o

clone.

Precisávamos

de

estabelecer uma estratégia educativa que se adequasse à

sua personalidade.


Mas que personalidade era essa? Será que podíamos

determiná-la previamente com um mínimo de rigor?

A professora Escalona, que era uma das paleógrafas mais

qualificadas do mundo, disse-nos que talvez isso fosse

possível.

Segundo ela, o Novo Testamento contém informação

relevante e credível sobre o Jesus histórico, desde que

os textos sejam submetidos a um crivo crítico

impiedoso.

O que tínhamos a fazer era identificar os manuscritos

mais antigos para extrair deles a informação mais

próxima dos acontecimentos, de modo a obter um retrato

fiel de Jesus.”

Calou-se momentaneamente para fitar os seus três

interlocutores.

“Estão a perceber?”


Tomás balançou afirmativamente a cabeça, os olhos

desfocados no momento em que tudo compreendeu.


“Vocês decidiram proceder a um levantamento de todos

esses manuscritos e da informação mais autêntica que

era possível extrair deles”, concluiu.

“E era justamente isso o que a Patrícia estava a fazer

na Biblioteca Vaticana e o professor Schwarz na Chester

Beatty Library.”


Arpad Arkan respirou fundo, como se enunciar aquela

missão bastasse para lhe tirar de cima um fardo.


“É isso mesmo!”, exclamou.

“Mas as coisas começaram a correr terrivelmente mal.

A professora Escalona foi assassinada em Roma e o

professor Schwarz em Dublin.

Quando me deram a notícia, logo pela manhã, devo ter

envelhecido dez anos em apenas um minuto. E no dia

seguinte veio a informação relativa à morte do

professor Vartolomeev em Plovdiv.

Foi como se o céu me desabasse em cima da cabeça! O que

se estava a passar?

Os elementos da equipa do Projecto Yehoshua andavam a

ser degolados!? Mas por quem? E porquê?

Entrámos em pânico na fundação.


O projecto estava sob violentíssimo ataque e nós não

tínhamos maneira de saber quem o conduzia e quais as

suas motivações. Era evidente que a informação sobre o

que estávamos a fazer já transpirara cá para fora e

caíra nas piores mãos possíveis. Mas nunca nos passou

pela cabeça que as coisas chegassem a esse ponto.

Estávamos a mergulhar no abismo.”


O historiador mudou de pé de apoio.


“Porque não contou de imediato tudo à polícia?”


“Reuni o conselho de sábios da fundação e ponderámos

essa hipótese”, admitiu o anfitrião.

“Acabámos por rejeitá-la porque achámos que isso iria

torpedear definitivamente o projecto.

A Fundação Arkan é uma organização que tem a paz como

lema e que se esforça por promover acções que ponham

fim à conflitualidade no nosso planeta.

O Projecto Yehoshua é uma pedra central nessa missão.

Ao trazer Jesus de regresso à Terra, iremos prestar o

melhor e mais inestimável dos serviços à humanidade.

Se contactássemos a polícia para dar essas informações,

o projecto deixaria de ser secreto e a missão ficaria

irreversivelmente comprometida.

Residia aí o cerne do nosso dilema. Deveríamos cooperar

com a polícia e arruinar o projecto ou manter-nos

silenciosos e tentar salvar um projecto que pode ser

crucial para a paz no planeta?

O que era mais importante?

Qual o nosso dever prioritário?”


“Estou a ver o conflito”, observou Tomás.

“Não se tratava realmente de uma posição fácil...”


“Nada fácil!”, sublinhou Arkan. “Depois de uma grande

discussão, concluímos que a paz no mundo estava acima

de tudo e por isso escolhemos manter o projecto em

segredo.”

Apontou para o português e para a italiana.

“Daí que, quando há dias vocês me apareceram lá na

fundação, tenha optado por me manter calado a propósito

de tudo isto. Mas o facto é que este caso me deixou com


os nervos à flor da pele e... enfim, receio ter-me

exaltado um pouco durante a nossa conversa. Espero que

me desculpem.”


O historiador trocou um sorriso cúmplice com a

inspectora da Policia Giudiziaria.


“Oh, não há problema.”


O olhar de Arkan desviou-se para o tubo de ensaio que

mantinha entre os dedos.


“Claro que agora há uma outra questão que...”


As

palavras

do

anfitrião

foram

nesse

momento

interrompidas por um grito estranho, arrancado com uma

mistura sinistra de selvajaria e loucura. Os quatro

viraram-se e viram um homem de negro aparecer com um

objecto cintilante numa das mãos.


E a morte no olhar.


LXXI


Embora parecesse um halo fantasmagórico de luz a

tremeluzir no ar, a lâmina cortou o espaço com a

precisão de uma bala e cravou-se com um ruído seco no

braço de Arkan. O presidente da fundação largou de

imediato o tubo de ensaio e soltou um urro de dor e de

terror.


Acto contínuo, o corpo de Sicarius, que vinha em voo a

empunhar a adaga, abateu-se com todo o seu peso sobre a

vítima. Desequilibrado pela dor no braço e pelo impacto

inesperado, Arkan desabou desamparado sobre o

congelador aberto e embateu com a cabeça no gelo,

perdendo a consciência.


O tubo de ensaio tombou no solo e, devido à sua

estrutura cilíndrica, começou a rolar pelo chão.

Apercebendo-se de que o objecto se escapava, o agressor

hesitou uma fracção de segundo quanto ao que fazer a

seguir. O seu primeiro instinto foi apanhar o tubo de

ensaio, a prioridade da missão, mas travou o movimento.

Antes teria de neutralizar as restantes ameaças.


A hesitação, porém, foi tudo aquilo de que Tomás

precisou para recuperar da surpresa e reagir.


O português reconheceu os movimentos do atacante; era

de certeza o homem que lhe fizera a emboscada no seu

quarto de hotel e quase o havia degolado.

Na altura apercebera-se da grande destreza e força

física do agressor, pelo que não tinha dúvidas de que

ele seria capaz de os matar aos quatro em menos de dois

minutos.

A sua única hipótese era tirar partido do desequilíbrio

momentâneo do desconhecido e não lhe dar tempo para

recuperar.


Sem perder um instante que fosse, e consciente de que a

vulnerabilidade

do

atacante

era

passageira,

o

historiador aproveitou o facto de Sicarius se encontrar

de gatas sobre o corpo inerte de Arkan para lhe

desferir um violento pontapé no rosto com a biqueira do

sapato.


“Toma!”


Atingido pelo impacto brutal do pontapé, o agressor deu

uma cabeçada para trás e rolou pelo chão.

O ataque seria suficiente para deixar qualquer um fora

de combate por alguns minutos, mas não aquele homem.

O desconhecido pôs-se de pé num salto e apalpou o rosto

dorido.

O nariz estava torto, decerto partido, e jorrava-lhe

sangue abundante pela narina esquerda. Tocou na ferida,

sentiu uma dor lancinante e olhou para o líquido

vermelho-vivo que lhe molhava a ponta dos dedos.

Atirou de imediato um olhar de morte ao homem que o

pontapeara, como se a partir desse instante aquilo já

não fosse uma mera missão, mas uma questão pessoal.


“Vais pagar caro!...”


Tomás apercebeu-se de que tinha perdido quase toda a

vantagem. Havia atingido o atacante com o máximo de

força de que era capaz e não o pusera fora de combate.


Ele ficara combalido, era certo, mas já estava de pé e,

de nariz torcido e ensanguentado, fitava-o com um ódio

indisfarçável. Não havia dúvidas de que, mesmo ferido

daquela maneira no rosto, a sua capacidade de combate

era infinitamente superior à de qualquer outra pessoa

naquela câmara.


Havia, porém, um pequeno trunfo que talvez permanecesse

do lado do português.

Tratava-se do tubo de ensaio que rolara pelo chão.

Até que ponto era o ADN de Jesus precioso para o

agressor?

Com um movimento rápido, Tomás baixou-se e apanhou o

objecto congelado. Quando se ergueu, viu o assaltante

dar um passo na sua direcção, uma expressão letal

estampada no rosto.


Talvez pegar no tubo de ensaio não tivesse sido uma

ideia

tão

boa

como

inicialmente

considerara,

raciocinou.


O homem parecia valorizar o conteúdo do invólucro acima

de tudo o mais; afinal fora Arkan, que antes o segurava

na mão, o primeiro a ser atacado. Se até àquele momento

Tomás não tinha passado de um mero obstáculo, com o

pontapé que desferira e o tubo de ensaio em que pegara

tornara-se definitivamente o alvo a abater.


O historiador sentiu a indecisão tolher os dois

polícias perante os acontecimentos inesperados que se


sucediam a velocidade estonteante, mas sabia que não

havia tempo a perder.


Grossman e Valentina não tinham visto o agressor em

acção e não podiam perceber quão perigoso ele era.

Tomás, porém, já experimentara na pele um ataque

daquele homem e tinha a perfeita noção do perigo que

todos corriam. Ao pegar no tubo de ensaio congelado

tornara-se ele próprio inadvertidamente o cordeiro

sacrificial.


Que o fosse, pensou; o importante era que Valentina se

salvasse!


“Dê-me o tubo de ensaio!”, ordenou a italiana,

estendendo-lhe a mão.

“Já!”


Isso estava fora de causa, raciocinou o português.

Entregar o tubo a Valentina era fazer dela o principal

alvo do agressor. Isso Tomás não podia de modo algum

permitir. A italiana não tinha hipótese alguma se o

assaltante virasse para ela a sua atenção.


Sabendo que não dispunha de capacidade física ou treino

militar que lhe permitisse enfrentar a verdadeira

máquina de combate que dava agora o segundo passo na

sua direcção, voltou-se e começou a correr, o tubo de

ensaio bem seguro na mão esquerda. Sentiu a confusão

atrás dele e escutou passos e uma respiração ofegante.

Não precisava de virar a cabeça para saber que o

desconhecido vinha no seu encalço.


“Stop!”


O grito gutural do homem apenas serviu para assustar

ainda mais Tomás.


O historiador meteu pelo corredor formado por

maquinaria e outros congeladores, todos eles decerto a

preservar diferentes tubos de ensaio com material

genético de grande raridade. Não era fácil correr com o

corpo

envolto

num

escafandro,

duas

botijas

de

respiração às costas e a visão limitada por um visor.

Mas a adrenalina ajudou-o, dando-lhe forças adicionais.


Ao chegar ao final do primeiro lanço, guinou

bruscamente para a esquerda e depois para a direita, e

meteu por um corredor paralelo.


Virou a cabeça de lado, num esforço para localizar o

seu perseguidor através da visão periférica que o visor

lhe permitia, mas não o avistou. Sentiu naquele

instante, sem que o tivesse planeado, que estava diante

da

oportunidade

de que

precisava.

Tinha

de

a

aproveitar.


Com um movimento rápido, estacou junto de uma

prateleira com material de laboratório e suspendeu o

tubo de ensaio com o ADN de Jesus numa pequena

estrutura metálica de onde pendiam outros recipientes

semelhantes. Que melhor sítio poderia existir para

esconder a amostra congelada que em tão má hora

apanhara do chão?


Sem perder mais tempo, retomou a corrida pelo corredor.

Por esta altura começara já a perceber que precisava de

um plano. Correr não seria suficiente; chegaria um

momento, mais cedo ou mais tarde, em que o seu

perseguidor o apanharia. O que fazer? O ideal seria

sair dali, era evidente. Mas como? A câmara estava

bloqueada pela porta blindada e para escapar precisava

de a franquear.


Era verdade que, naquele grupo, apenas Arpad Arkan

conhecia a senha de segurança que destrancaria a porta,

mas Tomás acreditava que já adivinhara o segredo.


Assim, tudo se resumia a chegar ao local e ter tempo

suficiente para inserir a senha e abrir a porta. Depois

fugiria e deixá-la-ia aberta, permitindo assim a

passagem do assaltante no seu encalço.

Era a melhor forma de se assegurar de que ele não

atacava os seus três companheiros. Não que o português

estivesse particularmente preocupado com Arkan ou

Grossman; era Valentina que o enchia de cuidados.


Ao chegar ao fundo do corredor flectiu para a direita.

Já dispunha de um plano; cabia-lhe agora executá-lo.

Não seria fácil, mas não era impossível. Primeiro

precisava de alcançar a porta blindada e tinha ideia de

que a entrada se situava algures na direcção para onde

corria. Conseguiria chegar lá?


Nesse instante apercebeu-se de que perdera o rasto do

seu perseguidor e ficou na incerteza, incapaz de

determinar se isso era bom ou mau. Seria bom se

significasse que o conseguira ludibriar, mas foi

assaltado pela dúvida. Era verdade que escapara graças

à sua admirável rapidez de reacção. Porém, estava

consciente de que não tinha sido assim tão rápido a

movimentar-se. Como se explicava então o súbito

desaparecimento do agressor?


Um vulto materializou-se de repente diante dele,

cortando-lhe o caminho e dando-lhe resposta à pergunta.


“Tinhas saudades minhas?”


Era o assaltante, com a sua voz rouca, quase raspada.

A última vez que a escutara fora no quarto do American

Colony, o hotel em Jerusalém, soprada num murmúrio

sinistro pelos lábios que então lhe colara ao ouvido

num abraço de morte. Desta vez as palavras já não eram

murmuradas, mas disparadas com a arrogância e a altivez

de um caçador, a voz sempre com um timbre tenebroso.


Tentou travar a corrida e voltar para trás, mas patinou

no chão escorregadio da câmara como numa pista de gelo

e espalhou-se pelo piso frio. Viu o desconhecido saltar


para cima dele e foi nesse instante que soube que

estava perdido.


LXXII


O desconhecido caiu-lhe em cima e desferiu-lhe um

potente murro no abdómen, que, apesar de amortecido

pelo escafandro, apanhou Tomás em cheio no fígado e o

deixou dobrado no chão, em posição fetal, quase sem ar

e a contorcer-se de dores.


“Esta foi para te parar”, rosnou o assaltante.

“E esta agora é a paga pelo pontapé de há pouco.”


O historiador sentiu o escafandro ser sacudido com

violência e o visor abrir-se de repente, expondo-o ao

ambiente exterior. Uma lufada de ar muito frio

envolveu-lhe o rosto, seguida por uma pancada brutal

que o fez embater com a nuca nos pés de uma estrutura

de armazenagem de bidões de plástico.


“Ai!”


Sentiu uma dor nascer-lhe entre o malar esquerdo e o

olho e tomou consciência de que fora pontapeado no

rosto.

Dobrou-se instintivamente, recolhendo-se de novo na

posição fetal e cobrindo a cabeça com os braços, à

espera de novos pontapés. Em vez disso, uma dor no

couro cabeludo, como se lhe estivessem a arrancar os

cabelos pela raiz, forçou-o a içar a cabeça da concha

protectora que o corpo formara. Viu o rosto do

assaltante perto dele e percebeu que o homem o puxava

pelos cabelos.


“Espero que tenhas apreciado a retribuição”, sorriu

Sicarius sem humor, o nariz de lado e ensanguentado.

“Lá dizem as Escrituras em Levítico 24:20: ‘Fractura

por fractura, olho por olho, dente por dente; conforme

ele tiver feito a outro, assim se lhe fará.”’

O sorriso transformou-se num esgar ameaçador.

“Onde está o tubo de ensaio?”

Tomás abanou a cabeça.

“Não sei.”


O agressor esmurrou-o sem aviso prévio no malar

esquerdo, exactamente o sítio onde o pontapé de

vingança o atingira momentos antes.


“Fala!”


Literalmente a ver luzinhas, o português sentiu o

impacto doloroso do soco sobre a parte esfacelada do

rosto e libertou um longo grito de dor.

Teria o malar fracturado?

A dor era tão grande e intensa que só podia pensar que

sim.


“O tubo de ensaio?”, voltou a perguntar Sicarius,

erguendo de novo o punho para preparar mais um murro no

mesmo sítio.

“Onde está?”


O primeiro soco fora tão doloroso que estava fora de

questão manter a recusa de responder.

Tomás indicou com um ligeiro movimento de cabeça o

corredor de onde viera.


“Lá atrás”, murmurou, ofegante e dorido.

“Escondi-o lá atrás.”

O agressor fixou os olhos no fundo do corredor.

“Macaco esperto”, murmurou.

Pegou na sua vítima pelo tecido do escafandro e forçou-

a a pôr-se de pé.

“Levanta-te! Leva-me até lá e mostra-me onde o

escondeste!”


Segurando Tomás pela parte de trás do escafandro, de

modo a garantir que ele não lhe fugiria, Sicarius

empurrou-o ao longo do corredor pelo caminho de

regresso.

O historiador cambaleou sob o efeito do pontapé e do

murro que o haviam atingido na face, mas conseguiu

manter-se de pé e, embora aos tropeções, começou a

andar.


Tentou ver o percurso diante dele, mas apercebeu-se de

que apenas o olho direito funcionava normalmente.

Fechou-o por momentos, para determinar a capacidade de

visão com o esquerdo. Apenas enxergou uma mancha

indistinta e constatou que esse olho mal se abria.

Estava decerto inchado, mas um receio maior toldou-lhe

o espírito.

Tê-lo-ia perdido?

Era difícil saber, mas o facto é que as pancadas haviam

sido muito violentas. Lembrou-se das palavras do

assaltante, que citara as Escrituras.

Os versículos de Levítico falavam em ‘olho por olho,

dente por dente’; naquele caso tinha antes sido nariz

por olho.


“Mais depressa!”, ordenou Sicarius, empurrando-o.

“Onde está o tubo de ensaio?”


Tomás precisava de um novo plano, e depressa. Mas o que

poderia fazer? Como poderia improvisar uma fuga

naquelas condições, cego do olho esquerdo e prisioneiro

de um guerreiro implacável? Haveria alguma maneira de

dar a volta à situação? Se ao menos tivesse uma arma!

Mas não. Apenas dispunha das mãos e elas eram o menor

dos receios do seu agressor. Não havia murro que lhe

pudesse dar que o pusesse knock-out. Tomás sabia-o e o

assaltante também. Talvez conseguisse desferir um soco

de surpresa, mas depois sujeitar-se-ia à retaliação.


Enquanto considerava as alternativas e tentava

desesperadamente congeminar um novo plano, chegaram ao

local onde o historiador havia escondido a amostra

congelada.


Ali estava, sobre uma prateleira, a estrutura metálica

com os diversos tubos de ensaio.

Um deles era o que continha o ADN de Jesus.

Deveria parar e entregar-lhe a amostra? Ou seria melhor

continuar?

Mas o que ganharia com isso quando o seu agressor se

apercebesse de que estava a fazer-se de parvo?


O hematoma no malar e o inchaço no olho esquerdo

aguentariam mais alguma pancada?


“É aqui”, anunciou com voz baixa, em rendição.

Apontou a estrutura metálica com os tubos de ensaio e

suspirou, claramente derrotado.

“É um destes.”


A atenção de Sicarius desviou-se para a fileira de

tubos de ensaio pendurados na estrutura.


“Qual deles?”


Tomás voltou-se, aparentemente para indicar a amostra

correcta, mas desferiu de repente um soco com a mão

direita em cheio no nariz do assaltante.

Em circunstâncias normais levaria de imediato com a

resposta, provavelmente mortífera.

Mas aquelas circunstâncias não eram normais, e o

português sabia-o bem. É que o nariz de Sicarius estava

partido, o que o tornava especialmente sensível ao mais

pequeno toque, quanto mais a um murro.


E que murro! Por baixo da luva do escafandro, a mão

direita de Tomás estava envolta em ligaduras. Tinham

sido colocadas no hospital de Jerusalém para proteger a

palma da mão da ferida feita quando agarrara a adaga do

assaltante durante a agressão no quarto do hotel. Com

as ligaduras a envolverem a mão, o punho do historiador

tornou-se especialmente duro e perigoso; era como se

tivesse uma socadeira metálica escondida na luva.


O impacto do punho endurecido pelas ligaduras revelou-

-se, por isso, brutal, sobretudo considerando que o

soco atingira o nariz partido. Sicarius caiu para trás,

estendeu-se no chão, as mãos agarradas ao rosto ferido,

o corpo a contrair-se de dor.


“Aaaaah!”, gritou.

Fez um esforço hercúleo e, apesar do sofrimento, voltou

a erguer-se, embora com equilíbrio instável e os olhos

cerrados.

“Vou matar-te, cão!”


A ideia de Tomás era deixar o seu agressor estendido e

fugir dali, mas o homem revelava uma resistência

espantosa e já se pusera de pé. Dentro de alguns

instantes teria a dor sob controlo e, quando isso

sucedesse, não haveria modo de o travar.

O historiador sabia-se perdido.

Era uma questão de segundos.


Sentiu-se tentado a correr dali para fora, mas

instintivamente percebeu que a fuga apenas adiaria o

inevitável. Quando recuperasse, o assaltante iria no

seu encalço e dessa vez nada o deteria. A situação

tinha de ser resolvida nesse momento, enquanto o homem

permanecia atordoado pela dor. Não haveria uma nova

oportunidade.


O português pegou num tubo de ensaio vazio e, com uma

palmada desferida pela mão protegida pelas ligaduras,

partiu-o em duas partes.

Pegou no tubo e contemplou-lhe as bordas estilhaçadas

de vidro. Tornara-se uma verdadeira lâmina.

Sem perder tempo, e consciente de que naquele momento

jogava a própria vida numa derradeira cartada, voltou-

se para o agressor e, com toda a força, espetou-lhe o

tubo de ensaio estilhaçado na garganta.


Os jactos de sangue jorraram em golfadas do pescoço de

Sicarius. A garganta do assaltante emitiu um som

ensopado, como se os canais de respiração fossem

invadidos pelo líquido vermelho.

O homem voltou a cair, contorcendo-se num esforço

desesperado

para

respirar,

dando

pontapés

desencontrados nos móveis que emparedavam o corredor.

Ao fim de alguns segundos os estertores tornaram-se

espaçados e, após um derradeiro espasmo das pernas, o

sangue deixou de esguichar para o chão e o corpo ficou

imóvel.


Tomás deixou-se tombar de joelhos, exausto devido ao

esforço.

Acabara de matar um homem.


Era

a

primeira

vez

que

o

fazia

e

virou-se

introspectivamente para ele próprio, tentado perceber o

que sentia.

Nada. Matara um homem e não sentia nada.

Era estranho, mas o que fizera não o incomodava. Talvez

fosse por causa do cansaço e das dores no rosto

esmurrado e na mão direita que esmurrara. Ou talvez

fosse por saber que acabava de vingar a sua amiga

Patrícia

Escalona,

degolada

como

um

cordeiro

sacrificial por aquele assassino. Ou se calhar, porque

não?, o que sentia era alívio por ter morto o agressor

porque isso significava que ele já não poderia fazer

mal a Valentina.


Acima de tudo, a morte do assassino queria dizer que o

maldito pesadelo terminara por fim.


“Professor Noronha?”


A voz do inspector-chefe Grossman parecia vir do fundo

de um túnel.

Tomás permanecia ajoelhado diante do cadáver de

Sicarius, o coração a bater com força e a respiração

ainda ofegante, libertada a espaços com nuvens de

vapor, como um cavalo arquejante após a corrida.

Sentiu o próprio corpo e verificou que recuperara um

pouco as forças.

Depois concentrou-se nas palavras que acabara de ouvir.

A voz do polícia israelita viera de trás das suas

costas.

Depois de respirar fundo mais uma vez, o historiador

pôs-se a custo de pé.


“Está tudo bem”, disse.

“Ele já não nos fará mal.”


“Onde está o tubo de ensaio?”


O historiador voltou-se devagar para trás e viu o corpo

de Grossman recortado pela luz ao fundo do corredor.

A mão segurava um objecto com um cano curto.


Como só tinha o olho direito a funcionar, levou alguns

instantes a perceber que se tratava da pistola que o

polícia trouxera para o interior do complexo.


“É um pouco tarde para usar a arma, não acha?”,

perguntou com sarcasmo.

“O assassino já morreu.”

Arfou, numa tentativa de normalizar a respiração.

“Isso tinha dado jeito era há pouco!...”


Ao fundo do corredor, Grossman puxou uma outra figura

para junto dele e colou-lhe a ponta do cano da pistola

à cabeça.

Tomás

pestanejou

com

o

olho

direito,

tentando

certificar-se de que estava a ver bem.

O polícia israelita tinha a arma apontada à cabeça de

uma figura de escafandro que, naquelas condições, era

difícil reconhecer.


“O tubo de ensaio?”, voltou a perguntar Grossman. “Vai

dar-mo a bem ou só por cima de mais este cadáver?”


Pelo registo ameaçador da voz, o historiador percebeu

que o inspector-chefe não brincava.

Tinha a pistola voltada para uma pessoa e ameaçava

abatê-la se não lhe fosse entregue o que queria.

Ver através de apenas um olho numa atmosfera tão fria e

com metade da face a arder de dor era tarefa difícil,

mas Tomás esforçou-se por destrinçar o rosto do alvo de

Grossman que o visor do escafandro escondia.


“Faça o que ele diz”, implorou a figura ameaçada.

“Por favor! Senão ele mata-me!”


Ao escutar aquela voz, o académico português reconheceu

finalmente a pessoa que o israelita ameaçava e sentiu

nesse momento o coração apertar-se de medo e angústia.


Era Valentina.


LXXIII


Uma estranha mistura de desânimo e fúria e desespero

apossou-se de Tomás no momento em que tomou consciência

de que Arnie Grossman ameaçava Valentina de morte, uma

pistola apontada à cabeça, os corpos das duas figuras

recortados como sombras espectrais diante da luz que

banhava o fundo do corredor.


“O que diabo está a fazer?”, perguntou o historiador,

tentando impor alguma ordem racional naquele caos.

“Baixe essa arma!”


O inspector-chefe da polícia israelita abanou a cabeça.

“Primeiro dê-me o tubo de ensaio!”

O português tinha passado um mau bocado com o agressor

de negro e pensara que a morte do homem tinha posto fim

ao pesadelo. O que via diante dele, todavia, mostrava-

-lhe que o pior talvez ainda estivesse para vir. Uma

coisa era enfrentar e matar um desconhecido, outra era

ser traído por alguém em quem confiara.


O que deveria fazer?


A situação com que se confrontava era inesperada.

O que se passava mostrava-lhe que o seu quadro de

referências estava errado.


Grossman não era um aliado, mas um inimigo, e ele

precisava de avaliar o seu novo antagonista.

Tinha de o obrigar a falar, percebeu; só assim poderia

obter informação que o ajudasse a enxergar o melhor

caminho para sair daquela situação.


“Como sei que, se lhe der o tubo de ensaio, o senhor

não a mata na mesma?”


Grossman empurrou a pistola contra a cabeça da

italiana, reforçando a ameaça sobre ela.


“Não se meta em joguinhos comigo”, avisou. “Tenho o

dedo impaciente por carregar neste gatilho!...”


Tomás virou-se para contemplar o corpo de negro

estendido atrás dele e depois voltou-se novamente para

o polícia; dadas as circunstâncias, o seu raciocínio

não era dos mais rápidos, mas tornara-se evidente que

havia uma ligação entre aqueles dois.


“O senhor também é um sicarius?”

O israelita riu-se.

“Você sempre foi muito perspicaz”, observou.

“O seu azar é que isso já não o vai ajudar.”

O seu rosto endureceu de novo.

“O tubo de ensaio?”


O olho inchado começou a doer com mais intensidade e o

historiador esboçou um esgar de sofrimento e acariciou

a ferida, como se assim conseguisse aplacar a dor.


“Porquê?”, perguntou.

“Porquê tudo isto?

Porquê matar a professora Escalona e os outros dois?

Porquê atacar-me a mim e a Valentina?

O que se está a passar?

O que querem vocês?”


“Queremos a nossa história”, replicou Grossman num tom

subitamente zangado.

“Queremos a nossa cultura! Queremos a nossa dignidade!

Queremos a nossa terra sagrada!”


Tomás fez uma careta de incompreensão.

“Mas alguém aqui pôs isso em causa?”

“Todos os dias! Vocês, os cristãos, apoderaram-se das

nossas Escrituras,

apoderaram-se do nosso passado, e

agora querem apoderar-se do nosso futuro. Isso nunca

permitiremos.

Os sicarii organizaram-se no século I para enfrentar a

ameaça romana. Uma nova ameaça paira sobre Israel, mas

nunca nos entregaremos sem lutar!”


“Está a falar de quê? Que ameaça representavam as

vítimas dos vossos ataques? Que ameaça represento eu?

Que conversa é essa?”


O polícia israelita fez um gesto a indicar o espaço em

redor.


“Todo este projecto é uma ameaça!”, exclamou.

“Se ele for para a frente, é uma ofensa aos judeus e

uma ameaça à sobrevivência de Israel.

O nosso governo recusa-se a ver isso, mas nós, os

sicarii, tal como os nossos antepassados há dois mil

anos, não deixaremos que se usurpe esta terra que Deus

nos deu!”


Tomás sacudiu a cabeça, como se nada do que escutava

fizesse o menor sentido.


“Como é que um projecto para clonar Jesus é uma ameaça

a Israel? Desculpe, mas não entendo!...”


“Vocês, os cristãos, têm de perceber uma coisa”, disse

Grossman.

“Deus escolheu os judeus e fez connosco uma aliança

sagrada.

Há dois mil anos apareceu um rabino judeu chamado

Yehoshua, ou Jesus, que defendia o respeito escrupuloso

das Escrituras e da vontade soberana de Deus.

O que fizeram os seus seguidores com os ensinamentos

dele?

Deturparam-nos! Puseram-no a decretar a abrogação das

Escrituras, coisa que em vida Jesus jamais fez nem

autorizaria.

Chegaram ao cúmulo de o transformar num deus, adorando-

-o como a um ídolo pagão e violando da forma mais

desavergonhada o Shema, a declaração de que só há um

Deus, o mesmo Deus que o próprio Jesus considerava

único e que vocês transformaram numa trindade.

Como se esse ultraje não bastasse, os cristãos

apoderaram-se das nossas Escrituras e usurparam as

nossas tradições.

E o que querem fazer agora com este projecto louco?

Querem repetir tudo! Querem recriar Jesus e educá-lo de


maneira que ele apenas diga e faça o que vocês

consideram ser correcto.

Mas o que está correcto não é o que vocês pensam, é o

que Deus determinou e mandou escrever nas Escrituras,

as mesmas Escrituras que Jesus respeitava até ao último

jota!

Com a palhaçada deste projecto, pretendem apagar da

memória o facto de que Jesus era judeu e apenas judeu,

e planeiam fazer dele o cristão que ele não era.

Este projecto não passa de uma fantochada destinada a

transformar Jesus numa marioneta que irá papaguear o

que interessa a um grupo de pessoas.

Que acontecerá a Israel no meio desse processo?

Será varrido por um vendaval!

Vocês vão pôr esse novo Jesus a decretar a paz no

mundo, como se a paz se impusesse por decreto e os

problemas complexos se resolvessem por artes mágicas.

Seguindo a liderança do Jesus clonado e pacifista, o

Ocidente cristão deixará de nos apoiar e Israel ficará

à mercê do extremismo islâmico.

Por detrás das boas intenções estão desígnios que nos

arrastarão para o abismo.”


“Se pensa assim, porque não denunciou o projecto?

Porque não fez uma campanha ou recorreu aos tribunais?

Não era isso preferível a estes assassínios todos?”

Grossman soltou uma nova gargalhada sem humor.

“Fazer uma campanha? Recorrer aos tribunais?

Acha que sou parvo ou quê? Quem me ouviria?

Como decerto muito bem sabe, a maior parte das pessoas

tem uma ideia errada sobre Jesus. Os cristãos

desconhecem que Cristo não era cristão!

Se eu aparecesse em público a dizer que alguém estava a

tentar clonar Jesus para trazer a paz à Terra, haveria

protestos?

Provavelmente

suscitaria

um

aplauso

generalizado no Ocidente! Quem se iria opor a isso?

As pessoas não têm a menor ideia de quem Jesus era

realmente nem de quão ameaçador tal projecto seria!”

Abanou a cabeça.


“Não! Isto não podia ser tratado assim! Era preciso

cortar o mal pela raiz! Era preciso actuar como os

sicarii actuaram há dois mil anos!”


“Mas a alternativa foi pior”, argumentou Tomás.

“Vocês puseram-se a assassinar pessoas! Não é isso bem

mais grave?”


“Não se fazem omeletas sem partir ovos”, devolveu o

polícia. “Quando tive a informação de que este projecto

tinha sido posto em marcha, avisei os meus superiores

hierárquicos e tentei convencê-los a travar esta

loucura.

Sabe o que fizeram?

Riram-se! Riram-se na minha cara, os idiotas!

Mesmo assim arranjei maneira de informar o governo.

Sabe o que disse o primeiro-ministro de Israel?

Que se tratava de uma iniciativa positiva!”

Bateu com o indicador na testa.

“Está tudo louco! As pessoas não têm a menor noção do

que realmente significa esta ideia de clonar Jesus!

Se uma coisa dessas se concretizasse, as consequências

seriam desastrosas!”

Abanou a cabeça com veemência.

“Não! Isso eu não podia permitir! E não permiti! Do

mesmo modo que no século I os sicarii se ergueram para

defender Israel, nós erguemo-nos hoje para fazer o

mesmo. Se ninguém mais o queria fazer, nós fá-lo-íamos.

E fizemos!”


“Nós quem?”


“Nós, os sicarii renascidos.”


Tomás indicou o corpo estendido no chão.

“E ele?”

“O Lev?”, perguntou Grossman.

“Pobre diabo!” Olhou com melancolia para o cadáver.

“Conheci-o no Líbano, durante uma operação nas

montanhas contra o Hezbollah. Pertencia a uma unidade

especial do Tsahal e era um ás com as lâminas.


Uma vez infiltrou-se sozinho numa gruta e, armado

apenas com uma faca de mato, eliminou um pelotão

inteiro de mudjahedin. A guerra deixou-o afectado,

coitado. Acolhi-o sob a minha protecção, dei-lhe

orientação religiosa e fiz dele um sicarius.”


Ergueu os olhos para Tomás.


“Não sei como o senhor conseguiu matá-lo, nem isso

interessa. Deus assim o quis.”


Desviou a atenção para o equipamento instalado naquela

câmara.

“Cabe-me agora a mim pôr fim a este infeliz projecto.”


“O que vai fazer?”


“Isso é comigo.” Estendeu a mão.

“Vá lá! Entregue-me o tubo de ensaio!”


“Quem me garante que, uma vez na posse do ADN de Jesus,

o senhor não mata a Valentina na mesma e a seguir me

mata a mim?”


A atenção do polícia desviou-se para a italiana e

depois regressou ao português.


“Vamos fazer assim”, propôs. “Vou deixar aqui a nossa

beldade afastar-se. Mas você fica onde está. Quando ela

sair da minha mira, você entrega-me o tubo de ensaio.

Parece-lhe bem?”


“Que garantias tenho eu de que não me mata e depois vai

atrás da Valentina?”


A italiana, até ali imóvel com o cano da pistola

encostado à cabeça, quebrou o seu mutismo.


“Não se preocupe comigo, Tomás”, disse ela numa voz

tranquila, como se estivesse senhora da situação.

“Não se esqueça de que sou polícia e tenho treino de

combate. Se me conseguir afastar, este tipo não me

volta a ameaçar. Só aqui estou porque me apanhou de


surpresa. Garanto-lhe que ele não terá segunda

oportunidade.”


O historiador não pôde deixar de admirar a coragem e a

serenidade dela. Era extraordinário como, com uma arma

apontada à cabeça, Valentina se mantinha segura e sem

mostrar o menor vestígio de medo. Estaria a ocultar o

receio ou aquela manifestação de segurança seria

verdadeira? Fosse como fosse, o sangue-frio que exibia

não deixava de impressionar.


“Tem a certeza?”

A italiana assentiu.

“Absoluta!”, garantiu.

“Esta

câmara

está

cheia

de

químicos

altamente

inflamáveis, já reparou? Avistei ali material com o

qual posso fabricar uma arma letal em apenas trinta

segundos. Dê-me trinta segundos a sós e asseguro-lhe

que este doido não voltará a ter-me na mira.”


Tomás ponderou toda esta informação e, com base nela,

começou a arquitectar um plano. O problema seria

convencer Grossman. Que interesse poderia ter ele em

deixá-los escaparem-se?


“Muito bem”, disse com um suspiro na direcção do

israelita.

“Eu entrego-lhe o tubo de ensaio que contém o ADN de

Jesus. Mas primeiro terá de deixar a Valentina afastar-

se. Estamos de acordo?”


Considerando o que ela acabara de dizer, preparou-se

para uma rejeição daquelas condições e para uma

negociação difícil, mas, para sua imensa surpresa, o

polícia aceitou de imediato.


“Combinado.” Grossman ergueu ligeiramente a arma,

apenas o suficiente para deixar de a apontar à cabeça

da italiana, e fez-lhe sinal de que se afastasse.

“Pode ir embora!”


Valentina recuou uns passos e, em alguns segundos,

desapareceu de vista.


“Tudo bem?”, perguntou Tomás para o ar, dirigindo-se

evidentemente à italiana. “Está em segurança?”


“Sim”, respondeu a voz dela, proveniente de lugar

incerto. “Dentro de alguns segundos tenho até pronta a

arma improvisada. O ponto de encontro é junto à saída,”


O português fitou Grossman, que o encarava com a

pistola na mão. Chegara a hora da verdade. O israelita

havia cumprido o seu lado do acordo. Cabia agora a

Tomás fazer a sua parte. E rezar para não levar um tiro

quando deixasse de ser útil.


“O tubo de ensaio?”, perguntou o polícia; a paciência

não era decididamente uma das suas virtudes.

“Agora!”


Tomás varreu a prateleira com o olhar e localizou a

estrutura metálica com os tubos de ensaio pendurados em

fila. Dois haviam tombado, atingidos no fragor do

combate com Sicarius, mas o tubo de ensaio com o

material genético de Jesus, com o seu característico

conteúdo amarelo-esbranquiçado congelado, permanecia

intacto onde o havia deixado. Estendeu a mão enluvada e

retirou-o da estrutura, mostrando-o a Grossman.


“É isto”, disse.

“Vou deixá-lo aqui.”


Pousou-o com cuidado sobre a prateleira e recuou uns

passos. O polícia avançou pelo corredor, a pistola

sempre em riste, até chegar junto da prateleira. Pegou

no tubo de ensaio e analisou-o, certificando-se de que

era o mesmo que havia visto nas mãos de Arpad Arkan. A

cor do conteúdo e o facto de se encontrar congelado

deu-lhe a confirmação que procurava.


Com um movimento rápido e inesperado, apontou a pistola

à cabeça de Tomás.


“Adeus!”


E disparou.


LXXIV


O que salvou Tomás foi um misto de intuição,

comportamento preventivo e reflexos rápidos. Depois de

pousar o tubo de ensaio na prateleira tinha recuado até

um ponto no corredor onde havia uma abertura lateral

entre duas estantes carregadas de bidões com líquidos,

decerto reagentes e outros químicos necessários para o

trabalho de laboratório.


No momento em que Grossman estendeu o braço para

disparar, o português mergulhou pela abertura e

conseguiu escapar à bala assassina, que ainda lhe

zumbiu perto da cabeça.


“Maldição!”, vociferou o polícia quando se apercebeu de

que tinha falhado o alvo.

“Já te apanho!”


O historiador ergueu-se e desatou a correr, determinado

a escapar. Sabia, contudo, que não seria fácil.

Aqueles corredores longos constituíam verdadeiras

carreiras de tiro e bastaria ao polícia colocar-se em

linha de vista para o atingir pelas costas.

Teria por isso de ziguezaguear entre as aberturas e

rezar para encontrar Valentina e para que ela estivesse

de facto preparada com as suas armas improvisadas para

enfrentar o perseguidor.


Crack.

Crack.

Duas novas detonações ecoaram pela câmara com fragor,

sinal de que o mestre dos sicarii o havia alvejado de

novo. Tomás encolheu instintivamente a cabeça e ainda

se interrogou sobre se havia sido atingido, mas

percebeu que a dúvida era idiota; continuar a correr

constituía prova suficiente de que permanecia ileso.


Um súbito clarão amarelo-avermelhado, acompanhado por

um estrondo e por uma vibração do ar obrigou o

português a olhar para trás. Uma bola de fogo crescia


como um balão na parte do corredor por onde acabara de

passar.

Ainda pensou que se tratava do tão aguardado contra-

-ataque de Valentina, talvez com cocktails Molotov ou

outra coisa do género, mas não a avistou em parte

alguma e o facto de a explosão ter ocorrido

precisamente naquele corredor fê-lo perceber o que

acontecera.


Pelo

menos

uma das balas

disparadas

pelo

seu

perseguidor tinha atingido um recipiente com material

inflamável.

As estantes que ardiam estavam cheias de bidões e as

labaredas pareciam formar tentáculos, estendendo-se a

outras estantes e abraçando novos recipientes

carregados de líquidos inflamáveis.

Sucederam-se novas explosões, quase em cadeia. O ar

dava a impressão de bailar sob o choque das sucessivas

deflagrações.


“Meu Deus!”


A nova realidade impôs-se a Tomás.

Cerca de vinte por cento do santo dos santos estava de

repente transformado numa bola de fogo e o incêndio

estendia-se depressa ao resto da câmara, devorando

descontroladamente cada vez mais corredores. Estava

lançada uma corrida infernal. Em breve a bola de fogo

cobriria todo o espaço.


As opções do historiador, tal como as das restantes

pessoas apanhadas naquela emboscada de chamas e fumo,

reduziam-se a uma. Fugir.

Correr para a saída e escapar enquanto havia tempo.

O problema é que a passagem estava bloqueada por uma

porta blindada e Arpad Arkan, que se encontrava fora de

combate, era o único que conhecia a senha. Restava a

Tomás a esperança de que o seu palpite sobre a chave do

código que destrancava a porta fosse correcto.


O português esquadrinhou o santo dos santos em direcção

à única escapatória possível, entrando por aqui e

fugindo por ali, sempre a desviar-se das labaredas que


ocasionalmente lhe bloqueavam o caminho, até por fim se

deparar com o que procurava.


A porta blindada.


O último corredor por onde se meteu desaguou no espaço

diante da porta. Tomás vinha lançado em corrida e só

travou quando embateu com a barriga e as palmas das

mãos no metal que lhe impedia a fuga. A porta blindada

tinha uma janelinha circular no meio, mas o vapor e o

fumo embaciavam-na e não deixavam ver através do vidro.


“Você está bem?”


O historiador olhou para trás, por cima do ombro, e viu

Valentina a fitá-lo com os seus grandes olhos azuis.

A italiana tinha retirado a parte de cima do escafandro

e estava de cabeça descoberta, o que se afigurava

inteiramente natural; o incêndio havia aquecido a

câmara e naquelas novas circunstâncias já não se punha

o problema do frio nem da contaminação das preciosas

amostras guardadas no Kodesh Hakodashim.


Sem proferir uma palavra, Tomás abraçou-a e beijou-lhe

o cabelo. Cheirava a fumo, mas o que lhe importava

isso? Sentiu ganas de lhe cobrir a face de beijos e só

parar quando lhe chegasse aos lábios, mas conteve-se;

aquele não era com certeza o momento mais apropriado. A

prioridade era outra. Segurou-a pelos ombros e encarou-

a.


“Temos de sair daqui”, disse, fitando-a nos olhos. “Não

tarda nada isto está tudo a arder!...”


Pela primeira vez apercebeu-se de que a italiana estava

assustada. Não era de admirar. Já enfrentara o ataque

do sicarius e a traição de Grossman, e, como se tudo o

resto não bastasse, confrontava-se com aquele incêndio

descontrolado.

O pior é que as chamas se aproximavam cada vez mais

depressa, conferindo uma maior urgência à necessidade

de abandonarem a câmara.


“Mas como?”, perguntou Valentina.

“A porta está trancada. Você sabe o código?”


A atenção de Tomás desviou-se para a porta blindada.

“Não tenho a certeza”, disse. “Mas acho que sei.

Lembra-se que para entrarmos o...”


Calou-se a meio da frase. Diante dele viu Arnie

Grossman, também de cabeça destapada, a emergir do fumo

com a arma apontada para ele.

O historiador lançou olhares para todos os lados, em

busca de uma linha de fuga.

Naquelas circunstâncias, porém, não havia mais nenhuma

escapatória possível. Se quisesse fugir, para onde

iria? Para o fogo que se aproximava?


“A armadilha fechou-se!”, rugiu o mestre dos sicarii,

saboreando o momento.

“Ratos como você acabam sempre por ser apanhados, hem?”


O português ergueu as mãos, as palmas voltadas para o

homem armado num gesto de rendição.


“Tenha calma!”, disse.

“Estamos todos no mesmo barco!”


O rosto de Grossman abriu-se num sorriso grotesco.

“Eu não partilho o meu barco com ratos”, grunhiu.

Fez pontaria e armou o gatilho, preparando-se para

disparar.


“Muito menos com um que se prepara para se tornar um

cadáver. ”


A situação era desesperada. Sempre de mãos no ar, Tomás

recuou um passo e embateu com as costas na porta

metálica. Encontrava-se na posição clássica do fuzilado

no momento anterior ao disparo.


Sentindo-se perdido, desviou o olhar para Valentina.

Não tinha sido ela que dissera ter improvisado uma arma


e que não voltaria a deixar-se surpreender pelo polícia

israelita?

Se tinha uma arma, este era o momento de a usar.

Na mente do historiador não havia a menor dúvida de

que, depois de o executar, Grossman voltaria a pistola

para ela e abatê-la-ia também.


Chegara o instante do tudo ou nada.

“Arnie, espere aí!”

A italiana dirigiu-se ao israelita em termos que

suscitaram uma profunda decepção em Tomás, em cuja

mente se cruzaram múltiplas perplexidades.


“Arnie, espere aí”?

Que raio de ingenuidade era aquela? Será que ela achava

que uma frase destas os iria salvar? Onde diabo estava

a arma improvisada que Valentina havia fabricado?

Porque não a usava?


“O que é?”, quis saber Grossman, sem desviar a pistola

do alvo.

“Passa-se alguma coisa?”


Uma nova surpresa para Tomás. Afinal o apelo de último

recurso, por muito ingénuo e ineficiente que parecesse,

estava a funcionar! Era evidente que ela procurava

ganhar tempo, decerto para usar a tal arma.

“Você tem o material genético?”, perguntou Valentina.

“Claro”, devolveu o israelita, retirando o tubo de

ensaio do bolso interior do escafandro para o exibir

como prova.

“Achava que o tinha perdido?”


“Era só para me assegurar de que estava tudo sob

controlo”, explicou ela.

Fez um sinal com a cabeça, a indicar o historiador.

“Não o mate já!”


Grossman carregou as sobrancelhas, esboçando uma

expressão intrigada.


“Ora essa! Porquê?”

Valentina indicou a porta.

“Sabe o código para sair daqui?”


O israelita olhou para a superfície metálica e hesitou;

era evidente que aquele problema ainda não lhe tinha

ocorrido.


“Ó diabo!”, exclamou. “E agora?”


A inspectora da Polizia Giudiziaria fez um gesto na

direcção de Tomás.


“Mas ele sabe.”


Grossman olhou para o historiador com novos olhos, como

se aquele dado alterasse tudo.

Hesitou

um

longo

momento

e

coçou

a

cabeça,

reequacionando a situação.

Não havia muito que pensar; as alternativas eram poucas

e evidentes, e o tempo escasseava.


O mestre dos sicarii deu dois passos em direcção ao seu

alvo e encostou-lhe a pistola à testa.


“Qual é a senha?”


Tomás devolveu-lhe um olhar carregado de desdém.


“O que faz se eu não disser?”, perguntou em tom de

desafio.

“Mata-me?”


O polícia israelita ponderou o problema. Era evidente

que a sua vítima se sentia perdida. Que incentivo tinha

o português para lhe revelar a palavra de código que

permitiria franquear a porta blindada se sabia que

depois seria morto?


A realidade impôs-se. Era necessário recorrer aos

grandes meios. Consciente de que o tempo urgia por

causa da aproximação das chamas, Grossman aproximou-se

da italiana e estendeu-lhe a pistola.


“Segure aí!”, pediu.

“Vou ter de lhe fazer um interrogatório a sério.”


O coração de Tomás deu um salto quando viu o seu

inimigo entregar a arma a Valentina.

Ela era absolutamente genial!, pensou, dominando um

desejo quase irresistível de dar um pulo de alegria.

Teve vontade de voltar a abraçar aquela mulher, e desta

vez não pouparia nos beijos nos lábios! Recorrendo

exclusivamente à astúcia e à dissimulação, a inspectora

da Polizia Giudiziaria conseguira ludibriar o israelita

e levara-o mesmo a passar-lhe a pistola para as mãos!

Se não tivesse visto com os seus próprios olhos, nunca

teria acreditado! Aquilo era incrível! Tratava-se de

uma obra-prima na arte da manipulação das mentes!


Valentina pegou na pistola e durante uns segundos

estudou o mecanismo de tiro; tratava-se afinal de uma

arma de fabrico israelita, que não estava habituada a

usar. Como era polícia, depressa percebeu o que devia

fazer e ergueu-a; no fim de contas, os princípios eram

universais. Reprimindo com dificuldade a expectativa de

pôr fim àquela situação insustentável, Tomás esperou

que ela apontasse a pistola a Grossman, mas o que se

passou a seguir deixou-o desconcertado.

Em vez de voltar a arma contra o israelita, Valentina

desviou o cano para as pernas do prisioneiro.


“Não se mexa!”, ordenou ela ao português.

“Se tentar fazer alguma coisa, leva com uma bala nos

joelhos!”


Choque.


Ver a italiana virar-se contra ele constituiu um choque

total.


Foi nesse instante de perplexidade, arrastado numa

autêntica

montanha-russa

de

emoções,

primeiro

o

desespero absoluto, depois a alegria quase incontida,

agora a decepção completa, que Tomás tomou enfim

consciência da terrível e incrível realidade.


Valentina era o inimigo.


LXXV


A imagem de Valentina em frente dele a apontar-lhe uma

pistola

parecia

demasiado

inconcebível

para

ser

verdadeira; todavia, era isso mesmo o que naquele

instante sucedia a Tomás.

O historiador mantinha fixo nela o seu olho direito,

fitando-a e recusando-se a acreditar. Não podia ser!

Valentina não podia estar do lado dos sicarii! Isso era

absolutamente impossível! Impensável! Incompreensível!


Porém, a realidade, por mais dura e inacreditável que

parecesse, afigurava-se indesmentível. Arnie Grossman

entregara-lhe a arma e ela não a virara contra o mestre

dos sicarii, mas contra Tomás. Por mais que buscasse

explicações

e

recorresse

aos

argumentos

mais

fantasiosos

e

imaginativos

para

justificar

o

injustificável, os factos eram o que eram.

Valentina tinha a pistola nas mãos e apontara-a para

ele.


“O que se passa?”, perguntou-lhe o historiador,

tentando extrair um sentido de tudo o que vira e ouvira

nos últimos instantes.

“Porque não prende este tipo? O que está a fazer?”


De olhos semicerrados e com a arma a dançar-lhe na mão,

a italiana esboçou um sorriso malicioso, quase

provocador.


“Não

sabia

que

nós,

as

mulheres,

somos

umas

dissimuladas?”


“O quê?”


Valentina abanou a cabeça e fez um estalido desdenhoso

com a língua.


“É

mesmo

tonto!”,

exclamou

com

condescendência.

“Pensava que eu ia permitir que uma palhaçada destas

fosse até ao fim? Achava que esses olhos verdes e o

charme latino me traziam embeiçada ao ponto de ter


perdido todo o discernimento?” Voltou a abanar a

cabeça. “Ah, pobre tolo! Como são idiotas os homens!”


Arnie Grossman remexia no bolso das calças, ocupado com

qualquer coisa que escapava a Tomás.

Surpreendido com a reviravolta que se operara nos

acontecimentos, o historiador nem tentou perceber o que

ele fazia.


A sua atenção estava toda voltada para a inspectora da

Polizia Giudiziaria, que encarava com uma expressão

baralhada, como se nenhuma das palavras que ela acabara

de proferir fizesse o menor sentido. Tinha a impressão

de que não a reconhecia ou até de que nem sequer se

tratava da mesma pessoa. O mesmo corpo, embora uma

pessoa diferente.


“Mas... o que se passa? Que loucura é esta? Desde

quando é que... que...”


“Desde o princípio.”


“Como?”


Valentina desviou o olhar para o israelita, que nesse

instante afiava o que pareceu um canivete suíço.


“Eu e o Arnie já nos conhecemos há algum tempo”,

revelou. “Somos ambos polícias e temos bem a noção dos

limites da eficácia da lei. Por isso envolvemo-nos em

sociedades secretas que se destinam a resolver

problemas que pelas vias legais não têm solução. Ele

refundou em Jerusalém os sicarii, eu faço parte da área

operacional de segurança de uma loja maçónica chamada

P2, não sei se já ouviu falar...”


Tomás estava boquiaberto; aquela mulher não era

definitivamente a pessoa com quem convivera na última

semana.


“O quê?”


“P2”, repetiu ela. “Uma sigla que significa...”


“Propaganda Due”, disse o português muito devagar,

reconhecendo a designação e pronunciando o nome em

italiano.

“Sei muito bem o que é. A P2 tem ligações com o

Vaticano, andou envolvida no escândalo da lavagem de

dinheiro da máfia através do Banco Ambrosiano e consta

que não está inocente na morte do papa João Paulo I,

que se prepararia para denunciar as manigâncias da P2 e

morreu antes de o fazer.”

Valentina sorriu com esta última referência.

“Boatos”, retorquiu com um trejeito de desdém.

“Mas vejo que está familiarizado com a nossa pequena

organização.”


“A

triste

fama

da

P2

precede-a”,

devolveu

o

historiador. Olhava-a ainda com incredulidade.

“Você pertence mesmo a esse bando de malfeitores?”

Ela fez um gesto com a pistola.

“Sou eu quem tem a arma na mão, não sou?”


Tomás rendeu-se à evidência; era manifesto que dessa

vez ela dizia a verdade. Parecia-lhe incrível que

Valentina o tivesse ludibriado e manipulado todo aquele

tempo. A forma como o recrutara para a investigação,

como o conduzira pelo trilho dos enigmas plantados de

propósito para o levar a Israel e os ajudar a penetrar

no interior da Fundação Arkan, até o ataque que ele

sofrera no quarto do hotel e a compaixão que ela

mostrara... tudo não passara afinal de fingimento!


O português sacudiu a cabeça. Não havia ainda chegado a

hora adequada para rever ao pormenor toda a impostura

montada pela italiana. Primeiro precisava de obter

informações e de perceber como se atingira este ponto,

e só depois se preocuparia com o resto.


“O que faz a P2 metida nesta história?”


Valentina indicou o vulto atarefado de Grossman.


“Tudo começou quando ali o Arnie, através dos canais

apropriados, nos contactou para nos informar sobre este

projecto da Fundação Arkan.

Revelou-nos que a fundação tinha isolado células com o

ADN de Jesus e planeava fazê-lo nascer logo que a

clonagem de seres humanos fosse viável.

Inicialmente essa história pareceu-nos demasiado

fantasiosa e não acreditámos, mas depois verificámos a

informação e, para nossa grande surpresa, tudo se

confirmou. Achámos a ideia uma loucura, claro. Uma

loucura perigosa.”


“Perigosa? Porquê?”


Ela inclinou a cabeça de lado.


“Francamente, Tomás! Clonar Jesus? Já viu bem as

consequências de uma coisa dessas? Como reagiria Jesus

quando um dia chegasse ao Vaticano e visse toda aquela

opulência? E se ele fizesse em Roma o que fez quando

visitou o Templo de Jerusalém?”

Esboçou um gesto teatral e citou as palavras de Jesus

quando provocou o incidente no Templo.

“‘Não está escrito: A minha casa será chamada casa de

oração para todos os povos? Mas vós fizestes dela um

covil de ladrões.’”

Fitou Tomás.

“Está a ver a cena? Jesus a criticar o Vaticano e a

mandar vender tudo para ajudar os pobres?”

Inclinou a cabeça para o lado.

“Acha mesmo que íamos tolerar uma coisa dessas?”

O historiador suspirou.

“Já percebi”, disse. “O regresso de Jesus poderia pôr

em causa os interesses instalados!...”


“Tínhamos de travar essa loucura”, exclamou Valenti-

na.


“A P2 convocou uma reunião especial para discutir o

assunto e ficou decidido que nos iríamos articular com

os sicarii. Urgia pôr fim a esta fantochada.

Acontece que a Fundação Arkan mantinha o projecto em

grande segredo e as nossas tentativas para o infiltrar

não foram bem sucedidas. Identificámos, no entanto,

algumas figuras-chave ligadas ao projecto e delineámos

um plano que implicava o recrutamento de um dos mais

prestigiados historiadores do mundo.”

Sorriu.

“Você.”


A revelação deixou Tomás atónito.

“Eu?”

“O plano era simples”, indicou ela.

“Os sicarii iriam executar três dessas personalidades

ligadas ao projecto e deixariam pequenas pistas que só

um historiador perito em criptanálise e línguas antigas

seria capaz de decifrar.

Fomos entretanto informados de que a professora

Escalona tinha pedido para consultar o Codex Vaticanus

na Biblioteca Vaticana e soubemos que ela era sua

amiga. Pareceu-nos perfeito. Graças a um contacto no

ministério italiano da Cultura, arranjámos maneira de

garantir que as autoridades culturais solicitavam à

Fundação Gulbenkian que o envolvesse a si no restauro

das ruínas do Fórum e dos mercados de Trajano na data

em que a historiadora galega estaria em Roma.

Uma vez todas as peças alinhadas no tabuleiro, foi só

desencadear a operação.

A professora Escalona chegou a Roma na data prevista e

um colaborador nosso comunicou-lhe que você também

estava na cidade. Como prevíamos, ela telefonou-lhe de

imediato.”


“Cabrões!”, rosnou Tomás em voz baixa, lutando por

controlar a fúria que dele se apossava à medida que

percebia como fora manipulado desde o início.

“E se ela não tivesse telefonado? Como fariam vocês

para me envolver nessa vossa tramóia?”


“O homem de mão do Arnie teria feito uma chamada para o

seu número a partir do telemóvel dela. Mas não foi

necessário. A professora Escalona telefonou para si e

depois dirigiu-se à Biblioteca Vaticana, onde tinha à

espera dela o operacional dos sicarii. Quando fui

chamada ao local para proceder às averiguações do

homicídio só tive de espreitar a lista de chamadas no

telemóvel da vítima e convocá-lo imediatamente ao

Vaticano. Era o pretexto ideal para o envolver nas

investigações.”


“Mas porquê eu?”


“Porque você conhecia uma das vítimas e porque

precisávamos de um pisteiro que nos conduzisse ao

coração deste projecto.”

Ergueu a mão, exibindo o tubo de ensaio com o ADN de

Jesus.

“O facto de eu estar agora na posse deste material

genético é prova suficiente de que o plano foi bem

gizado.”

Arqueou as sobrancelhas, muito satisfeita consigo

própria.

“E, perdoe-me a imodéstia, bem executado.”


Novas explosões sacudiram a câmara. O incêndio

alastrava e aproximava-se. Percebendo que não dispunha

de muito tempo, Grossman interrompeu a conversa.


“Para que está você a contar-lhe isso tudo?”


“Porque sou uma boa cristã”, retorquiu a italiana num

tom sarcástico.

“Se ele vai morrer, tem ao menos o direito de saber por

que razão morre.”


“Antes disso, há uma coisa que ele precisa de fazer”,

disse o israelita, indicando a porta blindada.

“Tem primeiro de nos dizer qual é a senha.”


Com um movimento inesperado, o israelita agarrou o

historiador pelos ombros, pôs a perna de lado e


aplicou-lhe um golpe de judo, estendendo-o no chão de

barriga para baixo.


“O que é isto?”, espantou-se Tomás, a face colada ao

solo.

“Que está a fazer?”


O atacante agarrou no braço esquerdo do seu prisioneiro

e estendeu-o à força, obrigando-o a espalmar a mão.

Fixou-lhe o pulso ao solo e colou-lhe o canivete suíço

à base do dedo mindinho.


“Vou apresentar-lhe uma técnica de interrogatório com

uma taxa de sucesso próxima dos cem por cento”,

anunciou.

“A técnica consiste em amputar os dedos dos suspeitos

até eles começarem a falar. Muito simples, não é?

Simples e eficaz. Garanto-lhe que todas as pessoas a

quem apliquei este método acabaram por cantar que nem

querubins. É o que você vai também fazer.”


“O senhor está louco?”


“Dou-lhe uma última oportunidade que lhe irá poupar

muito sofrimento desnecessário se a souber aproveitar”,

anunciou. “Qual a senha para destrancar a porta?”


O português sentiu a lâmina pousada no dedo e avaliou a

situação. Não era famosa. Mas quais as alternativas de

que dispunha? Tinha o olho esquerdo inchado, a mão

direita

engessada,

sentia-se

fatigado

e

traído,

encontrava-se fechado numa câmara onde tudo ardia,

havia uma mulher a apontar-lhe uma pistola e estava

deitado no chão com um louco a ameaçar cortar-lhe um

dedo. A palavra de código que permitia abrir aquela

porta, a via de salvação para todos, era o único trunfo

que lhe restava. O que deveria fazer?


“Porque diabo lhe iria revelar a senha?”, perguntou,

desesperadamente à procura de uma saída que o tirasse

dali.

“Para o senhor me matar a seguir?”


“Mais tarde ou mais cedo todos morremos”, devolveu

Grossman num tom quase paternalista.

“A única coisa que não sabemos é como. Finamo-nos

depressa e sem sofrimento ou morremos de maneira atroz,

com grande dor e ansiedade? São estas as opções que lhe

estou a oferecer. Agora escolha.”

A voz esfriou e endureceu.

“Qual é a senha?”

“Vá à merda!”

O israelita respirou fundo; a sua paciência, já

naturalmente escassa, tinha chegado ao limite.


“Você o quis!”


Uma dor aguda irrompeu nesse instante do dedo mindi-

nho de Tomás, como se o universo inteiro se centrasse

ali.

O historiador sentiu a visão encher-se de luzes e

soltou um grito de pura agonia.

Grossman tinha começado a serrar com o canivete suíço

que estivera a afiar e o sofrimento provocado pela

lâmina era indescritível.

A vítima tentou implorar que parasse, que tivesse dó,

que aquilo era de mais, mas as palavras atropelaram-se

e foram engolidas pelo berro de dor que lhe enchia a

garganta, como se o grito fosse, por si só, capaz de o

libertar da crueldade a que estava a ser sujeito.


Grossman amputava-lhe o dedo.


LXXVI


Algo aconteceu.


No auge de toda aquela dor, quando tudo parecia perdido

e a confissão se tornara inevitável, Tomás sentiu o

aperto firme do seu agressor descontrair de repente e,

logo a seguir, o braço esquerdo soltou-se.


Encolheu-o num movimento instintivo e contorceu-se no

chão, agarrando-se à mão ferida para tentar atenuar a

agonia. Não percebeu o que acontecera, mas o importante

é que acontecera. A dor no dedo mindinho era tremenda,

mas abrandou o suficiente para que ele pudesse abrir o

olho direito e tentasse perceber por que motivo Arnie

Grossman lhe havia largado o braço.


Viu o polícia israelita de joelhos diante dele com uma

expressão bizarra desenhada no rosto enrubescido, os

olhos arregalados a revirarem-se, a língua de fora no

estertor da asfixia e a ponta de uma lâmina a sair-lhe

junto à maçã-de-adão por entre golfadas cadenciadas de

sangue.


Crack.

Crack.

Dois tiros soaram com grande fragor, como se tivessem

sido disparados mesmo ao lado dos seus ouvidos.

Tomás quase se sentiu ensurdecer.

Apercebeu-se nesse instante do movimento de um vulto

atrás de Grossman e, olhando para ali, identificou-o.

Era Arpad Arkan.

O presidente da fundação tombou no chão como um saco e

ficou deitado de barriga para baixo, com dois fios de

fumo a saracotearem de buracos escuros nas costas como

bafos exalados pelas crateras de vulcões que

despertavam.


Tomás desviou o olhar para o lado e viu Valentina em

posição de tiro, o fumo a esvoaçar do cano da pistola.

No meio de toda aquela confusão compreendeu o que via


e, como num sonho, conseguiu reconstituir os traços

gerais do que acabara de suceder.


Arkan devia ter recuperado os sentidos e retirado do

braço a faca que lhe fora espetada. Apercebendo-se do

fogo que lavrava pelo santo dos santos, fugiu para a

porta e viu Tomás a ser torturado por Grossman.

Percebendo o que se passava, não perdeu tempo e espetou

a adaga dos sicarii no pescoço do polícia. O problema é

que não deve ter visto a italiana, ou então não

compreendeu o verdadeiro papel que ela desempenhava

naquela situação, e foi abatido pelas costas.


“Você enlouqueceu?”, perguntou o historiador com a

fúria a enrouquecer-lhe a voz, gatinhando para junto de

Arkan.

“Passou-se de vez?”


Valentina voltou para ele a mira da pistola fumegante.

“Quieto!”

Tomás inspeccionou a face do presidente da fundação.

Tinha os olhos semicerrados e vidrados no infinito, com

uma expressão que lhe deixou poucas dúvidas.


O português voltou o rosto na direcção da inspectora da

Polizia Giudiziaria.


“Tem a noção do que acabou de fazer?”


Valentina deitou um olhar assustado para as chamas que

se aproximavam; as labaredas encontravam-se já a uns

cinco metros e preparavam-se para envolver as estantes

mais próximas do espaço onde eles se encontravam.


“Abra a porta!”, ordenou ela, batendo com a palma da

mão na placa metálica que lhes obstruía a fuga.

“Não há tempo para andarmos aqui a discutir pormenores!

Abra esta maldita porta!”


Tomás arrastou o corpo de Arkan para junto da entrada,

passando ao lado do cadáver de Grossman.


“Ele é que sabia a senha!”, berrou de volta.

“Você quer sair daqui? Então porque matou a única

pessoa que conhecia a palavra de código? Isso faz algum

sentido?”


A italiana esboçou uma expressão desconcertada, os

olhos a saltitarem entre Tomás e o corpo inerte de

Arkan.


“O que quer dizer com isso? Pensei que você sabia a

senha!...”


“Eu presumo que sei!”, devolveu o historiador num tom

furioso.

“Presumo! Mas... e se o meu palpite estiver errado?”

Indicou o corpo que acabara de arrastar para junto da

porta.

“O único que de certeza conhecia a senha era aqui o

Arkan! E você acabou de o abater!” Abanou a cabeça.

“Bravo! É mesmo esperta, não há dúvida!”


O calor galopante pôs fim à incerteza que por esta

altura atormentava Valentina.

Ela tomou consciência de que se precipitara e

evidentemente cometera um erro, mas não tinha maneira

de desfazer o que fora feito e o fogo começara já a

alastrar à última estante. Dispunham de um minuto,

talvez dois, para sair dali. Não mais. Depois disso,

todo aquele espaço seria engolido pelo mar tormentoso

de chamas que envolvia o Kodesh Hakodashim.


“Abra a porta!”, berrou, já fora de si.

“Abra imediatamente esta porta!”


O historiador deitou uma olhadela às chamas que se

aproximavam. Não havia de facto muito tempo para agir.


“Eu abro”, disse.

“Mas primeiro você tem de lançar a pistola para o meio

do incêndio.”


“Abra a porta!”


“Não ouviu o que lhe disse?” Apontou para o fogo.

“Atire a pistola para ali e eu abro-a! Se não fizer

isso, não conte comigo. Não estou para apanhar um tiro

depois de ter destrancado a porta.”


Valentina perscrutou-lhe o rosto, tentando avaliar se

ele falava a sério. Não conseguiu ler-lhe a face, mas

não era difícil perceber o ponto de vista de Tomás. Por

que motivo haveria ele de abrir a porta se depois se

sujeitava a levar com uma bala na cabeça? Grossman

havia tentado extrair-lhe a senha com a ajuda do

canivete suíço, mas o idiota do Arkan aparecera de

surpresa

e

estragara

tudo.

Agora

ela

estava

inteiramente nas mãos daquele português.


“Va bene!”, rendeu-se. Pegou na pistola pelo cano e

atirou-a para o meio do inferno de chamas.

“Já está!”

“Linda menina!”

A seguir a italiana pegou no tubo de ensaio com o

material genético de Jesus, deu-lhe um beijo e lançou-o

na mesma direcção.


“Adio, Signore!”


“O que diabo fez você?”, perguntou Tomás, escandalizado

com o que acabara de ver.

“Destruiu o ADN de Jesus?!”

Valentina suspirou.

“Era essa a minha missão, lembra-se?”, recordou-lhe.

“Agora abra esta maldita porta! E depressa!”


Percebendo que o tempo se esgotava, que o calor se

tornara sufocante e que só teria menos de um minuto

antes de o fogo os devorar a todos, Tomás virou-se para

a porta e destapou a placa que ocultava o teclado onde

era inserida a senha. Depois passou os olhos pelo poema


estampado no vidro da janela circular que se encontrava

a meio da porta.


XlBer aflen ©ípfeín íst Xuí), ín aíTen TOípfefn spürest

5u Raum eínen íòaucfj;


Me X)ògefeín sclycoeígen ím Tüafôe. tDarte nur, Bafôe.

?lul}est 5u aucí).


“O Arkan disse que a palavra de código que destranca a

porta está relacionada com este poema que serve de

motto à fundação”, murmurou, falando mais para si

próprio do que para a italiana.

“Mandou colar o poema ao vidro para nunca se esquecer

da senha. Quando a inseriu no teclado para entrarmos

aqui, as teclas fizeram um barulho, o que me permitiu

contar o número de letras. Eram seis.”

Olhou para Valentina.

“Que palavra de seis letras tem relação com este

poema?”


Os olhos horrorizados da italiana estavam presos às

chamas a uns meros dois metros deles, e nem sequer o

ouviu. Ou se ouviu não entendeu.


“Despache-se!”


“Goethe”, disse Tomás, respondendo à sua própria

pergunta.

“É Goethe o autor do poema e o seu nome tem seis

letras.”


Premiu as letras no teclado. G-O-E-

T-H-E.

Depois aguardou que a porta destrancasse.


“Depressa!”, gritou Valentina, já tomada de pânico.

“Abra a porta! Por amor de Deus, abra a porta!”


Nada aconteceu.


A porta não abriu.

Tentou outra vez e o resultado foi o mesmo.

O desânimo apossou-se de Tomás.

Tinha de se render à evidência. Enganara-se. Goetbe não

era a senha.


O calor tornara-se infernal e Valentina começou a

chorar.

Se

dispusesse

de

mais

dez

minutos,

o

historiador estava convencido de que seria capaz de

chegar à palavra de código. Assim não. As condições

eram demasiado aflitivas e o tempo excessivamente

curto.

Restavam alguns segundos.

O fogo envolvia já o corpo de Grossman e a todo o

instante iria engoli-los a todos.


“Abra a porta!”

Pensa, Tomás.

Que palavra com seis letras tem relação com o poema?

O historiador fechou os olhos e fez um esforço sobre-

-humano para se concentrar.

Regressemos ao ponto de partida, raciocinou, tentando

manter a calma.

Qual o tema do poema?


‘“Por todos estes montes reina a paz’”, recitou em voz

baixa, “‘em todas estas frondes a custo sentirás sequer

a brisa leve; em todo o bosque não ouves nem uma ave.

Ora espera, suave. Paz vais ter em breve.’”


Paz.


Seria essa a palavra-chave? O coração de Tomás deu um

salto. Peace! Era peace! Só podia ser peace! Contou

mentalmente as letras. Um-dois-três-quatro-cinco.


Cinco.

“Merda!”

Cinco letras! Era uma letra a menos!


A porra de uma letra a menos!

Abanou a cabeça. Não era peace.


Valentina estava lavada em lágrimas, no desespero de

quem se sabia perdida, e as labaredas começavam a

lambê-los, queimando-lhes a pele.


“Abra!”, implorou aos soluços, as duas mãos coladas

numa prece. “Per favore, abra! Dio mio!”


Se não era peace, que palavra poderia ser? Tomás voltou

a concentrar-se. A Fundação Arkan era uma organização

israelita, com sede em Jerusalém e o centro de pesquisa

a funcionar em Nazaré. Que língua seria natural que

usasse? O inglês? Não, claro que não. O hebraico! O

coração de Tomás deu um novo salto. Como se diz paz em

hebraico?


Era a derradeira tentativa. O historiador agarrou-se ao

teclado com sofreguidão e, a mão a tremer quase descon-

troladamente, digitou a palavra de seis letras. S-H-A-

L-O-M.


Bip.


A porta abriu-se.


Epílogo


Os raios do Sol jorravam pela janela como uma cortina

translúcida de luz quando a mulher de bata branca

entrou no quarto e atirou um sorriso profissional na

direcção do paciente. Ao peito, junto ao estetoscópio

que tinha pendurado ao pescoço, trazia uma faixa com um

nome bordado a linha azul-escura a identificar Lesley

Koshet, M. D.


“Bom dia!”, cumprimentou com jovialidade.

“Então como se sente o nosso herói esta manhã?”


Um grunhido dorido foi a resposta relutante de Tomás.

“Já tive dias melhores...”


A médica israelita sorriu.


“Quer outro analgésico ou já se acha capaz de aguentar

a dor?”


O paciente fez uma careta.


“Mais um analgesicozinho não caía nada mal, não senhor.

Será que mo poderia dar?”

Lesley esboçou uma careta.

“Creio que não”, respondeu ela.

“Está na hora de desmamar dessas drogas. O senhor já

tem idade para aguentar uma dorzinha sem choramingar,

não tem?”


Tomás endireitou-se na cama e inclinou-se para a

frente, de modo a poder espreitar o espelho pregado na

parede e mirar o seu rosto.


“Olhe para a minha cara, doutora”, lamuriou-se. “Já viu

isto? Não acha que mereço mais um analgésico?”


A imagem reflectida no espelho mostrava uma cabeça

quase toda envolta em ligaduras brancas. A parte

esquerda da face estava completamente tapada, com as


ligaduras a protegerem o malar esfacelado e o olho

inchado.

A seguir o historiador levantou as duas mãos e exibiu

os curativos. A mão direita apresentava-se mergulhada

numa bola de gesso enquanto a esquerda tinha o dedo

mindinho envolvido por ligaduras. E havia ainda, claro,

o penso no pescoço.


“Parece uma múmia”, gracejou ela. “Ramsés II!”

“Oh, não brinque!...”

“Vá lá, não seja mariquinhas!”, repreendeu-o a médica.

Pegou no boletim clínico aos pés da cama e consultou-o.

“Mais um bocado e põe-se a choramingar!...”


“Goze, goze!”, protestou Tomás, fazendo beicinho.

“Isto não é brincadeira nenhuma! Vou ficar com a cara

cheia de cicatrizes, já viu?”


“Não recomece...”


“Sabe que alcunha os meus alunos na faculdade me vão

dar? Scarface! Vão-se rir de mim e chamar-me Scarface!

Ou então Frankenstein! Oh, já os estou a ver!...”

A atitude melodramática arrancou uma risada a Lesley.

“E sabe qual é a minha alcunha aqui no hospital?”,

perguntou.

“Mãos de Fada!

Sabe porquê?

Porque faço magia na mesa de operações. Garanto-lhe que

vai sair daqui com um rosto de bebé. Nem um arranhão!

Continuará bonitão como sempre.”


“Jura?”


A médica pôs a mão sobre o coração, tapando a faixa com

o seu nome bordado na bata, e assumiu um semblante

solene.


“Cross my heart!”


A promessa deixou Tomás um tudo-nada mais tranquilo.

Recostou-se na almofada da cama e pôs-se confortável.

Não sabia porquê, mas tendia a ficar piegas sempre que

caía de cama. Era assim já em criança e pelos vistos

não mudara.


“Se eu vir nem que seja um arranhãozinho na cara, vai

levar com uma queixa”, avisou.

“Vou direitinho à Ordem dos Médicos!”

“Ui! Estou cheia de medo!”

“Tem razões para estar. Veja lá como me trata!...”


A médica acabou de consultar a ficha do paciente e

devolveu-a ao seu lugar, na grelha aos pés da cama.

Ergueu os olhos para o português e desfez o seu sorriso

de bonomia, como se entrasse agora nas coisas sérias.


“O senhor Arkan quer falar consigo.”

O anúncio surpreendeu Tomás.

“Como está ele?”


“Que lhe parece?”, respondeu Lesley com uma ponta de

sarcasmo.

“Levou dois tiros nas costas e ainda tem uma bala

alojada nos pulmões. Daqui a pouco vou operá-lo de novo

para a retirar.”


“Acha que se safa?”

A médica assentiu com a cabeça.

“Claro que sim”, disse.

“Há pouco íamos anestesiá-lo, mas ele pediu para lhe

dar uma palavra antes de iniciarmos os procedimentos

para a cirurgia.”

Observou-lhe o corpo estendido na cama.


“Sente-se em condições de caminhar até ao bloco

operatório ou prefere que eu chame a enfermeira e peça

uma cadeira de rodas?”


Com um gesto brusco, Tomás afastou o lençol e assentou

os pés no chão. Lesley inclinou-se para o ajudar, mas

ele repeliu-a com a mão engessada.


“Eu consigo”, disse. “Vai ver.”


Sentado à borda da cama, o português balançou-se e

transferiu o peso para as pernas. Sentia-se fraco e as

coxas tremiam-lhe, mas aguentou-se. Largou devagar os

apoios com as mãos e endireitou-se, equilibrando-se

sozinho em pé.


“Bravo!”,

exclamou

a

médica,

batendo

palmas

entusiásticas.

“Muito bem! Isto é que é um homem!”


Esta

última

frase

soou

a

Tomás

um

tudo-nada

condescendente, mas não se importou. Pusera-se de pé

pelos seus próprios meios e sentia-se orgulhoso com o

feito. Depois de tudo o que havia passado no inferno do

santo dos santos, a convalescença estava a revelar-se

rápida. Mais dia menos dia teria alta e sairia dali.


Ah, como era bom estar vivo!

“Vamos?”

Ao vê-lo de pé, Lesley passou à frente e saiu para o

corredor, indicando o caminho.


“Por aqui.”


Ainda de pijama, Tomás seguiu a figura de bata branca

pelo corredor do hospital. Os seus movimentos não se

mostravam ágeis e sentia os músculos das pernas

flácidos, quase como gelatina; era o resultado dos dois

dias que estivera deitado naquela cama. Apesar da

evidente fragilidade, o facto é que se achava bem


melhor e com força suficiente para caminhar. Aliás, o

exercício só lhe faria bem.


O telemóvel tocou no bolso do pijama. Pegou no aparelho

e consultou o visor. Dizia Mãe. Carregou no botão verde

e atendeu.


“Bom dia, mãe!”, cumprimentou. “Tudo bem?”


“Ai, filho!”, devolveu a voz do outro lado da linha.

“Ando tão ralada contigo!”


O coração de Tomás deu um pequeno salto. Não lhe

contara nada do que se havia passado, para não a

preocupar, mas pelos vistos alguém já lhe tinha dito

alguma coisa.

“Estou óptimo”, apressou-se a dizer. “Isto não é nada.”

“Não é nada?”, empertigou-se ela, quase indignada.

“Disseram-me que andas a viajar por essas terras onde

só há guerras e malucos a meterem bombas e mais sei lá

o quê! Minha Nossa Senhora! Nem imaginas como fiquei

quando liguei para a faculdade e me disseram que tu

andavas por essas paragens! Já fui à missa e tudo! Ai

Jesus, estou que nem uma galinha! Não páro de rezar por

ti!”


Não era tão mau como isso, percebeu o historiador. A

mãe fora pelos vistos informada de que ele estava no

Médio Oriente, mas ninguém lhe contara o que havia

sucedido nos últimos dias. Ainda bem! Teria uma síncope

se soubesse!


“Está tudo bem”, murmurou com doçura, num tom mais

adequado para a tranquilizar.

“Sabe onde me encontro neste momento? Em Jerusalém!”

A voz do outro lado hesitou.

“Jerusalém?”, perguntou, como se se quisesse certificar

de que havia escutado bem. “Estás em Jerusalém? Na

Terra Santa? O sítio por onde andou o Senhor?”


“Aí mesmo!”


“Ah, filho! Que sorte! Que sorte!”


O tom de voz da mãe mudara por completo. Perdeu a

urgência e a aflição e tornou-se entusiástico.

“É verdade. É uma terra muito interessante.”

“Interessante” escandalizou-se ela.

“Estás na terra do Senhor, filho! A terra do Senhor!

Olha lá, já passaste pela Via Dolorosa, onde aqueles...

aqueles torcionários torturaram Jesus? E foste ao Santo

Sepulcro, onde o crucificaram, coitadinho?”


“Vou lá amanhã... ou depois.”


“Ah! Quando fores ao Santo Sepulcro acende uma velinha

por mim! Acendes? Não te esqueças de que Jesus morreu

para nos salvar, filho! Temos de lhe estar agradecidos,

ouviste? Ele morreu por nós! Está lá em cima, à direita

de Deus Nosso Senhor, a ver o que fazemos e a velar por

nós.”


“Pois é”, respondeu Tomás.

“Eu... eu acendo uma vela por si.”


“Acende uma por mim, uma pelo teu pai e outra por ti,

filho”, apressou-se ela a recomendar.

“Tu também és cristão, nunca o esqueças! Tu também tens

direito à salvação!”


“Com certeza. Vou acender três velas.”


A mãe suspirou com satisfação, como se tivesse acabado

de fazer a boa acção do dia.


“Ainda bem, Tomás.”

Mudou o tom de voz, tornando-se de repente apressada.

“Olha, estão a sair para a missa. Vou aproveitar e dou

ali um saltinho à Igreja de São Bartolomeu para contar

ao padre Vicente por onde andas. Ele vai ficar muito


satisfeito por saber que estás na Terra Santa rodeado

desses apóstolos todos que para aí há. Cuida de ti,

filhinho! Não te esqueças de acender as velas no Santo

Sepulcro. Jesus morreu para nos salvar!”


Tomás despediu-se e desligou, devolvendo o telemóvel ao

bolso do pijama. Caminhava pelos corredores do

hospital, sempre a seguir a médica, que o conduzia na

direcção

do

bloco

operatório.

A

mente,

porém,

encontrava-se ainda presa às palavras da mãe e não pôde

deixar de pensar no que elas realmente significavam.


A mãe tinha fé. Mas o que era isso de ter fé?


Fazia algum sentido ter fé em Cristo quando já se

conhecia

a verdadeira

história

de

Jesus e da

transformação dos seus ensinamentos judaicos numa coisa

completamente diferente?

Tomás sempre achara que era um disparate acreditar no

que quer que fosse com dados insuficientes. Eram a

investigação e a ciência e o conhecimento que conduziam

à crença, não a repressão das dúvidas e a ignorância e

os dogmas. A crença não podia ser cega; tinha de ser

informada. Nenhuma verdade podia ser inquestionável. As

pessoas que acreditavam sem dados suficientes, pensava

ele,

não

passavam

de

simplórios

crédulos

e

supersticiosos, dispostos a acreditar na primeira

patranha que lhes contassem. A crença só era válida se

fosse baseada no saber.


No entanto, Tomás tinha noção de que havia situações em

que a crença sem dados suficientes era inevitável.

Na amizade, por exemplo. Para se ser amigo de uma

pessoa é preciso acreditar nela, crer que ela é digna

de confiança. Claro que essa fé se revela muitas vezes

infundada. Bastava ver o caso de Valentina. Ele

acreditara nela sem ter dados suficientes para o fazer

e acontecera o que acontecera. A italiana revelara-se

dúplice e quase o matara. Claro que agora estava na

prisão e ia pagar pelos crimes que havia cometido, mas

a questão não era essa; a questão era que ele

acreditara nela sem dispor de dados suficientes e dera-

-se mal. Não era isso a prova final de que a crença sem

conhecimento é perigosa?


Mas qual a alternativa? Não deveria acreditar em

ninguém até ter informação suficiente para estar certo

que essa pessoa era digna de confiança? Então como

faria amizades? Iria submeter cada amigo potencial a um

rigoroso

inquérito

prévio?

Apresentar-lhe-ia

um

questionário para preencher? Iria investigar toda a sua

história em pormenor? Isso não fazia sentido! Havia

situações na vida em que era preciso acreditar sem

informação suficiente. A informação viria depois,

claro. Mas primeiro tinha de haver crença. Crença de

que a pessoa era de confiança e podia ser sua amiga. As

informações posteriores confirmariam que essa crença

tinha fundamento. Mas o primeiro passo era sempre a

crença. Ou, para usar outra palavra, a fé. Valentina

podia ser a prova de que o processo era falível, mas

Arkan, por outro lado, trouxera a evidência de que o

método não era necessariamente errado. Não fora o

presidente da fundação, em quem aliás nunca havia

confiado, que acabara por salvá-lo?


Se era assim nas relações entre as pessoas, porque não

o poderia ser também na relação com o divino e o

sagrado?

Tomás

tinha

perfeita

consciência

da

necessidade dos homens de acreditarem em algo de

transcendente.

Jesus podia não passar de um ser humano, mas aos olhos

de quem nele acreditava, como a mãe, tornara-se um

deus.

O que havia de mal nisso, se essa crença a ajudava a

enfrentar os seus problemas e a ser uma pessoa melhor?

Não precisamos nós de fé para fazer as coisas?

Não seria cruel despir Jesus da divindade que lhe fora

atribuída?

A vida é feita de incertezas e de uma relação

permanente com o desconhecido. Quantas vezes tomamos

uma decisão sem ter...”


“Professor Noronha?”


“... toda a informação? Não é isso afinal o salto no

escuro de que é feita a nossa existência? Quantos


pequenos saltos no escuro não temos nós de dar todos os

dias? E o que...”


“Professor Noronha?!”


A interpelação interrompeu a divagação mental de Tomás,

que deambulava pelo hospital como um autómato, os olhos

colados à bata branca da doutora Koshet à maneira do

cão que segue o dono, a cabeça a vaguear pelas crenças

da mãe e a relação da sua fé com tudo o que havia

desvendado sobre a figura humana de Jesus.


“Sim?”


Foi a médica que chamou por ele.


“Chegámos ao bloco operatório”, anunciou a doutora

Koshet, indicando duas portas à direita. “O senhor

Arkan está aqui na enfermaria.”


As portas estavam juntas e abriram-se em duas, como as

dos saloons nos filmes do Faroeste. O paciente entrou

na enfermaria e viu uma maca com rodas estacionada no

meio da sala, com uma embalagem de soro no topo e um

tubo longo e estreito a descer para os lençóis. Havia

ainda dois enfermeiros sentados ao canto a conversar em

voz baixa.


Aproximou-se e deparou com o rosto macilento de Arpad

Arkan a emergir dos lençóis na maca. A face do paciente

animou-se ao ver o recém-chegado abeirar-se dele.


“Shalom!”, saudou o presidente da fundação com um

sorriso frágil.

“Folgo em vê-lo de saúde!”


“Ah, Shalom!”, respondeu Tomás, pegando-lhe na mão

fraca.

“Que palavra mais bonita! Salvou-nos a vida no último

instante, hem?”


“Não foi a palavra que nos salvou, professor Noronha.”

Tocou com o dedo na testa. “Foi o seu intelecto.”


“Nada seria possível sem a sua intervenção quando

aquele animal me estava a amputar o dedo”, retorquiu o

português, apertando com força a mão de Arkan, em jeito

de reconhecimento.

“O senhor teve uma grande coragem!”


“Nas mesmas circunstâncias, qualquer um teria feito o

mesmo.”


“Nem pense.”


O presidente da fundação soltou uma gargalhada

inesperada, mas tão profunda e alegre que se tornou

contagiante.


“É melhor pararmos com estas congratulações mútuas!”,

exclamou. “São enjoativas! Além do mais, parecemos umas

velhas tontas. O que interessa é que estamos vivos!”


“Sem dúvida. Quando estávamos lá dentro e o vi

inanimado depois de ter levado aqueles tiros, pensei

que tinha morrido.”


O seu interlocutor soltou uma gargalhada.

“Como vê, ressuscitei!”

“Um verdadeiro Cristo, sim senhor.”


Arkan lançou um olhar para a porta da enfermaria, onde

a doutora Koshet o aguardava. Fez-se uma curta pausa e

Tomás olhou-o com expectativa, como se aguardasse que o

seu interlocutor lhe explicasse por que razão o mandara

chamar.


“Não sei se a doutora Koshet lhe disse, mas vou ser

operado daqui a pouco”, indicou o paciente estendido na

maca.

“É uma cirurgia delicada, porque ainda tenho uma bala

alojada num pulmão. Ali a doutora Koshet diz que a

extracção não é problemática e por isso não vê razões

para ficar preocupado. Mas acontece que sou um burro


velho e desconfiado. Além disso, já conheço os médicos

de ginjeira. Dizem sempre que é uma coisinha sem

importância e coisa e tal, e quando damos por ela

estamos metidos em grandes sarilhos.

Gosto por isso de me preparar para todas as

eventualidades. Daí que tenha pedido que o trouxessem

até mim.”


Calou-se um momento, como se considerasse a melhor

forma de pôr a questão.


“Que se passa?”


Desta vez expeliu um suspiro melancólico.


“Passa-se que não sei se sairei vivo da sala de

operações.”


“Oh, que disparate!”, protestou o historiador.

“Claro que sairá! Quem se safou de dois tiros nas

costas safa-se de uma operaçãozita sem importância!

Sabe o que lhe digo? Daqui a uma semana vamos ali à

cidade velha tomar um copo juntos! A minha mãe quer que

eu vá acender umas velas ao Santo Sepulcro. O senhor

far-me-á companhia.”


Arkan ergueu a mão direita, fazendo a Tomás sinal de

que não o interrompesse.


“Também penso que irá correr tudo bem”, sublinhou.

“Esta conversa é apenas para o caso de... enfim, de

Deus decidir de outra maneira.

Estive a pensar bem e já tive uma conversa com alguns

elementos do conselho de sábios da fundação, que me

vieram ontem visitar, e com o professor Hammans. Se

alguma coisa me acontecer, gostaria que o senhor

assumisse o comando do Projecto Yehoshua. Parece-me a

pessoa

indicada

para

levar

a

bom

porto

esta

importantíssima missão. A paz no mundo pode depender do

seu sucesso!”


Ao ouvir estas palavras, o português fez um esforço

para manter um semblante impassível. Ergueu o rosto


para a porta e cruzou o olhar levemente inquisitivo com

a médica, tentando perceber o que tinha ou não sido

revelado a Arkan. Ele ainda estava sob o efeito do

choque por ter sido baleado nas costas e era evidente

que haviam decidido não lhe contar tudo o que se

passara no Kodesh Hakodashim.


“Eu... enfim”, titubeou Tomás, sem saber o que dizer.

“É uma grande honra e... claro que gostaria de aceitar.

O problema é que não sei se... se esse projecto é...

como direi?, é... recuperável.”


O rosto de Arkan contraiu-se numa interrogação e as

sobrancelhas peludas tremeram.


“Como assim?”, admirou-se. “Não sabe se o projecto é

recuperável? O que quer dizer com isso?”


O historiador não sabia para onde se havia de voltar.

Ainda lançou um novo olhar à doutora Koshet, como se

pedisse ajuda, mas acabou por decidir enfrentar o

problema directamente. Talvez a altura não fosse a mais

indicada para grandes revelações, mas se ninguém tinha

tido ainda a coragem de contar tudo a Arkan, ele tê-la-

-ia.


Apertou a mão do paciente com mais força, como se lhe

pedisse que fosse bravo, e fitou-o nos olhos.


“Tenho uma coisa para lhe dizer”, avisou. “Uma coisa...

aborrecida. Não sei se me entende.”


Disse-o com tanta gravidade que o presidente da

fundação

arregalou

os

olhos

de

preocupação,

pressentindo pelo tom que vinha aí algo de muito sério.


“O quê?”, alarmou-se. “O que se passa?”


Tomás pigarreou, inseguro sobre o que estava a fazer.

Mas sabia que tinha de ir até ao fim. Por mais que lhe

custasse, era o seu dever.


“O Projecto Yehoshua já não é possível.” Baixou os

olhos, embaraçado por ser portador daquela notícia.

“Lamento.”


“Porquê? O que aconteceu?”


O português encheu os pulmões de ar, tentando reunir

toda a sua coragem. Não era fácil destruir com algumas

palavras o sonho de uma vida.


“Lembra-se do tubo de ensaio com o material genético de

Jesus?”


“Sim, claro”, devolveu Arkan.

“É aí que está o segredo do Projecto Yehoshua! É esse

ADN que nos permitirá clonar Jesus e trazê-lo de volta

à Terra!”

Estreitou as pálpebras.

“Há algum problema?”


Tomás tentou encarar o paciente, mas não foi capaz. O

que tinha para lhe anunciar era demasiado penoso, cruel

até. Voltou a pensar em recuar, em adiar a conversa

para depois da operação, mas achou que isso seria uma

cobardia. Por mais duro que fosse, tinha de ir até ao

fim.


“O tubo de ensaio foi destruído.”


Fez-se um súbito silêncio na enfermaria. Até os

enfermeiros, que dialogavam num sussurro contínuo no

canto da sala, se calaram e suspenderam a respiração.


“Destruído?”, perguntou Arkan, sem compreender o total

alcance da afirmação.

“Destruído como?”


O historiador encolheu os ombros, num trejeito de

absoluta impotência e desânimo.


“Destruído.” Soprou para a mão, como se expulsasse pó.

“Puf! Kaputt. Acabou. Já não há tubo de ensaio.”

Fez um gesto final com os braços.


“Foi destruído!”


O presidente da fundação olhava-o com uma expressão

estupefacta e a boca a abrir e a fechar, como um peixe,

tentando tirar um sentido do que acabara de escutar.


“O material genético de Jesus foi destruído? Mesmo

destruído? Mas como? Como?”


“Foi a italiana”, disse Tomás. “Nos instantes finais,

quando o fogo já se aproximava de nós e eu tentava

abrir a porta para sairmos dali, ela atirou o tubo de

ensaio para o meio das chamas.”


“O quê?”


O historiador voltou a baixar os olhos.


“Lamento dar-lhe a notícia”, sussurrou. “Não houve nada

que eu pudesse fazer. O ADN de Jesus está perdido. O

Projecto Yehoshua acabou. Já não é possível clonar o

Messias.”


O silêncio absoluto voltou à enfermaria. A tensão era

palpável. Apenas se escutavam as respirações ritmadas

das pessoas presentes, as que conversavam e as que

esperavam que a conversa terminasse, suspensas no que

iria suceder a seguir.


Arpad Arkan recostou-se devagar na maca, virou a cabeça

sobre a almofada e fitou o tecto enquanto digeria toda

a informação que lhe fora dada. Era um momento de

doloroso recolhimento e Tomás, sentindo-se de repente a

mais, voltou as costas e afastou-se com passos leves,

evitando fazer barulho.


“Professor Noronha?”


O português estacou e olhou para trás.

“Sim?”


Deitado na maca, Arkan observava-o de lado com uma

expressão indefinida.


“O senhor sabe o que é uma PCR Machine?”

Tomás abanou a cabeça.

“Não faço a mínima ideia.”


O presidente da fundação fez-lhe com o dedo sinal de

que se aproximasse de novo, como se tivesse mais alguma

coisa para lhe contar. O historiador obedeceu.


“Chama-se PCR Machine, ou Máquina de RCP”, disse Arkan

num tom quase confidencial. “De certeza que nunca ouviu

falar?”


O português fez um esforço de memória.


“Máquina de RCP?”, perguntou. Acabou por desenhar com

os lábios uma expressão de ignorância.

“Não. Não sei.”


“RCP significa reacção em cadeia de polimerase”,

esclareceu Arkan. “Através desta tecnologia é possível

pegar numa pequena quantidade de ADN e, recorrendo a

enzimas, fazer muitas cópias. Ou seja, basta meter o

ADN de uma única célula numa máquina de RCP e podemos

multiplicar esse material genético milhões de vezes.”


“Ah,

que

curioso!”,

anuiu

Tomás,

fingindo-se

impressionado.

“É incrível o que a tecnologia faz hoje em dia, hem?”


Arkan cravou os olhos no seu interlocutor, como se o

convidasse a assumir as consequências do que lhe

acabara de dizer.


“No caso dos ossários de Talpiot, conseguimos extrair

dos restos de um osso de Jesus duas células com o

núcleo praticamente intacto. Essas duas células foram

colocadas na máquina de RCP que adquirimos para os

nossos laboratórios em Nazaré. Produzimos assim milhões


de células idênticas, que dividimos em três partes. Uma

foi para um tubo de ensaio que ficou guardado no Kodesh

Hakodashim do nosso Centro de Pesquisa Molecular

Avançada. Foi esse tubo que, pelos vistos, acabou de

ser destruído.

As outras duas partes foram colocadas em dois tubos de

ensaio diferentes. Um foi guardado pelo professor

Vartolomeev no laboratório da Universidade de Plovdiv,

na Bulgária, e o outro enviado pelo professor Hammans

para o Laboratório Europeu de Biologia Molecular, em

Heidelberga, na Alemanha.”

Fez uma pausa e perscrutou-lhe o rosto, como se

buscasse uma reacção.

“Percebeu o que lhe disse?”


Atónito com o que acabara de ouvir, Tomás fitou-o

embasbacado e levou um longo momento a assentir com a

cabeça e a retirar as devidas conclusões.


“Está a dizer-me que existem ainda dois outros tubos de

ensaio?”


“Exacto.”


“Com o mesmo material genético?”


A face de Arpad Arkan abriu-se num sorriso de bonomia,

como se o esgar alegre fosse a resposta e nada mais

precisasse de ser dito. Ergueu a mão e fez sinal à

doutora Koshet de que estava pronto para a anestesia. A

médica abriu a porta da enfermaria e os enfermeiros

começaram a empurrar a maca na direcção do bloco

operatório.


Como se tivesse sido atingido por um relâmpago e se

encontrasse

ainda

atordoado,

Tomás

permaneceu

absolutamente imóvel, os olhos perdidos na maca em

movimento, a mente ainda a matutar no significado do

que escutara. Dois tubos de ensaio haviam sobrevivido,

sussurrava-lhe uma voz ao ouvido.


Dois tubos de ensaio haviam sobrevivido.


Quando atravessava a porta, o presidente da fundação

travou a maca e, embora deitado, conseguiu voltar a

cabeça para trás e fitar o português uma derradeira

vez.


“Como é que os gregos dizem boa nova, professor? Evan

gelion, não é? Pois é esse agora o nosso evangelho.”


O historiador fitou-o com ar aparvalhado.

“Hã?”

Viu Arpad Arkan exibir o seu sorriso de criança antes

de os dois enfermeiros voltarem a empurrar a maca e as

portas se fecharem atrás deles.

Tomás ficou enfim sozinho na enfermaria, entregue ao

torpor da sua estupefacção, o silêncio apenas quebrado

pela voz do presidente da fundação, que, já no

corredor, libertou em tom triunfal o seu último

segredo.


“Jesus vai voltar a caminhar na Terra.”


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