Capítulo 9
Kurt Cilke acreditava na lei, nas regras que o homem inventara para viver em paz. Sempre tentara evitar esses compromissos que minam uma sociedade justa, sempre combatera sem piedade os inimigos do Estado. Ao fim de vinte anos de luta, perdera uma grande parte dessa fé.
Só a mulher correspondia plenamente às suas expectativas. Os políticos eram mentirosos, os ricos implacáveis na sua ânsia de poder, os pobres cheios de maldade. E depois, havia os vigaristas natos, os trapaceiros, os brutos e os assassinos. Os encarregados de fazer respeitar a lei eram apenas um pouco melhores, mas Cilke acreditava com todo o seu coração que o Bureau estava acima de tudo e de todos.
Durante o último ano, tinha tido um sonho recorrente. Era um garoto de doze anos e tinha de fazer, na escola, um exame que ia durar o dia inteiro. Quando saía de casa, a mãe chorava desconsoladamente, e no seu sonho ele sabia porquê. Se não passasse no exame, nunca mais voltaria a vê-la.
No seu sonho, compreendia que o assassínio se tornara uma praga de tal modo alastrada que tinham sido instituídas, com a ajuda da comunidade psiquiátrica, leis para desenvolver um conjunto de testes psicológicos capazes de predizer que rapazinhos de doze anos cresceriam para se transformarem em assassinos. Os que não passavam no exame pura e simplesmente desapareciam. Porque a ciência médica provara que os assassinos matavam pelo prazer de matar. Os crimes políticos, a rebelião, o terrorismo, o ciúme, eram apenas desculpas de fachada. Por isso se tornara necessário eliminar os assassinos genéticos o mais cedo possível.
O sonho saltava para o seu regresso a casa depois do exame, e a mãe abraçava-o e beijava-o. Os tios e primos tinham preparado uma grande festa. E então estava sozinho no seu quarto, a tremer de medo. Porque sabia que houvera um engano. Nunca devia ter passado no exame, e agora, quando crescesse, ia tornar-se um assassino.
Já tivera aquele sonho duas vezes, mas nunca falara nisso a Georgette porque sabia o que ele significava, ou pensava que sabia.
A sua relação com Timmona durava agora havia seis anos. Começara quando Portella matara um dos seus próprios homens, num acesso de fúria cega. Cilke vira imediatamente as possibilidades. Conseguira que Portella se tornasse um informador sobre a Máfia a troco de não ser acusado de assassínio. O diretor aprovara o plano, e o resto era história. Com a ajuda de Portella, Cilke esmagara a Máfia de Nova Iorque, mas tivera de fechar os olhos às atividades de Timmona, incluindo a sua supervisão do tráfico de drogas.
Agora, novamente com a aprovação do diretor, Cilke preparava-se para abatê-lo. Portella tentara usar os bancos Aprile para branquear o dinheiro da droga, mas o Don recusara-se a colaborar. Numa fatídica reunião, Portella perguntara-lhe: “O FBI vai estar a vigiar Don Aprile quando ele assistir ao crisma do neto?” Cilke compreendera imediatamente, mas hesitara antes de responder. Então dissera, lentamente: “Posso garantir que não. Mas, e a polícia?” “Essa parte está tratada”, dissera Portella.
E Cilke soubera que ia ser cúmplice de um assassínio. Mas não era verdade que o Don o merecia? Fora um criminoso implacável durante a maior parte da sua vida. Retirara-se com uma fortuna imensa, sem que a lei tivesse conseguido tocar-lhe. E tudo o que havia a ganhar? Portella ia lançar-se de cabeça na armadilha ao adquirir os bancos Aprile. E, claro, havia sempre Inzio em segundo plano, com os seus sonhos de um arsenal nuclear. Cilke sabia que, com um pouco de sorte, podia resolver todo aquele caso de uma só vez, e o governo ficaria com os dez bilhões de dólares dos bancos Aprile, pois não tinha a menor dúvida de que os herdeiros do Don venderiam, chegariam a um acordo com os emissários secretos de Portella. E dez ou onze bilhões de dólares constituiriam uma arma poderosa contra o crime.
Claro que Georgette o desprezaria. Por isso era preciso que nunca soubesse. Ao fim e ao cabo, vivia num mundo completamente diferente do dele. Agora, porém, tinha de voltar a encontrar-se com Portella. Havia a questão dos pastores alemães mortos e de quem estava por detrás daquilo. Começaria por Portella.
Timmona Portella era uma raridade entre os italianos bem sucedidos: com cinqüenta e tal anos, continuava solteiro. O que não significava que fizesse uma vida de celibato monacal. Nem de longe. Todas as sextas-feiras, passava a maior parte da noite com uma bela rapariga de um dos “serviços de acompanhantes” dirigidos pelos seus subordinados. Os requisitos eram que a rapariga fosse jovem, não estivesse há muito tempo naquela vida, fosse bonita e com feições delicadas. Que fosse alegre e divertida, não uma espertalhona chata. E que não fosse dada a especialidades exóticas. Em questões de sexo, Timmona era estritamente conservador. Tinha as suas pequenas manias, todas perfeitamente inocentes. Uma delas era que as raparigas tivessem simples nomes anglo-saxônicos, como Jane, ou Susan; ainda aceitava qualquer coisa como Tiffanny, ou mesmo Merle, mas nada mais étnico do que isso. Raramente ficava com a mesma mulher duas vezes.
Estes encontros ocorriam sempre num hotel do East Side relativamente pequeno que era propriedade de uma das suas empresas e onde dispunha de todo um andar, consistindo de duas suítes interligadas. Uma delas tinha uma cozinha completamente equipada, pois Timmona era um chef amador muito dotado, curiosamente especializado na cozinha do Norte de Itália, apesar de os pais terem nascido na Sicília. E adorava cozinhar.
Nessa noite, a rapariga foi levada até à suíte pelo gerente do serviço de acompanhantes, que se demorou apenas o tempo suficiente para tomar uma bebida e depois desapareceu. Portella preparou então um jantar para dois, enquanto conversavam e travavam conhecimento. Ela chamava-se Janet. Portella cozinhava com rápida eficiência. Nessa noite, fez a sua especialidade: vitela à milanesa, spaghetti com molho e queijo Gruyère, pequenas beringelas assadas servidas à parte e uma salada de verdes com tomate. A sobremesa era um sortido de bolos de uma famosa pastelaria francesa da vizinhança.
Serviu Janet com uma cortesia que contrastava com o seu aspecto; era um homem grande e peludo, com uma cabeça enorme e uma pele áspera, mas comia sempre de camisa, casaco e gravata. Durante o jantar, interessou -se pela vida de Janet com uma solicitude inesperada num indivíduo tão brutal. Deliciou-se com o relato dos seus infortúnios, de como fora traída pelo pai, pelos irmãos, pelos amantes e pelos homens poderosos que a tinham empurrado para uma vida de pecado através de pressões econômicas e gravidezes indesejadas, tudo num esforço de salvar a família da mais extrema miséria. Ficou espantado pela variedade de comportamentos desonrosos de que eram capazes outros homens e maravilhado pela bondade com que ele próprio tratava as mulheres. Porque era extremamente generoso para com elas, e não apenas dando-lhes enormes quantias em dinheiro.
Terminada a refeição, levou o vinho para a sala de estar e mostrou a Janet seis caixas de jóias: um relógio de ouro, um anel de rubis, brincos de diamantes, um colar de jade, uma pulseira de ouro e um colar de pérolas. Disse-lhe que podia escolher uma, como prenda. Qualquer delas valia alguns milhares de dólares ― as raparigas mandavam geralmente avaliá-las.
Anos antes, uma das suas equipes assaltara a caminhonete de uma joalharia, e ele resolvera guardar o produto do roubo em vez de vendê-lo a receptadores, de modo que nada daquilo lhe custara um centavo.
Enquanto Janet ponderava o que queria, e finalmente se decidia pelo relógio, ele preparou-lhe um banho, verificando cuidadosamente a temperatura da água e oferecendo-lhe os perfumes e os sais de que mais gostava.
Só então, depois de ela ter relaxado, se retiraram ambos para o quarto, onde fizeram decorosamente amor, como qualquer decente casal americano feliz no seu matrimônio.
Quando se sentia particularmente amoroso, Portella podia reter a rapariga até as quatro ou cinco da madrugada, mas nunca dormia enquanto ela ainda estivesse na suíte. Nessa noite, mandou Janet embora bastante cedo.
Fazia tudo aquilo por uma questão de saúde. Sabia que tinha um temperamento tempestuoso e que isso podia causar-lhe problemas. Aqueles encontros semanais acalmavam-no. As mulheres em geral tinham nele um efeito tranqüilizante. Provava a eficácia desta estratégia visitando o seu médico todos os sábados e tendo invariavelmente a satisfação de ouvi-lo dizer que a sua pressão arterial voltara aos valores normais. Quando falara disto ao médico, o homem limitara-se a dizer: “Muito interessante.” Portella ficara profundamente decepcionado com ele.
O esquema tinha uma outra vantagem. Os guarda-costas ficavam isolados na primeira suíte. Mas esta comunicava com a segunda, que por sua vez dava para um outro corredor, e era para aí que Portella combinava aqueles encontros que desejava ocultar até aos seus colaboradores mais chegados. Porque era muito perigoso para um chefe da Máfia reunir-se em segredo com um agente especial do FBI. Poderiam julgá-lo um informador, e o Bureau poderia suspeitar que Cilke aceitava subornos.
Era Portella que indicava os números de telefone a pôr sob escuta, que apontava os elementos fracos que poderiam ceder sob pressão, que fornecia pistas para certos assassínios, e explicava como funcionavam certos negócios. E era Portella que se encarregava de certos trabalhos sujos que o FBI não podia legalmente fazer.
Ao longo dos anos, tinham desenvolvido um código para combinarem os seus encontros. Cilke tinha a chave da suíte que dava para o outro corredor, de modo que podia entrar sem ser detectado pelos guarda-costas de Portella e aguardar. Portella desembaraçava-se da rapariga, e então conversavam. Naquela noite, Portella estava à espera de Cilke.
Cilke sentia-se sempre um pouco nervoso durante aqueles encontros. Sabia que nem mesmo Portella se atreveria a atacar um agente do FBI, mas o homem tinha um temperamento que raiava a loucura. Ia armado, evidentemente, mas, para proteger a identidade do seu informador, não podia levar guarda-costas.
Portella tinha um copo de vinho na mão, e as primeiras palavras que disse foram “Que raio de merda se passa agora?”, mas sorria amistosamente e deu a Cilke um meio abraço. Tinha vestido, por cima do pijama branco, um elegante roupão chinês que lhe disfarçava o ventre enorme.
Cilke recusou uma bebida, sentou-se no sofá e disse calmamente:
― Há umas semanas, cheguei a casa do trabalho e encontrei os meus dois cães com os corações arrancados. Pensei que talvez tivesse alguma pista. E ficou a espiar atentamente a reação de Portella.
A surpresa dele pareceu genuína. Saltou do sofá onde estava sentado como se tivesse sido empurrado por uma mola, com uma expressão de fúria no rosto. Cilke não se deixou impressionar; a sua experiência dizia-lhe que os culpados eram capazes de portar-se como o mais puro dos inocentes.
― Se está a tentar avisar-me de qualquer coisa, por que não mo diz diretamente? ― acrescentou
Ao ouvir isto, Portella protestou, quase com lágrimas nos olhos:
― Kurt, vem aqui armado; senti a sua arma. Eu não estou armado. Podia matar-me e dizer que resisti à prisão. Confio em si. Depositei mais de um milhão de dólares na sua conta das ilhas Cayman. Somos sócios. Que razões teria eu para recorrer a esse velho truque siciliano? Alguém está a tentar dividir-nos. Tem de ver isso.
― Quem? - perguntou Cilke.
Portella ficou pensativo.
― Só consigo lembrar-me desse garoto, o Astorre. Está cheio de ilusões de grandeza porque conseguiu escapar-me uma vez. ― Veja o que consegue descobrir, que eu entretanto ponho-lhe a cabeça a prêmio. Finalmente, Cilke ficou convencido.
― OK. ― disse. ― Mas acho que devemos ser muito cuidadosos. Não subestime esse tipo.
― Não se preocupe ― declarou Portella. ― Eh, já jantou? Tenho vitela com spaghetti, uma salada e um bom vinho.
― Acredito ― respondeu Cilke, rindo. ― Mas não tenho tempo para jantar.
A verdade era que não queria partilhar uma refeição com um homem que em breve ia mandar para a prisão.
Astorre tinha agora informação suficiente para traçar o seu plano de batalha. Estava convencido de que o FBI estivera envolvido na morte do Don. E de que Cilke fora o encarregado da operação. Sabia quem fôra o intermediário. Sabia que o contrato fora ordenado por Timonna Portella.
Mas restavam ainda alguns mistérios. Marriano Rubio propusera, através de Nicole, comprar os bancos, juntamente com um grupo de investidores estrangeiros. Cilke fizera-lhe uma proposta para conduzir Portella a uma situação criminosa. Eram variações perturbadoras e perigosas. Decidiu ir a Chicago falar com Craxxi, e levar o sr. Pryor consigo.
Astorre pedira ao sr. Pryor que fosse para a América gerir os bancos Aprile. O sr. Pryor aceitara a oferta, e era extraordinária a rapidez com que se transformara de gentleman inglês num executivo americano. Usava um chapéu melão em vez do chapéu de coco, pusera de lado o guarda-chuva e passara a transportar na mão um jornal dobrado, e chegara com a mulher e dois sobrinhos.
A mulher, por sua vez, trocara o estilo matrona inglesa por roupas mais elegantes, muito na moda. Os dois sobrinhos eram sicilianos que falavam perfeitamente inglês e tinham licenciaturas em contabilidade. Eram ambos caçadores inveterados que conservavam todo o seu equipamento de caça no porta-bagagens de uma limusine que um deles guiava pessoalmente. Na realidade, funcionavam como guarda-costas do sr. Pryor.
Os Pryor instalaram-se numa urbanização do Upper West Side, protegida por patrulhas de segurança de uma agência privada. Nicole, que inicialmente se opusera à nomeação, não tardou a deixar-se seduzir pelo sr. Pryor, sobretudo quando ele lhe disse que eram primos afastados. O sr. Pryor tinha, não havia a mínima dúvida, um certo encanto paternal para as mulheres. Até Rosie o adorara. E também não havia a mínima dúvida de que sabia dirigir um banco ― até Nicole ficou impressionada pelo seu conhecimento da atividade bancária internacional. Só negociando em divisas, conseguira aumentar a margem de lucro. E Astorre sabia que fora um dos íntimos de Don Aprile. Na realidade, fora o sr. Pryor que convencera o Don a comprar os bancos, com ligações, de que ele próprio se encarregaria, em Inglaterra e Itália. Descrevera deste modo a sua relação com o Dom.
― Disse ao teu tio que os bancos são o caminho para conseguir mais riqueza com menos risco do que os negócios que ele tinha. Essas histórias de antigamente estão ultrapassadas; os governos são demasiado fortes e andam muito em cima da nossa gente. Era tempo de sair. Os bancos são a melhor maneira de ganhar dinheiro, para quem tenha a experiência, a mão-de-obra e os contatos políticos. Sem me gabar, posso afirmar que tenho a boa vontade dos políticos italianos. Comprei-a com dinheiro. Toda a gente enriquece, e ninguém se magoa ou vai parar à prisão. Aqui onde me vês, podia ser um professor universitário a ensinar às pessoas como ficarem ricas sem infringirem a lei ou recorrerem à violência. Basta conseguir que as leis convenientes sejam aprovadas. Ao fim e ao cabo, a instrução é a chave para uma civilização superior.
O sr. Pryor estava a brincar, mas também não deixava de falar a sério. Astorre sentiu uma profunda relação com ele e deu-lhe toda a sua confiança. Don Craxxi e o sr. Pryor eram os homens com quem podia realmente contar. Não apenas por uma questão de amizade: ambos ganhavam fortunas à custa dos bancos do Dom
Quando chegaram à casa de Craxxi, em Chicago, Astorre ficou surpreendido ao ver os dois homens abraçarem-se efusivamente. Era evidente que se conheciam.
Craxxi ofereceu-lhes uma refeição de fruta e queijo e conversou com o sr. Pryor enquanto comiam. Astorre escutou-os com intensa curiosidade; adorava ouvir os velhos contarem histórias. Craxxi e o sr. Pryor eram unânimes em afirmar que as antigas maneiras de fazer negócio estavam recheadas de perigos.
―Toda a gente tinha hipertensão, toda a gente tinha ataques de coração ― disse Craxxi. ― Era um modo de vida terrível. E os novos elementos não tem o sentido da honra. Ainda bem que estão a ser varridos.
― Ah! ― exclamou o sr. Pryor. ― Mas todos temos de começar por qualquer lado. Olha para nós agora.
Tudo isto fez Astorre hesitar em trazer à baila o assunto que o levara até ali. Que diabo pensariam aqueles dois velhotes que estavam a fazer agora? O sr. Pryor riu-se ao notar a expressão dele.
― Não te preocupes ― disse ―, não somos nenhuns santos. E esta situação ameaça os nossos interesses. Diz-nos o que precisas. Estamos prontos para agir.
― Preciso do vosso conselho, nada operacional ― respondeu Astorre. ― Essa parte é comigo.
― Se é apenas uma questão de vingança ― interveio Craxxi ―, aconselho-te a voltar às tuas cantigas. Mas eu reconheço, como espero que tu reconheças também, que o que está em causa é a proteção da tua família.
― Ambas as coisas ― disse Astorre. ― Qualquer das razões seria suficiente. Mas o meu tio treinou-me precisamente para esta situação. Não posso faltar-lhe.
― Ótimo ― concordou o sr. Pryor. ― Mas reconhece este fato: o que estás a fazer está na tua natureza. Tem cuidado com os riscos que corres. Não te deixes entusiasmar.
― Como é que podemos ajudar-te? perguntou Craxxi, tranqüilamente.
― Tinha razão a respeito dos irmãos Sturzo ― começou Astorre. ― Confessaram o golpe e disseram-me que o intermediário tinha sido um tal John Heskow, um homem de quem nunca ouvi falar. Agora tenho de encontrá-lo.
― E os irmãos Sturzo ― quis saber Craxxi.
― Já não fazem parte do quadro.
Os dois homens mais velhos ficaram silenciosos. Pouco depois, Craxxi disse:
― Conheço o Heskow. É intermediário há vinte anos. Diz-se que tratou de alguns assassínios políticos, mas eu não acredito nesses rumores. Ora bem, as táticas que usaste com os irmãos Sturzo, fossem elas quais fossem, não vão resultar com o Heskow. O homem é um excelente negociador, e compreenderá que vai ter de regatear para continuar vivo. Saberá que tu precisas de informação que só ele te pode dar.
― Tem um filho que adora ― disse Astorre. ― Joga basquete, e o pai daria a vida por ele.
― Isso é uma simples carta, que ele baterá com os trunfos de que dispõe ― explicou o sr. Pryor. ― Por exemplo, retendo informação crucial e revelando-te outra que não é crucial. É preciso que compreendas o Heskow. Tem negociado com a morte toda a sua vida. Arranja outra abordagem.
― Há uma porção de coisas que preciso de saber antes de ir em frente ― respondeu Astorre. ― Quem esteve por detrás do assassínio e, sobretudo, porquê? Vou dizer-lhes o que penso. Tem de ser os bancos. Alguém precisa dos bancos.
― O Heskow é capaz de saber alguma coisa a esse respeito ― admitiu Craxxi.
― Acho muito estranho não haver qualquer vigilância da polícia ou do FBI junto da catedral, naquele dia ― continuou Astorre. ― E os irmãos Sturzo disseram-me que lhes tinham sido dadas garantias de que não haveria. Poderei crer que a polícia e o FBI tinham conhecimento prévio do que ia acontecer? Será isso possível?
― É ― respondeu Craxxi. ― Nesse caso vais ter de ser extra-cuidadoso. Especialmente com o Heskow.
― Astorre ― interveio o sr. Pryor, friamente ―, o teu objetivo primário é salvar os bancos e proteger os filhos de Don Aprile. A vingança é um objetivo menor que pode ser abandonado.
― Não sei ― respondeu Astorre, sem se comprometer. ― Preciso de pensar nisso. ― Dirigiu-lhes um largo sorriso. ― Veremos o que acontece.
Nenhum dos dois acreditou nele por um instante que fosse. Ao longo das suas vidas, tinham conhecido muitos jovens como Astorre. Viam-nos como revivescências dos grandes chefes da Máfia de outros tempos, homens como eles próprios não tinham podido ser por lhes faltar um certo carisma e uma certa vontade que só os grandes possuíam: os homens de respeito que dominavam províncias inteiras, desafiavam as regras do Estado e saíam vencedores. Reconheciam em Astorre essa vontade, esse dom, essa obstinação de que ele próprio não tinha consciência. Até as suas loucuras, as suas cantigas, os seus cavalos, eram fraquezas que não lhe afetavam o destino. Simples alegrias da juventude que revelavam o seu bom coração.
Astorre falou-lhes da oferta de compra sobre os bancos feita por Marriano Rubio e Inzio Tuilippa. De Cilke ter tentado servir-se dele para apanhar Timmona Portella. Os dois homens escutaram-no atentamente.
― Da próxima vez, manda-os ter comigo ― pediu o sr. Pryor. ― Segundo as minhas informações, Rubio é o diretor financeiro do tráfico mundial de droga.
― Não venderei ― declarou Astorre. ― O Don deu-me instruções estritas.
― Claro que não ― concordou Craxxi. ― São o futuro e podem ser a tua proteção. ― fez uma curta pausa, e então continuou : ― Deixa-me contar-te uma pequena história. Antes de retirar-me, tinha um sócio, um homem muito honesto, um pilar da sociedade. Certa vez, convidou-me para almoçar no edifício da sua empresa, numa sala de jantar privada. Depois, levou-me a ver as salas enormes onde, num milhar de cubículos, um milhar de jovens, rapazes e raparigas, trabalhavam com computadores.
― Disse-me: “Essa sala dá-me um bilhão de dólares por ano. Há quase trezentos milhões de pessoas neste país, e nós dedicamo-nos a fazê-las comprar os nossos produtos. Planeamos sorteios especiais, prêmios e bônus, fazemos promessas extravagantes, tudo legalmente definido, para levá-las a gastar o seu dinheiro nas nossas empresas. E sabes o que é que é crucial? Precisamos de bancos que dêem a esses trezentos milhões de pessoas crédito para gastarem o dinheiro que não têm.” O importante são os bancos. Tens de ter bancos do teu lado.
― É verdade ― corroborou o sr. Pryor. ― E ambas as partes lucram. Embora as taxas de juro sejam altas, essas dívidas incitam as pessoas, fazem-nas produzir mais.
Astorre riu-se.
― Fico contente por saber que conservar os bancos é tão boa idéia. Seja como for, não importa. O Don disse-me para não vender. Para mim basta. Terem-no matado é que importa.
― Não podes fazer seja o que for contra esse tal Cilke ― disse-lhe Craxxi, firmemente. ― O governo é demasiado forte para que se possa atacá-lo dessa maneira. Mas admito que o homem representa um perigo. Tens de ser esperto.
― O teu próximo passo é o Heskow ― disse o sr. Pryor. ― É crucial. Mas, mais uma vez, vais ter de ser muito cuidadoso. Lembra-te, podes pedir ajuda a Don Craxxi, e eu próprio tenho alguns recursos. Não estamos totalmente afastados. E temos interesses nos bancos... sem falar na nossa amizade por Don Aprile, Deus tenha a sua alma.
― OK. ― respondeu Astorre. ― Depois de falar com o Heskow, voltamos a encontrar-nos.
Astorre tinha plena consciência de quanto a sua situação era perigosa. Sabia que os seus êxitos eram pequenos, apesar de ter castigado os assassinos. Os irmãos Sturzo não passavam de um fio tirado à meada do mistério do assassínio de Don Aprile. Mas confiava na infalível paranóia que lhe fora incutida durante os seus anos de treino nas intermináveis traições da vida siciliana. Tinha agora de ser particularmente cuidadoso. Heskow parecia um alvo fácil, mas também podia estar armadilhado.
Havia algo que o surpreendia. Julgara-se feliz na sua vida de pequeno homem de negócios e cançonetista amador, mas agora experimentava uma euforia que nunca antes conhecera. A sensação de estar de volta ao mundo a que pertencia. E de que tinha uma missão. Proteger os filhos de Don Aprile, vingar a morte do homem que amara. Tinha simplesmente de quebrar a vontade do inimigo.
Aldo Monza chamara dez bons homens da sua aldeia natal na Sicília. Seguindo instruções suas, assegurara definitivamente a subsistência das respectivas famílias, fosse o que fosse que lhes acontecesse a eles.
“Não contes com a gratidão das pessoas pelas coisas que lhes fizeste no passado”, dissera-lhe certa vez o Don. “Deves torná-las gratas pelas coisas que lhes farás no futuro.” Os bancos eram o futuro da família Aprile, de Astorre e do seu crescente exército de homens. Era um futuro pelo qual valia a pena lutar, custasse o que custasse.
Don Craxxi fornecera-lhe outros seis homens de absoluta confiança. E Astorre transformara a sua casa numa fortaleza, com estes homens e os mais modernos equipamentos de detecção. Preparou, além disso, um esconderijo para onde poderia desaparecer se as autoridades resolvessem deitar-lhe a mão, por qualquer motivo.
Nunca se fazia acompanhar por guarda-costas. Em vez disso, contava com a sua própria rapidez de reação e usava os guardas como batedores nos itinerários que ia seguir.
Deixaria o caso Heskow no gelo durante algum tempo. Estranhava a reputação de honradez de que Cilke gozava, uma reputação que até o próprio Don confirmara.
“Há homens honrados que passam uma vida inteira a prepararem-se para um supremo ato de traição”, dissera-lhe o sr. Pryor. Mas apesar de tudo isto, Astorre sentia-se confiante. Tudo o que tinha de fazer era manter-se vivo enquanto as peças do quebra-cabeças se encaixavam umas nas outras.
O verdadeiro teste viria de homens como Heskow, Portella, Tulippa e Cilke. Teria, uma vez mais, de manchar pessoalmente as mãos de sangue.
Astorre demorou um mês a decidir exatamente como lidar com John Heskow. O homem representava um desafio complicado. Matá-lo seria extremamente fácil, extrair-lhe informações extremamente difícil. Usar o filho como alavanca era perigoso ― forçá-lo-ia a conspirar enquanto fingia cooperar. Resolveu não lhe dizer que os irmãos Sturzzo tinham confessado que fôra ele o condutor. Não queria assustá-lo demasiado.
Entretanto, foi reunindo a indispensável informação sobre os hábitos diários de Heskow. Parecia tratar-se de um homem moderado, cuja principal paixão era cultivar flores e vendê-las a grossistas e até numa pequena banca à beira da estrada, em Hamptons. O seu único vício era assistir aos jogos do filho, pelo que acompanhava religiosamente todo o calendário da equipe de basquete de Villanova.
Numa certa noite de sábado, em Janeiro, Heskow preparava-se para ir assistir ao jogo Villanova-Temple no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Antes de sair de casa, ligou o seu sofisticado sistema de alarme. Era sempre meticuloso nos pequenos pormenores da vida quotidiana, estava sempre seguro de ter tomado as medidas necessárias para fazer face a qualquer possível acidente. Era essa confiança que Astorre queria destruir logo no início da sua entrevista.
John Heskow foi de carro até à cidade e jantou sozinho num restaurante chinês perto do Garden. Optava sempre por comida chinesa quando jantava fora, porque era a única que não conseguia cozinhar melhor em casa. Gostava das tampas prateadas que cobriam cada prato, como se escondessem alguma deliciosa surpresa. Gostava dos chineses. Não se metiam na vida dos outros, não se punham a tagarelar nem se mostravam obsequiosamente familiares. E nunca, nunca, detectara um engano na conta, que verificava sempre com o maior cuidado, pois encomendava geralmente vários pratos.
Nessa noite, resolveu fazer uma extravagância. Gostava particularmente de pato à Pequim com camarões e molho de lagosta cantonês. Provou o arroz branco frito e, evidentemente, os crepes, e as costeletas com molho de especiarias. Terminou com gelado de chá verde, algo de que era preciso uma pessoa aprender a gostar, mas que distinguia os verdadeiros apreciadores da cozinha chinesa.
Quando chegou ao Garden, não havia mais do que meia casa, apesar de a Temple ter uma equipe de primeira categoria. Ocupou o seu lugar, oferecido pelo filho, nas primeiras filas e na zona central. O que o fez sentir-se orgulhoso de Jocko.
O jogo não foi particularmente excitante. Temple esmagou Villanova, mas Jocko foi o melhor marcador. No fim, Heskow procurou-o no balneário. O filho recebeu-o com um abraço.
― Olá, pá, ainda bem que vieste. Queres ir cear conosco?
Heskow ficou tremendamente satisfeito. O filho era um verdadeiro cavalheiro. Claro que os rapazes não queriam um velhote como ele a chagá-los naquela noite. O que queriam era beber uns copos, divertirem-se um pedaço e talvez ir para a cama com uma miúda.
― Obrigado ― disse. ― Já jantei, e ainda tenho pela frente uma longa viagem até casa. Jogaste muito bem. Estou orgulhoso de ti. Despediu-se do filho com um beijo e perguntou a si mesmo por que diabo teria tido tanta sorte. Bom, o filho tinha uma boa mãe, embora fosse uma desgraça como esposa...
Não demorou mais de uma hora até Brightwaters. As estradas estavam praticamente desertas. Estava cansado quando chegou, mas antes de entrar ainda foi verificar os viveiros, para se certificar de que a temperatura e a umidade estavam OK.
À luz da lua que se filtrava através do telhado de vidro da estufa, as flores tinham uma beleza selvagem, quase onírica. Os vermelhos pareciam negros, os brancos um halo vaporoso e fantasmagórico. Adorava vê-las, especialmente antes de ir para a cama.
Percorreu o caminho de saibro até à casa e abriu a porta. Mal entrou, premiu rapidamente os botões do painel que impediria o alarme de disparar e dirigiu-se à sala.
O coração deu-lhe um salto no peito. Estavam dois homens à sua espera; reconheceu Astorre. Sabia o suficiente a respeito da morte para reconhecê-la ao primeiro olhar. Aqueles dois homens eram os mensageiros.
Reagiu, porém, com o mecanismo de defesa perfeito.
― Como foi que entraram aqui e que diabo querem? ― perguntou.
― Não se assuste ― disse Astorre. Apresentou-se, acrescentando que era sobrinho do falecido Don Aprile.
Heskow fez um esforço para acalmar-se. Já se vira noutras situações difíceis e, depois da primeira explosão de adrenalina, safara-se sempre bem. Sentou-se no cadeirão, pousando a mão direita no braço de madeira, e começou a deslocá-la milímetro a milímetro para a arma que lá estava escondida. ― E então, o que é que querem?
Astorre tinha, um sorriso divertido no rosto, o que irritou Heskow, que tencionara esperar pelo momento certo. Abriu com um gesto rápido o braço do cadeirão e procurou a arma. O buraco estava vazio.
Neste instante, três carros pararam diante da porta e, através da janela, a luz dos faróis varreu o interior da sala. Dois outros homens entraram na casa.
― Não o subestimei, John ― disse Astorre, prazenteiramente. - Revistamos a casa. Encontramos a arma dentro da cafeteira, outra presa com fita debaixo da sua cama, outra na falsa caixa de correio e outra na casa de banho, atrás do lavatório. Escapou-nos alguma?
Heskow não respondeu. O coração pusera-se outra vez a saltar-lhe no peito. Sentia-o na garganta.
― Que diabo está a cultivar naqueles viveiros? ― perguntou Astorre, rindo. ― Diamantes, haxixe, coca, ou o quê? Pensei que nunca mais entrava. A propósito, é um montão de armas para alguém que cultiva azáleas, não é?
― Vá gozar com o seu pai ― respondeu Heskow, calmamente.
Astorre sentou-se no cadeirão em frente dele e atirou duas carteiras Gucci, ― uma dourada, a outra castanha ― para cima da pequena mesa de café. Heskow inclinou-se para a frente e pegou-lhes. A primeira coisa que viu foi as cartas de condução dos irmãos Sturzo, com as suas fotos laminadas. Subiu-lhe à boca uma bílis tão azeda que quase vomitou.
― Denunciaram-no ― disse Astorre. ― Disseram-me que tinha sido o intermediário no golpe contra Don Aprile. Também me disseram que lhes tinha garantido que não haveria vigilância do FBi nem da polícia durante a cerimônia na igreja.
Heskow processou tudo o que tinha acontecido até ali. Não o tinham liquidado, embora os irmãos Sturzo estivessem com certeza mortos. Sentiu uma pontinha de desapontamento por aquela traição. Mas Astorre parecia ignorar que fôra ele o condutor. Havia ali uma negociação, a mais importante da sua vida.
Encolheu os ombros.
― Não sei do que está a falar.
Aldo Monza estivera a escutar atentamente, sem desviar os olhos dele. Foi à cozinha e regressou com duas canecas de café. Entregou uma a Astorre e a outra a Heskow.
― Eh, tens café italiano... Ótimo! ― exclamou.
Heskow lançou-lhe um olhar de desdém.
Astorre bebeu um pouco de café e depois disse, lentamente, deliberadamente: ― Dizem que é um homem muito inteligente, e essa é a única razão por que não está morto. Portanto, ouça o que lhe vou dizer, e pense muito bem. Sou o varredor de Don Aprile. Tenho todos os recursos que ele tinha antes de retirar-se. Conhecia-o, sabe o que isso quer dizer. Nunca se teria atrevido a servir de intermediário se ele não se tivesse retirado. Certo? Heskow não respondeu. Continuava a olhar para Astorre, a tentar avaliá-lo.
― Os Sturzo estão mortos ― continuou Astorre. ― Pode ir juntar-se-lhes. Mas eu vou fazer-lhe uma proposta, e é aqui que tem de estar muito atento. Nos próximos trinta minutos, vai ter de convencer-me de que está do meu lado e de que será o meu agente. Caso contrário, enterra-lo-emos debaixo dos seus canteiros de flores. Permita agora que lhe comunique notícias mais agradáveis. Não envolverei o seu filho neste assunto. Não alinho nesse tipo de coisas, e além disso uma ação desse gênero faria de si meu inimigo e incita-lo-ia a trair-me. Mas tem de compreender que sou eu, e só eu, quem mantém o seu filho vivo. Os meus inimigos querem-me morto. Se forem bem sucedidos, os meus amigos não pouparão o seu filho. A sorte dele depende da minha.
― O que é que quer? ― perguntou Heskow.
― Preciso de informações. Portanto, fale. Se eu ficar satisfeito, temos acordo. Se não ficar, você morre. O seu problema imediato e, pois, manter-se vivo esta noite. Comece.
Heskow não disse uma palavra durante pelo menos cinco minutos. Primeiro avaliou Astorre ― um sujeito tão simpático, nada brutal ou assustador. E no entanto, os irmãos Sturzo estavam mortos. Depois, iludira os sistemas de vigilância da casa e encontrara as armas. O mais significativo fora tê-lo deixado procurar a arma inexistente. Aquele homem não era um bluff, e muito menos um bluff que ele se atrevesse a desafiar. Finalmente, acabou de beber o café e tomou uma decisão, com reservas.
― Tenho de alinhar consigo ― disse a Astorre. ― Tenho de confiar que fará o que é justo. O homem que me contratou e me deu o dinheiro foi Timmona Portella. Fui eu que comprei a ausência da polícia. Paguei, por conta do Portella, cinqüenta mil ao chefe do Departamento Criminal, Di Benedetto, e vinte e cinco mil à sua adjunta, Aspinella Washington. Quanto à garantia do FBI, recebi-a do Portella. Insisti em coisas concretas e ele disse-me que tinha este tipo, o Cilke, chefe da delegação de Nova Iorque, no bolso. Foi o Cilke que deu o OK para o golpe contra o Don.
― já tinha trabalhado para o Portella antes disto?
― Oh, claro! É ele que controla o tráfico de droga em Nova Iorque, por isso tem muito trabalho para mim. Nada ao nível do Don. Não tinha esse tipo de contatos. É tudo.
― Ótimo ― disse Astorre. Tinha no rosto uma expressão de sinceridade. ― Agora quero que seja muito cuidadoso. Para seu próprio bem. Há mais alguma coisa que possa dizer-me?
E subitamente, Heskow soube que estava a segundos de morrer. Que não conseguira convencer Astorre. Acreditou no que lhe diziam os seus instintos. Sorriu palidamente.
― Mais uma coisa ― disse, muito devagar. ― Neste preciso momento, tenho um contrato do Portella. O alvo é você. Vou pagar aos dois detetives meio milhão para acabarem consigo. Eles aparecem para detê-lo, você resiste à prisão e eles abatem-no.
Astorre pareceu levemente divertido.
― Porquê uma coisa tão complicada e cara? ― perguntou. ― Por que não contratar simplesmente um atirador?
Heskow abanou a cabeça.
― Colocam-no muito acima disso. E, depois do Dom outra execução chamaria demasiado as atenções. Sendo sobrinho dele, e tudo isso. Os meios de comunicação entravam em parafuso. Assim, esse aspecto fica coberto.
― Já lhes pagou?
― Não. Ficamos de nos encontrar.
― OK. ― disse Astorre. ― Marque o encontro para um lugar isolado. Avise-me dos pormenores antecipadamente. Uma coisa. Depois do encontro, não vá com eles.
― Oh, merda! ― exclamou Heskow. ― É assim que vai ser? já imaginou o barulho?
Astorre recostou-se na cadeira.
― É assim que vai ser ― disse. ― Levantou-se e deu a Heskow um meio abraço de amizade. ― Não esqueça ― acrescentou ―, temos de manter-nos vivos um ao outro.
― Posso ficar com uma parte do dinheiro? ― perguntou Heskow.
Astorre riu-se.
― Não. É precisamente aí que reside a beleza da coisa. Como é que os tiras explicarão o meio milhão que eles têm em seu poder?
― Só vinte ― insistiu Heskow.
― OK. ― aquiesceu Astorre, de bom humor. ― Mas nem mais um centavo. Só para adoçar a boca.
Tornava-se agora imperativo para Astorre ter outro encontro com Don Craxxi e com o sr. Pryor. Precisava do conselho deles para o vasto plano operacional que tinha de executar.
Entretanto, as circunstâncias tinham mudado. O sr. Pryor insistiu em levar os dois sobrinhos como guarda-costas. E quando chegaram ao subúrbio de Chicago, descobriram que a modesta propriedade de Don Craxxi fôra transformada numa fortaleza. O caminho que conduzia à casa estava bloqueado por uma série de pequenas tendas verdes ocupadas por jovens de ar muito duro. Debaixo da parreira estava estacionada um furgão de comunicações. Três jovens abriam a porta, atendiam os telefones e verificavam a identidade dos visitantes. Os sobrinhos do sr. Pryor, Erice e Roberto, eram esguios e atléticos, peritos em armas de fogo, e adoravam obviamente o tio. Pareciam igualmente a par da história de Astorre na Sicília e tratavam-no com enorme respeito, fazendo-lhe todo o gênero de pequenos serviços pessoais. Transportaram-lhe as malas até ao avião, serviram-lhe o vinho ao jantar, sacudiram-no com os seus próprios guardanapos; pagavam as gorjetas por ele e abriam-lhe as portas, tornando bem claro que o consideravam um grande homem.
Astorre, bem-humorado, tentou pô-los à vontade, mas eles nunca desceram à familiaridade.
Os homens que guardavam Don Craxxi não eram tão delicados. Corteses mas rígidos, concentravam-se totalmente no seu trabalho. Andariam todos pela casa dos cinqüenta, e estavam todos armados..
Nessa noite, terminado o jantar e enquanto comiam fruta à sobremesa, Astorre perguntou ao Dom: ― Porquê tanta segurança?
― Apenas uma precaução ― respondeu Craxxi, calmamente. ― Chegaram-me aos ouvidos notícias inquietantes. Um velho inimigo meu, Inzio Tulippa, está na América. É um homem muito moderado e muito ganancioso, de modo que o melhor é sempre estar preparado. Veio encontrar-se com o nosso Timmona Portella. Mais vale estar preparado. Mas diz-nos, meu caro Astorre, o que tens para nos contar?
Astorre explicou-lhes o que tinha descoberto e como aliciara Heskow. Falou-lhes de Portella, e de Cilke, e dos dois detetives.
― Agora tenho de passar à fase operacional ― concluiu. ― Preciso de um perito em explosivos e de pelo menos mais dez homens. Sei que os dois podem arranjar-mos, que podem telefonar aos velhos amigos do Don. ― Descascou cuidadosamente a pêra verde-amarelada que estava a comer. ― Sabem que isto pode revelar-se muito perigoso e se não querem envolver-se demasiado...
― Disparate ― protestou o sr. Pryor, impaciente. ― Devemos a nossa sorte ao Don. Claro que ajudamos. Mas lembra-te, isto não é vingança, é legítima defesa. Contra o Cilke, não se pode fazer nada. O governo federal transformava-nos a vida num inferno.
― Mas esse homem tem de ser neutralizado ― afirmou Craxxi. ― Será sempre um perigo.
Podes, no entanto, considerar a seguinte hipótese: vende os bancos, e fica toda a gente feliz.
― Toda a gente exceto eu e os meus primos ― contrapôs Astorre.
― É uma possibilidade a considerar ― disse o sr. Pryor. ― Estou disposto a sacrificar a minha parte, tal como Don Craxxi, embora saiba que há de tornar-se uma enorme fortuna. Mas com certeza que uma vida pacífica tem muitas vantagens.
― Não vendo os bancos ― declarou Astorre. ― Mataram o meu tio e têm de pagar o preço, não alcançar os seus objetivos. E não posso viver num mundo onde o meu lugar é uma concessão da misericórdia deles. O Don ensinou-me isso.
Astorre ficou surpreendido ao ver que o sr. Pryor e Don Craxxi pareciam aliviados. Tentaram inclusivamente disfarçar um sorrisinho. Compreendeu que aqueles dois homens, poderosos como eram, o tinham em grande respeito, viam nele aquilo que nunca tinham chegado a ser.
― Sabemos qual é o nosso dever para com Don Aprile, Deus tenha a sua alma ― disse Craxxi. ― E sabemos qual é o nosso dever para contigo. Mas uma palavra de cautela: se te precipitares, e te acontecer alguma coisa, seremos obrigados a vender os bancos.
― Sim ― corroborou o sr. Pryor. ― Tem cuidado.
Astorre riu-se.
― Não se preocupem. Se eu cair, não ficará ninguém de pé.
Continuaram a comer pêras e pêssegos. Don Craxxi parecia perdido nos seus pensamentos. De súbito, disse:
― O Tulippa é o maior traficante de droga do mundo. O Portella é o seu sócio americano. Devem querer os bancos para branquear dinheiro da droga.
― Nesse caso, onde é que encaixa o Cilke? ― perguntou Astorre.
― Não sei ― admitiu Craxxi. ― Mas seja como for, não podemos atacá-lo.
― Seria um desastre ― confirmou o sr. Pryor.
― Lembrar-me-ei disso ― prometeu Astorre. Mas se Cilke fosse culpado, que poderia ele fazer?
A detetive Aspinella Washington certificou-se de que a filha de oito anos jantava decentemente, fazia os trabalhos de casa e dizia as suas orações antes de ir para a cama. Adorava a criança e havia muito que expulsara o pai da sua vida. A babá, filha adolescente de um polícia, chegou às oito em ponto. Aspinella deu-lhe instruções sobre os remédios que a pequena tinha de tomar e disse que estaria em casa por volta da meia-noite.
Pouco depois, a campainha da porta do hall de entrada tocou e Aspinella desceu as escadas a correr e saiu. Nunca usava o elevador. Paul Di Benedetto esperava-a num Chevrolet sem qualquer identificação. Aspinella instalou-se a seu lado e colocou o cinto de segurança. O chefe do Departamento Criminal era um péssimo condutor noturno.
Di Benedetto fumava um enorme charuto, de modo que Aspinella baixou o vidro da sua janela.
― É cerca de uma hora de viagem ― disse ele. ― Temos de pensar bem nesta coisa.
Sabia que era um grande passo para ambos. Uma coisa era aceitar subornos e dinheiro da droga; outra muito diferente era levar a cabo uma execução.
― O que é que há para pensar? ― perguntou Aspinella. ― Recebemos meio milhão por liquidar um gajo que devia estar no corredor da morte. Sabes o que posso fazer com duzentos e cinqüenta mil dólares?
― Não ― respondeu Di Benedetto. ― Mas sei o que eu posso fazer. Comprar um super-condomínio em Miami e reformar-me. Lembra-te, vamos ter de viver com isto.
― Receber dinheiro da droga já é pisar muito para lá da linha ― replicou Aspinella. ― Que se lixe essa merda.
― Tens razão ― respondeu Di Benedetto. ― Vamos ver é se esse tal Heskow traz a massa esta noite ou se está a enrolar-nos.
― Até agora, tem sido sempre de confiança. É o meu Pai Natal. E se não trouxer um grande saco para nós, vai ser um Pai Natal morto
Di Benedetto riu-se.
― É assim mesmo. Sabes por onde anda esse tal Astorre, para podermos despachá-lo rapidamente?
― Claro. Tenho-o sob vigilância. Até já escolhi o melhor lugar para lhe deitar a mão... O armazém de macaroni. O tipo trabalha quase sempre até tarde.
― Trouxeste a arma extra para lhe plantar?
― O que é que te parece? Nem o mais estúpido dos pés-chatos anda na rua sem uma delas.
Continuaram em silêncio durante cerca de dez minutos. Então Di Benedetto perguntou, numa voz deliberadamente calma e despida de emoção: ― Qual dos dois vai disparar?
Aspinella lançou-lhe um olhar divertido.
― Paul, passaste os últimos dez anos atrás de uma secretária. Tens visto mais molho de tomate do que sangue. Eu disparo. ― Viu o alivio espelhar-se no rosto dele e resmungou: Homens... são uma porra de uns inúteis.
Ficaram novamente silenciosos, perdidos em pensamentos a respeito do que os tinha feito chegar àquele momento das suas vidas. Di Benedetto entrara para a Polícia muito novo, havia mais de trinta anos. A sua corrupção fora gradual, mas inevitável. Começara com ilusões de grandeza ― seria respeitado e admirado por arriscar a vida para proteger os outros, Mas os anos tinham-no ensinado. Primeiro, foram os pequenos subornos dos vendedores de rua e das lojecas de bairro. Depois, um testemunho falso para safar um tipo de uma acusação de roubo. Daí a aceitar dinheiro dos grandalhões da droga parecera um pequeno passo. Finalmente, aparecera Heskow, que, como ficara esclarecido logo desde o início, agia em nome de Timmona Portella, o maior chefe da Máfia de Nova Iorque.
Claro que havia sempre uma boa desculpa. A mente consegue vender a si mesma tudo o que quiser. Via os oficiais superiores da Polícia a enriquecerem com o dinheiro da droga, e os dos escalões inferiores eram ainda mais corruptos. E ele, não tinha três filhos para mandar para a universidade? Mas sobretudo, era a ingratidão das pessoas que protegia. Os grupos de Direitos Civis que se punham a berrar contra a brutalidade policial se um tipo dava um estalo num sacana de um preto que andava nas ruas a assaltar pessoas. Os meios de comunicação que despejavam merda em cima da Polícia à mais pequena oportunidade. Cidadãos a processarem policias. Polícias que eram postos na rua depois de anos e anos de serviço, privados das suas reformas, chegando até a ir para a prisão. Ele próprio fora uma vez repreendido por causa de uma acusação de tratar mal os criminosos negros, quando sabia perfeitamente que não tinha preconceitos racistas. Ou se calhar era por culpa dele que os criminosos de Nova Iorque eram majoritariamente negros? O que é que um tipo era suposto fazer? Dar-lhes licença para roubar, como forma de ação afirmativa.? Fartara-se de promover polícias negros. Fora o protetor de Aspinella no Departamento, dando-lhe a promoção que ela merecia por aterrorizar os mesmíssimos criminosos negros. E a ela não podiam acusá-la de racismo. Em resumo, a sociedade cagava nos polícias que a protegiam. A menos, claro, que fossem mortos no cumprimento do dever. Então lá vinham com a trampa do costume. A verdade verdadeira? Não compensava ser um polícia honesto. E no entanto... no entanto, nunca pensara que chegaria ao assassínio. Mas, ao fim e ao cabo, era invulnerável; não havia qualquer risco, e havia uma grande porção de dinheiro, e a vítima era um assassino. No entanto...
Também Aspinella perguntava a si mesma como fora que a sua vida chegara àquele ponto. Deus sabia que sempre combatera o crime com uma paixão e uma implacabilidade que tinham feito dela uma lenda em Nova Iorque. Claro que aceitara alguns subornos, coisa pouca. Entrara tarde no jogo, quando Di Benedetto a convencera a receber dinheiro da droga. Fora o seu protetor durante anos, e seu amante durante alguns meses ― nem mau nem bom, apenas um urso desastrado que usava o sexo como parte do impulso para hibernar.
A sua corrupção a sério começara logo no primeiro dia depois de ter sido promovida a detetive. Na sala de recreio da esquadra, um corpulento polícia branco chamado Gangee começara a entrar com ela, em ar de brincadeira.
― Eh, Aspinella ― dissera ―, com a tua rata e os meus músculos, vamos acabar com o crime no mundo civilizado.
Os outros polícias, incluindo alguns negros, riram-se. Aspinella olhara para ele friamente e respondera:
― Nunca serás meu parceiro. Um homem que insulta uma mulher não passa de um cobarde de pila curta.
Gangee tentara manter a coisa numa base amigável.
― A minha pila curta chega para tapar a tua rata sempre que quiseres experimentar. De qualquer maneira, já andava a pensar em mudar de prato.
Aspinella voltara para ele um rosto gelado.
― Antes preto que cobarde. Vai esgalhar uma, cretino de merda.
A sala ficara paralisada de surpresa. Gangee corara violentamente. Um desprezo tão virulento não podia passar sem luta. Começara a avançar para ela, e os outros afastaram-se da sua frente.
Aspinella estava preparada para sair. Empunhara a arma, sem a apontar. ― Experimenta, e estouro-te os tomates ― dissera, e naquela sala ninguém tivera a mínima dúvida de que puxaria o gatilho. Gangee parara e abanara a cabeça, com nojo.
O incidente fora denunciado, evidentemente. Era uma infração grave por parte de Aspinella. Mas Di Benedetto era suficientemente esperto para saber que um julgamento interno seria um desastre político para o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Abafara a coisa e ficara tão impressionado com Aspinella que a chamara para junto de si e se tornara seu mentor.
O que afetara Aspinella mais do que qualquer outra coisa fôra o fato de haver pelo menos quatro polícias negros naquela sala e nenhum deles ter tentado defendê-la. Pelo contrário, tinham-se rido das graçolas do polícia branco. A lealdade sexual era mais forte do que a lealdade racial.
A partir daí, a sua carreira estabelecera-a como o melhor elemento da divisão. Era implacável para com os traficantes de droga, os gatunos, os assaltantes à mão-armada. Não lhes dava quartel nem mostrava piedade, fossem pretos ou brancos. Feria-os a tiro, espancava-os, humilhava-os. Várias vezes foram apresentadas queixas, mas nenhuma pudera ser provada, e a sua reputação de coragem falava por ela. Mas aquelas queixas despertavam nela uma raiva enorme contra a própria sociedade. Como se atreviam a pô-la em causa quando os protegia contra a pior escumalha da cidade? Di Benedetto apoiava-a contra tudo e contra todos.
Houvera uma situação delicada, quando abatera a tiro dois adolescentes que tinham tentado assaltá-la em plena luz do dia quando saía do seu apartamento, no Harlem. Um dos rapazes dera-lhe um murro na cara e o outro puxara-lhe pela bolsa. Aspinella sacara da arma e os dois rapazes ficaram petrificados. Muito deliberadamente, Aspinella matara-os a ambos. Não só por causa do murro na cara, mas também para deixar clara a mensagem de que não permitia assaltos no seu bairro. Os grupos de Direitos Civis tinham organizado um protesto, mas o Departamento decidira que se tratara de um caso de uso justificado de força. Ela, porém, sabia que era culpada.
Fora Di Benedetto que a convencera a aceitar o seu primeiro grande suborno num caso de droga. Falara-lhe com a afabilidade de um velho tio.
― Aspinella ― dissera ―, hoje em dia um polícia já nem se preocupa muito com as balas. São ossos do oficio. Com o que tem de preocupar-se a sério é com os grupos de Direitos Civis, os cidadãos e os criminosos que o processam por abuso de autoridade. Com os chefões políticos do Departamento que o mandam para a prisão para conseguirem votos. Especialmente alguém como tu. És uma vítima natural, de modo que diz-me, vais acabar como essas desgraçadas que andam por aí a ser violadas, roubadas e assassinadas? Ou vais proteger-te? Entra nesta. Terás mais proteção dos grandalhões do Departamento que já foram comprados. Dentro de cinco ou seis anos, podes reformar-te com um monte dele. E não terás de preocupar-te com ir parar à cadeia por teres despenteado um sacana de um gatuno qualquer.
Cedera.
E, pouco a pouco, começara a achar graça a esconder o dinheiro em contas bancárias secretas. Mas nem por isso dera tréguas aos criminosos. Aquilo era diferente, porém. Aquilo era uma conspiração para cometer assassínio, e tudo bem, o tal Astorre era um tipo da Máfia, e até ia ser um prazer arrumá-lo. De certa maneira, estaria a fazer o seu trabalho. Mas o argumento final fôra o risco ser tão pequeno e a recompensa tão grande. Um quarto de milhão.
Di Benedetto saiu da Southem State Parkway e minutos depois entrava no parque de estacionamento de um pequeno centro comercial com dois pisos. Todas as doze lojas que o constituíam estavam fechadas, incluindo a pizzaria, que ostentava um refulgente anúncio de néon na montra. Saíram do carro.
― É a primeira vez que vejo uma pizzaria fechar tão cedo ― comentou Di Benedetto. Eram apenas dez horas.
Caminhou à frente dela até à porta lateral da pizzaria. Não estava fechada. Subiram uma dúzia de degraus até um corredor. Havia uma suíte com dois quartos do lado esquerdo e um quarto do lado direito. Fez um gesto, e Aspinella verificou a suíte do lado esquerdo enquanto ele ficava de guarda. Depois entraram no quarto da direita. Heskow estava lá, à espera deles. Estava sentado na extremidade de uma comprida mesa de madeira, rodeada por quatro desconjuntadas cadeiras também de madeira. Em cima da mesa havia um saco de lona, relativamente pequeno, que parecia bem recheado. Heskow apertou a mão a Di Benedetto e dirigiu um aceno de cabeça a Aspinella. Ela pensou que nunca tinha visto um branco que parecesse tão branco. O rosto, e até o pescoço, estavam completamente lívidos. O quarto era iluminado por uma lâmpada de fraca potência e não tinha janelas. Sentaram-se à volta da mesa. Di Benedetto estendeu o braço e deu uma palmadinha no saco.
― Está tudo aí? ― perguntou.
― Claro ― respondeu Heskow, com voz trêmula.
Bem, um homem que transportava meio milhão de dólares num saco de lona tinha o direito de estar um pouco nervoso, pensou Aspinella. Mas mesmo assim inspecionou o quarto, em busca de microfones.
― Deixa-me dar uma espreitadela ― disse Di Benedetto.
Heskow desapertou o cordão que fechava a boca do saco e inclinou-o. Cerca de vinte maços de notas presas com elásticos deslizaram para cima da mesa. A maior parte era de notas de cem dólares, nenhum de cinqüenta, e dois eram de vinte.
Di Benedetto suspirou.
― A merda dos vintes ― murmurou. ― OK., volta a metê-los lá dentro.
Heskow guardou os maços dentro do saco e re-apertou o cordão.
― O meu cliente deseja que o assunto seja tratado o mais rapidamente possível ― disse.
― Dentro de duas semanas ― anunciou Di Benedetto.
― Ótimo ― disse Heskow.
Aspinella pegou no saco e pô-lo ao ombro. Não era muito pesado, pensou. Meio milhão não pesava assim tanto.
Viu Di Benedetto apertar a mão a Heskow e sentiu uma onda de impaciência. Queria sair dali para fora. Começou a descer a escadas, com o saco equilibrado no ombro, seguro com uma mão, enquanto a outra se mantinha pronta para sacar a arma. Ouviu os passos de Di Benedetto atrás dela. Estavam cá fora, sentindo o fresco da noite. Ambos escorriam suor. ― Mete o saco no porta-bagagens ― disse Di Benedetto. Sentou-se ao volante e acendeu um charuto. Aspinella deu a volta e entrou no carro. ― Onde é que fazemos a partilha? ― perguntou Di Benedetto.
― Em minha casa não ― respondeu Aspinella. ― Tenho uma babá em casa.
― Na minha também não ― disse Di Benedetto. ― Tenho uma mulher. Que tal alugarmos um quarto num motel?
Aspinella fez uma careta e Di Benedetto propôs, sorrindo:
― O meu gabinete. Trancamos a porta. ― Riram-se ambos. ― Verifica outra vez o porta-bagagens. Certifica-te de que está bem fechado. Aspinella não discutiu. Saiu do carro, abriu o porta-bagagens e pegou no saco. Nesse momento, Di Benedetto ligou a ignição.
A explosão fez chover pedaços de vidro sobre o pequeno edifício. O próprio carro pareceu flutuar no ar por uns instante antes de voltar a cair com um grito de metal rasgado que destruiu o corpo de Di Benedetto. Aspinella Washington foi projetada a quase três metros de distância, com um braço e uma perna partidos. Mas foi a dor do olho arrancado que a fez perder os sentidos.
Heskow, que saía pela porta das traseiras da pizzaria, sentiu a pressão do ar empurrá-lo contra a parede. Saltou para o carro e vinte minutos mais tarde estava em casa, em Brightwaters. Preparou uma bebida rápida e verificou os dois maços de notas de cem que tirara do saco de lona. Quarenta mil: um bônus bem simpático. Ia dar ao filho dois mil dólares, para gastar à vontade. Não, mil. O resto era para guardar.
Ficou à espera do noticiário da noite na TV, em que a explosão foi a história de abertura. Um polícia morto, outro gravemente ferido. E, no local, um saco de lona com uma grande quantia em dinheiro. O jornalista da Tv não disse quanto.
Quando Aspinella Washington voltou a si no hospital, dois dias mais tarde, não ficou surpreendida ao ser apertadamente interrogada a respeito do dinheiro e por que razão faltavam exatamente quarenta mil dólares para meio milhão. Negou ter qualquer conhecimento do dinheiro. Perguntaram-lhe o que estavam o chefe do Departamento Criminal e a sua adjunta a fazer juntos. Recusou-se a responder alegando tratar-se de um assunto pessoal. Mas ficou furiosa por estarem a interrogá-la tão insistentemente quando ela se encontrava num estado tão evidentemente grave. O Departamento estava-se nas tintas para ela. Queriam lá saber de tudo o que tinha feito. Mas no fim, acabou bem. Não foram feitas acusações e arranjaram as coisas de modo que a investigação a respeito do dinheiro desse em nada.
Foi precisa mais uma semana de convalescença para que Aspinella juntasse todas as peças. Fôra uma armadilha. E o único tipo que podia tê-la montado era Heskow. E o fato de faltarem quarenta mil dólares no saco significava que aquele porco ganancioso não resistira a roubar a sua própria gente. Bom, ela havia de pôr-se boa, pensou, e então voltaria a ter uma conversa com o sr. Heskow.