tivesse ensaiado já mil vezes aquele gesto, limpou-a
rapidamente às calças de Tomás, manchando-as de sangue.
Percebendo que a todo o momento a porta iria rebentar,
deu um salto e pôs-se de pé.
Soou um tiro.
O assaltante correu pelo quarto em direcção à varanda.
Escutou um segundo tiro atrás dele, ouviu um estrondo
surdo e percebeu que a porta havia sido derrubada, mas
nem olhou para trás; não valia a pena, sabia muito bem
que passara a ser um alvo.
“Alto!”, gritou a voz feminina atrás dele. “Não se
mexa!”
Por esta altura Sicarius estava na varanda e atirava-se
para os arbustos que decoravam o jardim nas traseiras
do quarto. Ouviu um novo disparo de pistola e o zumbido
da bala cortou o ar por cima dele, mas havia já
mergulhado na sombra do jardim e sabia-se em segurança.
De pistola em riste, Valentina viu o corpo de Tomás
tombado no chão, à esquerda, e hesitou um segundo.
Deveria
dar
caça
ao
assaltante
ou
socorrer
o
historiador?
“Tomás?”, chamou. “Tomás?!”
O português não respondeu e a inspectora da Polizia
Giudiziaria
sentiu-se
desfalecer.
Teria
chegado
demasiado tarde? Com a angústia a secar-lhe a boca,
correu para o corpo e inclinou-se sobre ele. Havia
sangue por todo o lado, parecia que estava num talho.
“Ah, Dio mio!”, exclamou, aflita, quase sem saber o que
fazer. “Tomás?” Viu-lhe a ferida no pescoço e sentiu um
aperto no coração. “Oh, não!” Sacudiu-o, tentando
reanimá-lo. “Tomás?! Por amor de Deus, responda!”
Pegou-lhe na mão direita para sentir a pulsação, mas
apercebeu-se que a palma ensanguentada se encontrava
rasgada com cortes sucessivos e vacilou. Estava
habituada a deparar-se com cenas daquelas no decurso do
seu trabalho de polícia, mas jamais envolvendo uma
pessoa que conhecia, e sobretudo de quem gostava.
“Tomás!”
A cabeça do historiador mexeu-se e ouviu-se um gemido.
“Ai...”
A italiana caiu-lhe em cima e abraçou-o, o alívio a
enchê-la como um banho retemperador, as lágrimas a
escorrerem-lhe pela face pálida e delicada.
“Ah, Tomás!...”, murmurou, apertando-se a ele e
sentindo-lhe o corpo de homem a estremecer. “Graças a
Deus! Graças a Deus! Tive tanto, tanto medo!”
O português voltou-se a custo, com cuidado para não se
magoar nem afastar a mulher que o abraçava, e encarou-a
por fim.
“Sempre imaginei que você acabaria por me cair nos
braços”, disse, esforçando-se por sorrir. “Mas não
calculava que fosse tão depressa.”
Desta vez ela riu-se.
“Que parvo!”, exclamou. “Ia morrendo de susto. Pensei
que tinha chegado tarde de mais...”
O ferido afastou ligeiramente a cabeça, de modo a
ganhar ângulo de visão, e contemplou a mulher debruçada
sobre ele. Valentina estava seminua, apenas de
calcinhas e soutien. Tudo o resto era pele branca e
desnudada, com formas esculturais que os vestidos
normalmente só deixavam adivinhar.
“Ena!”, admirou-se Tomás. “Eu sei que lhe pedi que
vestisse uma coisa sexy, mas você levou a coisa mesmo a
sério, hem?” A italiana, que lhe afagava os cabelos com
ternura, corou e apartou-se dele, pondo as mãos diante
do soutien para melhor esconder os seios.
“Oh, não goze!”, pediu. “Você está bem?”
O português fez um esgar de dor.
“Tenho a mão a arder e esta ferida no pescoço também
não ajuda, mas acho que o tipo não conseguiu degolar-
-me.” Passeou os olhos pelo corpo dela. “Explique-me lá
esses seus preparos!...”
Ela pôs-se em pé e, sentindo-se desconfortável com a
sua quase nudez, recuou até desaparecer no quarto de
banho.
“Estava a mudar de roupa quando recebi a chamada do
Grossman”, explicou. “Parece que alguém telefonou à
polícia israelita a avisar que você corria perigo de
vida.” Ouvia-se apenas a voz dela a falar do quarto de
banho. “Ele ligou-me e... enfim, não tive tempo de me
vestir.”
“Alguém telefonou à polícia? Quem?”
A italiana reapareceu envolta numa toalha do hotel e
com uma outra na mão, que acabara de molhar na torneira
do lavatório.
“Sei lá”, disse ela, aproximando-se. “Como deve
calcular, no meio daquela confusão não tive tempo de
fazer perguntas.” Ajoelhou-se ao pé dele e começou a
limpar-lhe a ferida no pescoço com a toalha molhada.
“Vim para aqui a correr.”
“Sozinha?”
Ela indicou uma pistola pousada sobre a cama.
“Trouxe a minha Beretta.”
Tomás esticou o pescoço para facilitar a limpeza.
“Que pena não ter recebido esse telefonema a meio do
banho”, observou. “Assim apareceria aqui ainda mais
bonita!...”
Valentina lavou a ferida do pescoço e voltou-se de
seguida para a mão direita, onde, apesar do sangue,
eram visíveis vários cortes.
“Que tonto me saiu!”, repreendeu-o com doçura. “Estou
aqui mortalmente preocupada consigo e você só pensa
em... enfim, só pensa nisso.”
Ouviram-se sirenes a soar no exterior e nesse instante
o enorme perfil de Arnie Grossman surgiu recortado à
entrada do quarto. Trazia uma pistola na mão e atrás
dele vinha um polícia fardado com uma Uzi em riste,
preparada para disparar.
“Então?”, perguntou o polícia israelita, dardejando o
olhar atento em todas as direcções, como se buscasse
ameaças escondidas. “Está tudo bem?”
Valentina nem olhou para trás, preferindo manter-se
ajoelhada junto a Tomás a limpar-lhe as feridas que lhe
rasgavam a palma da mão direita.
“Porque levou tanto tempo?”, quis ela saber.
Grossman
aproximou-se
dos
dois
enquanto
o
seu
subordinado inspeccionava o quarto.
“Chamei reforços e enquanto eles não vinham fui para as
traseiras tentar interceptar o suspeito”, respondeu.
“Mas acho que cheguei tarde de mais. Ele já tinha
fugido.” Inclinou-se diante de Tomás e observou-lhe o
pescoço ferido. “Ui, isso está feio. Dói-lhe?”
O português esboçou um esgar de sofrimento.
“Não, é muito agradável”, ironizou. “Claro que dói! Já
experimentou espetar uma faca no pescoço? Olhe que é
coisa para estragar a tarde a uma pessoa!...”
O polícia manteve os olhos presos na ferida do pescoço.
“Pelos vistos o alerta foi dado mesmo a tempo, hem? Um
minuto mais tarde e...”
“Quem deu o alerta?”
“Foi uma chamada anónima recebida na central. Avisaram
o meu departamento, que me avisou a mim.”
“E porque não veio de imediato?”
Grossman corou e desviou o olhar, esboçando a expressão
de alguém comprometido.
“É que eu nessa altura estava... enfim, estava na
retrete do quarto de banho do The Arabesque”, disse em
voz baixa, quase num sussurro. Passada a revelação
embaraçosa, encarou o ferido. “Não tinha modo de sair
dali a correr naqueles preparos, não é verdade? Já viu
o espectáculo que seria?” Fez um gesto a indicar
Valentina. “Como sabia que a senhora Ferro se
encontrava alojada no quarto mesmo ao lado do seu,
liguei-lhe de imediato.”
A italiana alçou o olhar para o colega israelita
plantado atrás dela.
“Também me apanhou nuns lindos preparos, sim senhor”,
disse, fazendo um gesto para si mesma. “Só que eu, ao
contrário de si, não me preocupei com isso. Vim como
estava.”
“Ah, mas os seus preparos são muito melhores que os
meus”, retorquiu Grossman, quase empertigado. “No meu
caso era mesmo muito embaraçoso!”
Valentina não respondeu. Em vez disso, ajudou o
português a levantar-se, o que ele fez com visível
dificuldade. Ainda envolta na toalha que lhe escondia
as formas, a italiana certificou-se de que o ferido se
encontrava bem e depois pegou na pistola que deixara
pousada sobre a cama e deu meia volta, dirigindo-se com
passo decidido para a saída.
“Vou ao meu quarto”, anunciou, acenando já de costas.
“Tenho de me pôr apresentável.”
Desapareceu para lá da porta escancarada e Tomás ficou
a sós com os dois polícias israelitas, Grossman e o
homem fardado que vigiava a varanda.
“Que estão vocês a fazer para apanhar o tipo?”
O inspector-chefe esboçou um gesto na direcção da
janela e do que estava para lá dela.
“Isolámos o quarteirão e estamos a passar tudo a pente
fino”, explicou. “Mas, se quer que seja sincero, não me
parece que ele se deixe apanhar. O nosso homem teve
tempo mais do que suficiente para se pôr a salvo. A
esta hora já está do outro lado da cidade ou fugiu para
Ramallah, Belém ou Telavive.”
“Também me parece.”
Grossman apontou-lhe para a ferida na parte lateral do
pescoço.
“Você é que esteve bem pertinho dele. Como é o
sujeito?” Tomás indicou com a mão uma altura quatro
dedos mais baixa que a sua.
“Tem para aí esta estatura”, indicou. “É ágil e magro,
mas forte. Deve ter treino militar. Imobilizou-me de
uma maneira incrível, parecia que me tinham metido numa
jaula. Os braços dele eram de ferro.”
“E a cara?”
“Mal a vi. O gajo apanhou-me de surpresa e pôs-me de
cabeça para baixo, de maneira que não consegui vê-lo.
Apercebi-me apenas de que estava todo vestido de negro
e tinha o cabelo cortado à escovinha, como um soldado.”
Estremeceu. “Um tipo sinistro.”
“Disse-lhe alguma coisa?”
O português assentiu.
“Chamou-me cordeiro e informou-me que eu lhe tinha sido
indicado
para
sacrifício
de
expiação.”
Reviu
mentalmente as imagens gravadas na sua memória. “Houve
um pormenor curioso. Ele tinha uma adaga ritual.
Afirmou que foi usada pelos seus antepassados nos
sacrifícios do Yom Kippur e para matar legionários
pagãos.”
“Legionários?”, admirou-se o polícia israelita. “Isso é
uma referência evidente à grande revolta de há dois mil
anos, que conduziu à destruição de Jerusalém e à
expulsão dos judeus da Terra Santa.”
“É evidente. E sabe qual foi um dos grupos de judeus
mais activos nessa revolta, não sabe?”
Grossman estreitou as pálpebras.
“Os sicarii.”
Fez-se um silêncio súbito no quarto enquanto ambos
digeriam o significado daquela conclusão. A pausa foi
interrompida nesse instante por dois homens de bata
branca que entraram no quarto com uma maca e o ar
apressado de quem tinha uma missão a cumprir.
“O morto?”, quiseram saber.
Grossman sorriu e indicou Tomás.
“Está aqui”, disse. “Mas como ele é cristão e estamos
em Jerusalém, o cadáver pelos vistos já ressuscitou.”
Os
recém-chegados
pareceram
ficar
momentaneamente
decepcionados perante a visão da vítima a olhar para
eles, mas logo animaram quando se aperceberam das
feridas no pescoço e na mão direita do português. A
deslocação não tinha sido em vão.
“Isso tem de ser visto”, disse de imediato o paramédico
que parecia liderar o duo. “Vamos levá-lo para o
hospital para tratar essas feridas. Venha daí!”
O homem da bata branca puxou Tomás pelo braço, mas o
ferido libertou-se com um gesto seco e brusco.
“É só um momento.”
“Onde vai?”, admirou-se o paramédico. “A ambulância
está lá fora à espera...”
O historiador foi até à mesinha-de-cabeceira e pegou no
papel pousado junto à base do pequeno candeeiro.
Verificou que se tratava do que procurava e voltou para
junto de Arnie Grossman.
“O nosso homem deixou-nos mais uma mensagem.”
O polícia israelita pegou no papel e leu a charada
rabiscada a tinta negra.
“Veritatem dies aperit” admirou-se, levantando os olhos
para o seu interlocutor. “O que raio vem a ser isto?”
“É latim.”
“Que é latim já eu percebi! Mas o que significa?”
Os paramédicos voltaram a puxar Tomás pelo braço e
desta vez ele não resistiu. Deixou-se arrastar até à
porta, mas antes de desaparecer no exterior lançou um
último olhar a Grossman, que ainda aguardava a resposta
à sua pergunta. “O tempo revela a verdade.”
XLI
Da boca dos actores que interagiam no ecrã do televisor
jorrava um dramalhão com sotaque carioca; era uma
novela brasileira transmitida pela televisão israelita.
Tomás estava estendido na cama do Hospital Bikur Holim
com um grande penso colado ao pescoço e a mão
engessada, mas seguia com curiosidade divertida o
diálogo legendado em hebraico entre duas beldades
tropicais na praia de Ipanema.
Foi nessa postura descontraída que Valentina e Grossman
o surpreenderam.
“Então como vai o nosso cordeiro?”, gracejou a italiana
ao entrar no quarto. “Preparado para a matança?”
Não perdeu pela demora.
“Eu posso ser o cordeiro”, retorquiu ele com ar
malicioso, “mas quem me apareceu toda tosquiadinha no
quarto foi você!...”
Valentina fez beicinho.
“Oh, já não se pode brincar!”
O inspector-chefe da polícia israelita fez hmm-hmm,
como se lhes pedisse que se contivessem na sua
presença.
“Como eu calculava, não apanhámos o homem”, anunciou.
“Revistámos o quarteirão inteiro, mas não lhe demos com
o rasto.” Consultou um bloco de notas. “Identificámos,
porém, a origem do telefonema anónimo que recebemos na
central. Era de uma cabina pública.” Vasculhou no bolso
e extraiu o papel encontrado na mesinha-de-cabeceira do
quarto. “A única coisa que nos resta é o enigma que o
tipo deixou.” Estendeu o papel para Tomás, que pegou
nele com a mão boa.
“Quer que o decifre?”
Grossman forçou um sorriso.
“É a sua especialidade, creio eu.”
O historiador respirou fundo e pousou os olhos na
charada, estudando-a demoradamente.
“A primeira coisa a notar é que este enigma é algo
diferente daqueles que encontrámos no Vaticano, em
Dublin e em Plovdiv.”
“Diferente?”, admirou-se Valentina, que por esta altura
conhecia já as outras charadas de cor. “Diferente
como?” Tomás apontou para a frase em latim.
“Isto é uma citação de Séneca”, disse. “Remete-nos para
a verdade.”
“E então?”
“Os outros enigmas, se bem se lembra, não apontavam
para
a
verdade”,
explicou.
“Apontavam
para
falsificações e fraudes introduzidas ao longo do tempo
no Novo Testamento.”
“Ah, sim!”, exclamou Grossman. “O que nos leva àquela
pergunta que lhe fiz e a que você ainda não me
respondeu: porque quereriam os sicarii chamar a atenção
para essas fraudes?”
“Não fiz outra coisa senão explicar isso”, retorquiu o
historiador. “Os sicarii são, como sabe, um movimento
judaico zelota. Com os anteriores enigmas queriam
evidentemente mostrar que o Novo Testamento, longe de
revelar o verdadeiro Jesus, o esconde. É preciso
cortarmos as fraudes e as falsificações e a retórica
dos evangelistas para podermos perceber quem era o
verdadeiro Jesus. O Messias dos cristãos não passava de
um judeu conservador.” Ergueu um dedo, para acentuar a
ideia que ia expor. “Um judeu tão judeu como os
sicarii.”
“Era esse o objectivo dos três primeiros enigmas?”
Tomás aquiesceu com a cabeça.
“Na minha opinião, sim.”
Valentina apontou para a nova charada que ele tinha na
mão.
“E este?”
“Este é diferente”, sentenciou o historiador. “Os
sicarii já não estão preocupados com expor as
falsidades que constam no Novo Testamento.” Agitou a
pequena folha de papel. “O que está aqui em questão não
é a mentira, mas a verdade.”
“A verdade? Qual verdade?”
“A verdade de quem realmente era Jesus.” Baixou os
olhos para o novo enigma. “Isso está aliás implícito
nesta frase de Séneca. Veritatem dies aperit. Ou o
tempo revela a verdade. É pois da verdade que esta
charada trata.”
O inspector-chefe da polícia israelita apontou para o
desenho.
“E este leão? O que significa isto?”
“Não é um leão qualquer”, observou Tomás. “Já reparou
que tem asas?”
Grossman riu-se.
“É então um leão-anjo.”
O historiador abanou negativamente a cabeça, os olhos
ainda presos ao desenho.
“Não, é Marcos.”
“Perdão?”
Tomás estendeu o braço para a mesa ao lado da cama e
abriu a gaveta. Inseriu os dedos no interior e retirou
uma Bíblia pequena e grossa impressa em hebraico e
inglês.
“O Evangelho segundo Marcos começa em 1:3 a falar numa
‘Voz do que brada no deserto’. Esta voz, que é a de
João Baptista, foi comparada ao longo do tempo com o
rugido de um leão. Por isso ficou instituído que o leão
alado é o símbolo de Marcos.”
Os olhos dos dois polícias mantiveram-se presos à
figura desenhada na charada.
“Este leão simboliza Marcos?”
“Exacto.” Indicou os caracteres garatujados a seguir ao
leão. “E este I:XV é, evidentemente, numeração romana.
Indica um determinado versículo que se encontra no
Evangelho segundo Marcos. Um versículo que perdura no
tempo.” Arqueou as sobrancelhas. “O mesmo tempo que
revela a verdade.”
Valentina e Grossman contemplavam, fascinados, o enigma
nas mãos do português.
“Ou seja”, disse a italiana, a excitação a apossar-se-
-lhe da voz, “o que o assassino nos está a dizer é que
a verdade sobre Jesus se encontra inscrita nesse
versículo?”
“Bingo!”, soltou Tomás. “O versículo I:XV. Ou 1:15, na
numeração moderna.”
Os três pares de olhos descaíram quase em simultâneo
para a Bíblia que o historiador tinha na mão.
“Ó homem”, ordenou o israelita, “leia lá esse
versículo!”
Tomás tinha o livro aberto na primeira página do
Evangelho segundo Marcos, onde acabara de ler a
referência à ‘Voz do que brada no deserto’, em 1:3,
pelo que só teve de descer umas linhas e localizar o
versículo 1:15, um pouco mais abaixo.
“Isto é uma frase de Jesus”, disse, preparando-se para
a ler. “ ‘Completou-se o tempo e o reino de Deus está
perto: Arrependei-vos, e acreditai na Boa Nova.’”
Os dois polícias ficaram um instante à espera da
continuação, mas o português levantou a cabeça e
encarou-os como se não houvesse mais nada para ler.
“E o resto?”, quis saber a italiana. “Onde está o
resto?”
Tomás sorriu, com ar de sonso.
“Não há resto”, disse. “O versículo 1:15 é este.”
De
sobrolho
carregado
e
com
uma
expressão
interrogadora, Valentina atirou um olhar desconfiado
para a Bíblia.
“Isso?”, admirou-se. “É essa a grande verdade sobre
Jesus?” O historiador fez que sim com a cabeça.
“A verdade todinha.”
“Mas o que tem isso de especial? Que grande verdade é
que essa frase tão banal e inócua revela?”
Tomás pegou na Bíblia e mostrou a página aos dois
polícias, como um advogado a apresentar em tribunal uma
prova crucial.
“Este, meus amigos, é um versículo que muitos teólogos
cristãos gostariam de ver apagado para sempre do Novo
Testamento!”
Valentina esboçou uma careta de incredulidade.
“Está a brincar...”
“Minha cara”, disse ele com solenidade. “É esse curto
versículo que encerra a estranha verdade sobre Jesus
Cristo.”
“Não me diga? E qual é?”
O académico português pousou o livro na cama e cruzou
os braços, o olhar a saltar entre Valentina e Grossman,
como um toureiro a escolher qual das bestas iria
provocar.
“O último segredo da Bíblia.”
XLII
O sangue já estava seco na lâmina quando Sicarius
mergulhou a adaga na água e começou a lavá-la. Procedeu
com cuidado, esmero até, ensaboando o metal com
movimentos delicados mas metódicos. A água que escoava
pelo ralo tornou-se avermelhada e o seu rosto não
conteve um leve sorriso; era como se ele fosse Moisés e
tivesse acabado de se purificar com uma das dez pragas
lançadas sobre o Egipto.
‘“Eis o que diz o Senhor: para ficares a saber que Eu
sou o Senhor, vou ferir as águas do rio com a vara que
tenho na mão e transformar-se-ão em sangue’”, murmurou,
recitando de cor as Sagradas Escrituras numa litania
ininterrupta. “‘Sob os olhos do Faraó e sob os olhos
dos seus seguidores, Aarão levantando a vara, feriu as
águas do rio, e todas as águas do rio se transformaram
em sangue. Os peixes do rio morreram, as águas do rio
ficaram infectadas e os egípcios não as podiam beber.
E, em vez de água, só havia sangue por todo o Egipto.
Mas tendo...”’
A água que se escoava pelo ralo deixou de ser vermelha
e Sicarius calou-se. A adaga sagrada fora purificada.
Tirou-a de baixo da torneira e secou-a no tallit, o
manto das orações, de modo a garantir a sua pureza
ritual. Depois foi depositar a sica com todo o cuidado
na mala de couro negro e guardou-a no cofre.
Terminado o ritual da purificação da adaga, Sicarius
pegou no telemóvel. Digitou o número e aguardou. Uma
voz de mulher encheu a linha num tom melífluo, embora
monocórdico.
“O número para o qual ligou não está disponível”, disse
a voz. “Por favor, deixe uma mensagem após o sinal.”
Sicarius
olhou
para
o
aparelho
com
irritação.
“Maldição!”, vociferou. “Onde anda ele?”
Ainda esteve à beira de desligar, a exemplo do que
tinha feito nas três tentativas anteriores, mas
reconsiderou a tempo. O mestre tinha destas coisas,
sabia, contendo o ímpeto. Por vezes desaparecia de
circulação por tempo indeterminado e não deixava rasto.
O melhor, decidiu, era mesmo gravar uma mensagem. O
sinal soou ao telefone e começou a gravação. “Mestre”,
disse, hesitante. Oh, como odiava falar para uma
máquina! “A operação foi concluída com sucesso.” Mais
uma pausa, à procura das palavras certas; era difícil
apresentar um discurso fluido quando não tinha ninguém
do outro lado com quem interagir com perguntas e
respostas. “Conforme as ordens que me enviou por e-
mail, não o matei. Apenas o feri.” Vacilou. Deveria
repreender o mestre pelo seu atraso? Sim, no fim de
contas a única coisa que não correra a cem por cento
fora por responsabilidade dele. Porque não deixar-lhe
um remoque sobre o assunto? “A intervenção da polícia
foi um pouco tardia e tive de fazer tempo.” Suspirou.
“Mas enfim, já está.” Uma última pausa. “Aguardo
instruções.” Desligou.
XLIII
Embora Tomás permanecesse deitado na cama do hospital,
a sua atenção deambulou pelo quarto até recair nos
olhos pálidos de Arnie Grossman. Os polícias queriam
perceber a mensagem que o agressor lhe deixara no
quarto do hotel? Pois ele não os iria decepcionar.
“Diga-me uma coisa”, perguntou de chofre. “Qual a
natureza da aliança estabelecida entre Deus e o povo
judaico?”
Apanhado de surpresa pela interpelação, o inspector-
chefe da polícia israelita pestanejou.
“Bem... Deus deu-nos as tábuas da lei”, titubeou.
“Escolheu-nos como o Seu povo e concedeu-nos a Sua
protecção, em troca do nosso respeito pela Sua lei.”
“Se assim é, como explica a destruição do Templo em 70
e as sucessivas perseguições dos judeus, como a
escravidão na Babilónia, a expulsão da Terra Santa e o
Holocausto? Não é afinal Deus que vos garante a Sua
protecção? Como é possível que tanta coisa má vos tenha
sucedido ao longo da história se contam com o favor
divino?”
Confrontado com o paradoxo, Grossman coçou a cabeça
enquanto arquitectava uma resposta.
“Os nossos antigos profetas dizem que o mal sofrido por
Israel resulta da desobediência dos judeus ao Senhor”,
retorquiu por fim. “São os nossos pecados que levam
Deus a punir-nos. Segundo os profetas, se nos tornarmos
devotos, se cumprirmos fielmente a lei e regressarmos
ao caminho do Senhor, Israel renascerá em todo o seu
esplendor.” “Ou seja, o sofrimento é um castigo divino
pelos pecados cometidos pelos judeus.”
“É o que dizem os nossos profetas.”
Tomás lançou um olhar pela janela aos candeeiros
públicos que iluminavam a rua e os edifícios fronteiros
ao hospital, mas foi apenas por um momento, porque logo
a seguir voltou a encarar os dois polícias que o tinham
ido visitar.
“Essa é a explicação tradicional do sofrimento do povo
judaico”, confirmou. “Acontece que, na altura da
revolta dos Macabeus, a repressão intensificou-se e os
judeus foram até proibidos pelos seus opressores de
respeitar a lei. Quem desobedecesse era morto. Essa
proibição criou a convicção entre muitos judeus de que
o seu sofrimento não podia ser explicado como um
castigo de Deus pelos seus pecados. Pois se nem sequer
lhes permitiam respeitar a lei! Por outro lado, e por
mais pias e zelosas no respeito da lei que as pessoas
fossem, continuava a haver sofrimento. A que se devia
isso? Apareceu então uma nova explicação: não era Deus
quem estava a fazer sofrer as pessoas; era o Diabo. O
exílio na Babilónia tinha introduzido na cultura
hebraica a figura de Baalzevuv, ou Belzebu, a quem, com
o tempo, foi atribuído todo o mal do mundo. O Diabo
tomara conta da Terra e era ele o responsável por todo
o sofrimento.”
“Então e Deus?”
“Estava no Céu”, explicou o historiador, apontando para
cima. “Por qualquer razão não muito bem compreendida, o
Senhor permitia que Belzebu reinasse no mundo e fizesse
todo o mal que qualquer ser humano experimentava na
pele ou via em redor. Muitos judeus, embora não todos,
adoptaram assim uma visão maniqueísta da vida, fundada
neste dualismo entre o bem e o mal. Deus liderava as
forças do bem, tinha do seu lado a virtude e a vida, o
bem-estar e a verdade, a luz e os anjos. Belzebu
encabeçava as forças do mal, tinha do seu lado o pecado
e a morte, o sofrimento e a mentira, a treva e os
demónios. Estas duas grandes forças cósmicas submetiam
os seres humanos à sua vontade e as pessoas tinham de
escolher um lado. Ou estavam com Deus ou estavam com o
Diabo. Não havia terra-de-ninguém.” Tomás fez uma pausa
e arregalou os olhos. “Mas, atenção, isso não ia durar
para sempre. O dia chegaria em que Deus desceria à
Terra, destruiria as forças do mal e imporia o seu
reino. Que reino é esse?”
Os olhos de Arnie Grossman estreitaram-se ao reconhecer
a expressão.
“O reino de Deus.”
“Nem mais”, confirmou Tomás. “Algumas seitas judaicas
começaram a acreditar que este dualismo entre o bem e o
mal se estendia também no tempo. O dualismo tornou-se
assim apocalíptico. Nos dias que se viviam imperava o
reino de Belzebu e era isso que explicava a existência
de tanto mal e de tanto sofrimento na Terra. O mundo
vivia mergulhado no reino do Diabo, onde quem mandava
eram os pecadores e os corruptos, aliados de Belzebu.
Os justos e os virtuosos eram reprimidos. Porém, no
final
desta
idade do
mal ocorreria um
grande
acontecimento cataclísmico. Uns achavam que Deus
enviaria um Messias para chefiar a batalha contra o
mal, outros pensavam que o enviado seria uma outra
figura, a quem as Escrituras chamavam o Filho do homem.
Daniel descreveu em 7:13-14 esta visão profética: ‘Vi
aproximar-se, sobre as nuvens do céu, um ser semelhante
a um Filho do homem. Avançou até ao ancião, diante do
qual o conduziram. Foram-lhe dadas soberanias, glória e
realeza. Todos os povos, todas as nações e as gentes de
todas as línguas o serviram. O Seu império é um império
eterno que não passará jamais, e o Seu reino nunca será
destruído.’ Ou seja, na profecia de Daniel o agente de
Deus que viria estabelecer o Seu reino eterno é este
Filho do homem. Mas, fosse através do Messias fosse do
Filho do homem, o facto é que Deus interviria no mundo,
aniquilaria as forças do mal e instalar-se-ia na Terra.
Os mortos seriam ressuscitados e todos os seres humanos
seriam julgados.”
O polícia israelita reconheceu aqui uma das mais
importantes profecias das Escrituras.
“O dia do juízo final.”
“Isso. Depois desse grande julgamento começaria uma
nova era, em que não haveria dor nem sofrimento, não
haveria fome nem guerra, não haveria ódio nem
desespero, e o Senhor reinaria. O reino de Deus.”
Valentina escutou tudo em silêncio, mas já começava a
sentir-se impaciente. Tinha na mão a folha com o enigma
e, aproveitando a pausa, mostrou-a ao historiador.
“Tudo isso é muito bonito”, disse. “Mas qual a
relevância do que está a contar para entender esta
charada?”
Tomás abriu a Bíblia que tinha pousada na cama.
“Não é evidente?”, perguntou. “Esse enigma remete-nos
para o Evangelho segundo Marcos, versículo 1:15. Vou só
reler a frase de Jesus que está citada nesse
versículo.” Afinou a voz. ‘“Completou-se o tempo e o
reino de Deus está perto: Arrependei-vos, e acreditai
na boa nova.’”
Fez-se um súbito silêncio no quarto do hospital. A
frase de Jesus era digerida em todas as suas
implicações e ramificações.
“‘Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto’?”,
repetiu Valentina, tentando extrair um sentido do que
acabara de escutar. “Está a insinuar que Jesus disse
que se completou o tempo de Belzebu e que Deus iria
instituir o seu reino?” Tomás apontou para o versículo.
“É o que está escrito nesta frase, não é?”
“Mas... mas o que quer isso dizer?”
O historiador cravou os olhos na italiana.
“Não é evidente?”, perguntou em tom retórico. “Jesus
era um pregador apocalíptico!” Fez um sinal para a
janela. “Nunca viu lá fora, na rua, aqueles maluquinhos
com grandes barbas e cartazes a dizer Arrependam-se! O
fim está próximo! e outras baboseiras do género? Nunca
viu?” Indicou o pequeno crucifixo de prata ao pescoço
dela. “Pois Jesus era um desses pregadores!”
“Mamma mia!”, escandalizou-se ela. “Como pode afirmar
uma coisa dessas?”
“Mas é verdade!”, insistiu Tomás. “Aliás, a própria
família de Jesus achava que ele não batia bem da
cabeça!” Foi como se tivesse espetado mais uma faca no
belo corpo de Valentina.
“Oh!”, gemeu ela. “Como se atreve? A Virgem... a
Madonna... a santíssima Maria nunca pensou tal coisa do
seu filho! Ela sabia que ele era... especial. Santa
Maria sempre lhe foi muito devota!”
O historiador pôs-se a folhear freneticamente a Bíblia.
“Ai sim?”, devolveu. “Então veja o que está aqui
escrito no Evangelho segundo Marcos.” Identificou o
trecho. “Versículo 3:21: ‘E, quando os seus familiares
ouviram isto, saíram a ter mão n’Ele, pois se dizia:
«Está fora de Si.»’ Levantou os olhos. “Jesus ‘Está
fora de Si’? Era isto o que dele pensavam os seus
próprios familiares, que correram para ‘ter mão n’Ele’?
A família de Jesus achava que ele enlouquecera? Mas o
que vem a ser isto?”
Valentina debruçou-se sobre o livro e leu o versículo
com os seus próprios olhos.
“Bem... quer dizer... nunca tinha reparado neste
trecho.”
“E não era apenas a sua família que o achava ‘fora de
Si’. Os próprios habitantes de Nazaré pensavam o
mesmo.” Adiantou umas páginas. “Ora veja o que Marcos
escreveu em 6:5 quando Jesus voltou a Nazaré e
enfrentou os seus conterrâneos na sinagoga: ‘Jesus
disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria,
entre os seus parentes e em sua casa.»’ Ou seja, Jesus
admite aqui abertamente que os parentes o desprezavam!
E os seus conterrâneos também! E não era apenas em
Nazaré. Em toda a parte por onde passava na Galileia,
as pessoas riam-se do que ele dizia! De tal modo que
Jesus se pôs a ameaçá-las. Citado por Mateus em 11:21,
disse Jesus com grande fúria: ‘Ai de ti, Corozaim! Ai
de ti, Betsaida! Porque, se os milagres realizados
entre vós tivessem sido realizados em Tiro e em
Sidónia, de há muito teriam feito penitência no saco e
na cinza. Aliás, digo-vos Eu, haverá mais tolerância,
no dia do juízo, para Tiro e Sidónia do que para vós. E
tu, Cafarnaum, julgas que serás exaltada até ao Céu?
Serás precipitada no inferno.’” Observou os seus
interlocutores. “Poderá haver coisa mais clara?”
A italiana leu também o trecho do Evangelho, para se
certificar de que era mesmo assim.
“Dio mio!”, exclamou com a mão sobre a boca ao
confirmar a leitura. “Mas porque diabo isto nunca me
foi explicado?”
A pergunta era evidentemente retórica e Tomás nem se
deu ao trabalho de tentar responder. Em vez disso,
folheou de novo o Evangelho segundo Marcos.
“A chegada do reino de Deus constitui, em boa verdade,
o essencial da mensagem de Jesus”, disse. “Não é,
aliás, por acaso que Marcos começa justamente por ela.
O Evangelho segundo Marcos inicia-se com o encontro de
Jesus com João Baptista e o episódio do baptismo no rio
Jordão. É importante lembrar que João andava a gritar
aos sete ventos que vinha aí o reino de Deus e que as
pessoas tinham de se arrepender e lavar os pecados na
água para se purificarem e poderem entrar nesse reino.
Se Jesus foi ter com João Baptista é porque acreditava
nessa mensagem. Segundo Marcos, logo que Jesus é
baptizado, purificando-se dos seus pecados como João
recomendava, dos céus vem uma voz a reconhecê-lo como
‘o Meu Filho muito amado’ e a seguir ele vai para o
deserto passar quarenta dias. Depois regressa à
Galileia e Marcos põe-lhe na boca a frase fatídica do
versículo 1:15, na verdade um mero eco da mensagem
apocalíptica de João Baptista: ‘Completou-se o tempo e
o reino de Deus está perto: Arrependei-vos, e acreditai
na boa nova.’” Indicou com o dedo esta derradeira
expressão. “Pergunto-vos eu: como se diz boa nova em
grego?”
Os dois polícias encolheram os ombros.
“O meu grego anda enferrujado”, gracejou Grossman.
“Evan gelion”, revelou Tomás. “Boa nova diz-se evan
gelion em grego.” Indicou o texto da Bíblia. “O que
significa que é esse o significado profundo e oculto
dos Evangelhos: a boa nova do apocalipse e da
consequente chegada do reino de Deus!” Ergueu as mãos
para o ar e fez um ar alucinado, imitando um pregador
apocalíptico. “Arrependam-se! Arrependam-se e acreditem
na boa nova! O mundo vai acabar e Deus vai impor o Seu
reino!” Readquiriu a fisionomia normal e fitou os seus
interlocutores. “É essa, acreditem ou não, a mensagem
central dos Evangelhos.”
Valentina abanou a cabeça, recusando-se a acreditar.
“Não pode ser!”, murmurou. “Não pode ser!”
“Acha que não? Então diga-me: qual é a oração principal
dos cristãos?”
“É o Pai nosso, claro.”
“Pode recitar-mo?”
“O Pai nosso?”, admirou-se a italiana.
Afinou a voz e começou a entoar a oração como fazia
quando ia à missa aos domingos. “Pai nosso que estais
no Céu, santificado seja o Vosso Nome, venha a nós o
Vosso reino, seja feita a Vossa vontade, assim na Terra
como no Céu.”
“Já reparou no que acabou de dizer?”
“Ora! Estou simplesmente a recitar o Pai nosso...”
“Sim, mas já viu o que disse? ‘Pai nosso que estais no
Céu’? Ele não está na Terra? Então quem está na Terra?
O Diabo, claro. ‘Venha a nós o Vosso reino’? Que reino
é esse? O reino de Deus, é evidente. A oração pede que
esse reino venha a nós. ‘Seja feita a Vossa vontade,
assim na Terra como no Céu’? Seja feita a vontade de
Deus na Terra? Isso significa que ela ainda não está a
ser feita na Terra? Por enquanto só está no Céu?”
Valentina pareceu ficar confusa.
“É curioso, nunca tinha reparado nisto.”
“O Pai nosso, oração central do cristianismo, é na
verdade uma oração apocalíptica! São os judeus a
implorar a Deus que desça à Terra para impor ‘a Vossa
vontade’! Vontade que ainda não reina na Terra, uma vez
que o mundo está, lembro-o, nas mãos de Belzebu.”
“Mamma mia! Da próxima vez que rezar vou prestar mais
atenção ao que digo!...”
“Jesus até descreve em pormenor como será o dia em que
se desencadeará o acontecimento apocalíptico que
prenuncia a chegada da nova era, que Marcos e Lucas
chamam o reino de Deus e Mateus reino dos Céus”,
acrescentou. “Vejam o que diz Jesus, citado por Marcos
em 13:24-27: ‘Mas nesses dias, depois daquela aflição,
o Sol escurecer-se-á e a Lua não dará a sua claridade,
as estrelas cairão do céu e as forças que estão nos
céus serão abaladas. Então verão vir o Filho do Homem
sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele enviará
os Seus anjos e reunirá os Seus eleitos, dos quatro
ventos, da extremidade da Terra à extremidade do céu.’”
Encarou os seus interlocutores. “O que Jesus está aqui
a fazer é a elaborar a visão profética de Daniel nas
Escrituras.”
Arnie Grossman, que por ser judeu estava familiarizado
com o Antigo Testamento, anuiu.
“Evidentemente.”
“Deus instalará então o Seu reino na Terra. Quais as
consequências sociais desse grande acontecimento?”
“Acabam-se as desigualdades”, sentenciou Valentina.
“Deixa de haver ricos e pobres, poderosos e oprimidos,
fortes e fracos.”
Tomás abanou a cabeça.
“Não.”
A negativa surpreendeu a italiana.
“Não?”
O historiador fez uma pausa, para obter efeito
dramático. “Ocorre a inversão de papéis!”
“A inversão como? O que quer dizer com isso?”
“Quem manda agora no mundo é Belzebu, não é verdade?
Quem são os agentes de Belzebu? Os que têm vantagem
neste mundo: os poderosos, os ricos, os corruptos. Como
o Diabo manda na Terra, obrigatoriamente qualquer
pessoa que agora tenha poder é, por definição, um seu
agente. E onde estão os agentes de Deus? Estão sob a
bota dos agentes de Belzebu. Quem são eles? Os pobres,
os oprimidos, os indefesos. Então o que vai acontecer
quando o Reino de Deus se estabelecer na Terra?
Invertem-se os papéis!”
“O que entende por inversão dos papéis?”, questionou
Valentina. “Os fracos tornam-se fortes?”
“E os fortes tornam-se fracos e são submetidos e
humilhados.”
“Mas a mensagem cristã é uma mensagem igualitária!”,
protestou ela. “Ninguém se submete a ninguém!...”
Tomás voltou-se para o seu exemplar da Bíblia.
“Quem vai responder a essa sua observação não sou eu,
mas o próprio Jesus”, retorquiu. “Citado por Marcos em
10:31, disse Jesus: ‘Muitos dos primeiros serão os
últimos, e os últimos, primeiros.’ Citado por Lucas em
6:24-25, disse Jesus: ‘Mas ai de vós, os ricos, porque
recebestes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais
agora fartos, porque haveis de ter fome.’ Citado por
Marcos em 9:35, disse Jesus: ‘Se alguém quiser ser o
primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de
todos.’ Escreveu Mateus em 19:23-24: ‘Jesus disse
então, aos discípulos: «Em verdade vos digo que
dificilmente entrará um rico no reino dos céus.»
Replico-vos: «É mais fácil passar um camelo pelo fundo
de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus.»
E sobre o dia do juízo, quando o Filho do Homem descer
do Céu e se sentar no seu trono para julgar a
humanidade e mandar os poderosos para a esquerda,
escreveu Mateus em 25:41-43: ‘Em seguida dirá aos da
esquerda: «Afastai-vos de Mim, malditos, para o fogo
eterno que está preparado para o diabo e para os seus
anjos. Porque tive fome e não Me destes de comer; tive
sede e não Me destes de beber; era peregrino e não Me
recolhestes; estava nu, e não Me vestistes, enfermo e
na prisão, e não fostes visitar-Me.’ Escreveu ainda
Mateus em 13:40-43, citando Jesus: ‘Assim, pois, como o
joio é colhido e queimado no fogo, assim será no fim do
mundo: O Filho do Homem enviará os Seus anjos que hão-
-de tirar do Seu reino todos os escandalosos e todos
quantos praticam a iniquidade, e lançá-los-ão na
fornalha ardente; ali haverá choro e ranger de
dentes.’”
“C’os diabos!”
O historiador encarou a italiana.
“Está a perceber a verdadeira mensagem de Jesus? Aos
poderosos disse: ‘Haveis de ter fome’! Acrescentou que
‘É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino dos céus’! Explicou que
serão ‘servos de todos’! Chamou-lhes ‘malditos’ e
anunciou-lhes que iriam ‘para o fogo eterno que está
preparado para o diabo’! Não contente com isso,
insistiu que seriam lançados ‘na fornalha ardente’,
onde haveria ‘choro e ranger de dentes’!” Estreitou as
pálpebras. “Não me parece uma mensagem muito cristã,
compassiva e igualitária, pois não?”
Apanhada
completamente
de
surpresa
por
estes
versículos, Valentina estava de boca aberta.
“Mas... mas...”, gaguejou, desconcertada. “Jesus disse
que déssemos a outra face! Disse que amássemos os
inimigos! Disse ou não disse? Isso não é uma mensagem
igualitária?”
“Não, minha cara”, respondeu Tomás. “Quando ele diz que
demos a outra face e amemos os inimigos não está a
transmitir uma mensagem igualitária mas uma mensagem de
inversão de papéis. Não se esqueça que ‘Muitos dos
primeiros serão os últimos, e os últimos, primeiros’.
Quem são os últimos? São os que estão cá em baixo. Os
pobres, os oprimidos. Citado por Mateus em 5:3-10,
disse Jesus no Sermão da Montanha: ‘Bem-aventurados os
pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.
Bem-aventurados os que choram porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,
porque
serão
saciados.
Bem-aventurados
os
misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. Bem-
aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados
filhos
de
Deus.
Bem-aventurados
os
que
sofrem
perseguição por causa da justiça, porque deles é o
reino dos Céus.”’
“Então os poderosos não podem fazer nada para se
manterem poderosos no reino de Deus...”
“Claro que podem. Podem fazer muito, até.”
“Podem fazer o quê?”
“Para começar, têm de se arrepender dos seus pecados.
Essa era a mensagem de João Baptista que Jesus abraçou,
confirmando o arrependimento como o procedimento
principal. Citado por Lucas em 15:7, Jesus disse:
‘Digo-vos Eu: Haverá mais alegria no Céu por um só
pecador que se arrepende do que por noventa e nove
justos que não necessitam de arrependimento.’ Ele põe
os pecadores arrependidos à frente das pessoas que não
pecam! Isto faz sentido na lógica da inversão de
papéis, em que os primeiros passam para últimos e os
últimos para primeiros.”
“Quer dizer que o arrependimento é a melhor forma de
alcançar o reino de Deus?”
“Para Jesus, sim. Mas os poderosos também podem
despojar-se e tornar-se fracos e ajudar os fracos. Não
se esqueça, repito, que haverá inversão de papéis.
Citado por Lucas em 18:14, disse Jesus: ‘Aquele que se
exalta será humilhado, e quem se humilha será
exaltado.’ Assim sendo, os fracos tornar-se-ão fortes.
Como pode uma pessoa ficar poderosa no reino de Deus?
Despojando-se e tornando-se fraca e humilhando-se no
reino de Belzebu. Citado por Marcos em 8:35, disse
Jesus: ‘Porque quem quiser salvar a sua vida perdê-la-
-á, e quem perder a sua vida por Mim e pelo Evangelho
salvá-la-á.’
E
por
isso
que
Jesus
insiste
na
necessidade de os seus seguidores se despojarem, se
tornarem escravos dos outros e dedicarem a vida aos
fracos. A humilhação vai ao ponto de o humilhado ter de
amar o seu inimigo.”
“Mas isso é humildade!...”
O historiador apontou para a Bíblia.
“Não”, exclamou. “O que está aqui escrito parece-nos,
hoje, a apologia da humildade. No entanto, no sentido e
no contexto em que Jesus proferiu estas palavras, não
estava a recomendar a humildade pelo simples desejo de
fazer o bem. Ao contrário do que agora possa parecer,
não se tratava de um acto puramente altruísta,
generoso, desinteressado e inocente. Pelo contrário,
havia aqui um projecto de poder muito claro. A
humildade praticada hoje era uma forma de as pessoas se
tornarem poderosas mais tarde e subjugarem as que agora
eram poderosas e mais tarde iriam ficar fracas.
Mais tarde quando? No momento em que se estabelecesse o
reino de Deus, claro.”
“Desculpe, mas não é bem assim”, argumentou Valentina,
que se recusava a aceitar aquela leitura. “O projecto
era altruísta e generoso e desinteressado porque se
tratava de algo a longo prazo. As pessoas iam ajudar as
outras durante muito e muito tempo, até porque o reino
de Deus não surge de um momento para o outro, não é
verdade? Vai levar imenso tempo a...”
“Amanhã.”
A italiana pestanejou.
“Perdão?”
Tomás fitou-a com intensidade, para sublinhar o
significado das suas palavras.
“O reino de Deus irá ser instituído já amanhã.”
XLIV
Acesa em mil pontos luminosos como uma grandiosa árvore
de Natal, Jerusalém à noite era quase uma cidade como
outra qualquer. Quase. A cúpula dourada do rochedo,
erguida pelos muçulmanos no topo do monte Moriah e
brilhante como um enorme farol entre a miríade de
luzinhas laranja e brancas que cintilavam tremulamente
na escuridão, servia para recordar a quem a olhasse que
aquela cidade não era como as outras.
Sicarius sabia-o melhor do que ninguém. Sentado diante
da janela enquanto aguardava notícias do mestre, ia
ruminando o significado profundo da maldita cúpula que
refulgia diante dos seus olhos. Ah, não havia dúvida:
aquilo era um insulto à memória dos seus antepassados!
Como ignorar a afronta? Fora justamente ali, no alto do
Moriah e por baixo daquela cúpula usurpadora, que
Abraão oferecera o seu filho ao sacrifício; fora também
no cimo daquele monte que Salomão erigira o seu Templo
e Herodes o reconstruíra; e fora ainda ali que se
levantara o santo dos santos, precisamente no local da
cúpula, o sítio do sacrifício de Abraão, a câmara onde
Deus bendito, Ele próprio, deambulava na Terra. Mas o
destino tinha destas coisas. Os Romanos destruíram o
Templo e os muçulmanos ergueram ali a sua cúpula. Dois
escarros na face dos judeus.
Mas a hora aproximava-se. Olho por olho, dente por
dente. A justiça de Deus era inexorável. Ah, o mundo
iria enfim perceber a verdade! E ele, Sicarius, tinha a
suprema honra de ser o punho de Deus, o instrumento da
vontade divina, a sica que os filhos devolveram à mão
do Pai.
Ergueu-se de repente e virou as costas à janela,
irritado com a imagem provocatória da cúpula dourada.
Vê-la era mais do que podia suportar. Ardendo de
impaciência, pegou novamente no telemóvel e voltou a
digitar o número do mestre. Tocou duas vezes e entrou
em gravação.
“O número para o qual ligou não está disponível”, disse
a voz feminina. “Por favor, deixe uma mensa...”
Desligou antes que a gravação terminasse e, em
frustração, atirou o telemóvel para o tapete.
“Por onde anda ele?”, rugiu. “Recolheu-se para o seu
retiro logo numa altura destas? Enlouqueceu?”
Nada daquilo fazia sentido. Respirou fundo e, já mais
controlado, foi apanhar o telemóvel e verificou se
tinha ficado avariado. Estava a funcionar. Deu duas
voltas diante da janela, mas desta feita evitou fitar a
irritante cúpula dourada no topo do monte Moriah, que
parecia ter sido ali plantada de propósito para
enxovalhar os filhos de Deus.
De repente teve uma ideia.
E a Internet? Deu uma palmada na testa. Como diabo não
se tinha ainda lembrado da Internet? Foi buscar o seu
computador portátil e ligou-o. Aguardou pacientemente
que as configurações se estabelecessem e as ligações
ficassem concluídas. Levou uns três minutos, mas acabou
por entrar no seu endereço electrónico e foi directo à
inbox. A mensagem estava lá.
Clicou na linha e o conteúdo encheu-lhe o ecrã.
Sicarius,
Correu tudo bem.
Houve apenas um atraso a passar o alerta, porque a
operadora da polícia levou algum tempo a convencer.
Vou permanecer incomunicável durante algum tempo, mas
quero-te a vigiar a fundação. Quando vires o alvo em
movimento, segue-o discretamente até onde ele te levar.
A hora está a chegar.
Quero-te a vigiar a fundação? Quando vires o alvo em
movimento, segue-o discretamente?
Sicarius desligou o computador e foi ao cofre buscar a
mala de couro negro onde havia guardado a sica.
Tinha uma nova missão.
XLV
“Amanhã?”, interrogou-se Valentina, verificando no
relógio o dia em que estavam. “Que quer dizer com
amanhã?” Tomás riu-se.
“Quando digo que o reino de Deus vai ser instituído
amanhã, não é na perspectiva de hoje”, esclareceu. “É
na perspectiva do tempo de Jesus. Ele achava que o
reino de Deus estava mesmo à beira de ser estabelecido,
o que devia acontecer ainda no seu tempo de vida.”
“Oh, que disparate! Ele nunca disse tal coisa!”
O historiador abriu de novo a Bíblia na primeira página
do Evangelho segundo Marcos.
“Ai não? Leia de novo o versículo 1:15 de Marcos, que o
meu agressor indicou na charada que deixou no meu
quarto”, sugeriu, descendo os olhos até ao texto.
‘“Completou-se o tempo e o reino de Deus está perto:
Arrependei-vos, e acreditai na boa nova.”’ Fitou a sua
interlocutora. “Jesus está aqui a dizer que o tempo se
completou! Está a dizer que o reino de Deus está perto!
É essa a boa nova! Percebe?”
A italiana fez com a mão um gesto no ar.
“Perto, perto... o que é isso? Perto é uma palavra
muito vaga! Tudo depende da perspectiva, não é? Na
perspectiva humana, um milhão de anos é muito, mas na
perspectiva do universo não é nada!...”
“Perto quer dizer iminente”, esclareceu Tomás. “Jesus
achava que o estabelecimento do reino iria acontecer a
todo o instante. Amanhã, no próximo mês, daqui a um ou
dois anos. Citado por Marcos em 9:1, disse Jesus aos
seus discípulos: ‘Em verdade vos digo que alguns dos
que estão aqui presentes não experimentarão a morte sem
ter visto chegar o reino de Deus com todo o Seu
poder.’”
Encarou
os
seus
interlocutores.
“Isto
significa que Jesus disse aos discípulos que alguns
deles estariam vivos quando o reino de Deus fosse
instituído!” Virou três folhas. “Essa mensagem é
reforçada mais à frente por Jesus, citado por Marcos em
13:30: ‘Em boa verdade vos digo: Não passará esta
geração sem que todas estas coisas aconteçam.’ Ou seja,
a chegada do reino de Deus estava iminente. Jesus
sugeriu mesmo que a Terra é a casa de Deus, o dono
ausente que estava prestes a regressar. Citado por
Marcos em 13:35-37, disse Jesus: ‘Vigiai, pois, porque
não sabeis quando virá o dono da casa, se à tarde, se à
meia-noite, se ao cantar o galo, se pela manhã; não
seja que, vindo inesperadamente, vos encontre a dormir.
O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!”’
Valentina parecia desconcertada.
“Isso é mesmo assim?”
O académico português indicou a sua Bíblia.
“É o que está aqui escrito!”, exclamou. “Leia você
mesma, se duvida! Quando Jesus foi julgado pelo
sinédrio que supostamente o condenou à morte, por
exemplo, Marcos cita-o em 14:62 a profetizar o seguinte
ao sumo sacerdote: ‘Vereis o Filho do Homem sentado à
direita do Poder.’” Fez uma careta. “‘Vereis’? Jesus
considerava que a chegada do Reino de Deus estava de
tal modo iminente que profetizou que o próprio sumo
sacerdote, que já devia ter alguma idade, ainda estaria
vivo quando isso acontecesse!”
“Mas o que levava Jesus a pensar que o reino de Deus
estava prestes a chegar?”
“Achava que havia sinais nesse sentido. Citado por
Marcos em 4:11, disse Jesus aos discípulos: ‘A vós é
dado conhecer o mistério do reino de Deus, mas aos que
estão de fora, tudo se lhes propõe em parábolas, para
que ao olhar, olhem e não vejam, ao ouvir, oiçam e não
compreendam, não vão eles converter-se e ser-lhes
perdoado.”’ Estreitou as pálpebras e baixou a voz,
quase num aparte. “Interessante, não é? Jesus, o
profeta do perdão, a mostrar receio de que as pessoas
‘de fora’ percebessem a sua mensagem e se convertessem
a ela, sendo assim perdoadas. Para o evitar, escolheu
explicar as coisas por parábolas. Numa delas compara
Deus com um camponês que espalha sementes pela terra.
Algumas dessas sementes já estavam a produzir frutos.
Esses frutos eram os primeiros sinais da chegada do Seu
reino.”
“Já havia sinais? Quais?”
“Olhe, as curas milagrosas. Os judeus apocalípticos
acreditavam que as doenças eram obra de Belzebu. Mas
como Jesus era um curandeiro e exorcista com capacidade
de curar as pessoas, acreditava que esses seus poderes
constituíam um primeiro sinal da intervenção de Deus,
em cujo reino não havia doenças. Daí a importância
deste episódio relatado por Mateus em 11:2 a propósito
de João Baptista: ‘Ora, João, no cárcere, ouvira falar
das obras de Cristo. Enviou-lhe os seus discípulos com
esta pergunta: «És Tu aquele que há-de vir ou devemos
esperar outro?» Jesus respondeu-lhes: «Ide contar a
João o que vedes e ouvis: Os cegos vêem e os coxos
andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos
pobres.»’ Ou seja, Jesus interpreta essas curas
milagrosas como um sinal da chegada do reino de Deus.
Belzebu era o responsável pelas doenças existentes no
mundo, mas os cegos já viam e os coxos já andavam. Não
era isto a prova de que Deus estava a começar a
intervir na Terra?”
Valentina abanou a cabeça.
“E esta?”, exclamou. “Sempre pensei que Jesus era, para
além do Messias e de Deus Filho, um grande professor de
ética, que nos ensinava a viver de uma forma justa e
pacífica. O que me está a dizer é totalmente novo.”
“Jesus ensinava uma ética”, admitiu Tomás. “Mas não era
uma ética a longo prazo. Não haveria longo prazo,
porque ele achava que o mundo estava prestes a mudar
radicalmente. A ética que ele ensinava era para as
pessoas melhor se adaptarem ao mundo novo que surgiria
a todo o instante, o paradisíaco reino de Deus, onde as
injustiças, a fome, a doença e o sofrimento dos fracos
acabariam, e onde os fortes que não se arrependessem
seriam punidos. Uma vez que haveria inversão de papéis,
pediu às pessoas que se despojassem dos bens materiais
que possuíam e se empenhassem em ajudar os outros, para
depois serem recompensadas no novo reino. Marcos conta
que um homem rico foi ter com Jesus e lhe disse que
respeitava todos os mandamentos, não tendo morto
ninguém, nem roubado, nem cometido adultério nem feito
qualquer outra coisa ofensiva. Como deveria proceder
então?” O historiador folheou a Bíblia. “A resposta de
Jesus vem em 10:21: ‘Falta-te apenas uma coisa: Vai,
vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás
um tesouro no Céu; depois, vem e segue-Me.’ Quando o
rico se recusou a desfazer-se da sua fortuna, Jesus
observou: ‘Quão dificilmente entrarão no reino de Deus
os que têm riquezas!’” Encarou os dois polícias. “Ou
seja, o que está no centro da ética de Jesus é a
preparação para o reino de Deus. Esta ética implicava o
arrependimento e o despojamento. Mais ainda, a
insistência no despojamento era tal que ele até queria
que as pessoas abandonassem as suas famílias!”
“Ah, isso não!”, protestou a italiana. “Isso nunca!
Jesus defendia a família!”
“Acha que sim?”
“Toda a gente sabe!”
Tomás voltou a atenção de novo para a sua Bíblia.
“Então veja o que está aqui escrito”, sugeriu. “Citado
por Lucas em 12:51, disse Jesus: ‘Julgais que Eu vim
estabelecer a paz na Terra? Não, digo-vo-lo Eu, foi
antes a divisão. Porque daqui por diante estarão cinco
divididos numa só casa: Três contra dois e dois contra
três; dividir-se-ão o pai contra o filho e o filho
contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a
mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra.’”
Fitou Valentina. “Poderia Jesus ser mais claro do que
isto? Na verdade, incita as pessoas a abandonarem as
suas famílias! Citado por Mateus em 10:34-37, disse
Jesus: ‘Não penseis que vim trazer a paz à terra; não
vim trazer a paz, mas a espada. Porque vim separar o
filho do pai, a filha da sua mãe e a nora da sogra; de
tal modo que os inimigos do homem serão os seus
familiares. Quem amar o pai ou a mãe mais do que a Mim,
não é digno de Mim. Quem amar o filho ou a filha mais
do que a Mim, não é digno de Mim.’ Citado por Marcos em
10:29, disse Jesus: ‘Em verdade vos digo: Quem tiver
deixado a casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, os filhos ou
campos por Minha causa e por causa da Boa Nova,
receberá cem vezes mais agora, no tempo presente, em
casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, juntamente
com perseguições, e no tempo futuro a vida eterna.
Muitos dos primeiros serão os últimos. E os últimos,
primeiros.’”
Sendo judeu, Arnie Grossman permaneceu calado até aí.
Neste ponto não conseguiu reprimir um sorriso.
“Parece um político em campanha eleitoral”, gracejou.
Abriu as mãos como se falasse diante de uma multidão de
eleitores durante um comício. “Sigam-me! Votem em mim!
Prometo-vos o Paraíso!”
O chiste pareceu adequado a Tomás, mas o português
preferiu
não
o
comentar
para
não
ferir
as
susceptibilidades de Valentina.
“Para Jesus, a família e a actual ordem social não
interessavam para nada”, sentenciou o historiador. “O
fim do reino de Belzebu estava a chegar e em breve tudo
seria posto em causa. O que interessava era as pessoas
prepararem-se para o novo mundo, o reino de Deus que aí
vinha. Havia que subverter tudo. Citado por Marcos em
2:22, disse Jesus: ‘Ninguém deita vinho novo em odres
velhos; se o fizer, o vinho acabará por romper os odres
e perder-se-á o vinho juntamente com os odres. Mas o
vinho novo deita-se em odres novos!’”
A italiana levantou a mão, como se o quisesse travar.
“Espere aí! Espere aí!”, ordenou. “Parece-me que você
está a misturar alhos com bugalhos! Quando Jesus falava
no reino de Deus, era tudo metafórico e simbólico!”
“Está enganada!”, respondeu Tomás. “Isso é a conversa
que surgiu mais tarde para tentar explicar o facto de o
reino previsto por Jesus nunca ter aparecido. Mas o
reino de que ele falava não era simbólico nem
metafórico. Era um sítio real. Era a Terra transformada
no Paraíso porque o seu dono, Deus, regressara enfim e
pusera termo às iniquidades de Belzebu. O reino de Deus
era um reino físico, com leis e pessoas de carne e osso
a governá-lo.”
“O quê?”, admirou-se Valentina. “Onde está tal coisa
escrita?”
Sem surpresa, a atenção do historiador regressou ao
exemplar da Bíblia que tinha nas mãos.
“Quantos apóstolos havia?”, perguntou.
“Essa é fácil. Doze, toda a gente sabe.”
“Vamos enumerá-los”, sugeriu Tomás, sinalizando cada
nome com um dedo. “Simão Pedro, André, Tiago e João,
filhos de Zebedeu, Filipe, Bartolomeu, Tomé, Mateus,
Tiago filho de Alfeu, Tadeu, Simão, Natanael, Judas
irmão de Tiago, Judas filho de Tiago e Judas
Iscariotes. Dá quinze nomes.” “Quinze? Mas eles eram
chamados os doze...”
“Pois eram. No entanto, somando todos os nomes dados
pelos diversos evangelistas, temos quinze. E Lucas
escreve em 10:1: ‘Depois disto, o Senhor designou
outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a
dois, à Sua frente, a todas as cidades e lugares aonde
ele havia de ir.’ Quer dizer, aqui ainda aparecem mais
setenta e dois! O que suscita uma pergunta: se os
apóstolos não eram doze, por que razão eram chamados os
doze?”
A italiana fez um olhar opaco.
“Não sei.”
O historiador voltou-se para o silencioso Arnie
Grossman.
“Que significado tem o número doze para os judeus?”
“São as doze tribos de Israel”, disse o inspector-chefe
da polícia israelita sem hesitar. “Quando a Assíria
conquistou o reino do Norte, Israel perdeu dez dessas
tribos. Só ficaram duas. O nosso sonho é reconstituir
Israel, juntando as dez tribos perdidas às duas que
ficaram.”
“Estão a perceber agora a relevância de serem doze
apóstolos? Sendo judeu, Jesus queria reconstituir
Israel. Ele acreditava que o velho sonho judaico se
realizaria no reino de Deus!”
Valentina torceu o nariz.
“Ora, isso é especulação sua! Em parte alguma está tal
tolice escrita!”
Tomás folheou mais uma vez a sua Bíblia.
“Está enganada”, disse. “O Evangelho segundo Mateus
narra um episódio curioso. Trata-se de uma conversa
entre Jesus e os seus discípulos, descrita em 19:27-28:
‘Tomando a palavra, Pedro disse-Lhe: «Nós deixámos tudo
e seguimos-Te, qual será a nossa recompensa?» Jesus
respondeu-lhes: «Em verdade vos digo: No dia da
renovação, quando o Filho do Homem Se sentar no Seu
trono de glória, vós, que me seguistes, sentar-vos-eis
em doze tronos para julgardes as doze tribos de
Israel.»’ Ou seja, cada discípulo iria governar uma das
tribos de Israel. Eram doze apóstolos para doze tribos.
Ao falar nas doze tribos, Jesus acreditava claramente
que os novos tempos que se aproximavam permitiriam
recuperar as dez tribos perdidas e recriar Israel na
sua íntegra. Isso é confirmado nos Actos dos Apóstolos,
em 1:6, quando, depois de um trecho sobre o reino de
Deus, os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Senhor, é
agora que vais restaurar o reino de Israel?’ Isto
confirma que a restauração de Israel fazia parte da
visão de Jesus. O reino de Deus não era, pois, um
conceito meramente metafórico, mas uma realidade
política palpável!”
Os ombros de Valentina descaíram, como se o pilar que
os sustinha tivesse desabado, e ela respirou fundo.
“Pronto, está bem”, murmurou, vencida. “Já percebi.”
Grossman ergueu no ar o papel com o enigma deixado pelo
agressor do português e acenou com ele.
“Esperem aí! Onde é que isso nos deixa? O que queria o
tipo dizer-nos com esta chachada?”
“Ao chamar a nossa atenção para o versículo 1:15 do
Evangelho segundo Marcos”, disse Tomás, “o assassino
enviado pelos sicarii quis sublinhar quem era o
verdadeiro Jesus: um rabino com artes de curandeiro e
exorcista que acreditava que o mundo ia mudar a
qualquer momento e que Deus iria instituir o Seu reino
na Terra e repor a soberania de Israel.”
“E é tudo?”
O português
mordeu o
lábio
inferior,
como se
considerasse se deveria ou não dizer tudo.
“Pode ser que haja mais.”
“Mais, o quê?”
Tomás olhou para a sua mão engessada, como se se
quisesse assegurar de que o tratamento havia sido
adequadamente administrado. Tinha ainda os dedos sujos;
era sangue seco que ficara encravado nas unhas que
espreitavam do gesso.
“Jesus não fundou o cristianismo.” Acariciou a capa da
Bíblia e evitou olhar para a italiana. “A sua mensagem
nem sequer era destinada a toda a humanidade.”
Valentina encarou-o com um olhar incrédulo.
“O quê?!”
Só nesse instante ganhou coragem para a fitar nos
olhos. “Jesus discriminava as pessoas.”
XLVI
O rugido ressoou pelas pedras do Bairro Judeu antes de
um poderoso farol dar entrada na pequena rua, como um
unicórnio ameaçador. Tratava-se de uma moto japonesa de
grande potência, larga e de um negro luzidio, com tubos
de escape cromados que pareciam verdadeiros canos de
canhões. O homem que a pilotava vinha também vestido de
preto, um vulto fantasmagórico a cavalgar a máquina de
aço.
A moto abrandou a marcha e percorreu devagar a rua
sombria,
como
uma
pantera
a
ronronar
enquanto
espreitava as ameaças dissimuladas na treva, ela
própria uma ameaça à espera do menor pretexto para o
ataque. Mas não houve ataque. Em vez disso, a máquina
imobilizou-se a uma esquina e o piloto desligou o motor
e apeou-se. A tranquilidade regressou à ruela,
mergulhada no sono solto da noite.
O recém-chegado abriu um pequeno saco que trazia às
costas e retirou do interior uma longa túnica, velha e
esburacada, de textura áspera, como a da serapilheira.
O piloto vestiu a túnica e, já transformado num monge,
o rosto escondido na penumbra da capa, caminhou dez
metros e afastou-se da moto, agora um monstro
silencioso e adormecido.
O vulto esquivo escolheu uma casa antiga, num canto
obscurecido, ao qual a luz dos candeeiros públicos não
chegava, e verificou se dali tinha a visão desimpedida
para a entrada do edifício no outro lado da rua. O
edifício era ornado por uma placa dourada que anunciava
a instituição instalada no seu interior.
A Fundação Arkan.
Pareceu-lhe perfeito. O homem envolvido na túnica
recuou dois passos e sentou-se num degrau diante da
porta da casa antiga mesmo em frente da fundação, a sua
presença encoberta pelo manto inescrutável da noite.
O desconhecido percorreu a rua longamente com o olhar,
detendo-se
nos
pormenores,
mesmo
nos
mais
insignificantes. Queria ter a certeza de que nada lhe
escapava. Os detalhes eram o mais importante, sabia.
Havia até quem dissesse que Deus se escondia neles,
embora o recém-chegado achasse que era antes Belzebu.
Mas a rua permanecia calma, as casas mergulhadas no
sono, os passeios desertos.
Ao fim de alguns minutos de inspecção cuidadosa, o
homem descontraiu pela primeira vez. Inseriu a mão no
saco e retirou o seu velho exemplar das Sagradas
Escrituras. Tinha talvez muito tempo diante dele. Mais
valia ocupá-lo com Deus. Abriu o livro e folheou-o com
desvelo até se deter nos Salmos.
“Senhor, ouvi a minha prece, e chegue até Vós o meu
clamor”, entoou num sussurro quase inaudível. “Não me
oculteis o Vosso rosto no dia da minha angústia;
inclinai para mim o Vosso ouvido, no dia em que Vos
invocar apressai-Vos a responder-me. Porque os meus
dias esvanecem-se como o fumo, e os meus ossos ardem
como um braseiro.”
Calou-se e ergueu os olhos, verificando a entrada da
fundação. Tudo parecia tranquilo. Inspeccionou de novo
a rua. Nada se passava. Respirou fundo, enchendo-se de
paciência. Um soldado de Deus tinha de estar preparado
para tudo, mas a hora ainda não chegara. Baixou de novo
o olhar para o texto e, os lábios movendo-se como se
soprassem, retomou a leitura dos versículos sagrados.
Sicarius sabia que teria ainda de esperar.
Mas não muito.
XLVII
“Jesus discriminava as pessoas?”
Arnie Grossman tinha ido à janela do quarto do hospital
e espreitava Jerusalém à noite. Era tarde, mas a
descodificação do último enigma ainda não estava
concluída.
“Claro”, respondeu Tomás, deitado ainda na sua cama.
“Lembre-se que ele nasceu judeu, viveu judeu, morreu
judeu. Achava que pertencia ao povo eleito.”
O inspector-chefe da polícia israelita voltou-se e
encarou-o.
“Isso já nos explicou”, disse. “Mas sejamos razoáveis.
O cristianismo espalhou-se pelo mundo. Que história é
essa de que Jesus discriminava as pessoas? Não é o
cristianismo uma religião universalista?”
Tomás indicou com a cabeça o enigma rabiscado no papel
que se encontrava nas mãos de Grossman.
“Sabe, as consequências últimas da charada que o meu
agressor nos deixou remetem-nos directamente para a
fundação do cristianismo.”
“Em que sentido? Não percebo.”
O historiador suspirou, como se ganhasse fôlego para a
sua derradeira explicação.
“Proponho que façamos uma viagem no tempo”, disse,
indicando a cidade para além da janela. “Recuemos dois
mil anos. Estamos em Jerusalém algures entre o ano 30 e
o ano 33. É a semana do Yom Kippur, o dia da expiação,
no mês de Tishri. A cidade enche-se de judeus que
vieram de toda a parte para oferecer um sacrifício no
Templo em expiação pelos seus pecados, como requerido
pelas Escrituras. Os Romanos reforçam a guarnição,
porque sabem que o potencial para tumultos é elevado.
Também os sacerdotes do Templo se mostram vigilantes,
conscientes de que o clima com tanta gente junta é
sempre volátil. Entre os peregrinos aparece um grupo
acabado de chegar da Galileia.”
“Jesus e os seus apóstolos.”
“Ou seja, um bando de provincianos. Acreditam, como
acreditavam outros judeus na altura, que o fim do mundo
está próximo e Deus em breve intervirá para impor a Sua
lei e acabar com o sofrimento dos mais fracos. Até ali,
este grupo apenas teve palco nas terriolas da Galileia
e foi rejeitado pelos pacóvios que ali viviam. Como
eram cegos aqueles labregos! Jerusalém no Yom Kippur,
porém, é a sua grande oportunidade. A cidade fervilha
de gente. São mais de dois milhões de judeus oriundos
de toda a Judeia. Que melhor palco poderia haver para
alertar
as
pessoas
para
a
necessidade
de
se
arrependerem dos seus pecados e de se prepararem para a
nova idade de ouro?”
Valentina, que se remetera ao silêncio depois de ouvir
as últimas revelações, animou-se neste ponto. A
história da última semana de Jesus era uma das suas
favoritas.
“Ele entrou em Jerusalém sentado num jumento, não foi?”
“É o que contam os Evangelhos”, confirmou Tomás. “O
profeta Zacarias escreveu no Antigo Testamento, em 9:9:
‘Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de
júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti:
ele é justo e vitorioso, humilde, montado num jumento.’
Assim, ou Jesus entrou em Jerusalém montado num jumento
para insinuar que era o rei profetizado nas Escrituras,
ou os evangelistas inventaram este pormenor para
convencer os seus contemporâneos de que Jesus preenchia
os requisitos da profecia. Nunca saberemos com
exactidão qual a verdade, embora tenhamos a certeza de
que este pormenor está relacionado com o texto de
Zacarias.”
“Estou a entender”, assentiu a italiana. “Mas depois
vem a história do Templo.”
“Sim, Jesus cria um incidente no Templo e põe-se a
profetizar a sua destruição, atraindo os olhares das
autoridades. A seguir é preso, julgado, condenado à
morte e crucificado. Toda essa história é por demais
conhecida.”
“E então?”
“O que é importante já não é o que sucede a Jesus, mas
a forma como os seus apóstolos interpretam esses
acontecimentos.”
Valentina sacudiu a cabeça.
“Não estou a perceber...”
“Ponha-se no lugar dos apóstolos. Estamos a falar de
pescadores e artesãos analfabetos da Galileia, que
largaram tudo e decidiram seguir este rabino que os
assustava com o anúncio do fim do mundo e lhes prometia
a salvação se o seguissem e fizessem o que ele lhes
dizia. O rabino prometia-lhes mesmo que cada um deles
iria chefiar uma das doze tribos de Israel quando o
reino de Deus fosse instaurado e os últimos, isto é,
eles próprios, se tornassem primeiros. Era gente pobre,
inculta e crédula. Acreditavam que o rabino, que viram
fazer curas milagrosas, gozava da protecção divina e
dizia a verdade. Podia mesmo ser o enviado de Deus! E
por isso seguiram-no. Andaram a penar pela Galileia e
foram enfim a Jerusalém anunciar a boa nova a todos os
judeus. Esta viagem seria a consagração. Israel render-
-se-ia ao rabino Jesus e reconhecê-lo-ia como rei. Deus
desceria então à Terra e instauraria o Seu reino! Ou
seja, as expectativas dos apóstolos eram muito
elevadas. Mas, em vez dessa consagração apoteótica, o
que acontece na verdade?”
“Jesus foi preso e executado.”
“Isso não estava no programa! Em vez de ser coroado, o
rabino é preso, humilhado e morto. Que fazem os
apóstolos? Fogem! Receiam pela sua vida e escondem-se
entre os mais de dois milhões de judeus que enchem
Jerusalém para o Yom Kippur. Isto mostra que Jesus
nunca lhes falou deste desfecho e que as palavras
postas na boca dele nos Evangelhos a profetizar a
própria morte são antes retroacções inseridas pelos
evangelistas. O que vai então na cabeça dos apóstolos
quando Jesus é crucificado? Além do medo, a desilusão.
Afinal o rabino não era o masbia! Tinham-se enganado!
Seguiram um falso profeta! A decepção é total. Contudo,
três dias depois da morte do rabino, aparecem umas
mulheres aos gritos histéricos. Ele ressuscitou!,
gritam elas. Ele ressuscitou! Os apóstolos animam-se. O
quê? Será verdade? Vão ao sepulcro e confirmam que o
local está vazio.” Ergueu os braços no ar, num gesto
teatral. “Aleluia! Afinal ele não é um falso profeta! É
o masbia! É o masbia! A excitação é enorme. O rabino
ressuscitou!” Fez uma pausa e encarou a italiana.
“Percebe o significado profundo da ressurreição numa
mente judaica, não percebe?”
Valentina hesitou.
“Numa mente judaica?”
“Tem de se lembrar sempre que estamos a falar de
judeus”, insistiu o historiador. “Eles acreditavam que
o mundo iria acabar e que haveria um grande julgamento.
Pouco antes do julgamento, porém, iria suceder uma
coisa: os mortos ressuscitariam. Isso era fundamental
para poderem ser julgados. Ora o que tinha acabado de
acontecer? Jesus ressuscitara! Fora o primeiro morto a
regressar à vida! O que significava isso? Que em breve
os outros mortos também iriam ressuscitar e que o dia
do juízo final se encontrava próximo! Afinal Jesus
tinha razão! O fim do mundo estava prestes a chegar! Os
mortos começavam a voltar à vida e em breve haveria o
grande julgamento! Separados os ímpios dos puros, Deus
instituiria o seu reino na Terra! Havia pois que
espalhar a boa nova! O reino de Deus estava mesmo à
beira de se tornar realidade!”
Os dois polícias seguiam a explicação com os lábios
entreabertos, absorvendo a exposição do contexto
judaico em que a morte de Jesus foi interpretada pelos
seus seguidores.
“Mas, espere aí”, disse Valentina. “Jesus apareceu aos
apóstolos depois de morto.”
Tomás curvou o lábio antes de responder.
“Oiça, isso é teologia”, disse. “Como historiador, só
lido com acontecimentos históricos. O sobrenatural não
tem a ver com história, mas com crença. Como
historiador não posso afirmar, nem desmentir, um
acontecimento sobrenatural. Isso pertence ao domínio da
fé. Não tenho meios de determinar se Jesus apareceu aos
apóstolos depois de morto. O que posso determinar é que
os apóstolos afirmaram que o viram.” Fez uma pausa.
“Lembre-se de que estamos a falar de gente crédula e
inculta, já predisposta a acreditar no sobrenatural.
Sobre isso, mais não direi.”
“Nesse caso, acha que os apóstolos começaram a
alucinar...”
“Não acho nem deixo de achar. O que sei é que os
apóstolos garantiram ter visto Jesus ressuscitado.
Seria verdade? Teriam alucinado? Estariam a aldrabar as
pessoas? Mateus chega a registar no seu evangelho, em
28:13, um rumor que corria: ‘Os Seus discípulos vieram
de noite e, roubaram-n’0.’ Não sabemos qual a verdade,
nem nunca saberemos. O que sabemos é que os apóstolos
se puseram a espalhar a boa nova: os mortos começaram a
ressuscitar, vem aí o juízo final e será enfim
instituído na Terra o reino de Deus. Alguns judeus
aderiram a esta mensagem.”
“Como Paulo...”
“Curiosamente, Paulo não foi um deles. Começou até por
perseguir os seguidores de Jesus. Mas depois teve uma
visão e passou a acreditar.”
“Portanto, tornou-se cristão.”
“Ainda não havia cristãos”, corrigiu Tomás. “Eram todos
judeus. O que se passava é que existiam várias seitas
entre os judeus, como os fariseus, os essénios, os
saduceus e outros. Os que acreditavam que era Jesus o
mashia previsto nas Escrituras representavam uma dessas
muitas seitas, a dos nazarenos. Repare, estes nazarenos
continuavam a respeitar as leis judaicas e o Templo. O
que os diferenciava era a crença na boa nova de que o
reino de Deus estava prestes a chegar, de que a morte
de Jesus era o sacrifício ritual para expiar os pecados
da humanidade e de que a sua ressurreição constituía o
primeiro acontecimento do processo que desencadearia o
juízo final. Na Primeira Carta aos Coríntios, escreveu
Paulo, em 15:20: ‘Cristo ressuscitou dos mortos como
primícias dos que morreram.’”
“Primícias? O que é isso?”
“O dicionário dá várias opções: primeiros frutos,
prelúdio, primeiros efeitos. Ou seja, Paulo diz aqui
explicitamente que a ressurreição de Jesus foi o
prelúdio da ressurreição dos mortos. Quer isto dizer
que ele acreditava piamente que o mundo estava prestes
a acabar e vinha aí o julgamento final. Na Primeira
Carta aos Tessalonicenses, Paulo descreveu em 4:16-17
como seria esse dia: ‘Quando for dado o sinal, à voz do
Arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o próprio Senhor
descerá do Céu e os que morreram em Cristo ressurgirão
primeiro. Depois, nós, os vivos, os que ficarmos,
seremos arrebatados juntamente com eles sobre nuvens;
iremos ao encontro do Senhor nos ares, e assim
estaremos para sempre com o Senhor.’ Ou seja, primeiro
ressuscitam os mortos e depois vão os vivos. Esta
mensagem é reforçada por Paulo na Primeira Carta aos
Coríntios, em 15:51: ‘Vou revelar-vos um mistério: nem
todos morreremos, mas todos seremos transformados. Num
momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última
trompeta, pois ela há-de soar, os mortos ressuscitarão
incorruptíveis, e nós seremos transformados.’ Foi esta
boa nova que Paulo se pôs a espalhar. Só que se deparou
com um grande problema.”
Tomás calou-se, para conseguir um efeito dramático.
“O que aconteceu?”, quis saber a italiana.
“Os judeus riram-se. Acharam ridícula a ideia de que
aquele pobre coitado vindo das berças e que os Romanos
humilharam e crucificaram era o mashia. Por exemplo,
nos Actos dos Apóstolos conta-se, em 17:2-5, que Paulo
foi falar com os judeus à sinagoga de Tessalónica ‘e,
durante três sábados, discutiu com eles a partir das
Escrituras, explicando-as e provando que o Messias
tinha de sofrer e de ressuscitar dos mortos. «E o
Cristo, dizia ele, é este Jesus que vos anuncio.»
Alguns deles ficaram convencidos’,mas a maioria não ‘e
espalharam a agitação pela cidade’. Perante esta
rejeição dos judeus, o que fez Paulo? Levou a mensagem
aos gentios. Disse-lhes que vinha aí o juízo final e
que quem abraçasse Jesus se poderia salvar. Muitos
gentios, receando o fim do mundo, quiseram aderir.
Claro que, nesse instante, se gerou um problema
absolutamente novo: os gentios teriam de praticar todos
os
costumes
judaicos?
Eles
recusavam-se
a
ser
circuncidados e queriam comer carne de porco e
trabalhar livremente ao sábado. Se esses costumes
judaicos se mantivessem, não adeririam. O que fazer? Os
discípulos de Jesus, como Simão Pedro, Tiago e outros,
torceram o nariz ao abandono destas obrigações. Elas
eram impostas pela lei e teriam de ser respeitadas.
Citado por Mateus, o próprio Jesus disse em 5:17: ‘Não
penseis que vim revogar a Lei e os Profetas: Não vim
revogá-la, mas completá-la’; e acrescentou, em 5:19:
‘Se alguém violar um destes mais pequenos preceitos, e
ensinar assim aos homens, será o menor no reino dos
Céus.’”
A alma judaica de Arnie Grossman não se conteve.
“Isso quer dizer que Jesus respeitava de facto a lei.”
“‘Não passará um só jota ou um só ápice da Lei sem que
tudo se cumpra’, como o próprio Jesus chegou a afirmar,
em Mateus, 5:18. No entanto, Paulo não conheceu Jesus
pessoalmente e, como era muito mais culto do que os
discípulos, decidiu alterar os parâmetros teológicos de
modo a encaixar as objecções dos gentios. A salvação,
decidiu ele, já não se alcançava pelo respeito da lei e
pelo sacrifício no Templo. Escreveu Paulo na Carta aos
Gálatas, em 2:16: ‘O homem não é justificado pelas
obras da Lei, mas pela fé em Jesus Cristo.’ Esta
mensagem é reforçada em 5:4: ‘Vós os que procurais a
justificação pela Lei; decaístes da graça!’ Ou seja, e
ao contrário do que defendia o próprio Jesus, a lei
judaica já não salvava ninguém. Bastava agora acreditar
na morte de Jesus como sacrifício de expiação e na sua
ressuscitação
como
‘primícias’,
ou
prelúdio,
do
regresso à vida de todos os mortos para o julgamento
final. Nestas novas condições, como acham que os
gentios reagiram?”
“Ficaram encantados, claro”, exclamou o inspector-chefe
da polícia israelita, com uma gargalhada. “Já não
tinham de se circuncidar e podiam comer carne de porco
à vontade.”
“É evidente. De modo que os gentios aderiram à mensagem
em grande número. Os discípulos de Jesus, todos eles
judeus, protestaram. O que vinha a ser aquilo de se
desrespeitarem os requisitos da lei? Paulo foi a
Jerusalém falar com eles e disse-lhes que aquele é que
era o caminho. Os judeus não estavam a aderir à
mensagem, mas os gentios sim. Tinham portanto de
apostar na conversão dos gentios. Embora com manifesta
relutância, os discípulos lá aceitaram a ideia. Mas
Simão Pedro, conforme Paulo admitiu, continuou a evitar
comer à mesa com os gentios, prova de que não se
afeiçoou bem à ideia. E outros nazarenos insistiram que
Jesus não tinha ensinado nada daquilo e que a lei era
para se cumprir. Dentro da seita dos nazarenos
começaram a aparecer subseitas, umas pró-judaicas,
outras formadas por gentios. Quando os três primeiros
evangelhos foram escritos, os de Marcos, Mateus e
Lucas, este debate estava ao rubro e estendera-se já
para fora da Judeia. Daí que os evangelistas se
esforcem por narrar episódios da vida de Jesus a
renegar o sábado e as leis da pureza dos alimentos:
eles não estavam na verdade a contar o que Jesus
fizera, mas a invocar a sua autoridade para resolver os
problemas dos novos tempos.”
Valentina ergueu a mão.
“Alto!”, exclamou. “É importante esclarecer uma coisa
primeiro. Os apóstolos podiam ter reservas em relação
aos gentios, aceito isso. Mas Jesus não! Apesar da sua
conversa de que ele não era cristão, a verdade é que
Jesus se abriu ao mundo e não discriminava ninguém.
Nesse ponto em concreto, Paulo tinha razão.”
O historiador fitou-a com intensidade e tocou com a
ponta do indicador na boca.
“Leia os meus lábios”, pediu. “Jesus era judeu até à
raiz dos cabelos!” Apontou para a janela. “Está a ver
aqueles judeus ultra-ortodoxos que andam por aí nas
ruas de Jerusalém, de barbas e vestidos de negro? Se
fosse vivo, Jesus seria um deles! Era um ultra-ortodoxo
que defendia que se respeitasse a lei ainda com mais
zelo do que os outros judeus. Citado por Mateus, disse
Jesus em 5:20: ‘Eu vos digo: Se a vossa virtude não
superar a dos escribas e fariseus, não entrareis no
reino dos Céus.’ Ele era um judeu zeloso! Ora os judeus
consideravam que os gentios eram imundos. Por isso,
Jesus
nem
se
misturava
com eles!
Na
verdade,
discriminava-os.”
A italiana arregalou os olhos, horrorizada.
“Mamma mia! Como pode afirmar uma coisa dessas? Jesus
descriminava os gentios? Que horror! Ele jamais faria
uma coisa dessas!”
Tomás voltou a sua atenção para a Bíblia.
“Se ler com cuidado o Novo Testamento, vai reparar que
Jesus quase não interagiu com gentios. A pedido de
alguns judeus, teve um breve contacto com um centurião
romano e chegou a sentir-se na obrigação de explicar à
multidão porque o fez.” Folheou o livro. “Jesus ordenou
mesmo aos apóstolos que evitassem os gentios quando
estivessem a propagar a boa nova. Citado por Mateus,
disse-lhes Jesus em 10:5-7: ‘Não sigais pelo caminho
dos gentios, nem entreis em cidade de samaritanos. Ide,
primeiramente, às ovelhas perdidas da casa de Israel.
Pelo caminho, proclamai que o reino dos Céus está
perto.’ Ou seja, e como qualquer judeu pio, Jesus fazia
questão de reduzir o contacto com os gentios ao
mínimo.” Virou para a página seguinte. “Uma gentia foi
ter com Jesus e pediu-lhe que exorcizasse a filha,
possuída por um demónio. Sabe qual foi a primeira
reacção de Jesus? Segundo Mateus, em 15:23: ‘Ele não
lhe respondeu palavra.’ Os apóstolos intercederam então
pela gentia. Sabe o que retorquiu Jesus? Segundo
Mateus, em 15:24, Jesus disse-lhes: ‘Não fui enviado
senão às ovelhas perdidas da casa de Israel.’ Poderia
ele ser mais claro do que isto? Só à terceira Jesus lá
se dignou atendê-la!” Adiantou um punhado de páginas.
“O próprio Paulo, apóstolo para os gentios, escreveu na
Carta aos Romanos, em 15:8, que ‘Cristo Se fez servidor
dos circuncisos’, reconhecendo assim que Jesus apenas
pregava aos judeus.” Virou a Bíblia para a sua
interlocutora. “A sua mensagem não era pois para toda a
humanidade; destinava-se apenas aos judeus. Mesmo
quando Marcos o põe a dizer em Jerusalém que ‘a minha
casa será chamada casa de oração para todos os povos’,
uma
mensagem
aparentemente
universalista,
Jesus
esclarece, em 11:17, que está apenas a citar o que
‘está escrito’, numa referência às profecias de Isaías,
que, em 56:7, usam justamente a expressão ‘casa de
oração para todos os povos’.”
Recusando-se a acreditar, Valentina leu com os próprios
olhos os versículos de Mateus e de Marcos e a linha de
Paulo na Carta aos Romanos.
“É incrível!”, murmurou, abismada. “Isto nunca me foi
contado! Nunca, nunca!”
“No entretanto, ocorreu um acontecimento cataclísmico”,
disse o português, retomando a narrativa. “A revolta
judaica e a destruição de Jerusalém pelos Romanos, no
ano 70.”
Arnie Grossman acenou afirmativamente com a cabeça.
“Isso foi um trauma para o nosso povo, não há dúvida.”
“É um acontecimento de grande importância também para
os nazarenos”, sublinhou Tomás. “Os judeus tinham caído
em desgraça junto dos Romanos e a associação com a
religião judaica tornou-se menos recomendável. Além
disso, a generalidade dos judeus não aceitava que Jesus
fosse o masbia e os nazarenos acusavam-nos de terem
assassinado, o Filho de Deus. Por outro lado, o tal
reino de Deus não havia meio de aparecer! Jesus tinha
prometido aos apóstolos que eles ainda estariam vivos
quando Deus estabelecesse o Seu reino na Terra, mas
isso não acontecera. Os apóstolos começaram a morrer e
não ocorrera ainda nenhum julgamento final. As
perguntas incómodas multiplicavam-se na comunidade.
Então quando é que ressuscita toda a gente? Para quando
o juízo final? O reino de Deus vem ou não vem?”
“O que fizeram os líderes da comunidade?”
“Tiveram de começar a reinterpretar tudo. Afinal,
decidiram eles, o reino de Deus não era para já.”
“Mas como sustentaram teologicamente essa ideia?”, quis
saber Grossman. “Pelos vistos Jesus tinha sido muito
claro quando disse que a chegada do reino de Deus
estava iminente.”
“Pois tinha”, reconheceu o historiador, “mas,
confrontados com a realidade de que o reino não
aparecia, os líderes dos nazarenos puseram-se a fazer
ginástica com as palavras. O autor da Segunda Carta de
Pedro viu-se forçado a lidar com o problema, em 3:8-9:
‘Um dia diante do Senhor é como mil anos, e mil anos
como um só dia. O Senhor não retarda a Sua promessa,
como alguns pensam, mas usa da paciência para
convosco.’ Isto é inspirado nos Salmos, onde se
estabelece, em 90:4: ‘Mil anos, diante de Vós, são como
o dia de ontem que já passou.’ Ou seja, eles andaram a
vasculhar nas Escrituras até encontrarem algo que lhes
permitisse dizer que Deus tinha afinal uma concepção
diferente do tempo. A mensagem apocalíptica, muito
forte nos primeiros textos dos nazarenos, como as
epístolas de Paulo, o Evangelho segundo Marcos e as
fontes de Lucas e Mateus, designadas Q, L e M, foi
gradualmente enfraquecendo até desaparecer por completo
no quarto evangelho, o de João, escrito por volta do
ano 95. Para quê insistir na chegada do reino de Deus
se ele não havia meio de aparecer?”
“Mas
essa
mensagem
apocalíptica
manteve-se
nos
primeiros textos”, observou o polícia israelita. “E
esses textos permaneciam disponíveis. Como se lidou com
isso?”
“O grande problema é que a parte mais importante da
mensagem de Jesus, o anúncio do fim dos tempos e da
chegada do reino de Deus, estava errada. Mas ninguém
podia admitir que Jesus errara, pois não? Seria uma
gravíssima blasfémia. Então o que fazer? Os líderes da
comunidade puseram-se a afirmar que afinal era tudo
metafórico e coisa e tal. O reino de Deus deixou de ser
um regime físico e tornou-se uma metáfora espiritual.
Já não era questão de haver duas idades, a de Belzebu e
a de Deus, mas duas esferas, o Inferno e o Céu. E a
noção da ressurreição do corpo transformou-se no dogma
da imortalidade da alma. Enfim, arranjaram-se maneiras
criativas de contornar o desconfortável problema.”
“Quer dizer, o discurso foi-se adaptando à realidade.”
“Isso mesmo. E ao mesmo tempo que se foi tornando menos
apocalíptica a mensagem dos nazarenos foi divinizando
Jesus. Enquanto o primeiro evangelho canónico, o de
Marcos, o apresenta como um homem de carne e osso, que
por vezes até se zangava, o quarto evangelho, o de
João, já o mostra como Deus. ‘O Verbo fez-se homem e
habitou entre nós’, escreveu João em 1:14. Além disso,
o que é igualmente importante, a seita dos nazarenos
foi-se separando dos judeus até formar uma religião
distinta, a dos cristãos.”
“Ou seja, o cristianismo nasce da negação do judaísmo.”
“Exacto. Para os cristãos, a questão era muito simples:
se os judeus rejeitavam Jesus, Deus rejeitava os
judeus. Ou seja, aos olhos dos cristãos os judeus já
não eram o povo eleito. É interessante notar que a
culpa dos judeus na morte de Jesus aumenta à medida que
os Evangelhos vão sendo escritos, ao mesmo tempo que o
romano Pôncio Pilatos é ilibado de responsabilidades.
No primeiro evangelho, o de Marcos, Pilatos nunca
declara Jesus inocente. Nos dois evangelhos seguintes,
a coisa começa a mudar. Em Mateus, Pilatos afirma, em
27:24: ‘Estou inocente do sangue deste justo.’ E em
Lucas declara três vezes a inocência de Jesus. João, o
último evangelho, põe Pilatos novamente a declarar três
vezes a inocência de Jesus e entrega-o para execução,
não aos legionários, mas aos judeus. Num trecho, em
8:44, chega mesmo a pôr na boca de Jesus a afirmação de
que os judeus são ‘filhos de um pai que é o Diabo’. O
corte com o judaísmo estava consumado. Os judeus
cristãos
denunciaram
os
restantes
cristãos
como
heréticos, mas a denúncia acabou por ter um efeito
boomerang. Os gentios cristãos tornaram-se dominantes e
acabaram por suprimir os judeus cristãos. Os ebionitas,
uma seita que insistia ser Jesus um judeu de carne e
osso, foram declarados heréticos e silenciados, e os
judeus tornaram-se alvo do ódio dos cristãos. Autores
cristãos do século II, como Martyr, escreveram que a
circuncisão existia para sinalizar quem teria de ser
perseguido.
Quando
Constantino
se
converteu
ao
cristianismo, no século IV, os cristãos adquiriram
enfim o poder de que necessitavam para punir os judeus.
O resto é história.”
Arnie Grossman cruzou os braços.
“E foi assim que desembocámos nos pogrons e no
Holocausto”, observou. “Mas, pelo que entendi das suas
palavras, a religião cristã que hoje existe não é a
religião original de Jesus.”
Tomás indicou o papel que o polícia israelita mantinha
preso entre os dedos.
“É isso, em última instância, o que o assassino quis
dizer com todos os enigmas que nos deixou”, concluiu.
“Jesus Cristo não era cristão.”
Fez-se um silêncio brusco no quarto do hospital. O
português guardou a Bíblia
na gaveta da mesinha-de-
-cabeceira e recostou-se na vasta almofada da sua cama.
“Tudo isso é muito bonito”, observou Valentina com ar
contrariado, obviamente a pensar o contrário do que
acabara de dizer. “Mas o que fazemos agora? Para onde
vai a nossa investigação?”
O inspector-chefe da polícia israelita cravou os olhos
nela.
“Diga-me uma coisa, cara colega. Como é que o assassino
dos sicarii descobriu o vosso paradeiro aqui em
Jerusalém?”
A italiana encolheu os ombros.
“Não faço a mínima ideia.”
“Quem é que sabia da vossa presença na cidade?” “Vocês,
claro.” Arregalou os olhos, como se tivesse acabado de:
ser atingida por um relâmpago. “E... e... a Fundação
Arkan!”
Grossmain sorriu.
“Curioso», não é? Horas depois de vocês visitarem essa
fundação e de se envolverem numa discussão acalorada
com o presidente, um assassino entra no quarto do
professor
Noronha.
Interessante
coincidência,
não
acha?”
Valentina manteve a atenção presa no seu colega
israelita, como se estivesse hipnotizada.
“Dio mio! Como é que não pensei nisso?”, exclamou,
quase a recriminar-se. “Mais do que coincidência, isso
é um forte indício!”
O israelita levou a mão ao bolso do casaco.
“Talvez”, admitiu. “Mas mais fortes ainda são estes
documentos que recebi há pouco e de que não vos falei
ainda.” Mostrou-lhes um quadrado branco de folhas
dobradas. O polícia começou a desdobrá-las, revelando
duas páginas com o logotipo de uma árvore e repletas de
nomes, datas e valores.
“O que é isso?”
“Fomos investigar a folha de papel onde o assassino dos
sicarii escrevinhou o enigma e tivemos sorte”, revelou
enquanto endireitava as páginas. “Descobrimos que se
trata de um tipo raro de papel produzido por uma
empresa em Telavive.” Acenou com as duas folhas. “Aqui
está a lista de clientes para onde a empresa enviou
remessas deste papel específico. São apenas quinze
clientes. E vejam quem aparece na décima segunda
posição...”
Arnie
Grossman
pousou
o
dedo
grosso
na
linha
respectiva, situada a meio da segunda página, para onde
convergiram os olhares de Valentina e Tomás. O que
estava ali escrito não deixava margem para dúvidas.
Fundação Arkan.
XLVIII
A noite havia sido fria e desagradável, mas uma mi-
nudência dessas não tinha o poder de afastar Sicarius
da sua missão. Não havia ele já suportado inúmeras
noites ao relento, no topo do promontório de Masada,
exposto ao gelo nocturno do deserto e das alturas?
Diante disso, o que era passar a noite no Bairro Judeu
da cidade velha, mesmo a dois passos do Muro das
Lamentações e do sagrado monte Moriah, onde outrora se
erguera o Templo com o santo dos santos, a câmara por
onde Deus deambulava? Seria isso um sacrifício? Não,
sentia-o nas entranhas. Não se tratava de sacrifício;
nunca uma coisa dessas poderia ser penosa para ele.
Era uma honra.
Havia passado parte da noite a recitar os Salmos, os
poemas sagrados das Escrituras, enquanto vigiava os
acontecimentos na rua. Mas fora uma noite calma. Agora
que o dia nascera, porém, o Bairro Judeu acordava e
ouviam-se portas a bater e passos de transeuntes a soar
pelos passeios e o ocasional tilintar da campainha de
uma bicicleta que deslizava pela rua. A cidade velha de
Jerusalém agitava-se com a luz da manhã, preparando-se
para mais um dia. O Sol banhava os telhados dos
edifícios milenares, mas permanecia ainda demasiado
baixo e os seus raios não chegavam ao solo.
Um zumbido distante, que se misturava inicialmente com
o rumor longínquo do trânsito para lá das muralhas,
transformou-se num ronco crescente que se distinguiu do
resto. Sicarius desceu o olhar até ao fundo da rua e,
ao fim de alguns segundos, viu três motos e dois
automóveis aparecerem com grande aparato. Eram viaturas
da polícia.
O cortejo imobilizou-se mesmo diante dos degraus onde
Sicarius passou a noite, obrigando-o a ajeitar o capuz
para melhor ocultar o rosto vigilante. Os polícias das
motos
mantiveram-se
montados
nos
seus
veículos,
lançando olhares desconfiados em todas as direcções,
incluindo ao monge que parecia dormitar num degrau ali
ao lado. No entanto, os homens que vinham nos carros
apearam-se com movimentos enérgicos e juntaram-se num
grupo informal, trocando palavras e desviando as
atenções do monge.
A seguir, o grupo dirigiu-se para a porta da fundação e
tocou à campainha. Eram seis pessoas e Sicarius
reconheceu-as todas. O inspector-chefe da polícia,
Arnie Grossman, três agentes à paisana e os dois
estrangeiros, a inspectora italiana e o historiador
português. Com o rosto abrigado pela sombra do capuz,
Sicarius esboçou um sorriso ao ver a mão engessada e o
curativo no pescoço do homem que tinha atacado na
véspera.
Havia feito bem o seu trabalho.
O grupo permaneceu longos instantes à porta. O ins-
pector-chefe
Grossman
tocava
insistentemente
à
campainha
e
os
seus
três
homens
começaram
a
inspeccionar as janelas da fundação, como se quisessem
verificar se havia alguém lá dentro. O historiador
olhava para o relógio e trocava umas palavras com a
italiana. Sicarius avaliou-a. Linda mulher, concluiu;
parecia uma daquelas beldades que por vezes aparecem no
cinema francês, de cabelos escuros e olhos de gata.
A porta abriu-se.
XLIX
“Polícia!”
O crachá estendido para a recepcionista confirmava a
identificação. A rapariga de cabelo preto pestanejou,
intimidada por todo aquele aparato de agentes de
autoridade e carros com sirenes às portas da fundação,
e recuou um passo.
“Em que posso ajudar-vos?”
Arnie Grossman cruzou a porta com a postura de quem
dominava a situação.
“Queremos falar com Arpad Arkan”, anunciou. “Ele está?”
“Um momento, por favor.”
A recepcionista foi ao telefone e digitou um número.
Alguém deve ter atendido do outro lado porque ela
começou a falar muito depressa, quase com urgência.
Depois fez uma pausa, anuiu e desligou. Voltou ao átrio
e fez sinal aos visitantes.
“Queiram acompanhar-me.”
Subiram ao primeiro andar e depararam-se com a figura
imponente do presidente da fundação a aguardá-los de
mãos nas ilhargas no topo das escadas, as grossas
sobrancelhas carregadas de desconfiança, a pose de um
soldado diante do inimigo. Cumprimentaram-se com
frieza. Arkan apenas apertou a mão a Grossman,
preferindo fazer um sinal com a cabeça aos restantes.
Quando viu Valentina, emitiu um grunhido hostil.
Manifestamente, a italiana não era bem-vinda, mas ela
não pareceu incomodada com isso.
O anfitrião levou os visitantes para o seu gabinete.
Como só havia duas cadeiras e eles eram seis, a
recepcionista foi buscar mais quatro. No meio do
burburinho de determinar quem se sentava onde, Tomás
ficou a admirar os papiros e os pergaminhos emoldurados
nas paredes, tentando adivinhar a respectiva idade; leu
linhas em hebraico e grego e pareceram-lhe extractos do
Antigo e do Novo Testamento. O rigor e o cuidado postos
no texto de um pergaminho pareceram-lhe reflectir o
profissionalismo
da
escola
alexandrina,
o
que
significava que se tratava de um espécime valioso, mas
outro manuscrito deu-lhe a impressão de ser bizantino,
mais tardio e de menor interesse.
Todos os visitantes se acomodaram entretanto e o
português viu-se obrigado a seguir-lhes o exemplo,
instalando-se na única cadeira que ficara vazia.
“Então a que devo o prazer desta nova visita?”,
perguntou Arkan, já sentado na sua poltrona, por detrás
da secretária. “Presumo que tenha alguma coisa a ver
com os três académicos assassinados...”
Grossman pigarreou.
“Presume bem”, anuiu. Fez um sinal na direcção de
Valentina. “Recebemos recentemente um pedido das
polícias italianas, irlandesa e búlgara para dar
assistência à investigação internacional que está a ser
conduzida pela inspectora Ferro, da Polizia Giudiziaria
de Itália, com a colaboração do professor Noronha,
historiador da Universidade Nova de Lisboa.”
“Já os conheci”, murmurou o presidente da fundação em
tom agastado. “Estiveram cá noutro dia.”
“Assim fui informado”, disse o polícia israelita. “Mais
fui informado de que se deu a coincidência de as três
vítimas se terem conhecido justamente aqui neste
edifício no decurso de uma reunião que tiveram
consigo.”
Grossman calou-se e deixou o olhar inquisitivo demorar-