― Há tipos às direitas e tipos às direitas com pequenas curvas nas pontas ― respondeu Cilke.
― Mais alguma coisa?
― Quando apanhar o Portella, vou para diretor-adjunto. Garantido. Só que nessa altura hei de estar reformado.
― Pois ― comentou Boxton. ― Não te esqueças de me recomendar para o lugar.
Cilke riu-se
― Não tens hipóteses. O diretor sabe que costumas usar palavrões.
― Ora merda! ― exclamou Boxton, com fingido desapontamento. Ou será foda-se?
Na noite seguinte, Cilke fez a pé o percurso da estação até casa. Georgette fôra com a filha passar uma semana a casa da mãe, na Florida, e ele detestava apanhar táxis. Ficou surpreendido ao não ouvir os cães ladrar quando se aproximou da porta. Chamou-os, mas nada aconteceu. Deviam andar pela vizinhança, ou pelos bosques próximos.
Sentia a falta da família, sobretudo à hora das refeições. Tinha comido demasiados jantares sozinho ou com outros agentes em demasiadas cidades da América, sempre alerta para qualquer espécie de perigo. Preparou uma refeição simples, como a mulher o ensinara a fazer: legumes, uma salada e um pequeno bife. Nada de café, mas um brande em balão. Depois, subiu as escadas para tomar um banho, telefonar a Georgette e ler um pouco antes de dormir. Adorava livros, e ficava sempre irritado quando os agentes do FBI eram descritos como cretinos iletrados nos romances policiais. O que é que aqueles tipos sabiam?
Sentiu o cheiro do sangue mal abriu a porta do quarto e o seu cérebro mergulhou num turbilhão caótico; todos os medos que lhe tinham povoado os pesadelos assaltaram-no ao mesmo tempo.
Os dois pastores alemães estavam estendidos em cima da cama. A pelagem castanha e branca manchada de vermelho, as pernas amarradas, os focinhos amordaçados com gaze. Tinham-lhes arrancado os corações, que lhes pendiam dos flancos.
Com um esforço enorme, recompôs-se. Telefonou à mulher, para se certificar de que estava bem. Não lhe disse o que se passara. Depois ligou para o agente de serviço na delegação do FBI e chamou uma equipe de medicina legal e um grupo de limpeza. Teriam de desembaraçar-se de toda a roupa da cama, do colchão e dos tapetes. Não notificou as autoridades locais.
Seis horas mais tarde, depois de as equipes do FBI terem partido, escreveu um relatório para o diretor. Serviu a si mesmo um razoável copo de brande e tentou analisar a situação.
Por um instante, considerou a hipótese de mentir a Georgette, inventando uma história qualquer a respeito de os cães terem fugido. Mas teria de explicar o desaparecimento dos tapetes e dos lençóis. E, além disso, não seria justo para ela. Georgette ia ter de fazer uma escolha. Mais do que tudo, nunca lhe perdoaria se ele lhe mentisse. Ia ter de contar-lhe a verdade.
No dia seguinte, Cilke voou para Washington, onde conferenciou com o diretor, e depois para a Flórida, onde a mulher e a filha estavam de férias.
Aí, depois de terem almoçado juntos, levou Georgette a dar um passeio pela praia. Enquanto contemplavam o azul intenso do mar, contou-lhe o que acontecera aos cães, e explicou-lhe que era um velho costume da Máfia siciliana, destinado a intimidar.
― Segundo os jornais, acabaste com a Máfia neste país ― disse Georgette, pensativamente.
― Mais ou menos ― respondeu Cilke. ― Ainda restam umas poucas organizações de traficantes de drogas, e eu quase de certeza sei quem fez isto.
― Os nossos pobres cães ― murmurou Georgette. ― Como podem as pessoas ser tão cruéis? Falaste com o diretor?
Cilke sentiu-se irracionalmente irritado por ela estar preocupada com os cães.
― O diretor deu-me três hipóteses à escolha ― explicou. ― Primeira: demitir-me do Bureau e ir viver em outro lugar. Recusei esta opção. Segunda: mandar a minha família para outro local sob a proteção do FBI até este caso estar encerrado. A terceira foi continuar lá em casa como se nada tivesse acontecido. Teríamos uma equipe de proteção vinte e quatro horas por dia. Uma agente viveria em casa contigo, e tu e a Vanessa seriam acompanhadas por dois guarda-costas aonde quer que fossem. Haverá postos de vigilância à volta da casa equipados com o material mais moderno. O que é que te parece? Dentro de seis meses estará tudo acabado.
― Achas que é um bluff? ― perguntou Georgette.
― Acho. Não se atreveriam a atacar um agente federal ou a sua família. Seria suicídio.
Georgette ficou a olhar para as calmas águas azuis da baía. A mão dela apertou a dele com mais força.
― Fico ― disse. ― Teria demasiadas saudades tuas e sei que nunca abandonarás este caso. Como podes ter a certeza de que estará resolvido em seis meses?
― Tenho a certeza.
Georgette abanou a cabeça.
― Não gosto de te ver tão seguro. Por favor, não faças nada de horrível. E quero uma promessa. Quando resolveres este caso, sais do Bureau. Pratica advocacia, ou ensina. Não posso viver desta maneira o resto da minha vida.
Disse isto com uma expressão mortalmente séria.
A frase que ficou na cabeça de Cilke foi que teria demasiadas saudades dele. Como tantas vezes fazia, perguntou a si mesmo como era possível uma mulher como ela amar um homem como ele. Mas sempre soubera que um dia ela lhe faria aquele pedido. Suspirou e disse:
― Prometo.
Continuaram o seu passeio, e depois sentaram-se num pequeno jardim ao abrigo do sol. A brisa fresca que soprava da baía agitou os cabelos de Georgette, fazendo-a parecer muito jovem e feliz. Cilke soube que nunca poderia faltar à promessa que lhe fizera. E estava até orgulhoso da esperteza com que ela lha arrancara no momento exato, quando arriscava a vida para continuar ao lado dele. Ao fim e ao cabo, quem quereria ser arriado por uma mulher estúpida? Ao mesmo tempo, o agente Cilke sabia que a mulher ficaria horrorizada, humilhada, se soubesse o que ele estava a pensar. A astúcia dela fora provavelmente inocente. Quem era ele para julgar? Ela nunca o julgara, nunca suspeitara da sua astúcia que, essa sim, nada tinha de inocente.