Capítulo 12


Ao cabo de um mês, Aspinella Washington saiu do hospital. O seu corpo fisicamente perfeito parecia regenerar-se por si mesmo à volta dos ferimentos. Teria, no entanto, de esperar ainda um pouco mais antes que os médicos pudessem colocar-lhe um olho artificial. É certo que arrastava um pouco o pé esquerdo, e que o aspecto da órbita vazia era horrível. Mas Aspinella cobriu-a com uma pala quadrada e verde, em vez de redonda e preta, e aquele verde-escuro acentuava a beleza da sua pele cor de chocolate. Apresentou-se ao serviço vestindo calças pretas, camisola de malha verde e um casaco de couro igualmente verde. Quando se viu no espelho, achou-se mais do que bela, impressionante.


Embora continuasse de baixa médica, aparecia por vezes no Departamento e ajudava nos nterrogatórios. O fato de ter sido ferida dava-lhe uma sensação de liberdade, de poder fazer tudo o que quisesse. E esticava ao máximo os limites do seu poder.


No primeiro interrogatório em que participou havia dois suspeitos, uma parelha invulgar, na medida em que um era branco e o outro negro. O branco, que teria cerca de trinta anos, sentiu-se imediatamente aterrorizado. O negro, pelo contrário, ficou encantado com aquela bela mulher que fixava nele o olhar firme e gelado do seu único olho. Ali estava uma irmã à maneira. ― Porra! ― exclamou, deliciado. Era a sua primeira detenção, não tinha antecedentes criminais e não fazia verdadeiramente a mínima idéia de que estava metido em gravíssimos sarilhos. Ele e o parceiro tinham assaltado um apartamento, amarrado o casal que lá vivia e saqueado a casa. Estavam ali porque um informador os denunciara. O garoto negro ainda ostentava no pulso o Rolex que roubara ao proprietário. ― Então como é, capitão Kidd ― continuou jovialmente, dirigindo-se a Aspinella sem malícia, na realidade até com uma ponta de admiração na voz ―, vai fazer-nos caminhar pela prancha?


Tanta imprudência fez sorrir os outros detetives presentes na sala. Mas Aspinella não respondeu. O rapaz estava algemado e não pôde evitar o golpe. O cassetete atingiu-o na cara, partindo-lhe o nariz e rachando o osso malar. Não caiu logo; os joelhos vergaram-se-lhe e olhou para ela com uma expressão de censura. A cara dele era uma pasta de sangue. Então as pernas cederam e tombou no chão. Durante dez minutos, Aspinella espancou-o ferozmente. O sangue começou a jorrar-lhe dos ouvidos como de uma fonte.


― Jesus! ― exclamou um dos detetives. ― Como é que vamos interrogá-lo agora?


― Não queria falar com ele ― respondeu Aspinella. ― É com este tipo que quero conversar. ― Apontou o cassetete para o suspeito branco. ― Zeke, não é? Quero conversar contigo, Zeke. ― Agarrou-o rudemente por um ombro e empurrou-o para a cadeira colocada diante da sua secretária. O homem olhava-a fixamente, aterrorizado. Aspinella apercebeu-se de que a pala tinha escorregado para o lado e que Zeke estava a olhar para a sua órbita vazia. Levantou a mão e colocou-a no seu lugar. ― Zeke ― continuou ―, quero que ouças com muita atenção o que te vou dizer. A idéia aqui é poupar tempo. Quero que me digas como foi que meteste o miúdo numa coisa destas. Como foi que te meteste a ti mesmo numa coisa destas. Compreendeste? Vais colaborar?


Zeke estava mortalmente pálido. Não hesitou uma fração de segundo. ― Sim, minha senhora ― disse. ― Conto-lhe tudo.


― OK ― prosseguiu Aspinella, dirigindo-se a outro detetive. ― Levem o miúdo para a enfermaria e chamem a malta do vídeo para gravar a confissão que o Zeke vai fazer de sua livre e espontânea vontade.


Quando o equipamento acabou de ser montado, voltou-se para Zeke e perguntou:


― Quem é o vosso receptador? Quem lhes deu informações sobre o alvo? Dá-me os pormenores exatos do roubo. O teu parceiro parece ser um puto porrerinho. Não tem cadastro, e além disso é pouco esperto. Por isso não apertei muito com ele. Mas tu não, Zeke, tu tens um belo cadastro, e quanto a mim foste o sacana que o meteu nesta alhada. Portanto, começa a ensaiar para o vídeo.


Quando saiu da esquadra, Aspinella meteu pela Southern State Parkway até Brightwaters, em Long Island.


Curiosamente, descobriu que conduzir com um só olho era até bastante agradável. A paisagem tornava-se mais interessante porque ficava focada, como um quadro futurista que se dissolvesse em sonhos à volta das margens. Era como se o mundo, o próprio globo, tivesse sido cortado ao meio, e a metade que ela conseguia ver exigisse mais atenção.


Finalmente, chegou a Brightwaters e passou em frente da casa de John Heskow. Viu o carro dele parado no caminho de acesso e um homem a transportar uma enorme azálea da estufa para dentro de casa. Depois, um segundo homem saiu da estufa carregando uma caixa cheia de flores amarelas. Aquilo era interessante, pensou. Estavam a esvaziar o viveiro. Durante o tempo que passara no hospital, fizera algumas investigações sobre John Heskow. Através do Registro Automóvel do Estado de Nova Iorque, descobrira a morada. Depois, passara em revista todas as bases de dados policiais disponíveis e ficara a saber que John Heskow se chamava na realidade Louis Ricci; o filho-da-puta era italiano, apesar de parecer um pudim alemão. Fora preso diversas vezes por extorsão e assalto, mas nunca condenado. Era impossível o negócio das flores gerar o dinheiro suficiente para sustentar o seu estilo de vida.


Fizera tudo isto porque compreendera que a única pessoa que podia ter apontado o dedo a ela própria e a Di Benedetto era Heskow. Só uma coisa a intrigava: o fato de ele lhes ter dado o dinheiro. Aquele dinheiro lançara-lhe os tipos dos Assuntos Internos aos calcanhares, mas não tivera grande dificuldade em livrar-se dos seus aliás muito pouco entusiásticos esforços, uma vez que se tinham dado por satisfeitos ficando com a massa para eles próprios. Agora, preparava-se para livrar-se de Heskow.


Vinte e quatro horas antes do planeado ataque a casa de Cilke, Heskow dirigiu-se ao aeroporto Kennedy para apanhar um vôo com destino à Cidade do México, onde desapareceria do mundo civilizado com os passaportes falsos de que tivera o cuidado de munir-se havia anos.


Todos os pormenores estavam tratados. Os viveiros de flores tinham sido esvaziados; a ex-mulher encarregar-se-ia de vender a casa e depositar o dinheiro numa conta bancária para custear os estudos universitários do filho. Heskow dissera-lhe que estaria ausente dois anos. Contara a mesma história ao filho, durante um jantar no Shun Lee.


Chegou ao aeroporto ao princípio da noite. Despachou no check-in duas malas, tudo o que precisava, além dos cem mil dólares em notas de cem que tinha presos ao corpo com fita gomada, metidos em pequenas bolsas. Estava bem preparado para as primeiras despesas, e dispunha ainda de uma conta secreta nas ilhas Caymans, com quase cinco milhões de dólares. Graças a Deus, porque com toda a certeza não poderia concorrer à Segurança Social. Orgulhava-se deter vivido uma vida prudente, em vez de esbanjar o seu dinheiro ao jogo, com mulheres ou outras idiotices.


Feito o check-in e na posse do cartão de embarque, ficou apenas com uma pequena pasta com os seus documentos de identidade e os passaportes falsos. Deixara o carro no parque permanente; a ex-mulher iria buscá-lo mais tarde.


Faltava ainda pelo menos uma hora para o vôo. Sentiu-se ligeiramente pouco à vontade por estar desarmado, mas teria de passar pelos detectores para entrar no avião, e além disso poderia ― conseguir todas as armas que quisesse através dos seus contatos na Cidade do México.


Para matar o tempo, comprou algumas revistas na livraria e dirigiu-se ao restaurante do terminal. Carregou uma bandeja com uma fatia de bolo e café e sentou-se a uma das pequenas mesas. Folheou as revistas e comeu o bolo, uma falsa torta de morango coberta com creme de pasteleiro. Subitamente, teve consciência de que alguém se sentara à sua mesa. Ergueu os olhos e viu a detetive Aspinella Washington. Como toda a gente, ficou fascinado pela pala quadrada, verde-escura, que lhe tapava a órbita vazia. Sentiu uma onda de pânico. A mulher pareceu-lhe muito mais bonita do que se lembrava.


― Olá, John ― disse ela. ― Nunca foste visitar-me ao hospital.


Heskow estava tão desorientado que a levou a sério.


― Sabe bem que não podia fazer uma coisa dessas, detetive Washington. Mas lamentei muito saber do seu acidente.


Aspinella dirigiu-lhe um grande sorriso.


― Estava a brincar, John. Mas gostaria de ter uma conversinha contigo antes do teu vôo.


― Claro ― respondeu Heskow. Contava sempre com a necessidade de subornar alguém, e tinha na pasta dez mil dólares preparados precisamente para uma contingência desse tipo. ― Gosto de vê-la com tão bom aspecto. Estava preocupado consigo.


― A sério? ― exclamou Aspinella, e o seu único olho brilhou como o de um falcão. ― Foi uma pena, aquilo do Paul. Éramos bons amigos, sabes, além de ele ser o meu chefe.


― Foi uma grande pena, é verdade ― concordou Heskow. Teve até um pequeno soluço, que fez Aspinella sorrir.


― Não preciso de mostrar-te o meu distintivo, pois não? ― continuou ela. Fez uma pausa. ― Quero que venhas comigo até uma salinha de interrogatórios que temos aqui no terminal. Dá-me algumas respostas interessantes, e podes apanhar o teu avião.


― OK. ― disse Heskow. E pôs-se de pé, pegando na pasta.


― E nada de brincadeiras, ou dou-te um tiro. Queres saber uma coisa engraçada? Atiro ainda melhor agora que tenho só um olho. Levantou-se também, pegou-lhe por um braço e subiu com ele até à ária superior onde se situavam os serviços administrativos das companhias de aviação. Conduziu-o ao longo de um comprido corredor e abriu uma porta. Heskow ficou surpreendido não só pelo tamanho da sala, mas também pelos painéis de monitores de TV, pelo menos vinte, montados nas paredes e vigiados por dois homens que, sentados em cômodas cadeiras de braços, os observavam enquanto comiam sanduíches e bebiam café. Um deles levantou-se e disse:


― Olá, Aspinella. O que é que há?


― Vou ter uma conversa particular com este tipo na sala de interrogatórios. Fecha-nos a porta.

― Certo ― respondeu o homem. ― Queres que um de nós fique contigo?


― Não. É só uma conversa amigável.


― Oh, uma das tuas famosas conversas amigáveis ― disse o homem, com uma gargalhada. Olhou atentamente para Heskow. ― Vi-o num dos monitores do terminal. Torta de morango, não foi? ― Conduziu-os até uma porta ao fundo da sala e abriu-a. Depois de Heskow e Aspinella terem entrado, voltou a fechá-la à chave.


Heskow sentiu-se tranqüilizado, sabendo que havia outras pessoas envolvidas. A sala de interrogatórios era desarmante, com um sofá, uma secretária e três cadeiras de aspecto confortável. Num dos cantos havia um distribuidor de água com copos de papel. As paredes cor-de-rosa estavam decoradas com fotografias e desenhos de máquinas voadoras.


Aspinella empurrou-o para a cadeira colocada diante da secretária sobre cujo tampo se sentou, olhando-o de cima para baixo.


― Podemos ir ao assunto? ― perguntou Heskow. ― Não quero perder o meu vôo.


Aspinella não respondeu. Estendeu um braço e pegou na pasta que ele tinha no colo. Heskow contorceu-se na cadeira. Ela abriu a pasta e remexeu o seu conteúdo, incluindo os maços de notas de cem dólares. Estudou um dos passaportes falsos, voltou a meter tudo dentro da pasta e devolveu-a. ― És um homem esperto ― disse. ― Sabias que era altura de desaparecer. Quem te avisou de que eu andava atrás de ti?


― Por que havia de andar atrás de mim? ― perguntou Heskow. Sentia-se mais confiante, agora que ela lhe devolvera a pasta.


Aspinela levantou a pala verde, para que ele pudesse ver a feia cratera. Mas Heskow nem pestanejou: tinha visto muito pior, nos seus tempos. ― Custaste-me um olho ― afirmou ela. ― Só tu podias ter-me denunciado a mim e ao Paul.


Heskow falou com a mais absoluta sinceridade, desde sempre um dos seus melhores trunfos na atividade a que se dedicava:


― Está enganada, completamente enganada. Se tivesse feito uma coisa dessas, teria ficado com o dinheiro... com certeza compreende isso. Ouça, tenho mesmo de apanhar aquele vôo. ― Desabotoou a camisa e arrancou um pedaço de fita gomada. Dois maços de notas apareceram em cima da mesa. ― É seu, e o dinheiro que está na pasta. São trinta mil.


― Epa! ― exclamou Aspinella. ― Trinta mil. Uma porção de massa só por um olhozito. OK. Mas tens de dizer-me o nome do tipo que te pagou para nos armares a cilada.


Heskow tomou uma decisão. A sua única possibilidade era ir naquele avião. Sabia que ela não estava a fazer bluff. Lidara com demasiados maníacos homicidas no exercício da sua profissão para se enganar a respeito daquela.


― Ouça, acredite em mim ― disse. ― Nunca me passou pela cabeça que aquele tipo fosse liquidar dois polícias de alta patente. Só fiz um acordo com o Astorre Viola para que ele pudesse esconder-se. Nunca sonhei que fizesse uma coisa daquelas.


― Ótimo. Agora diz-me, quem pagou o golpe contra ele?


― O Paul sabia ― respondeu Heskow. ― Não lhe disse? Foi o Timmona Portella.


Aspinella sentiu uma onda de raiva invadi-la. O seu gordo parceiro fora não só uma desilusão na cama como ainda por cima um sacana de um mentiroso.


― Levanta-te ― ordenou. Subitamente, aparecera uma arma na sua mão. Heskow ficou aterrorizado. Já vira aquela expressão noutras ocasiões, com a diferença de que não fora ele a vítima. Por um instante, pensou nos seus cinco milhões de dólares, que morreriam com ele, sem ninguém que os reclamasse, e aqueles cinco milhões pareceram-lhe uma criatura viva. Que tragédia.


― Não! ― gritou, e encolheu-se ainda mais na cadeira.


Ela agarrou-o pelos cabelos com a mão livre e obrigou-o a levantar-se. Manteve a arma afastada do pescoço dele e disparou. Heskow pareceu voar-lhe da mão e tombou no chão. Ajoelhou-se ao lado do corpo. Metade da garganta tinha sido arrancada pela bala. Tirou então a arma extra do coldre do tornozelo, meteu-a na mão de Heskow e pôs-se de pé. Ouviu a chave girar na fechadura, e os dois outros polícias irromperam na sala, de armas empunhadas.


― Tive de matá-lo ― disse. ― Tentou subornar-me e depois sacou de uma arma. Chamem a ambulância do terminal. Eu mesma falo com os Homicídios. Não toquem em nada, não me percam de vista.


Na noite seguinte, Portella desferiu o seu ataque. A mulher e a filha de Cilke tinham já sido secretamente levadas para uma bem guardada base do FBi na Califórnia. Cilke, obedecendo às ordens do diretor, estava na sede do Bureau em Nova Iorque, acompanhado por todo o seu pessoal. Bill Boxton recebera o comando global da força-tarefa especial que montaria a emboscada em casa de Cilke. As regras de confrontação tinham, no entanto, sido estritamente definidas. O FBI não queria um banho de sangue que provocasse os protestos dos grupos liberais. Os homens do Bureau só disparariam se fossem alvejados. Far-se-iam todos os esforços para dar aos atacantes a possibilidade de se renderem.


Como participante da equipe de planeamento, Kurt Cilke reuniu-se com Bill Boxton e o chefe da equipe operacional, um homem comparativamente jovem, de trinta e cinco anos, cujo rosto tinha a rigidez fria e distante dos habituados a comandar. Tinha também uma pele desagradavelmente cinzenta e uma indesculpável covinha no queixo. Chamava-se Sestak e o seu sotaque era puramente Harvard. A reunião foi no gabinete de Cilke.


― Espero que se mantenham permanentemente em contato comigo disse. ― As regras de confrontação serão estritamente observadas.


― Não te preocupes ― procurou Boxton tranquilizá-lo. - Temos cem homens e um poder de fogo muito superior. Vão render-se.


― Ótimo. Quando os capturarem, despachem-nos para o centro de interrogatórios de Nova Iorque. Não estou autorizado a participar no interrogatório, mas quero ser informado logo que possível.


― E se alguma coisa correr mal e elas acabarem por ser mortos? ― perguntou Sestak.


― Haverá um inquérito interno e o diretor ficará extremamente aborrecido. Ora bem, a realidade é esta: serão presos por tentativa de homicídio, e depois postos em liberdade sob fiança. Logo a seguir, desaparecerão para a América do Sul. Portanto, temos apenas uns poucos dias para interrogá-los.


Boxton olhou para ele com um pequeno sorriso.


Sestak disse-lhe, no seu tom de voz muito culto: ― Suponho que isso o deixará a si extremamente aborrecido.


― Claro que me desagrada ― admitiu Cilke. ― Mas o diretor tem de ter em conta as implicações políticas. As acusações de conspiração são sempre complicadas de provar.


― Estou a ver ― disse Sestak. ― Nesse caso, tens as mãos atadas.


― Exatamente ― respondeu Cilke.


― É uma vergonha ― observou Boxton, surdamente. ― Esses tipos tentam matar um agente federal e safam-se numa boa.


Sestak estava a olhar para ambos com um sorriso divertido. A sua pele cinzenta adquiriu uma tonalidade rosada.


― Está a pregar para o coro ― disse. ― De qualquer modo, estas operações correm sempre mal. Um fulano que tem uma arma pensa sempre que pode dispará-la. Um aspecto muito curioso da natureza humana.


Nessa noite, Boxton acompanhou Sestak à área operacional em torno da residência de Cilke, em Nova Jersey. As luzes tinham sido deixadas acesas, para dar a impressão de que estava gente em casa. Havia além disso três carros estacionados diante da porta, sugerindo que os guardas se encontravam no interior. Os carros tinham sido armadilhados, de modo a explodirem se o motor fosse posto a trabalhar. Tirando isto, Boxton nada viu. Onde raio estão os seus cem homens? ― perguntou a Sestak.


Este dirigiu-lhe um amplo sorriso.


― Muito bom, hein? Estão à nossa volta, e nem mesmo você consegue vê-los. Já têm as suas linhas de fogo definidas. Quando os atacantes entrarem, a estrada será fechada. E nós teremos um cesto cheio de ratazanas.


Boxton permaneceu ao lado de Sestak no posto de comando situado a cinqüenta metros da casa. Com eles estava uma equipe de transmissões constituída por quatro homens camuflados de modo a confundirem-se com o bosque que lhes dava cobertura. Sestak e os membros do grupo operacional estavam armados com fuzis. Boxton tinha apenas a sua pistola.


― Não o quero envolvido na luta ― disse-lhe Sestak. ― Além disso, a arma que usa seria inútil nesta situação.


― Por que não? ― protestou Boxton. ― Passei toda a minha carreira à espera de uma oportunidade de disparar contra os maus.


Sestak riu-se.


― Mas não vai ser hoje. A minha equipe está protegida por ordens executivas contra quaisquer inquéritos ou acusações legais. Você não está.


― Mas sou o comandante.


― Só até iniciarmos a fase operacional ― replicou Sestak, friamente. ― A partir desse momento, o único comandante sou eu. Todas as decisões são minhas. Nem o diretor pode desautorizar-me.


Esperaram juntos na escuridão. Boxton consultou o relógio. Faltavam dez para a meia-noite. Um dos membros da equipe de transmissões sussurou ao ouvido de Sestak:


― Cinco carros cheios de homens vêm nesta direção. A estrada foi fechada. Tempo estimado de chegada, cinco minutos.


Sestak usava equipamento infravermelho que lhe dava visão noturna.


― OK. ― disse. ― Avisa os homens. Ninguém dispara a menos que seja em resposta a fogo inimigo ou por ordem minha.


Esperaram. Subitamente, cinco carros entraram de rompante no pátio e travaram com um chiar de pneus. Do seu interior começaram a saltar homens, um dos quais lançou uma bomba incendiária para dentro da casa de Cilke. O engenho estilhaçou o vidro de uma das janelas e cuspiu uma fina língua de fogo vermelho.


Na mesma fração de segundo, toda a área foi inundada pela luz ofuscante dos projetores, que paralisou o grupo de vinte atacantes. Simultaneamente, um helicóptero brilhantemente iluminado apareceu a pairar sobre a casa. Os alto-falantes rugiram a sua mensagem para a noite:


― Agentes federais. Larguem as armas e deitem-se no chão. Ofuscados pelas luzes, os homens encurralados permaneceram imóveis. Boxton apercebeu-se, com alívio, de que tinham perdido toda a vontade de resistir.


Por isso foi apanhado de surpresa quando Sestak ergueu a espingarda e disparou para o meio do grupo de atacantes, que ripostaram imediatamente ao fogo. No mesmo instante, o bosque encheu-se com o estrondear de centenas de disparos que varreram o pátio e ceifaram os assaltantes.


Um dos carros armadilhados explodiu. Foi como se um furacão de chumbo tivesse assolado o pequeno espaço. Os outros carros assentaram no solo, tão crivados de balas que a tinta saltou literalmente das carroçarias. O pátio pareceu jorrar uma fonte de sangue que começou a escorrer, contornando os veículos. Os vinte atacantes tinham-se transformado em montes de carne esfarrapada e ensanguentada, como sacos de roupa suja à espera de serem levados.


Boxton estava em estado de choque. Voltou-se para Sestak


― Disparou antes deles poderem render-se ― disse, acusadoramente. ― Será esse o meu relatório.


― Discordo. ― Sestak sorriu-lhe. ― A partir do momento em que lançaram a bomba incendiária, passou a ser tentativa de homicídio. Não podia arriscar os meus homens. Será esse meu relatório. E também que foram eles os primeiros a disparar.


― Pois não será o meu ― replicou Boxton.


― A sério? ― troçou Sestak. ― Acha que o diretor quer o seu relatório? A única coisa que vai conseguir é ficar na lista negra. Para sempre.


― Ele há de arrancar-lhe a cabeça por ter desobedecido às ordens. Se eu cair, caímos os dois.


― Ótimo ― respondeu Sestak. ― Mas eu sou o comandante tático. Não posso ser desautorizado. Quando me chamam, é o fim da conversa. Não quero que os criminosos pensem que podem atacar um agente federal. Essa é que é a realidade. Quanto ao resto, você e o diretor podem ir se foder.


― Vinte homens mortos ― murmurou Boxton.


― Que vão para o diabo. Você e o Cilke queriam que eu acabasse com eles, mas não tiveram tomates para dizê-lo abertamente.


E, de repente, Boxton soube que aquilo era verdade.


Kurt Cilke preparou-se para nova reunião com o diretor, em Washington. Tinha as suas notas, com um esboço do que ia dizer e um relatório sobre todas as circunstâncias que tinham rodeado o ataque a sua casa.


Como sempre, Bill Boxton acompanha-lo-ia, mas dessa vez por desejo expresso do diretor.


Cilke e Boxton estavam no gabinete do diretor, onde uma fila de monitores de Tv mostrava aspectos das diversas atividades da secção local do FBI. Sempre cortês, o diretor apertou a mão aos dois homens e convidou-os a sentarem-se, não sem dirigir a Boxton um olhar frio, desconfiado. Dois dos seus adjuntos encontravam-se igualmente presentes.


― Meus senhores ― disse, dirigindo-se a todo o grupo ―, temos um problema para resolver. Não podemos deixar passar uma coisa destas sem responder com todos os nossos recursos. Cilke, quer manter-se no lugar ou pedir a reforma?


― Fico ― respondeu Cilke.


O diretor voltou-se para Boxton, com uma expressão dura no rosto aristocrático.


― Você comandava a operação. Como é possível que todos os assaltantes tenham sido mortos e não tenhamos um único para interrogar? Quem deu a ordem de fogo? Você? E com base em quê?


Boxton sentou-se muito rígido na sua cadeira.


― Os atacantes lançaram uma bomba para dentro da casa e começaram a disparar ― respondeu. ― Não tínhamos alternativa.


O diretor suspirou. Um dos seus adjuntos emitiu um grunhido de troça.


― O capitão Sestak é um dos nossos rapazes-maravilha ― disse o diretor. ― Tentou, ao menos, conseguir um prisioneiro?


― A ação não demorou mais de dois minutos, senhor ― afirmou Boxton. ― Sestak é um táctico de campo muito eficiente.


― Bom, não houve reações dos meios de comunicação nem do público ― continuou o diretor. ― Mas devo dizer que considero o que se passou um banho de sangue.


― Foi o que foi ― comentou um dos adjuntos.


― Bom, agora não tem remédio ― concluiu o diretor. ― Cilke, preparou algum plano operacional?


Cilke sentira-se invadir pela raiva face às críticas de que ele e Boxton estavam a ser alvo, mas respondeu calmamente:


― Quero cem agentes colocados na minha delegação. Quero que peça uma auditoria, completa aos bancos Aprile. Vou cavar fundo no passado de todos os envolvidos neste assunto.


― Não se sente minimamente em dívida para com esse Astorre Viola por tê-lo salvo a si e à sua família? ― inquiriu o diretor.


― Não. É preciso conhecer essa gente. Primeiro arranjam-nos os sarilhos, e depois ajudam-nos a sair deles.


― Não esqueça, um dos nossos interesses primordiais e apropriarmo-nos dos bancos Aprile. Não só porque beneficiamos, mas também porque esses bancos estão destinados a ser um centro de branqueamento de dinheiro da droga. E através deles chegamos ao Portella e ao Tulippa. Temos de olhar para tudo isto de uma forma global. Astorre Viola recusa vender os bancos, e o cartel está a tentar eliminá-lo. Até ao momento, não conseguiram. Sabemos que os dois assassinos contratados que abateram o Don desapareceram. Dois detetives da polícia de Nova Iorque foram vítimas de um atentado à bomba.


―Astorre Viola é um homem astuto e escorregadio, e não está envolvido em qualquer atividade criminosa ― lembrou Cilke ―, pelo que não podemos verdadeiramente acusá-lo seja do que for. É possível que o cartel consiga desembaraçar-se dele, e nesse caso os filhos do Don venderão os bancos. Estou certo de que então, mais cedo ou mais tarde, cometerão um erro qualquer.


Não era invulgar as agências policiais do governo entrarem em jogos a longo prazo, sobretudo com a gente da droga. Mas, para fazê-lo, tinham de permitir que fossem cometidos alguns crimes.


― Não seria a primeira vez que fazíamos uma jogada desse tipo ― concordou o diretor. ― O que não significa dar carta branca ao Portella.


― Claro que não ― respondeu Cilke, sabendo perfeitamente que estavam todos a falar para o gravador.


― Dou-lhe cinqüenta homens ― disse o diretor. ― E vou pedir uma auditoria completa aos bancos, só para agitar as águas.


― Já os investigamos noutras ocasiões ― interveio um dos adjuntos ― e nunca encontramos fosse o que fosse.


― Há sempre uma possibilidade ― disse Cilke. ― O Astorre não é banqueiro, pode ter cometido erros.


― Sim ― corroborou o diretor. ― Um pequeno deslize, é tudo aquilo de que o Procurador-Geral precisa.


De volta a Nova Iorque, Cilke reuniu-se com Boxton e Sestak para planear a sua campanha.


― Vão dar-nos mais cinqüenta agentes para investigar o assalto a minha casa ― disse-lhes. ― Temos de ter muito cuidado. Quero tudo o que possam arranjar-me sobre o Astorre Viola. Quero investigar essa história da bomba no carro dos dois detetives. Quero tudo o que houver sobre o desaparecimento dos irmãos Sturzo e toda a informação que conseguirmos juntar sobre o cartel. Concentrem-se no Astorre e também na detetive Washington. Tem fama de corrupta e brutal, e a história que conta a respeito da explosão e do dinheiro encontrado no local é muito suspeita.


― E o tal Tulippa? ― perguntou Boxton. ― Pode sair do país a qualquer momento.


― O Tulippa anda em digressão, a fazer conferências sobre a legalização da droga e a cobrar dinheiro de chantagem a várias grandes empresas.


― Não podemos deitar-lhe a mão com base nisso? ― inquiriu Sestak


― Não ― respondeu Cilke. ― Oficialmente, tem uma seguradora, e vende-lhes seguros. Talvez conseguíssemos qualquer coisa, mas os tipos das empresas opõem-se. Resolveram o problema da segurança do seu pessoal na América do Sul. E o Portella não tem para onde ir.


Sestak sorriu-lhe com frieza.


― Quais são as regras de confrontação neste caso?


― As ordens do diretor foram: nada de matanças, mas protejam-se ― respondeu Cilke, calmamente. ― Sobretudo contra o Astorre.


― Por outras palavras, podemos abatê-lo ― comentou Sestak.


Durante alguns instantes, Cilke pareceu perdido em pensamentos.


― Se necessário ― respondeu.


Foi só uma semana mais tarde que os auditores federais se abateram como um enxame de moscas sobre os registros dos bancos Aprile e que Cilke em pessoa se apresentou no gabinete do sr. Pryor, a quem, depois de lhe apertar a mão, disse com um sorriso divertido:


― Gosto sempre de conhecer pessoalmente as pessoas que posso ter de vir a mandar para a prisão. Ora bem, pode ajudar-nos de alguma maneira e saltar do comboio antes que seja demasiado tarde?


O sr. Pryor olhou para ele com um ar de benevolente preocupação. ― Palavra? ― perguntou. ― Está totalmente enganado, asseguro-lhe. Dirijo estes bancos impecavelmente, de acordo com a lei nacional e internacional.


― Bem, só queria que soubesse que ando a investigar o seu passado. O seu e o de toda a gente. Espero que estejam todos limpos. Especialmente os irmãos Aprile.


O sr. Pryor sorriu-lhe. ― Estamos imaculados.


Depois de Cilke sair, o sr. Pryor recostou-se na cadeira. A situação estava a tornar-se alarmante. E se chegassem a Rosie? Suspirou. Que pena. Ia ter de fazer alguma coisa a esse respeito.


Quando Cilke notificou Nicole que de que a queria a ela e ao primo no seu gabinete na manhã seguinte, ainda não compreendia verdadeiramente o caráter de Astorre, nem queria compreender. Apenas sentia por ele o mesmo desprezo que por qualquer pessoa que violasse a lei. Não compreendia o espírito de um verdadeiro mafioso.


Astorre acreditava na velha tradição. Os seus homens amavam-no não só pelo seu carisma, mas porque punha a honra acima de tudo.


Um verdadeiro mafioso era suficientemente forte na sua vontade para vingar qualquer insulto feito à sua pessoa ou à sua cosca. Nunca se submeteria à vontade de outro homem ou de qualquer agência do governo. E era essa a base do seu poder. A sua vontade era soberana; a justiça era aquilo que ele decretava que devia ser. O fato de ter salvo a família de Cilke fora um gesto de fraqueza. Mesmo assim, quando se dirigiu com Nicole ao gabinete de Cilke, ia vagamente à espera de algum agradecimento, de um relaxar de animosidade por parte do agente do FBI.

Tornou-se imediatamente evidente que tinham sido feitos preparativos cuidadosos para recebê-los. Dois guardas revistaram-no e a Nicole antes de entrarem no gabinete. O próprio Cilke esperava-os de pé atrás da sua secretária. Sem o mais pequeno indício de cordialidade, indicou-lhes as cadeiras. Um dos guardas fechou a porta à chave e postou-se junto dela.


― Isto está a ser gravado? ― perguntou Nicole.


― Sim ― respondeu Cilke. ― Vídeo e áudio. Não quero qualquer mal-entendido relativamente a esta conversa. ― Fez uma pequena pausa antes de continuar, dirigindo-se a Astorre. ― Quero que compreenda que nada mudou. Considero-o um monte de esterco e não permitirei que viva neste país. Não vou nessa treta dos dons. Não acredito na sua história a respeito de um informador. Penso que foi você quem engendrou tudo o que aconteceu e depois traiu o seu cúmplice para conseguir da minha parte um tratamento mais leniente. Desprezo esse tipo de espertezas.


Astorre estava espantado por Cilke ter chegado tão perto da verdade. Olhou para ele com renovado respeito. E no entanto sentia-se ofendido. O homem não sabia o que era gratidão, não tinha respeito por quem o salvara a ele e à família. Aquela contradição íntima fê-lo sorrir.


Aquele sorriso enfureceu Cilke


― Acha que é engraçado, uma das suas piadas da Máfia? Eu já trato de lhe tirar esse sorriso dos lábios em dois segundos. ― Voltou-se então para Nicole. ― Em primeiro lugar, o Bureau exige que nos revele as verdadeiras circunstâncias em que a informação chegou ao vosso conhecimento. Não a história da carochinha que o seu primo nos contou. Estou surpreendido consigo, doutora. E estou também a pensar acusá-la de cumplicidade.


― Pode tentar ― respondeu Nicole, gélida. ― Mas sugiro que fale primeiro com o seu diretor.


― Quem o informou do ataque à minha casa? ― perguntou Cilke. ― Queremos o verdadeiro informador.


Astorre encolheu os ombros.


― Já lhe disse tudo o que tinha a dizer. É pegar ou largar ― declarou.


― Nem uma coisa nem outra ― replicou Cilke. ― Vamos deixar isto bem claro. Você não passa de mais um monte de lixo. Mais um assassino. Sei que estourou o Di Benedetto e a Washington. Estamos a investigar o desaparecimento dos irmãos Sturzo em L. A. Matou três dos patifes do Portella e participou num rapto. Mais cedo ou mais tarde, acabamos por apanhá-lo. E nessa altura será só mais um pedaço de merda.


Pela primeira vez, Astorre pareceu perder a compostura, e a sua máscara de afabilidade escorregou um pouco. Viu Nicole a olhar para ele com uma espécie de pena assustada. Por isso permitiu que alguma da sua fúria escapasse.


― Não espero favores de si ― disse a Cilke. ― Você nem sequer sabe o que significa a palavra honra. Salvei a vida da sua mulher e da sua filha. Se não fosse eu, neste momento estariam debaixo de terra. Agora chama-me aqui para me insultar. Se a sua mulher e a sua filha estão vivas, devem-no a mim. Mostre algum respeito ao menos por isso.


Cilke fulminou-o com o olhar.


― Não lhe mostro coisa nenhuma ― disse, e sentiu uma raiva terrível por estar em dívida para com aquele homem.


Astorre levantou-se para sair da sala, mas o guarda empurrou-o para a cadeira.


― Vou transformar a sua vida num inferno ― prometeu Cilke.


Astorre encolheu os ombros.


― Faça o que quiser. Mas deixe-me dizer-lhe isto. Sei que colaborou na morte de Don Aprile. Só porque você e o Bureau queriam deitar a mão aos bancos. ― Ao ouvirem isto, os dois guardas avançaram para ele, mas Cilke deteve-os com um gesto. ― Sei que pode pôr fim aos ataques contra a minha família. Digo-lhe aqui e agora que passo a considerá-lo responsável por isso.


Do outro lado da sala, Bill Boxton olhou para Astorre e perguntou, arrastando as palavras: ― Está a ameaçar um agente federal?


― Claro que não ― interveio Nicole. ― Está apenas a pedir a ajuda dele.


Cilke pareceu agora mais frio.


― Tudo isto pelo seu amado Don. Obviamente, não leu o dossiê que eu entreguei à sua prima. O seu amado Don foi o homem que matou o seu pai quando você tinha apenas três anos.


Astorre pestanejou e olhou para Nicole. ― Foi essa a parte que tentaste apagar?


Nicole assentiu.


― Não acreditei que fosse verdade, e mesmo que fosse, não me pareceu que devesses saber. Só serviria para te magoar.


Astorre sentiu a sala começar a rodopiar, mas manteve a compostura.


― Não faz a menor ― disse.


― Agora que estamos entendidos, podemos ir? ― perguntou Nicole, dirigindo-se a Cilke.


Cilke era um homem poderosamente constituído, e quando saiu de trás da secretária deu uma leve palmada na cabeça de Astorre. O que o surpreendeu tanto a ele como a Astorre, pois nunca antes tinha feito uma coisa daquelas. Foi uma palmada destinada a mostrar o seu desprezo, que mascarava um ódio real. Compreendeu que nunca conseguiria perdoar a Astorre ter-lhe salvo a família. Quanto a Astorre, olhou-o fixamente nos olhos. Sabia exatamente o que Cilke sentia.


Voltaram os dois ao apartamento dela. Nicole tentou consolá-lo na sua humilhação, mas isso só serviu para enfurecê-lo ainda mais. Nicole preparou um almoço ligeiro e depois convenceu-o a deitar-se, para descansar um pouco. A certa altura, Astorre teve consciência da presença dela na cama, a abraçá-lo. Repeliu-a.


― Ouviste o que o Cilke disse a meu respeito. E queres envolver-te na minha vida?


― Não acredito nele nem nos seus relatórios ― afirmou Nicole. ― Astorre, acho que continuo apaixonada por ti.


― Não podemos voltar ao tempo em que éramos crianças ― disse-lhe ele, gentilmente. v Eu já não sou a mesma pessoa, e tu também não. Estás apenas a desejar que fôssemos outra vez miúdos.


Deixaram-se ficar abraçados. De súbito, Astorre perguntou, sonolentamente: ― Achas que é verdade o que eles disseram a respeito de o Don ter morto o meu pai?


No dia seguinte, levando consigo o sr. Pryor, Astorre foi a Chicago, para conferenciar com Benito Craxxi. Pô-los ao corrente do que se passara, e então perguntou: ― É verdade que Don Aprile matou o meu pai?


Craxxi ignorou a pergunta e inquiriu por sua vez: ― Tiveste alguma coisa a ver com o ataque à família desse Cilke?


― Não ― mentiu Astorre.


Mentiu-lhes porque não queria que conhecessem a profundidade da sua astúcia. E sabia que o teriam reprovado.


― E no entanto salvaste-os ― disse Don Craxxi. ― Porquê?


Astorre teve de mentir novamente. Não podia permitir que os seus aliados o soubessem capaz de tamanho sentimentalismo, que não podia suportar ver a mulher e a filha de Cilke mortas.


― Fizeste bem ― disse Craxxi.


― Não respondeu à minha pergunta ― insistiu Astorre.


― Porque é uma pergunta complicada. Eras o filho recém-nascido de um grande chefe da Máfia na Sicília, já com oitenta anos, cabeça de uma cosca muito poderosa. A tua mãe era muito nova quando morreu de parto. Ao sentir chegar o fim, o velho Don chamou-nos, a mim, a Don Aprile e ao Bianco, para junto do seu leito de morte. Toda a sua cosca desapareceria quando ele morresse, e estava preocupado com o teu futuro. Fez-nos prometer que tomaríamos conta de ti e escolheu Don Aprile para te trazer para a América. Pouco depois, porque a mulher estava a morrer e queria poupar-te a novos sofrimentos, Don Aprile mandou-te para junto da família Viola, o que foi um erro, porque o teu pai adotivo acabou por revelar-se um traidor e teve de ser executado. Don Aprile levou-te novamente para sua casa logo que as coisas acalmaram. O Don tinha um sentido de humor macabro, e por isso arranjou as coisas de modo que aquela morte passasse por suicídio no porta-bagagens de um carro. Então, à medida que ias crescendo, revelaste ter todas as qualidades do teu verdadeiro pai, o grande Don Zeno. Por isso Don Aprile decidiu fazer de ti o defensor da sua família. Mandou-te para a Sicília, para seres ensinado.


Astorre não estava verdadeiramente surpreendido. Algures na sua memória havia a imagem de um homem muito velho e de um passeio num carro fúnebre.


― Sim ― disse, lentamente ―, e ensinaram-me bem. Sei como tomar a ofensiva. No entanto, o Portella e o Tulippa estão bem protegidos. E tenho de preocupar-me com o Grazziella. O único que posso matar facilmente é o cônsul, o Marriano Rubio. Entretanto, tenho o Cilke aos calcanhares. Nem sequer sei por onde começar.


― Nunca, mas nunca, ataques o Cilke ― aconselhou Don Craxxi.


― Sim - corroborou o sr. Pryor. ― Seria desastroso.


Astorre sorriu-lhes tranquilizadoramente. ― Concordo ― disse.


― Nem tudo são más notícias ― continuou Craxxi. ― O Grazziella contacou o Bianco, em Palermo, a pedir um encontro contigo. O Bianco vai mandar-te recado para lá ires dentro de um mês. Talvez ele seja a tua chave.


Tulippa, Portella e Rubio reuniram-se na sala de conferências do consulado peruano. Na Sicília, Michael Grazziella expressou o seu mais profundo pesar por não poder estar presente.


Inzio abriu a reunião sem o seu habitual charme sul-americano. Estava impaciente: ―Temos de resolver esta questão. Conseguimos ou não conseguimos os bancos? Investi milhões de dólares, eestou muito decepcionado com os resultados.


― O Astorre é como um fantasma ― justificou-se Portella. ― Não conseguimos chegar até ele. Não aceita mais dinheiro. Temos de matá-lo. Então, os outros venderão.


Inzio voltou-se para Rubio.


― Tens a certeza de que o teu amorzinho vai estar de acordo?


― Hei-de convencê-la ― afirmou Rubio.


― E os dois irmãos? ― perguntou Inzio.


― Não estão interessados em vendettas. A Nicole garantiu-mo.


― Só há uma maneira ― disse Portella. ― Raptar a Nicole e atrair o Astorre a uma emboscada.


― Por que não um dos irmãos? ― protestou Rubio.


― Porque agora o Marcantonio anda sempre muito bem guardado ― explicou Portella. ― E não nos podemos meter com o Valerius, porque então os Serviços Secretos do Exército caíam-nos em cima, e esses tipos são do pior que há.


Tulippa voltou-se para Rubio.


― Estou farto das tuas tretas. Por que haveríamos de pôr em risco biliões de dólares só para não incomodar a tua namorada?


― É que já tentamos esse truque uma vez ― redarguiu Rubio. ― E lembrem-se de que ela tem uma guarda-costas.


Estava a ser muito cuidadoso. Seria um desastre se Tulippa se zangasse com ele.


― A guarda-costas não é problema ― garantiu Portella.


― Bem, estou de acordo, desde que a Nicole não seja molestada ― disse Rubio.


Marriano Rubio preparou a armadilha convidando Nicole para o baile anual no consulado peruano. Na tarde do baile, Astorre foi visitá-la para comunicar-lhe que ia ausentar-se para uma curta visita à Sicília. Enquanto Nicole tomava banho e se vestia, Astorre pegou numa guitarra que ela tinha em casa precisamente por causa dele e cantou canções de amor italianas com a sua voz rouca mas agradável.

Nicole saiu da casa de banho completamente nua, com exceção da toalha branca que trazia no braço. Astorre ficou quase esmagado pela beleza daquele corpo que as roupas do dia-a-dia só permitiam adivinhar. Quando ela se aproximou, pegou no roupão e envolveu-a nele.


Ela aninhou-se-lhe nos braços e suspirou. ― Já não me amas.


― Nem sequer sabes quem eu sou na verdade ― disse ele, rindo. ― Já não somos crianças.


― Mas sei que és bom ― replicou Nicole. ― Salvaste o Cilke e a família dele. Quem é o teu informador?


Astorre riu-se novamente.


― Não tens nada com isso ― respondeu. E foi para a sala, para evitar mais perguntas.


Nessa noite, Nicole foi ao baile acompanhada por Helene, que se divertiu mais do que ela. Compreendia que Rubio, como anfitrião, não podia dispensar-lhe uma atenção especial. Apesar de ter mandado uma limusine buscá-la.


Depois do baile, a limusine deixou-a diante da porta do seu apartamento. Helene apeou-se primeiro. Mas antes que pudessem entrar no edificio, quatro homens rodearam-nas. Helene dobrou-se para chegar ao coldre do tornozelo, mas era demasiado tarde. Um dos homens meteu-lhe uma bala na cabeça. A coroa de flores com que enfeitava os cabelos desabrochou em sangue.


Nesse momento, outro grupo de homens surgiu das sombras. Três dos atacantes fugiram, Astorre, que seguira discretamente Nicole até ao baile, colocou-se à frente dela. O atirador que abatera Helene tinha sido desarmado.


― Leva-a daqui para fora ― ordenou Astorre a um dos seus homens. Depois apontou a arma ao assassino e perguntou : Ok, quem te enviou? O homem não parecia assustado.


― Vai-te foder ― cuspiu.


Nicole viu o rosto de Astorre ficar gelado. Viu-o disparar, atingindo o homem no peito, e depois dar um passo em frente, agarrá-lo pelos cabelos antes que tombasse no chão e dar-lhe outro tiro na cabeça. Naquele momento, viu o que o pai devia ter sido. Vomitou em cima do corpo de Helene. Astorre voltou-se para ela com um sorriso de pena nos lábios. Nicole não conseguiu encará-lo.


Astorre subiu com ela ao apartamento e deu-lhe instruções sobre o que dizer à polícia: tinha desmaiado logo que Helene fora assassinada e nada vira do que se passara a seguir. Quando ele saiu, Nicole chamou a polícia.


No dia seguinte, depois de certificar-se de que Nicole estaria guardada vinte e quatro horas por dia, Astorre partiu para a Sicília, para um encontro com Grazziella e Bianco. Seguiu a rota habitual, voando primeiro para o México e daí, num jato particular, para Palermo, de modo a não deixar qualquer registo da sua viagem.


Foi recebido por Octavius Bianco, agora tão bem arranjado e elegante ao estilo de Palermo que era dificil recordá-lo como um feroz e barbudo bandido. Bianco ficou encantado por vê-lo e abraçou-o afetuosamente. Depois levou-o de carro para a sua villa, junto à costa.


― Estás então com problemas na América ― disse, já no pátio da villa, decorado com estátuas do Império Romano. ― Mas eu tenho boas notícias para ti. ― Mudou subitamente de assunto para perguntar: ― E a tua ferida. Tem-te dado problemas?


Astorre tocou no colar de ouro.


― Não ― respondeu. ― Mas deu-me cabo da voz. Agora sou grasnador em vez de tenor.


― Antes barítono que soprano ― disse Bianco, com uma gargalhada. ― De qualquer modo, a Itália tem tenores demais. Menos um não fará grande diferença. És um verdadeiro mafioso, e isso é que interessa.


Astorre sorriu e pensou naquele dia já tão distante em que fora nadar. Agora, em vez da raiva surda da traição, recordava apenas como se sentira ao acordar. Tocou novamente no amuleto que usava ao pescoço e perguntou:


― Que boas notícias são essas?


― Fiz as pazes com os Corleonesi e o Grazziella ― respondeu Bianco. ― Ele nunca esteve envolvido no assassínio de Don Aprile. Entrou para o cartel depois disso. Mas agora está descontente com o Portella e o Tulippa. Acha que são demasiado precipitados, e ainda por cima trapalhões. Desaprovou a tentativa contra o agente federal. Além disso, tem um grande respeito por ti. Lembra-se de ti do tempo em que trabalhavas para mim. Vê-te como um homem extraordinariamente dificil de matar. Agora quer esquecer todas as antigas vendettas e ajudar-te.


Astorre sentiu alívio. A sua missão seria muito mais fácil se não tivesse de preocupar-se com Grazziella.


― Amanhã vem encontrar-se connosco aqui na villa ― continuou Bianco.


― Confia assim tanto em si? ― estranhou Astorre.


― Não tem outro remédio ― explicou Bianco. ― Porque sem mim aqui em Palermo, não pode governar a Sicília. E agora somos mais civilizados do que quando cá estiveste da última vez.


Na tarde do dia seguinte, Michael Grazziella chegou à villa e Astorre notou que vestia ao estilo ultra-respeitável dos políticos romanos: terno escuro, camisa branca e gravata escura. Fazia-se acompanhar por dois guarda-costas, vestidos da mesma maneira. Grazziella era um homem de pequena estatura, delicado, com uma voz muito suave ― ninguém adivinharia que fôra responsável pelo assassínio de vários dos principais magistrados anti-Máfia. Apertou a mão a Astorre e disse:


― Vim aqui ajudá-lo como prova da minha profunda estima pelo nosso amigo Bianco. Por favor, esqueça o passado. Temos de começar de novo.


― Obrigado ― respondeu Astorre. ― É muita honra.


Grazziella fez um gesto aos guardas, que se afastaram em direção à praia.


― Então, Michael ― perguntou Bianco. ― Como é que podes ajudar?


― O Portella e o Tulippa são demasiado irrequietos para o meu gosto ― começou Grazziella, dirigindo-se a Astorre. ― E o Marriano Rubio é demasiado desonesto. Pelo contrário, julgo-o a si um homem muito esperto e qualificado. Além disso, o Nello é meu sobrinho, e soube que o poupou, o que não é pequena coisa. Aqui tem os meus motivos.

Astorre assentiu. Para lá de Grazziella, viu o verde-profundo do mar da Sicília refulgir ao sol siciliano. Foi invadido por uma súbita onda de nostalgia, e de pena, pois sabia que tinha de partir. Tudo aquilo lhe era familiar de uma maneira que a América nunca poderia ser. Tinha saudades das ruas de Palermo, do som de vozes italianas, de falar ele próprio uma língua que lhe era mais natural do que o inglês. Voltou a concentrar a sua atenção em Grazziella.


― Que pode então dizer-me?


― Os membros do cartel querem que eu vá encontrar-me com eles na América ― disse Grazziella. ― Posso informá-lo sobre o momento, o local e as medidas de segurança. Se optar por uma ação drástica, posso oferecer-lhe refúgio aqui na Sicília, e se tentarem extraditá-lo, tenho amigos em Roma que travarão o processo.


― Tem esse tipo de poder? ― espantou-se Astorre.


― Certamente ― respondeu Grazziella, com um leve encolher de ombros. ― Como poderíamos existir de outra maneira? Mas não seja demasiado precipitado.


Astorre sabia que ele estava a referir-se a Cilke. Sorriu. ― Nunca sou precipitado ― afirmou.


Grazziella sorriu delicadamente e declarou:


― Os seus inimigos são meus inimigos, e prometo o meu apoio à sua causa.


― Presumo que não estará nessa reunião ― disse Astorre.


Grazziella voltou a sorrir. ― No último instante, surgirá um impedimento. Não estarei presente.


― E quando será isso?


― Dentro de um mês.


Depois de Grazziella ter partido, Astorre perguntou a Bianco: ― A sério, diga-me, por que está ele a fazer isto?


Bianco olhou para ele com admiração.


― Como compreendes bem a Sicília ― disse. ― Todas as razões que te deu são válidas, mas há um motivo principal que não referiu. ― Hesitou um instante. ― O Tulippa e o Portella têm andado a enganá-lo na distribuição dos lucros da droga, de modo que mais tarde ou mais cedo teria inevitavelmente de declarar-lhes guerra por causa disso. Não podia tolerar semelhante coisa. Tem-te em alto apreço, e para ele seria ótimo se liquidasses os seus inimigos e te tornasses seu aliado. É um homem muito esperto, este Grazziella.


Nessa noite, Astorre passeou pela praia e pensou no que devia fazer. Finalmente, o desfecho da guerra aproximava-se.


O sr. Pryor não tinha problemas no que respeitava a gerir os bancos Aprile e defendê-los contra as autoridades. Mas quando os homens do FBI invadiram Nova Iorque na sequência da tentativa de assassínio contra Cilke, ficou um pouco preocupado com aquilo que poderiam descobrir. Especialmente depois da visita de Cilke.


Na sua juventude, o sr. Pryor fora um dos mais apreciados assassinos da Máfia de Palermo. Mas vira a tempo que ia por mau caminho e transferira-se para a atividade bancária, onde o seu encanto natural, a sua inteligência e as suas ligações criminosas lhe garantiram o êxito. Em resumo, tornara-se o banqueiro mundial da Máfia. Em muito pouco tempo, fizera-se especialista em provocar tempestades no mercado de divisas e em amontoar dinheiro sujo. Tinha, além disso, um talento especial para comprar negócios legítimos a bons preços. Acabara por emigrar para Inglaterra porque a lisura do sistema inglês protegia melhor a sua riqueza do os subornos em Itália.


No entanto, o seu comprido braço ainda chegava a Palermo e aos Estados Unidos. Continuava a ser o principal banqueiro da cosca de Bianco nos seus esforços para controlar a indústria da construção civil na Sicília. Era igualmente o elo de ligação entre os bancos Aprile e a Europa.


Agora, com toda aquela atividade policial, ocorrera-lhe um possível ponto perigoso: Rosie. Rosie podia ligar Astorre aos irmãos Sturzo. Além disso, sabia que Astorre tinha um fraquinho por ela e continuava a encontrar algum conforto nos seus encantos. O que o não fazia respeitá-lo menos; era uma fraqueza que os homens exibiam desde tempos imemoriais. E Rosie era uma rapariga tão mafiosa. Quem poderia resistir-lhe? No entanto, por muito que a admirasse, continuava a pensar que não era sensato tê-la por perto.


Por isso resolvera tratar ele próprio do assunto, como certa vez fizera em Londres. Sabia que não teria a aprovação de Astorre para o que tinha em mente ― conhecia o feitio de Astorre e não subestimava a sua periculosidade. Mas Astorre era sempre razoável. Saberia convencê-lo depois do fato consumado, e ele reconheceria a sensatez por detrás da Ação.


Fosse como fosse, tinha de ser feito. Por isso, certa noite, o sr. Pryor telefonou a Rosie. Ela ficou encantada por ouvi-lo, sobretudo depois de ele lhe dizer que tinha boas notícias. Quando desligou o telefone, o sr. Pryor soltou um suspiro de pena.


Levou os sobrinhos consigo, como motoristas e guarda-costas. Um ficou no carro, diante do prédio, e o outro acompanhou-o até ao apartamento de Rosie.


Ela recebeu-os correndo para os braços do sr. Pryor, o que sobressaltou o sobrinho e o fez levar a mão ao interior do casaco. Rosie preparou café e serviu um prato de pastéis que, segundo disse, eram especialmente importados de Nápoles. Ao sr. Pryor não souberam a nada que se parecesse, e considerava-se um perito nessas matérias.


― Ah, é tão querida! ― disse a Rosie. E, dirigindo-se ao sobrinho, acrescentou : Prova um.


O sobrinho, porém, recuara para um canto da sala e sentara-se numa cadeira para assistir àquela pequena comédia que o tio representava. Rosie deu uma palmadinha no chapéu que o sr. Pryor pousara a seu lado e disse, risonhamente:


― Gostava mais do seu coco. Naquele tempo não tinha um ar tão empertigado.


― Ah! ― respondeu o sr. Pryor, com bom humor. ― Quando se muda de país, é sempre preciso mudar de chapéu. E, minha querida Rosie, estou aqui para pedir-lhe um grande favor.


Notou a ligeiríssima hesitação dela antes de bater alegremente as mãos. ― Oh, tudo o que quiser! ― exclamou. ― Devo-lhe tanto.


O sr. Pryor sentiu-se enternecido por tanta doçura, mas o que tinha de ser feito tinha de ser feito.


― Rosie ― disse ―, quero que arranje as suas coisas de modo que amanhã possa partir para a Sicilia, só por alguns dias. O Astorre está lá á sua espera e tem de entregar-lhe certos papéis absolutamente secretos. Ele tem saudades suas e quer mostrar-lhe a Sicília.


Rosie corou de prazer. ― Claro, Sr. Pryor ― afirmou.


Na realidade, Astorre estava de regresso da Sicília e chegaria a Nova Iorque na noite seguinte. Ele e Rosie cruzar-se-iam algures sobre o Atlântico, cada qual no seu avião.


Rosie adoptou um ar sério, não isento de uma certa timidez.


― Não posso ir assim tão de repente ― declarou. ― Preciso de reservar o vôo, ir ao banco, tratar de uma porção de pequenas outras coisas.


― Espero que perdoe a presunção ― disse o sr. Pryor ―, mas já tratei de tudo. ― Tirou um sobrescrito branco do bolso do casaco. ― Aqui tem o seu bilhete de avião. Primeira classe. E também dez mil dólares, para qualquer compra de última hora e despesas de viagem. O meu sobrinho, que está ali sentado naquele canto com cara de pateta, virá buscá-la na limusine amanhã de manhã. O Astorre, ou alguém por ele, estará à sua espera em Palermo.


― Não posso ficar mais de uma semana ― anunciou Rosie. ― Tenho de fazer uns exames para a minha licenciatura.


― Não se preocupe ― disse-lhe o sr. Pryor. ― Faltar aos exames não será problema. Prometo. Alguma vez lhe falhei?


Falou num tom docemente paternal. Mas estava a pensar que era na verdade uma pena Rosie nunca mais tornar a ver a América.


Beberam café e comeram pastéis. O sobrinho voltou a recusar ambos, apesar de Rosie ter insistido com o seu sorriso mais encantador. A conversa foi interrompida pelo toque do telefone. Rosie levantou o ascultador.


― Oh, Astorre! ― exclamou. ― Estás a ligar da Sicília? Disse-me o sr. Pryor. Está aqui mesmo ao pé de mim, a beber café.


O sr. Pryor continuou a beber calmamente o seu café, mas o sobrinho levantou-se da cadeira, voltando a sentar-se quando o tio lhe dirigiu um olhar imperioso.


Rosie estava calada, a olhar interrogativamente para o sr. Pryor, que lhe acenou tranquilizadoramente com a cabeça.


― Sim, arranjou as coisas para eu ir passar uma semana à Sicília contigo ― disse Rosie. Fez uma pausa para escutar. ― Sim, claro que estou desapontada. Lamento que tenhas tido de regressar inesperadamente. Queres falar com ele? Não? OK., eu digo-lhe.


E desligou.


― Que pena ― continuou, voltando-se para o sr. Pryor. ― Teve de regressar mais cedo. Mas quer que espere aqui por ele. Disse mais ou menos meia hora. ― É verdade que o Astorre quer ver-me?


O sr. Pryor pegou noutro pastel. ― Com certeza ― disse.


― Diz que explica tudo quando chegar, ― acrescentou Rosie. ― Mais café?


O sr. Pryor assentiu, e depois suspirou.


― Que pena. Havia de gostar de ir à Sicília. ― Imaginou o funeral dela num cemitério siciliano. Teria sido tão triste. ― Vai para baixo e espera no carro ― ordenou ao sobrinho.


O jovem ergueu-se relutantemente, e o sr. Pryor fez um gesto, como que a tranquilizá-lo.

Rosie acompanhou-o até à porta.


O sr. Pryor dirigiu a Rosie um sorriso solícito e perguntou: ― Então, tem sido feliz nestes últimos anos?


Astorre chegara um dia mais cedo e Àldo Monza fora buscá-lo ao pequeno aeroporto de Nova Jersia. Viajara, claro, num jato particular, com um passaporte falso. Fora puramente por impulso que telefonara a Rosie, levado pela vontade de vê-la e de passar uma noite descontraída a seu lado. Quando ela lhe dissera que o sr. Pryor estava no apartamento, os seus instintos tinham dado instantaneamente o alarme. Quanto à ida dela à Sicília, adivinhou de imediato os planos do sr. Pryor. Tentou controlar a sua fúria. O sr. Pryor queria fazer o que achava que devia ser feito de acordo com a sua experiência, mas o preço era demasiado alto.


Pouco depois, Rosie abriu-lhe a porta e lançou-se-lhe nos braços. O sr. Pryor levantou-se da cadeira e Astorre dirigiu-se-lhe e abraçou-o. O sr. Pryor disfarçou a sua surpresa. Não era habitual Astorre mostrar-se tão afetuoso.


Então, para grande estupefação do sr. Pryor, Astorre voltou-se para Rosie e disse: ― Vai amanhã para a Sicília, como planeámos, e eu vou ter contigo dentro de dias. Fazemos umas férias.


― Formidável! ― exclamou Rosie. ― Nunca fui à Sicília.


― Obrigado por ter tratado de tudo ― continuou Astorre, dirigindo-se ao sr. Pryor. ― E então, novamente para Rosie. ― Não posso ficar. Encontramo-nos na Sicília. Esta noite, tenho uns assuntos importantes a tratar com o sr. Pryor. O melhor é ires preparar-te para a viagem. Não leves muita roupa. Podemos fazer compras em Palermo.


― OK. ― disse Rosie. Beijou o sr. Pryor na face e deu a Astorre um longo abraço e um interminável beijo. Depois abriu a porta para ambos saírem.


Uma vez na rua, Astorre disse ao sr. Pryor:


― Vamos no meu carro. Diga aos seus sobrinhos que regressem a casa... Não vai precisar deles esta noite.


Foi só então que o sr. Pryor começou a sentir-se um pouco nervoso.


― Ia fazê-lo para teu bem ― explicou.


No banco traseiro do carro, com Monza ao volante, Astorre voltou-se para o sr. Pryor.


― Ninguém o aprecia mais do que eu ― disse. ― Mas sou o chefe ou não sou?


― Inquestionavelmente ― respondeu o sr. Pryor.


― Era um problema que eu já tencionava abordar. Reconheço o perigo e agradeço ter-me feito agir. Mas preciso dela viva. Por vezes, é preciso correr alguns riscos. Portanto, aqui tem as minhas instruções. Na Sicília, arranje-lhe uma casa de luxo, com criados. Pode inscrever-se na Universidade de Palermo. Terá uma renda muito generosa, e o Bianco apresentá-la-á à melhor sociedade siciliana. Faremos com que se sinta feliz, e o Bianco saberá controlar quaisquer problemas que surjam. Sei que não aprova o meu afeto pela Rosie, mas é algo que não consigo evitar. Julgo que os seus próprios defeitos a ajudarão a ser feliz. Sei que tem um fraquinho por dinheiro e por prazer, mas quem não tem? Torno-o responsável pela segurança dela. Nada de acidentes.


― Eu próprio gosto imenso daquela rapariga, como bem sabes ― respondeu o sr. Pryor. ― Uma autêntica mafiosa. Vais voltar à Sicília?


― Não ― respondeu Astorre. v Temos assuntos mais importantes a tratar.

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