Capítulo 2
O grande blitz dos anos 90 do FBI contra as famílias da Máfia de Nova Iorque deixara apenas dois sobreviventes. Don Raymonde Aprile, o maior e mais temido, não foi tocado. O outro, Don Timmona Portella, que era quase seu igual em poder mas muito inferior como homem, escapou pelo que pareceu pura sorte.
O futuro era, porém, perfeitamente claro. As leis Rico de 1970, tão pouco democráticas na sua estruturação, o zelo das equipes especiais do FBI e o fim da crença na omertà entre os soldados da Máfia americana convenceram Don Raymonde Aprile de que era tempo de retirar-se graciosamente do palco.
O Don governara a sua família durante trinta anos e era agora uma lenda. Educado na Sicília, nada tinha das falsas idéias e da pomposa arrogância dos chefes da Máfia nascidos na América. Era, na realidade, uma revivescência dos velhos sicilianos do século XIII, que governavam cidades e aldeias com o seu carisma, o seu sentido da honra e o julgamento mortal e inapelável de qualquer potencial inimigo. Provara, além disso, possuir também o gênio estratégico desses antigos heróis.
Agora, com sessenta e dois anos, tinha a vida em ordem. Desembaraçara-se dos seus inimigos e cumprira os seus deveres como amigo e como pai. Podia gozar a velhice de consciência tranqüila, afastar-se-ia das desarmonias do seu mundo e assumir o papel bem mais adequado de banqueiro e pilar da sociedade.
Os três filhos estavam confortavelmente instalados em carreiras respeitáveis. O mais velho, Valerius, agora com trinta e sete anos, casado e pai de dois filhos, era coronel no Exército dos Estados Unidos e professor em West Point. A sua carreira fora determinada pela timidez que o afligia em criança: o Don inscrevera-o como cadete naquela mesma prestigiada Academia Militar para corrigir esta falha de caráter.
O segundo, Marcantonio, com apenas trinta e cinco anos era, sem dúvida em conseqüência de alguma misteriosa transformação genética, diretor executivo de uma rede de televisão nacional.
Fôra um rapazinho introvertido, que vivia num mundo de faz-de-conta, e o Don sempre pensara que nunca conseguiria ser bem sucedido em qualquer empreendimento sério. E agora o seu nome aparecia com freqüência nos jornais, aureolado com a fama de ser uma espécie de visionário criativo. O que agradava ao Dom mas não o convencia. Ao fim e ao cabo, era ele o pai do rapaz. Quem poderia conhecê-lo melhor?
A filha Nicole ― a quem em criança todos chamavam afetuosamente Nikki mas que, aos seis anos, exigira imperiosamente ser tratada pelo seu verdadeiro nome ―, com quem o pai adorava discutir, era, aos vinte e nove anos, advogada especializada em direito empresarial, feminista e defensora “pro bono” daqueles pobres e desesperados criminosos que de outro modo não poderiam suportar as despesas de uma ajuda legal adequada. Era particularmente hábil a salvar assassinos da cadeira-elétrica, a poupar à indignidade da prisão as mulheres que, cansadas de aturar os maridos, tinham resolvido livrar-se deles da maneira mais expedita e a evitar que violadores contumazes passassem o resto da vida numa cela. Opunha-se inabalavelmente à pena de morte, acreditava na possibilidade de reabilitação de qualquer criminoso e era uma crítica severa da estrutura econômica dos Estados Unidos. Pensava que um país tão rico como a América não devia ser tão indiferente à sorte dos pobres, por grandes que fossem os seus defeitos. Apesar de tudo isto, era uma astuta e dura negociadora de direito empresarial, uma mulher notável e enérgica. Ela e o Don discordavam em tudo.
Quanto a Astorre, fazia parte da família, e era, como sobrinho titular; o mais próximo do Don. Mas parecia, pela sua intensa vitalidade e encanto, irmão dos outros. Dos três aos dezesseis anos vivera com eles ― o adorado irmão mais novo ― até que, havia já onze anos, se exilara na Sicília. Ao reformar-se, o Don mandou-o regressar.
Don Aprile planeara meticulosamente a sua retirada. Distribuíra o seu império para aplacar potenciais inimigos, mas também prestara tributo a amigos leais, sabendo que a gratidão é a menos duradoura das virtudes e que as dádivas têm de ser constantemente renovadas. Dedicara um especial cuidado ao apaziguamento de Timmona Portella. Portella era perigoso devido à sua excentricidade e a um apaixonado instinto assassino que por vezes não tinha qualquer relação com a necessidade.
Como conseguira escapar ao FBI durante a ofensiva dos anos 90 era algo que ninguém sabia. Porque Portella era um Don nascido na América, um homem desprovido de sutileza, incauto e imoderado, com um temperamento explosivo. Muito alto e gordo, com um ventre proeminente, vestia como um PI . Natural de Palermo, um jovem aprendiz de assassino, todo cores garridas e sedas. O seu poder baseava-se na distribuição de drogas ilegais. Nunca casara, mas aos cinqüenta e cinco anos continuava a ser um mulherengo incorrigível. Só demonstrava verdadeiro afeto para com o irmão mais novo, Bruno, que parecia sofrer de um ligeiro atraso mental mas partilhava a brutalidade do mais velho.
Don Aprile nunca confiara em Portella e raramente fazia negócios com ele. Era um indivíduo que a própria fraqueza tornava perigoso, alguém que tinha de ser neutralizado. Por isso o convidou para um encontro em sua casa.
Portella chegou acompanhado pelo irmão. Don Aprile recebeu-os com a tranqüila cortesia que usava para com todos, mas foi diretamente ao assunto.
― Meu caro Timmona, vou retirar-me de todos os meus negócios, exceto os bancos ― anunciou. ― A partir de agora, todas as atenções vão concentrar-se em si, de modo que terá de ter muito cuidado. Se alguma vez precisar de um conselho, não hesite em procurar-me. Porque não estarei completamente desmunido de recursos no meu afastamento.
Bruno, uma cópia em ponto pequeno do irmão, que estava deslumbrado pela reputação do Dom, sorriu satisfeito ante esta prova de respeito. Mas Timmona era muito mais esperto, e compreendeu. Soube que estava a ser avisado.
Assentiu respeitosamente com a cabeça.
― Sempre foi, de todos nós, o mais avisado ― declarou. ― E eu respeito o que está a fazer. Conte-me entre os seus amigos.
― Ótimo, ótimo ― disse o Don. ― Agora, como um presente meu para si, escute este aviso. O homem do FBI, Cilke, é muito tortuoso. Não confie nele seja de que maneira for. Está embriagado pelo êxito, e vai escolhê-lo a si como próximo alvo.
― Mas nós os dois já lhe escapamos ― respondeu Timmona. Apesar de ter apanhado todos os nossos amigos. Não tenho medo dele, mas agradeço-lhe.
Tomaram uma bebida cerimonial e os irmãos Portella retiraram-se. já no carro, Bruno exclamou:
― Que grande homem!
― Sim ― concordou Timmona. ― Foi um grande homem.
Quanto ao Dom estava satisfeito consigo mesmo. Vira o alarme nos olhos de Timmona, e teve a certeza de que não voltaria a representar um perigo para ele.
Don Aprile solicitou um encontro particular com Kurt Cilke, o chefe da delegação do FBI em Nova Iorque. Era, para espanto do próprio Dom um homem que admirava. Mandara para a prisão a maior parte dos chefes da Máfia da Costa Leste e quase quebrara o seu poder.
Don Raymonde Aprile conseguira escapar-lhe porque conhecia a identidade do seu informador secreto, a pessoa que tornara possível aquele êxito. Mas admirava Cilke sobretudo por ser um homem que fazia sempre jogo limpo, que nunca tentara falsas incriminações ou abusos de poder, e nunca pusera o mais pequeno labéu público nos seus filhos. Por isso considerou que era de toda a justiça avisá-lo.
O encontro foi marcado para a casa de campo do Dom em Montauk. Cilke teria de ir sozinho, o que infringia as regras do Bureau. O próprio diretor do FBI dera a sua aprovação, mas insistira em que o agente usasse um aparelho de escuta especial, um implante por baixo da caixa torácica, que não deixaria quaisquer vestígios detectáveis do exterior. Tratava-se de um dispositivo desconhecido do público, cuja fabricação era estritamente controlada. Cilke compreendeu que o verdadeiro objetivo era gravar tudo o que Don Aprile dissesse.
Encontraram-se, numa dourada tarde de Outono, no vasto alpendre que rodeava a casa. Cilke nunca conseguira ali entrar com um aparelho de escuta, e um juiz proibira uma vigilância física permanente. Dessa vez, os homens do Don não o revistaram fosse de que maneira fosse, o que o surpreendeu. Obviamente, Don Raymonde Aprile não se preparava para fazer-lhe qualquer proposta ilícita.
Como sempre, Cilke ficou surpreendido, e até um pouco perturbado, pela impressão que o Don lhe causava. Apesar de saber que aquele homem ordenara centenas de assassínios, violara incontáveis leis da sociedade, não conseguia odiá-lo. E no entanto, acreditava que pessoas como ele eram a encarnação do Mal, e detestava-as por destruírem a própria tessitura da civilização.
Don Aprile vestia um fato escuro, gravata preta e camisa branca. A sua expressão era grave e todavia cheia de compreensão, as linhas suaves do rosto as de um homem amante da virtude. Como podia uma face tão humana pertencer a alguém tão implacável, perguntou Cilke a si mesmo.
O Don não lhe estendeu a mão, por uma questão de sensibilidade e para não o embaraçar. Indicou-lhe com um gesto um dos amplos cadeirões do alpendre e inclinou a cabeça num cumprimento silencioso.
― Decidi colocar-me e à minha família sob a sua proteção... quero dizer, sob a proteção da sociedade ― declarou.
Cilke ficou atônito. Que diabo quereria o velho dizer com aquilo?
― Durante os últimos vinte anos, considerou-se meu inimigo. Perseguiu-me. Mas eu sempre lhe fiquei grato pelo seu sentido de lealdade. Nunca tentou falsificar provas nem encorajou o perjúrio contra mim. Mandou a maior parte dos meus amigos para a prisão e tentou o mais possível fazer-me o mesmo a mim.
― Continuo a tentar ― disse Cilke, sorrindo.
O Don assentiu com a cabeça.
― Larguei tudo o que pudesse parecer duvidoso. Conservo apenas alguns bancos, um negócio incontestavelmente honesto. Coloquei-me sob a proteção da sua sociedade. Em troca, cumprirei o meu dever para com essa sociedade. Poderá tornar tudo muito mais fácil deixando de perseguir-me. já não há qualquer necessidade.
Cilke encolheu os ombros.
― O Bureau decide. Ando atrás de si há tanto tempo, por que hei de parar agora? Pode ser que tenha sorte.
O rosto do Dom tornou-se mais grave, a sua expressão ainda mais cansada.
― Tenho uma coisa para lhe oferecer em troca. O seu enorme êxito nestes últimos anos influenciou a minha decisão. Mas o que se passa é que conheço o seu principal informador, sei quem ele é. E nunca o disse a ninguém.
Cilke hesitou apenas um segundo antes de responder, impassível:
― Não tenho nenhum informador. E mais uma vez, é o Bureau. que decide, não eu. Fez-me perder o meu tempo.
― Não, não ― protestou o Don. ― Não procuro uma vantagem, apenas um acordo. Permita-me, em atenção à minha idade, dizer-lhe uma coisa que aprendi . Nunca exerça o poder só, porque ele está facilmente ao alcance da sua mão, e nunca se deixe embalar na certeza da vitória quando o seu intelecto lhe disser que há nem que seja uma sugestão de desastre. Deixe-me dizer-lhe que o vejo agora como um amigo, não como um inimigo, e pense no que tem a ganhar ou a perder recusando esta oferta.
― Se realmente se afastou, de que me servirá a sua amizade? ― perguntou Cilke, sorrindo.
― Terá a minha boa vontade ― respondeu o Don. ― Isso vale sempre qualquer coisa, mesmo vindo do mais insignificante dos homens.
Mais tarde, Cilke passou a gravação para Bill Boxton, o seu ajudante, que perguntou: ― Que raio de conversa é essa?
― É uma das coisas que tens de aprender ― disse-lhe Cilke. ― Estava a dizer-me que não está completamente indefeso, que vai manter-me debaixo de olho.
― Tretas! ― exclamou Boxton. ― Não se atreveriam a tocar num agente federal.
― Pois não ― admitiu Cilke. ― É por isso que vou continuar atrás dele, reformado ou não. No entanto, estou preocupado. Não podemos estar cem por cento seguros...
Estudioso atento da história das mais prestigiadas famílias americanas, desses barões-gatunos que construíram implacavelmente as suas fortunas violando todas as leis morais e éticas da sociedade humana, Don Aprile tornou-se, como eles, um filantropo. Como eles, tinha um império: dez bancos privados nas maiores cidades do mundo. Por isso deu generosamente para construir um hospital destinado aos pobres. Foi um mecenas. Fundou uma cátedra na Universidade de Columbia para o estudo da Renascença.
É verdade que Yale e Harvard recusaram os seus vinte milhões de dólares para um dormitório a que seria dado o nome de Cristóvão Colombo, na altura muito contestado nos círculos intelectuais. Yale oferecera-se para aceitar o dinheiro e chamar ao dormitório Sacco e Vanzetti, mas o Don não estava interessado em Sacco e Várizetti. Desprezava os mártires.
Como provavelmente poucos estarão, sendo até possível que já não se saiba quem foram. Nicola Sacco e Bartolomeo Várizetti, um sapateiro, o outro vendedor de peixe, imigrantes italianos e anarquistas, foram acusados de assassínio, julgados e condenados à morte num julgamento cujo rigor processual levantou na altura enormes dúvidas e dividiu a opinião pública americana. Culpados ou não, ficaram como símbolo da xenofobia de uma América anglo-saxônica e protestante.
Um homem de menor estatura ter-se-ia sentido insultado e guardado rancor, mas não Don Raymonde Aprile. Em vez disso, deu o dinheiro à Igreja Católica para que fossem rezadas missas diárias por alma de sua mulher, que fôra fazia já vinte e cinco anos ocupar o lugar que lhe estava reservado no Paraíso.
Doou um milhão de dólares à Associação Benevolente da Polícia de Nova Iorque e outro milhão a uma sociedade de proteção aos imigrantes ilegais. Durante três anos depois de se ter retirado, espalhou as suas benesses pelo mundo. A sua bolsa estava aberta a todas as solicitações exceto uma. Recusou o pedido de Nicole de uma contribuição para a Campanha Contra a Pena de Morte ― a cruzada da filha para pôr fim ao castigo máximo.
É espantoso como três anos de boas ações e generosidade quase conseguem apagar uma reputação de trinta e quatro anos de gestos implacáveis. Mas a verdade é que os grandes homens sempre compraram e continuam a comprar a boa vontade dos outros, o perdão por terem traído os amigos e exercido julgamentos impiedosos. Também o Don padecia desta fraqueza universal.
Porque Don Ramonde Aprile era um homem que tinha vivido segundo as regras estritas da sua moralidade particular. O seu código tornara-o respeitado durante mais de trinta anos e gerara o medo extraordinário que fora a base do seu poder. Uma das regras básicas desse código era uma absoluta ausência de piedade.
Isto não decorria de uma crueldade inata, de um desejo psicopático de infligir dor, mas de uma convicção profunda. a de que os homens se recusam sempre a obedecer. Até Lúcifer, o anjo, desafiara Deus e fora precipitado nos infernos.
Por isso, um homem ambicioso que lutasse pelo poder não tinha outra alternativa. Claro que havia algumas persuasões, algumas concessões aos interesses de outros homens. Era razoável. Mas se tudo falhasse, restava apenas o castigo definitivo. Nunca fazer ameaças nem aplicar outras punições que pudessem inspirar retaliação. Os inimigos deviam ser pura e simplesmente banidos da esfera terrestre, e depois esquecidos.
A traição era a maior das ofensas. A família do traidor sofreria as conseqüências, bem como o seu círculo de amigos mais chegados; todo o seu mundo seria destruído. Porque há muitos homens bravos e orgulhosos dispostos a arriscar a vida para lucrar qualquer coisa, mas mesmo esses pensariam duas vezes antes de arriscarem a dos seres amados. E assim, deste modo, Don Aprile gerara ao longo dos anos uma enorme quantidade de terror. Contava agora com a sua generosidade em bens terrenos para conquistar o amor, todavia menos necessário, dos que o rodeavam.
Diga-se no entanto, em abono da verdade, que era implacável até consigo mesmo. Detentor de um incomensurável poder, fôra impotente para impedir a morte da sua jovem esposa depois de ela lhe ter dado três filhos. Morrera de uma morte lenta e horrível, vítima de cancro, e Don Aprile velara por ela instante a instante durante seis meses. Nessa altura, convencera-se de que a mulher estava a ser castigada por todos os pecados mortais que ele cometera, e conseqüentemente decretara a sua própria penitência: não voltaria a casar. Afastaria os filhos de si, para que fossem educados no respeito das regras da sociedade e não crescessem naquele seu mundo tão cheio de ódio e de perigo. Ajuda-los-ia. a encontrar o seu próprio caminho, mas nunca os envolveria nas suas atividades. Com profunda tristeza, resolvera que nunca conheceria a verdadeira essência da paternidade.
Mandara, pois, Nicole, Valerius e Marcantonio para colégios internos. Nunca os deixara participar da sua vida pessoal. Iam a casa nas férias, e ele fazia o papel de pai atento mas distante, mas nunca se tinham tornado parte do seu mundo.
E no entanto, apesar de conhecerem a sua reputação, os filhos arriavam-no. Nunca falavam sobre o assunto uns com os outros. Era um desses segredos de família que não são segredo.
Ninguém poderia acusar o Don de ser um sentimental. Tinha muito poucos amigos pessoais, nenhum animal de estimação, e evitava as festas e reuniões sociais o mais que podia. Só uma vez, muitos anos antes, tivera um gesto de compaixão que espantara os seus colegas americanos.
Ao regressar da Sicília com o filho de Don Zeno, Astorre, encontrara a mulher a morrer de cancro e os seus próprios filhos desolados. Não querendo conservar a impressionável criança junto de si naquelas circunstâncias, com receio de que isso pudesse prejudicá-la de algum modo, resolvera confiá-la aos cuidados de um dos seus conselheiros mais chegados, um homem chamado Frank Viola, e da mulher. Fôra uma escolha infeliz. Na altura, Frank Viola alimentava ambições de suceder ao Don.
No entanto, pouco depois de a esposa de Don Aprile ter morrido, Astorre Viola, com três anos, passara a fazer parte da família pessoal do Dom. O “pai” suicidara-se dentro do porta-bagagens de um carro, uma circunstância certamente curiosa, e a mãe morrera vítima de uma hemorragia cerebral. Fora então que Don Aprile levara Astorre para sua casa e assumira o título de tio.
Quando Astorre chegara à idade de começar a fazer perguntas a respeito dos pais, Don Aprile explicara-lhe que era órfão. Mas Astorre era um rapazinho curioso e tenaz, de modo que o Dom, farto de tanta pergunta, disse-lhe que os pais eram uns camponeses muito pobres, sem meios para criá-lo, que tinham morrido, ignorados de todos, numa pequena aldeia da Sicília. Sabia que a explicação não satisfaria inteiramente o rapaz, e sentiu uma ponta de remorso por estar a enganá-lo, mas também sabia que era importante, enquanto Astorre fosse criança, esconder-lhe a verdade sobre o seu nascimento. Para seu próprio bem e para bem dos “primos”.
Don Raymonde Aprile era um homem de visão e sabia que a sua sorte podia não durar sempre ― o mundo era demasiado traiçoeiro. Planeara desde o início mudar de campo, aproveitar a segurança da sociedade organizada. Não que tivesse realmente consciência deste propósito, mas os grandes homens sabem instintivamente o que o futuro vai exigir. E, naquele caso, agira verdadeiramente por compaixão. Porque Astorre Viola, com três anos, não podia causar qualquer impressão, não podia dar a mais pequena sugestão daquilo em que se tornaria quando fosse homem. Ou da importância do papel que havia de desempenhar no seio da Família.
O Don compreendera que a glória da América era a emergência de grandes famílias, e que as melhores classes sociais nasciam de homens que tinham começado por cometer grandes crimes contra a sociedade. Tinham sido homens desses que, na busca de fortuna, tinham igualmente construído a América e deixado que as suas más ações se desfizessem em pó e fossem esquecidas.
De que outra maneira poderia ter sido feito? Deixar as grandes planícies àqueles índios que não eram capazes de conceber um simples prédio de três andares? Deixar a Califórnia aos mexicanos, que não tinham qualquer espécie de capacidade técnica nem a visão de grandes aquedutos para levar água a terras que permitiriam a milhões de pessoas gozarem uma vida próspera? A América tinha o condão de atrair milhões de pobres vindos dos quatro cantos do mundo, de incitá-los a deitar mãos ao duro e necessário trabalho de construir as vias férreas, as barragens, os arranha-céus. Ah, a Estátua da Liberdade fôra um golpe de gênio publicitário. E não fôra tudo pelo melhor? Claro que houvera tragédias, mas isso fazia parte da vida. Não seria a América a maior cornucópia que o mundo jamais conhecera? Não seria um pouco de injustiça um pequeno preço a pagar por tudo isso? Sempre os indivíduos tinham tido de sacrificar-se para permitir o progresso da civilização e da sociedade.
Há, no entanto, outra definição de um grande homem. Essencialmente, aquele que não aceita essa carga. Aquele que de uma ou de outra forma, criminosa, imoral, ou simplesmente astuciosa, cavalga a crista dessa onda de progresso humano- sem ter de se sacrificar.
Don Raymonde Aprile era um desses homens. Criara o seu próprio poder à força de inteligência e de uma total ausência de piedade. Gerara medo, tornara-se uma lenda. Mas os filhos, quando cresceram, nunca acreditaram nas histórias mais atrozes.
Havia a lenda a respeito do começo do seu reinado como chefe da Família. Don Aprile controlava uma empresa de construção civil gerida por um subordinado, Tommy Liotti, que enriquecera muito novo graças aos contratos públicos conseguidos pelo seu mentor. O homem era bem-parecido, vivo de espírito, perfeitamente encantador, e o Don sempre apreciara a sua companhia. Tinha apenas um defeito: bebia em excesso.
Tommy casara com Liza, a melhor amiga da mulher do Dom, uma bela rapariga à moda antiga, a quem Deus dera uma língua afiada e que passara a considerar seu dever, uma vez casada, moderar um pouco os prazeres do esposo. O que, inevitavelmente, levou a alguns acidentes desagradáveis. Tommy aceitava-lhe os remoques com bastante equanimidade quando estava sóbrio, mas se tinha bebido, respondia com estaladas suficientemente fortes para fazê-la morder a língua.
Ora, dava-se a infeliz circunstância de o marido ser um homem fisicamente poderoso, devido sem dúvida ao fato de ter trabalhado forte e feio na construção civil quando era jovem. A verdade é que usava sempre camisas de manga curta para poder exibir a magnífica e impressionante musculatura dos braços.
Desgraçadamente, estes incidentes foram crescendo em gravidade ao longo de dois anos. Certa noite, Tommy partiu o nariz a Liza e fez-lhe saltar vários dentes, o que exigiu reparações cirúrgicas de alguma envergadura. Liza não se atreveu a pedir proteção à esposa de Don Aprile, pois sabia perfeitamente que um tal pedido teria como resultado mais provável deixá-la viúva e, por razões insondáveis, continuava a amar o marido.
Don Aprile não tinha a menor inclinação para imiscuir-se nas disputas domésticas dos seus subordinados. Problemas desses nunca têm solução. Se o marido tivesse morto a mulher, não se teria preocupado. Mas aquelas sovas representavam um perigo para as suas relações comerciais. Uma mulher enraivecida podia prestar certos testemunhos, dar informações prejudiciais. Sobretudo porque Tommy tinha sempre em casa grandes somas em dinheiro destinadas a esses subornos ocasionais tão necessários à concretização de contratos públicos.
Tudo isto decidiu Don Aprile a chamar Tommy à sua presença.
Com a máxima delicadeza, deixou bem claro que só interferia na vida pessoal do homem porque o que se estava a passar afetava os negócios. Aconselhou Tommy a matar a mulher de uma vez por todas ou a divorciar-se dela, mas a nunca mais a maltratar. Tommy jurou que não voltaria a acontecer. Mas o Don ficou desconfiado. Notara um certo brilho nos olhos do homem, o brilho de uma vontade livre. Para ele, o fato de as pessoas insistirem em fazer o que queriam sem terem em conta as conseqüências constituía um dos mais insondáveis mistérios da vida. Os grandes homens aliam-se aos anjos apesar do preço terrível que têm de pagar. Os homens maus satisfazem os seus mais insignificantes prazeres aceitando em troca a condenação às chamas eternas do inferno.
Foi o que aconteceu com Tommy Liotti. Demorou quase um ano, durante o qual a indulgência do esposo pareceu só servir para tornar ainda mais afiada a língua de Liza. Apesar do aviso do Dom, apesar do amor que lhe tinha a ela e aos filhos, Tommy bateu-lhe de uma forma extremamente violenta. Liza foi parar ao hospital, com algumas costelas partidas e um pulmão perfurado.
Graças à sua riqueza e aos seus contatos políticos, Tommy comprou um dos juízes do Don com um suborno enorme. Depois, convenceu a mulher a voltar para junto dele.
Don Aprile observou tudo isto com alguma irritação e, a contragosto, resolveu chamar a si a resolução daquele assunto. Em primeiro lugar, tratou dos aspectos práticos da questão. Obteve uma cópia do testamento de Tommy e ficou a saber que, como qualquer bom chefe de família, deixava todos os seus bens terrenos à mulher e aos filhos. Liza ia ser uma viúva rica. Depois, despachou uma equipe especial com instruções específicas. Uma semana mais tarde, o juiz recebeu uma comprida caixa embrulhada em papel de prenda e fitas de cor, e dentro dela, como um par de compridas luvas de seda, os dois grossos antebraços de Tommy, um deles usando ainda no pulso o valioso Rolex que o Don lhe oferecera anos antes como testemunho da sua estima. No dia seguinte, o resto do corpo foi encontrado a flutuar no rio, perto de Verrazano Bridge.
Uma outra lenda era arrepiante devido à sua ambigüidade, como esses contos de bruxas e fantasmas para crianças. Na altura em que os três filhos do Don freqüentavam colégios internos, um empreendedor e talentoso jornalista, conhecido pela verve com que expunha as fraquezas dos ricos e famosos, descobriu-lhes o rasto e conseguiu convencê-los a uma aparentemente inofensiva troca de palavras. O plumitivo achou imensa graça à inocência dos três jovens, às suas belas roupas, ao idealismo juvenil com que falavam de tornar o mundo um lugar melhor. E comparava tudo isto com a reputação do pai, admitindo embora que Don Aprile nunca fora condenado por qualquer crime.
A peça tornou-se famosa, circulando por redações de todo o país ainda antes de ser publicada. Era o gênero de êxito com que os escritores sonham. Toda a gente gostou imenso.
O jornalista era um amante da natureza, e todos os anos ia, com a mulher e os dois filhos, passar alguns dias numa cabana que tinha no Norte do estado de Nova Iorque, para caçar e fazer uma vida simples. Era lá que estavam num longo fim-de-semana que coincidiu com o feriado do dia de Ação de Graças. No sábado, a cabana, situada a mais de quinze quilômetros da povoação mais próxima, incendiou-se. Os primeiros socorros só chegaram passadas duas horas. Por essa altura, tudo o que restava da cabana era um monte de troncos calcinados, e dos seus ocupantes os corpos praticamente reduzidos a cinzas. O escândalo foi enorme e as autoridades lançaram uma investigação maciça, mas não foi possível encontrar qualquer prova de ação criminosa. A conclusão foi que a família sucumbira sufocada pelo fogo antes de conseguir sair.
Aconteceu então uma coisa engraçada. Poucos meses depois da tragédia, começaram a circular certos rumores e boatos. Ao FBI, à polícia e à imprensa chegaram inúmeras informações anônimas. Todas elas sugeriam que o incêndio fora um ato de vingança do infame Don Aprile. Os jornais, sedentos de uma história, exigiram que o caso fosse reaberto. Foi, mas mais uma vez não houve acusação. E no entanto, apesar da ausência de qualquer prova, também este caso se tornou uma lenda sobre a ferocidade do Don.
Só junto do grande público, porém; as autoridades estavam convencidas de que, na circunstância, nada havia a censurar a Don Aprile. Toda a gente sabia que os jornalistas estavam isentos de toda a retaliação. Seria preciso matar milhares, portanto qual era a vantagem? O Don era demasiado inteligente para correr semelhante risco. Em todo o caso, a lenda nunca morreu. Alguns agentes do FBI pensavam inclusivamente que tinha sido o próprio Don a espalhar os boatos, com o intuito de criá-la. E assim cresceu.
Don Aprile tinha, no entanto, uma outra faceta: a sua generosidade. Quem o servisse lealmente enriquecia e podia contar com um poderoso protetor em tempos de adversidade. As recompensas que o Don dispensava eram enormes, os castigos que decretava definitivos. Era esta a sua lenda.
Depois aos seus encontros com Portella e Cilke, Dom Aprile tinha Ainda alguns pequenos pormenores a resolver. Pôs em marcha os mecanismos necessários para fazer Astorre Viola regressar da Sicília, ao cabo de um exílio de onze anos. Precisava dele. Na realidade, Preparara-o para aquele preciso momento. Era o seu preferido, acima até dos próprios filhos. Já em criança, Astorre era um chefe, precoce na sua sociabilidade. Além disso, adorava o Dom, que nunca lhe vira nos olhos o medo que por vezes notava nos dos filhos. Embora Valerius e Marcantonio tivessem respectivamente vinte e dezoito anos quando Astorre tinha dez, o garoto cedo soubera marcar a sua independência em relação a eles. Inclusivamente, quando Valerius, dado aos rigores da disciplina militar, tentava castigá-lo, rebelava-se. Marcantonio, muito mais afetuoso, oferecera-lhe o seu primeiro banjo, para encorajá-lo a cantar, pois tinha uma bela voz. Astorre aceitara a oferta como a cortesia de um adulto para com outro.
O único dos primos de quem Astorre aceitava ordens era de Nicole. E ela, apesar de ser dois anos mais velha, tratava-o como se fosse um admirador, como ele começara a exigir logo em criança. Nicole pedia-lhe que lhe fizesse recados e escutava sonhadoramente as baladas italianas que ele lhe cantava. Certa vez, dera-lhe uma bofetada quando ele tentara beijá-la. Porque Astorre, ainda rapazinho, deixava-se arrebatar pela beleza feminina.
E Nicole era bela. Tinha uns grandes olhos escuros e um sorriso sensual; o seu rosto refletia todas as emoções que lhe agitavam a alma. Mas desafiava quem quer que tentasse insinuar que, como mulher, não era tão importante como qualquer homem do seu mundo. Odiava o fato de não ser fisicamente tão forte como os irmãos ou como Astorre, de ver-se obrigada a recorrer aos artifícios da beleza, e não à força, para afirmar a sua vontade. Tudo isto a tornava perfeitamente temerária, e desafiava-os a todos, incluindo o pai, mau grado a sua temível reputação.
Depois de a mulher ter morrido, quando os filhos eram ainda pequenos, Don Aprile adquirira o hábito de passar na Sicília um dos meses de verão. Adorava a vida na sua aldeia natal, perto da cidade de Montelepre, e ainda lá tinha uma propriedade, Villa Grazia, que em tempos fôra o retiro campestre de um conde.
Alguns anos mais tarde, contratara uma governanta, uma viúva siciliana chamada Caterina. Era uma mulher muito bela, com essa beleza robusta e serena das camponesas, dotada de um apurado sentido de economia doméstica, senhora de uma presença austera que lhe granjeara o respeito dos aldeãos. Acabara por tornar-se sua amante. Nada disto revelara à família ou aos amigos, apesar de ser agora um homem de quarenta anos e um rei no seu mundo.
Astorre Viola tinha apenas dez anos quando acompanhara Don Raymonde Aprile à Sicília pela primeira vez. O Don fora chamado a arbitrar um conflito entre as coscas Corleonisi e Clericuzio. Além disso, era sempre um prazer passar um mês de calma e tranqüilidade em Villa Grazia.
Com dez anos, Astorre era afável ― não havia outra palavra. Estava sempre alegre, e o seu rosto moreno, redondo e bonito irradiava amor. Cantava de manhã à noite, com uma doce voz de tenor. E quando não estava a cantar, conversava animadamente. Tinha, no entanto, todas as impetuosas qualidades de um rebelde nato, e aterrorizava os outros rapazes da sua idade.
O Don levou-o consigo à Sicília porque ele era a melhor companhia para um homem de meia-idade, o que constituía um comentário eloqüente sobre qualquer deles, bem como uma reflexão sobre o modo como o Don Aprile educara os seus três filhos.
Depois de ter tratado dos seus assuntos, o Don Aprile mediou a disputa e instaurou uma paz temporária. Feito isto, ficou com tempo para reviver os dias de meninice na aldeia natal Comia limões e laranjas colhidos das árvores, e azeitonas das barricas onde as punham a salgar, e dava grandes passeios com Astorre sob o pesado Sol siciliano, que estendia sobre as casas de pedra e as encostas rochosas um espesso manto de calor. Contava ao rapazinho velhas histórias do Robin dos Bosques da Sicília, das suas lutas contra os mouros, os Franceses, os Italianos e o próprio Papa. E também histórias a respeito de um herói local, o Grande Don Zeno.
À noite, sozinhos na grande varanda de Villa Grazia, ficavam a ver o céu da Sicília incendiar-se com os rastos luminosos de milhares de estrelas cadentes e os relâmpagos que rasgavam o negrume sobre as montanhas ali tão perto. Astorre apanhou imediatamente o dialeto siciliano, e comia azeitonas da barrica como se fossem rebuçados.
Meia dúzia de dias bastaram-lhe para impor a sua liderança a um grupo de garotos da aldeia. Foi uma grande surpresa para o Dom pois as crianças da Sicília são orgulhosas e destemidas. Muitos daqueles querubins de dez anos estavam já familiarizados com a lupara, a onipresente espingarda siciliana.
Don Aprile, Astorre e Caterina passavam as longas e quentes noites de verão a comer e beber no vasto jardim, onde os limoeiros e as laranjeiras saturavam o ar com o seu aroma pungente. Por vezes, o Don convidava velhos amigos de infância para jantar e um jogo de cartas. Astorre ajudava Caterina a servir as bebidas.
Nunca Caterina e o Don mostraram em público o mínimo sinal de afeto, mas toda a aldeia sabia, de modo que nenhum dos homens se atrevia a cortejá-la e todos a tratavam com o respeito devido à dona da casa. Nenhuma outra época da vida do Don foi tão agradável.
Três dias antes do fim da visita, o impensável aconteceu: Don Raymonde Aprile foi raptado quando passeava pelas ruas da aldeia. Na província vizinha de Cinesi, uma das mais remotas e atrasadas da Sicília, o chefe da cosca da aldeia, o mafioso local, era um bandido feroz e destemido que dava pelo nome de Fissolini. Senhor absoluto no seu pequeno mundo, não tinha verdadeiramente qualquer contato com as restantes coscas da ilha. Nada sabia do enorme poder de Dom Aprile, e nunca lhe passaria pela cabeça que esse poder pudesse chegar ao seu recôndito e seguro domínio. Decidiu raptar o Don e pedir um resgate por ele. A única regra que tinha consciência de estar a infringir era violar o território de uma cosca vizinha, mas o americano pareceu-lhe uma presa suficientemente rica para justificar o risco.
A cosca é a unidade básica dessa entidade conhecida pelo nome de Máfia e é geralmente constituída por membros de uma mesma família. Cidadãos perfeitamente respeitadores da lei, como advogados e médicos, podem ligar-se a uma cosca para garantirem a defesa dos seus interesses. Cada cosca é uma organização em si mesma, mas pode aliar-se a outra mais forte e poderosa. É a esta rede de interligações que habitualmente se chama Máfia. Não existe, porém, um chefe ou comandante supremo.
De um modo geral, cada cosca especializa-se, dentro do seu território, num tipo de atividade criminosa. Há a cosca que controla o preço da água e impede o poder central de construir barragens que o fariam descer, destruindo deste modo o monopólio do governo. Uma outra controlará os mercados de alimentos e produtos agrícolas. As mais poderosas da Sicília, na altura, eram a Clericuzio, de Palermo, que dominava a construção civil em toda a Sicília, e a Corleonisi, de Corleone, que tinha na mão os políticos de Roma e organizava o transporte de drogas em todo o mundo. Havia depois as pequenas coscas, que podiam exigir um tributo aos jovens românticos que quisessem fazer serenatas debaixo das varandas das respectivas amadas. Todas elas controlavam o crime. Nenhuma tolerava indesejáveis e vadios capazes de assaltar um cidadão inocente que pagasse o seu tributo. Aquele que matasse alguém para roubar uma carteira ou violasse uma mulher era sumariamente punido com a morte. Também não havia tolerância para com o adultério dentro da cosca. Os faltosos, homens ou mulheres, eram executados. Era ponto assente, todos os sabiam.
A cosca de Fissolini vivia pobremente. Controlava a venda de imagens sagradas, cobrava um tributo para proteger o gado dos lavradores e dedicava-se ao rapto de homens ricos e incautos.
E foi assim que Don Aprile e o pequeno Astorre, passeando descansadamente pelas ruas da aldeia, foram enfiados em dois velhos caminhões do exército americano pelo ignorante Fissolini e o seu bando.
Os dez homens, vestidos como camponeses, estavam armados com espingardas. Arrancaram Don Aprile da rua e puxaram-no para dentro do primeiro caminhão. Sem a menor hesitação, Astorre saltou para a caixa aberta do veículo, decidido a ficar junto do Don. Os bandidos tentaram largá-lo na estrada, mas ele agarrou-se aos varais de madeira. Ao cabo de uma hora de viagem até ao sopé das montanhas que rodeavam Montelepre, trocaram os caminhões por cavalos e burros e iniciaram a escalada dos socalcos rochosos em direção ao horizonte. Durante o percurso, o rapaz observou tudo com os seus grandes olhos verdes, mas não disse uma palavra.
Quase ao pôr do Sol, chegaram a uma gruta escondida no dédalo de ravinas e desfiladeiros da montanha. Jantaram cordeiro grelhado, pão caseiro e vinho. No acampamento, havia uma grande imagem da Virgem Maria, guardada num santuário de madeira escura esculpida à mão. Apesar de feroz, Fissolini era devoto. Tinha, além disso, a cortesia natural dos camponeses, e apresentou-se ao Don e ao rapaz. Tudo nele indicava sem margem para dúvidas que era o chefe do bando. De baixa estatura mas poderosamente constituído, como um gorila, usava uma espingarda a tiracolo e dois revólveres enfiados no cinturão. Tinha um rosto tão pedregoso como a própria Sicília, mas chispava-lhe nos olhos um brilho de jovialidade. Gostava da vida e das suas pequenas facetas, particularmente o fato de ter nas mãos um americano que valia o seu peso em ouro. E no entanto, não havia nele ponta de malícia.
― Excelência ― disse, dirigindo-se ao Don ―, não quero que se preocupe aqui com o garoto. Amanhã de manhã mando-o à cidade levar o pedido de resgate.
Astorre estava a comer animadamente. Nunca na sua vida provara uma coisa tão deliciosa como aquele cordeiro grelhado. Mas fez uma pausa para declarar num tom definitivo:
― Fico com o meu tio Raymonde.
Fissolini riu-se.
― A boa comida dá coragem. Para mostrar o meu respeito por Sua Excelência, preparei eu próprio a refeição. Usei os temperos especiais da minha mãe.
― Fico com o meu tio ― repetiu Astorre, e a sua voz soou clara, carregada de desafio.
― Foi uma noite maravilhosa ― disse Don Aprile a Fissolini, num tom firme mas não isento de brandura. ― A comida, o ar da montanha, a tua companhia. Sei que vou gostar muito de ver o orvalho, de manhã cedo. Mas depois disso, aconselho-te a levares-me de volta à minha aldeia.
Fissolini fez-lhe uma vênia respeitosa.
― Sei que é rico ― disse ―, mas será assim tão poderoso? Só vou pedir cem mil dólares em dinheiro americano.
― Isso é um insulto ― declarou o Don. ― Vais prejudicar a minha reputação. Pede o dobro. E mais cinqüenta mil pelo rapaz. Será pago. Mas a partir daí a tua vida vai ser um inferno sem fim. ― Fez uma curta pausa. ― Espanta-me que tenhas sido tão imprudente.
Fissolini suspirou.
― Tem de compreender, Excelência. Sou um homem pobre. É certo que na minha província posso deitar mão a tudo o que quero, mas a Sicília é uma terra tão amaldiçoada que até os ricos são demasiado pobres para sustentarem homens como eu. Tem de compreender que representa a minha única possibilidade de fazer fortuna.
― Nesse caso devias ter-me procurado e oferecido os teus serviços ― disse o Don. ― Tenho sempre trabalho para um homem de talento.
― Diz isso agora porque está fraco e indefeso ― replicou Fissolini. ― Os fracos são sempre generosos. Mas vou seguir o seu conselho e pedir o dobro. Embora isso me cause alguns remorsos. Nenhum ser humano vale tanto dinheiro. Mas vou soltar o miúdo. Tenho um fraco por crianças... Tenho quatro filhos, que preciso de alimentar.
Don Aprile olhou para Astorre.
― Vais? ― perguntou.
― Não ― respondeu Astorre, baixando a cabeça. ― Quero ficar consigo ― Ergueu os olhos e olhou para o tio.
― Deixa-o então ficar ― disse o Don ao bandido.
Fissolini abanou a cabeça.
― Vai-se embora. Tenho de pensar na minha reputação. Não se dirá que Fissolini rapta crianças. Porque ao fim e ao cabo, apesar de todo o respeito que tenho por Vossa Excelência, terei de mandá-lo de volta pedaço a pedaço se não me pagarem. Mas se pagarem, tem a palavra de honra de Pietro Fissolini, ninguém tocará nem num pêlo do seu bigode.
― O dinheiro será pago ― disse o Dom calmamente. ― E agora tiremos das circunstâncias o melhor que nos podem dar. Sobrinho, canta uma das tuas canções para estes senhores.
Astorre cantou para os bandidos, que ficaram encantados e o felicitaram, despenteando-lhe afetuosamente os cabelos. Foi um momento mágico para todos eles, aquele em que a doce voz da criança encheu a montanha com canções de amor.
De dentro da gruta, trouxeram mantas e sacos-de-dormir. Fissolini disse, dirigindo-se ao Don:
― Excelência, que deseja amanhã para o café? Talvez um peixe acabado de pescar. E depois spaghetti e vitela para o almoço? Estamos ao seu serviço.
― Agradeço-te ― respondeu o Don. ― Um pouco de queijo e fruta será o suficiente.
― Durmam bem ― desejou o bandido. O ar de infelicidade do garoto suavizou-lhe o coração. Fez uma festa na cabeça de Astorre. ― Amanhã dormirás na tua cama.
Astorre fechou os olhos e adormeceu instantaneamente, estendido no chão ao lado de Don Aprile.
― Não saias do pé de mim ― disse o Dom colocando um braço à volta do rapaz.
Astorre dormiu tão profundamente que o Sol, vermelho como uma brasa, ia já alto no céu quando um ruído o acordou. Pôs-se de pé e viu que no espaço diante da gruta havia pelo menos cinqüenta homens armados. Don Aprile, complacente, calmo e digno estava sentado num largo rebordo de rocha, a bebericar uma caneca de café. Viu o garoto e fez-lhe sinal para que se aproximasse.
― Queres café, Astorre? ― perguntou. E, apontado com um dedo o homem que estava de pé à sua frente, acrescentou: ― Este meu bom amigo, Bianco, veio salvar-nos.
Astorre viu um homem enorme que, apesar de ser desmedidamente gordo, usar terno e gravata e estar aparentemente desarmado, era mil vezes mais assustador do que Fissolini. Tinha cabelos encaracolados e brancos, grandes olhos rosados e irradiava poder. Mas foi como quisesse esconder esse poder quando falou com uma voz baixa e rouca.
― Don Aprile ― disse Octavio, Bianco ―, peço desculpa por ter demorado tanto, obrigando-o a dormir no chão, como um camponês. Vim logo que me deram a notícia. Sempre soube que o Fissolini era uma besta, mas nunca esperei que fizesse uma coisa destas.
Ouviu-se o som de marteladas, e alguns dos homens saíram do campo de visão de Astorre. Viu então dois rapazes, que pregavam duas traves para formar uma cruz. Depois, estendidos no solo no lado oposto da clareira em frente da gruta, avistou Fissolini e os seus dez bandidos, amarrados com arames e cordas e presos às árvores. Ali estavam, num confuso monte de braços e pernas entrelaçados, parecendo moscas em cima de um pedaço de carne.
― Don Aprile, qual deste patifes quer julgar primeiro? ― perguntou Bianco.
― Fissolini ― respondeu o Dom ― É ele o chefe.
Bianco arrastou Fissolini até junto de Don Aprile: o bandido continuava apertadamente amarrado, como uma múmia. Bianco e um dos seus soldados pegaram nele e obrigaram-no a manter-se de pé.
― Fissolini, como pudeste ser tão estúpido? ― disse então Bianco. ― Não sabias que o Don estava sob a minha proteção, ou senão tê-lo-ia raptado eu próprio? Pensaste que estavas a pedir emprestado um frasco de azeite? Ou um pouco de vinagre? Alguma vez entrei na tua província? Mas tu sempre foste casmurro, e eu sabia que isso havia de meter-te em sarilhos. Bom, uma vez que tens de morrer na cruz, como Jesus, pede perdão a Don Aprile e ao rapazinho, e eu serei misericordioso e dou-te um tiro antes de te espetarmos os pregos.
― Então? ― interveio o Dom dirigindo-se a Fissolini. ― Explica a tua falta de respeito.
Fissolini endireitou-se, numa atitude de orgulho.
― O desrespeito não era para com a pessoa de Vossa Excelência. Não sabia que era tão importante e querido para os meus amigos. Esse cretino do Bianco bem podia manter-me informado. Excelência, cometi um erro e devo pagar. ― Interrompeu-se por um instante e então gritou a Bianco, com uma mistura de fúria e troça. ― Diz a esses tipos que parem de martelar. Estão a pôr-me surdo. E não consegues fazer-me morrer de medo antes de me matares! ― Fez nova pausa, voltou-se de novo para o Don e continuou: ― Castigue-me, mas poupe os meus homens. Limitaram-se a obedecer-me. Têm família. Destruirá uma aldeia inteira se os matar.
São homens responsáveis ― respondeu Don Aprile, sarcasticamente. ― Estaria a insultá-los se os não fizesse partilhar a tua sorte.
Nesse momento Astorre, mesmo no seu espírito infantil, compreendeu que aqueles homens estavam a falar de vida e de morte. Murmurou:
― Tio, não lhe faça mal.
O Don não deu qualquer indicação de o ter ouvido.
― Continua ― disse a Fissolini.
O bandido dirigiu-lhe um olhar interrogativo, simultaneamente orgulhoso e cansado.
― Não pedirei pela minha vida. Mas aqueles homens que ali estão são todos meus parentes de sangue. Se os matar, matará também as mulheres e os filhos. Três deles são meus genros. Confiaram totalmente em mim. Confiaram no meu discernimento. Se os poupar, obriga-los-ei, antes de morrer, a jurar-lhe lealdade eterna. E eles obeceder-me-ão. É alguma coisa, ter dez amigos leais. Não é como se fosse nada. Dizem-me que Vossa Excelência é um grande homem, mas não poderá ser verdadeiramente grande se não mostrar misericórdia. Não que deva fazer disso um hábito, claro, mas só desta vez. E sorriu a Astorre.
Para Don Raymonde Aprile, aquele era um momento por que já passara muitas vezes, e não tinha a mínima dúvida sobre a sua decisão. Nunca confiara no poder da gratidão, e não acreditava que fosse possível influenciar a livre vontade de qualquer homem, a não ser pela morte. Olhou impassivelmente para Fissolini e abanou a cabeça. Bianco deu um passo em frente.
Astorre aproximou-se do tio e olhou-o nos olhos. Tinha compreendido tudo. Ergueu uma mão para proteger Fissolini.
― Ele não nos fez mal ― protestou. ― Só queria o nosso dinheiro.
O Don sorriu, e perguntou:
― E isso é nada?
― Não. Mas ele tinha uma boa razão. Queria o dinheiro para alimentar a família. E eu gosto dele. Por favor, tio.
O Don sorriu novamente.
― Bravo ― disse.
Depois permaneceu silencioso por um longo momento, ignorando a mão de Astorre que lhe puxava o braço. E, pela primeira vez em muitos anos, sentiu o impulso de ser misericordioso.
Os homens de Bianco acenderam pequenos charutos, muito fortes, cujo fumo a brisa fresca das montanhas espalhou no ar do alvorecer. Um dos homens avançou e tirou do bolso do blusão de caça um charuto, que ofereceu ao Don. Com uma clareza infantil, Astorre compreendeu que aquilo não era apenas uma cortesia, mas um gesto de respeito. O Don aceitou o charuto e o homem acendeu-lho, protegendo a chama do fósforo com as mãos em concha.
O Don inalou lenta e deliberadamente o fumo do charuto. Depois disse:
― Não te insultarei oferecendo-te misericórdia. Mas vou fazer-te uma proposta de negócio. Reconheço que não tiveste malícia e que me tratas a mim e ao rapaz com todo o respeito. Eis o que te proponho. Viverás. Os teus camaradas viverão. Mas, enquanto viverem, estarão às minhas ordens.
Astorre sentiu um alívio imenso, e sorriu a Fissolini. Viu-o ajoelhar-se em terra e beijar a mão do Don. Notou que os homens armados que os rodeavam puxavam furiosamente o fumo dos charutos, e até Bianco, grande como uma montanha, estremecia de prazer.
― Deus o abençoe, Vossa Excelência ― murmurou Fissolini.
O Don pousou o charuto numa rocha próxima.
― Aceito a tua bênção, mas é preciso que compreendas. O Bianco veio salvar-me, e espero de ti que cumpras o mesmo dever. Pago-lhe uma certa quantia em dinheiro, como te pagarei a ti todos os anos. Mas, ao mais pequeno ato de deslealdade, tu e todo o teu mundo serão destruídos. Tu, a tua mulher, os teus filhos, os teus sobrinhos, os teus cunhados deixarão de existir.
Fissolini pôs-se de pé. Abraçou o Don e, subitamente, começou a chorar.
E foi assim que o Don e o seu sobrinho ficaram muito formalmente unidos. O Don amava o garoto por tê-lo convencido a mostrar misericórdia, e Astorre amava o tio por ter-lhe dado as vidas de Fissolini e dos seus homens. Foi um laço que durou o resto das suas vidas.
Na última noite que passou em Villa Grazia, Don Aprile bebeu café no jardim, enquanto Astorre comia azeitonas da barrica. O garoto estava invulgarmente silencioso e pensativo.
― Tens pena de deixar a Sicília? ― perguntou o Don.
― Gostaria de viver aqui ― respondeu Astorre, guardando no bolso os caroços das azeitonas.
― Bom, viremos os dois juntos, todos os verões ― prometeu o Don
Astorre olhou para ele como se olha para um velho e sábio amigo com uma sombra de perturbação no rosto juvenil.
― A Caterina é a sua namorada? ― perguntou.
Don Aprile riu-se.
― É uma boa amiga ― disse.
Astorre pensou nisto por um instante.
― Os meus primos sabem a respeito dela?
― Não, os meus filhos não sabem ― respondeu o Don. O interesse do garoto divertia-o, e perguntava a si mesmo o que viria a seguir.
Astorre adotou uma expressão ainda mais grave.
― Os meus primos sabem que tem amigos tão poderosos como o Bianco, que fazem tudo o que lhes disser para fazer?
― Não.
― Eu não lhes digo nada ― prometeu Astorre. v Nem sequer a respeito do rapto.
Don Aprile sentiu uma onda de orgulho encher-lhe o peito. A omertà estava embebida nos genes daquela criança.
Mais tarde nessa noite, sozinho, Astorre foi até ao canto mais afastado do jardim e, com as mãos, abriu um buraco na terra. Nesse buraco, depositou os caroços de azeitona que tinha guardado no bolso. Ergueu os olhos para o azul-profundo do céu siciliano e imaginou-se um homem já velho, como o tio, sentado no jardim numa noite como aquela, a ver crescer as suas oliveiras.
A partir daí, tudo o que aconteceu estava destinado a acontecer, acreditava o Don. Ele e o garoto fizeram a sua viagem anual à Sicília até que Astorre completou dezesseis anos. No espírito de Don Aprile começava a formar-se uma imagem, um vago esboço do destino do rapaz.
Foi Nicole quem criou a crise que atirou Astorre para esse destino. Com dezoito anos, mais dois do que o suposto primo, apaixonou-se por ele e, com o seu temperamento tempestuoso, não tentou sequer ocultar o fato. Assoberbou completamente o suscetível adolescente. Tornaram-se íntimos com toda a fúria escaldante da juventude.
O Don não podia consentir naquilo, mas era um general que ajustava as suas tácticas ao terreno. Nunca deixou transparecer que sabia o que se passava.
Certa noite, chamou Astorre ao seu gabinete e disse-lhe que ia mandá-lo para Inglaterra, para estudar e aprender o oficio de banqueiro com um tal Sr. Pryor, de Londres. Não adiantou qualquer outra razão, sabendo que o rapaz perceberia que estavam a mandá-lo embora para pôr fim àquele romance. Mas não contara com a filha, que ficara a escutar atrás da porta. Nicole entrou de rompante no escritório, e a cólera que a dominava tornava-a ainda mais bela.
― Não vai mandá-lo embora! ― gritou ao pai ― Fugimos os dois juntos!
O Don sorriu-lhe e disse, apaziguadoramente: ― Precisam os dois de acabar os estudos.
Nicole voltou-se para Astorre, que corava de atrapalhação.
― Astorre, tu não vais, pois não? ― perguntou.
Astorre não respondeu, e Nicole desfez-se em lágrimas.
Seria difícil a qualquer pai não se deixar comover por semelhante cena, mas o Don estava divertido. A filha era magnífica, verdadeiramente mafiosa na velha acepção, um prêmio digno de um rei. Apesar disso, durante as semanas que se seguiram recusou-se a falar com o pai, e trancou-se no quarto. Mas o Don sabia que os corações destroçados nunca ficam destroçados para sempre, e não se preocupou.
Divertia-o ainda mais ver Astorre apanhado na armadilha em que caem todos os adolescentes. É certo que amava Nicole. É certo que a paixão e a devoção dela o faziam sentir-se a pessoa mais importante à face da Terra. Qualquer jovem se deixaria seduzir por uma tal atenção. Mas o Don sabia com igual certeza que, no fundo, o que ele queria era uma desculpa que o libertasse de quaisquer peias que lhe entravassem o caminho em direção às glórias da vida. Sorriu. Aquele jovem tinha todos os instintos certos. Era tempo de iniciar a sua verdadeira aprendizagem.
Três anos depois de ter-se retirado, Don Raymonde Aprile sentia a segurança e a satisfação do homem que durante toda a sua vida fez as escolhas certas. Sentia-se inclusivamente tão seguro que começou a desenvolver uma relação mais íntima com os filhos, gozando por fim as alegrias da paternidade... pelo menos em certa medida.
Valerius, que passara a maior parte da sua vida em postos militares no estrangeiro, nunca fôra muito chegado ao pai Agora que estava colocado em West Point, encontravam-se com mais freqüência e começaram a falar mais abertamente. Mas era difícil.
Com Marcantonio, era diferente. O Don e o seu segundo filho tinham uma espécie de relação especial. Marcantonio falava do seu trabalho na televisão, da excitação de todo o processo, do seu dever para com o público, do seu desejo de tornar o mundo um lugar melhor. Para o Dom as vidas de pessoas assim eram como contos de fadas. Sentia-se fascinado por elas.
Por vezes, durante os jantares de família, Marcantonio e o pai discutiam amigavelmente, para entretenimento dos outros. Certa noite, o Don disse ao filho:
― Nunca na minha vida conheci pessoas tão boas ou tão más como as personagens das vossas histórias.
― É o que as pessoas querem, e nós temos de lho dar.
Noutra ocasião, durante uma reunião familiar, Valerius tentara explicar as razões que justificavam a Guerra do Golfo, a qual, além de defender importantes interesses econômicos e os direitos humanos, fôra um autentico maná para a rede de televisão de Marcantonio. Mas o Don limitara-se a encolher os ombros. Todos aqueles conflitos eram refinamentos de poder que não lhe interessavam.
― Diz-me ― pedira a Valerius ―, como é que as nações ganham realmente uma guerra? Qual é o fator decisivo?
Valerius pensara por um instante.
― Por um lado, há os exércitos, os generais brilhantes. Há as grandes batalhas. Umas que se ganham, outras que se perdem. Quando trabalhei nos serviços de informações, e analisamos todos os fatores, chegamos a uma conclusão. O país que produz mais aço ganha a guerra, é tão simples como isso.
O Don assentira com a cabeça, finalmente satisfeito.
O seu relacionamento mais caloroso e intenso era, porém, com Nicole. Orgulhava-se dos êxitos dela, da sua beleza física, da sua natureza apaixonada, da sua inteligência. E ela, é certo, apesar de jovem, com apenas trinta e dois anos, era já uma advogada poderosa, com bons contatos políticos, que não receava fosse quem fosse que representasse os poderes estabelecidos.
Neste ponto, o Don ajudava-a secretamente; o gabinete de advogados a que estava ligada devia-lhe muito. Mas os irmãos sentiam-se pouco à-vontade com ela por duas razões: em primeiro lugar, continuava solteira; depois, fazia demasiado trabalho pro bono. Por muito que a admirasse, como admirava, o Don nunca conseguiria levá-la a sério no mundo real. Era, ao fim e ao cabo, uma mulher. E uma mulher com gostos estranhos em matéria de homens.
Durante os jantares familiares, pai e filha discutiam constantemente, como dois grandes gatos empenhados numa brincadeira perigosa, por vezes fazendo sangue. Havia entre os dois um ponto de discórdia sério, a única coisa capaz de afetar a inalterável afabilidade do Don. Nicole acreditava na sacralidade da vida humana, considerava o castigo capital uma abominação. Fora ela quem organizara e agora liderava a Campanha Contra a Pena de Morte.
― Porquê? ― perguntava o Don.
E Nicole enfurecia-se uma vez mais. Porque acreditava que a pena de morte acabaria por destruir a Humanidade. Acreditava que se matar fosse permitido em certas circunstâncias, então poderia ser igualmente justificado por outro conjunto de circunstâncias, outro conjunto de crenças. No fim, não serviria a evolução nem a civilização. E acreditar nisto punha-a em conflito constante com o irmão Valerius. Ao fim e ao cabo, não era essa a missão do exército? Nicole não queria saber de razões. Matar era matar, e acabaria por fazer a Humanidade voltar ao canibalismo, ou coisa pior. Sempre que tinha oportunidade, batia-se nos tribunais de uma ponta a outra do país para salvar assassinos condenados. O Dom apesar de considerar tudo isto uma perfeita tolice, propôs um brinde durante um jantar de família, depois de ela ter defendido vitoriosamente, e gratuitamente, um caso famoso. Obtivera a comutação da pena de morte pronunciada contra um dos mais notórios criminosos da década, um homem que matara o seu melhor amigo e em seguida sodomizara a viúva. Durante a fuga, abatera dois empregados de uma bomba de gasolina para os roubar. Não satisfeito, violara e assassinara uma garota de dez anos. A sua carreira chegara ao fim quando tentara matar dois polícias dentro de um carro-patrulha. Nicole ganhara o caso alegando insanidade, com a garantia de que o homem passaria o resto da sua vida numa instituição para doentes mentais perigosos, sem possibilidade de libertação.
O jantar de família seguinte foi para comemorar a vitória de Nicole num outro caso. Dessa vez, a visada era ela própria. Num julgamento recente, defendera um controverso ponto legal, com considerável risco para si mesma. Citada perante a Ordem por violação da ética, fora absolvida. Por isso estava exultante.
Don Aprile, particularmente bem-disposto, mostrou um interesse invulgar pelo caso. Felicitou a filha pela absolvição, mas estava um pouco confuso, ou fingiu estar, pelas circunstâncias. Nicole teve de explicar-lhe.
Defendera um homem de trinta anos que violara, sodomizara. e assassinara uma menina de doze, e em seguida escondera o corpo para que não pudesse ser encontrado pela polícia. As provas circunstanciais contra ele eram fortes, mas, sem um corpo, os jurados e o juiz hesitariam em pronunciar uma sentença de morte. Os pais da vítima viviam na angústia do desejo frustrado de encontrar os despojos da filha.
O assassino confidenciara a Nicole, sua advogada, onde enterrara o corpo, e autorizara-a a negociar um acordo: confessaria tudo a troco de uma sentença de prisão perpétua em vez de uma condenação à morte. No entanto, quando Nicole iniciara as negociações com o ministério público, vira-se confrontada com uma ameaça de acusação judicial se não revelasse imediatamente o paradeiro do cadáver. Firme na sua convicção da necessidade de proteger a confidencialidade entre advogado e cliente, recusara fazê-lo. E um juiz dera-lhe razão. O delegado do ministério público, depois de consultar os pais da vítima, aceitara finalmente o acordo.
O assassino dissera-lhes que desmembrara o corpo e o metera numa caixa cheia de gelo que depois enterrara num pântano próximo, em Nova Jérsey.
Mas então a Ordem acusara-a de ter-se envolvido numa negociação que violava a ética. Era dessa acusação que acabava de ser absolvida.
O Don fez um brinde a todos os seus filhos, e então perguntou a Nicole:
― E tu, portaste-te com honra em todo este assunto?
― O que estava em causa era uma questão de princípio. Não se pode deixar que o governo quebre a confidencialidade das relações cliente-advogado numa dada circunstância, por mais grave que seja, pois caso contrário deixará de ser sacrossanta.
― E não tiveste pena da mãe e do pai da menina assassinada? ― insistiu o Don.
― Claro que tive ― replicou Nicole, irritada. ― Mas não podia permitir que isso afetasse um princípio básico da lei. Custou-me muito, evidentemente, a quem não custaria? Mas infelizmente, se queremos estabelecer precedentes para futuras leis, há que fazer sacrifícios.
― Mas mesmo assim a Ordem dos Advogados levou-te a julgamento.
― Para salvar a face. Foi uma jogada política. As pessoas comuns, que não conhecem as complexidades do sistema legal, recusam-se a aceitar estes princípios da lei, e houve muitos protestos. O meu julgamento serviu para esclarecer a questão. Era preciso que um juiz muito proeminente viesse a público explicar que eu tinha o direito, nos termos da Constituição, de recusar-me a revelar a informação.
― Bravo! ― exclamou o Dom jovialmente. ― A lei é sempre cheia de surpresas. Mas só para os advogados, claro.
Nicole sabia que ele estava a troçar.
― Sem um corpo de leis, não pode existir civilização ― retorquiu secamente.
― É verdade ― disse o Dom como que para aplacar a filha. ― Mas a mim parece-me injusto que um homem que cometeu um crime tão terrível escape com vida.
― Pode ser ― admitiu Nicole. - Mas o nosso sistema legal baseia-se neste tipo de acordos. É verdade que muitos criminosos recebem sentenças inferiores àquelas que mereciam. Mas, de certo modo, é uma coisa boa. O perdão cura. E, a longo prazo, aqueles que cometeram crimes contra a nossa sociedade serão mais facilmente reabilitados.
Foi, pois, com bem-humorado sarcasmo que o Don propôs o seu brinde.
― Mas diz-me, Nicole ― pediu, voltando à carga ―, alguma vez acreditaste que o homem era inocente por razões de insanidade? Ao fim e ao cabo, ele usou do seu livre arbítrio.
Valérius pousou na irmã um olhar frio, especulativo. Era um homem alto, de quarenta anos, com um bigode espesso e curto e cabelos que começavam já a ficaar grisalhos. Como oficial de Informações, também ele tomara decisões que ignoravam a moralidade humana. Estava interessado em ouvir o que ela tinha a dizer.
Marcantonio compreendia a irmã, sabia que aspirava a uma vida normal em parte por vergonha da vida do pai. Preocupava-o sobretudo a possibilidade de ela dizer qualquer coisa precipitada, qualquer coisa que o pai nunca pudesse perdoar-lhe.
Quanto a Astorre, estava extasiado por Nicole, pelos seus olhos coruscantes, pela incrível energia com que respondia às ferroadas do pai. Recordou-se de quando faziam amor, havia já tantos anos, e sentia o afeto que ela obviamente ainda sentia por ele. Mas agora tinha-se transformado, já não era o mesmo que fôra no tempo em que eram amantes. Ambos o sabiam. Perguntou a si mesmo se os irmãos dela tinham conhecimento daquele antigo caso. E também ele receava que a discussão rompesse os laços que uniam aquela família, a família que amava, que era o seu único refúgio. Esperava que Nicole não fosse demasiado longe. Mas não partilhava minimamente os pontos de vista dela. Os anos que passara na Sicília tinham-lhe ensinado que estava enganada. Principalmente, espantava-o que as duas pessoas que mais amava no mundo pudessem ser tão diferentes uma da outra. E ocorreu-lhe que, mesmo que ela tivesse razão, nunca poderia pôr-se do seu lado contra o Dom.
Nicole enfrentou destemidamente o olhar do pai.
― Não acredito que tivesse livre-arbítrio ― disse. ― Foi forçado pelas circunstâncias da vida... pelas suas percepções distorcidas, pela sua herança genética, a sua bioquímica, a ignorância da medicina... Era um louco. Claro que acreditei.
O Don meditou nisto por alguns instantes.
― Diz-me, se ele te tivesse confessado que todas as suas desculpas eram falsas, terias mesmo assim tentado salvar-lhe a vida?
― Sim ― admitiu Nicole. ― A vida de cada indivíduo é sagrada. O Estado não tem o direito de tirá-la.
O Don sorriu-lhe, trocista.
― Isso é o teu sangue italiano a falar. Sabias que a Itália moderna nunca teve a pena de morte? Tantas vidas humanas salvas!
O sarcasmo fez estremecer os filhos e Astorre, mas Nicole não se deixou impressionar.
― Quando o Estado, a coberto da justiça, comete um assassínio premeditado, pratica um ato de barbárie ― replicou, veementemente. ― Penso que o pai, sobretudo o pai, deveria concordar. ― Era um desafio, uma referência clara à fama do Don. Nicole riu-se e continuou, mais cordatamente: ― Temos uma alternativa. O criminoso é encarcerado numa instituição ou numa prisão, por toda a vida, sem possibilidade de redução de pena ou de liberdade condicional.
O Don olhou-a friamente.
― Uma coisa de cada vez ― disse. ― É verdade que concordo com o direito do Estado de tirar uma vida humana. Quanto à tua prisão perpétua sem possibilidade de redução de pena ou liberdade condicional, é uma anedota. Passados vinte anos descobrem-se provas supostamente novas, ou assume-se que o criminoso está reabilitado e é agora uma pessoa diferente, e lá se derrama o leite da compaixão humana. Mas ninguém se preocupa com os mortos. O homem sai em liberdade. E isso não é realmente importante...
Nicole franziu o sobrolho.
― Pai, nunca afirmei que a vítima não é importante. Mas tirar uma vida não lhe devolverá a que lhe foi roubada. E quanto mais tempo aceitarmos que se mate, seja em que circunstâncias for, mais tempo se continuará a matar.
O Don não respondeu imediatamente. Bebeu um gole de vinho e olhou à sua volta, para os dois filhos e para Astorre.
― Deixa-me falar-te da realidade ― disse então, voltando-se para a filha, e a sua voz soou com uma intensidade que raramente assumia. ― Dizes que a vida humana é sagrada? Com base em que provas? Em que altura da História? As guerras que matam milhões são aceitas por todos os governos e religiões. As chacinas de milhares de inimigos em disputas políticas, por interesses econômicos, são coisas de todos os tempos. Quantas vezes o dinheiro foi posto acima da santidade da vida humana? E tu própria aceitas que se tire uma vida humana quando livras os teus clientes do castigo que merecem.
Os olhos negros de Nicole chisparam.
― Nunca o aceitei! Nunca o desculpei! Acho que é um ato bárbaro. O que me recuso é a contribuir para que haja mais mortes!
O Don falou então mais calmamente, mas com mais seriedade:
― Acima de tudo, a vítima, a pessoa amada, jaz debaixo de terra. É banida para sempre deste mundo. Nunca mais veremos o seu rosto, nunca mais ouviremos a sua voz, nunca mais tocaremos a sua pele. Está na escuridão, perdida para nós e para o mundo. Ninguém falou enquanto o Don bebia um novo gole de vinho.
― Agora, minha Nicole, escuta-me. O teu cliente, o teu assassino, é condenado a prisão perpétua. Ficará atrás de grades ou num hospício pelo resto da sua vida. É o que dizes. Mas todas as manhãs verá nascer o Sol, provará o sabor da comida quente, ouvirá música, o sangue correr-lhe-á nas veias e interessa-lo-á pelas coisas do mundo. Aqueles que o amam poderão continuar a abraçá-lo. Segundo sei, poderá até estudar, aprender carpintaria, fabricar uma mesa. Em suma, vive. E isso é injusto.
Nicole era resoluta. Não cedeu.
― Pai, para domar um animal, não o deixamos comer carne crua. Não o deixamos prová-la, pois caso contrário quererá mais. Quanto mais se mata, mais fácil se torna matar. Não consegue compreender isto?
Como ele não respondesse, continuou:
― E quem pode decidir o que é justo ou injusto? Onde é que traçamos a linha que separa uma coisa da outra?
Aquilo que pretendia ser um desafio soou como uma súplica de compreensão para tantos anos de dúvida a respeito dele.
Todos esperavam uma explosão de cólera ante tamanha insolência mas subitamente o Don estava de bom humor.
― Tenho tido os meus momentos de fraqueza ― declarou ―, mas nunca deixo um filho julgar os pais. Os filhos são inúteis e só vivem por nossa condescendência. Além disso, considero-me acima de qualquer censura como pai. Criei três filhos que são pilares da sociedade, talentosos, realizados e bem sucedidos. E não totalmente indefesos face ao destino. Terá algum de vocês censuras a fazer-me?
Neste ponto, Nicole esvaziou-se de toda a sua ira.
― Não ― disse. ― Como pai, ninguém o pode censurar. Mas esqueceu-se de uma coisa. Só os oprimidos são enforcados. Os ricos arranjam sempre maneira de escapar ao castigo.
O Don olhou para ela com uma expressão muito séria.
― Por que razão, nesse caso, não lutas por modificar a lei de modo que os ricos sejam enforcados tal como os pobres? Seria mais inteligente.
― Se assim fosse restariam muito poucos de nós ― murmurou Astorre, sorrindo jovialmente. E este comentário desfez a tensão.
― A maior virtude da Humanidade é a misericórdia ― disse Nicole. Uma sociedade verdadeiramente iluminada não executa um ser humano, e abstém-se de punir além daquilo que a justiça e o bom senso permitem.
Foi só então que o Don perdeu o seu habitual bom humor.
― Onde foste tu buscar essas idéias? ― perguntou. - São comodistas e cobardes... mais, são blasfemas. Quem é mais impiedoso do que Deus? ― Ele não perdoa, não proíbe o castigo. Há um paraíso e há um inferno porque Ele o decretou. Não baniu a dor e o desgosto do Seu mundo. É Seu dever supremo mostrar apenas a misericórdia necessária. Quem és tu para conceder uma tão maravilhosa graça? É pura arrogância. Pensas que com tanta santidade poderás criar um mundo melhor? Lembra-te, tudo o que os santos podem fazer é murmurar orações ao ouvido de Deus, e mesmo assim só depois de terem conquistado esse direito à custa do seu próprio martírio. Não. É nosso dever perseguir o nosso próximo. Ou os grandes pecados que ele poderia ser capaz de cometer. Fazendo o contrário, estaríamos a entregar o nosso mundo ao diabo.
Nicole engasgou-se de fúria, Valerius e Marcantonio sorriram. Astorre inclinou a cabeça, como se estivesse a rezar.
Finalmente, Nicole recuperou o suficiente para dizer.
― Pai, como moralista, é um desastre. E não é com certeza exemplo que se siga.
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto cada um revia as recordações do seu estranho relacionamento com o Don. Nicole nunca acreditara verdadeiramente nas histórias que ouvira a respeito do pai, e no entanto sempre receara que fossem verdadeiras. Marcantonio lembrou-se de certa vez um colega da televisão lhe ter perguntado, maliciosamente: “Como é que o teu pai vos trata, a ti e aos outros filhos?” E ele, depois de ter ponderado cuidadosamente a pergunta, sabendo que o homem se referia à reputação do pai, respondera muito sério: “O meu pai é muito cordial para todos nós.”
Valerius pensava em como o pai se parecia com certos generais sob cujas ordens tinha servido. Homens que faziam o trabalho que era preciso fazer sem quaisquer escrúpulos morais, sem quaisquer dúvidas quanto ao que era o seu dever. Setas que voavam para o alvo com velocidade e pontaria mortíferas.
Para Astorre era diferente. O Don sempre lhe demonstrara afeto e confiança. Mas era ele o único àquela mesa que sabia que a reputação de Don Aprile era justificada. O seu espírito recuou até três anos atrás, quando regressara do exílio. Nessa altura, o Don dera-lhe certas instruções.
― Um homem da minha idade ― dissera-lhe ― pode morrer por ter entalado um dedo numa porta, ou de um ponto negro nas costas, ou de uma paragem cardíaca. É estranho como as pessoas não se apercebem da sua própria mortalidade a cada segundo que passa. Bom, não importa. Até nem precisa de ter inimigos. Em todo o caso, convém planear. Nomeei-te principal herdeiro dos meus bancos. Controla-los-ás e partilharás os lucros com os meus filhos. Pela seguinte razão: há grupos interessados em comprar-mos, um deles encabeçado pelo cônsul-geral do Peru. O Governo Federal continua a investigar-me ao abrigo das leis Rico, para poder confiscá-los. Desejo-lhes sorte. Não encontrarão seja o que for. As minhas instruções são estas: nunca vendas os bancos. Hão de tornar-se mais lucrativos e poderosos com o passar dos anos. A seu tempo, o passado será esquecido.
“Se acontecer algo inesperado, chama o Sr. Pryor para te ajudar. Conhece-lo bem. É extremamente competente, e também ele lucra com os bancos. Deve-me lealdade. Além disso, vou apresentar-te a Benito Craxxi, de Chicago. É um homem infinitamente habilidoso, e também recebe dinheiro dos bancos. Podes confiar nele. Entretanto, vou dar-te um negócio de macarroni só para gerires e permitir-te uma boa vida. A troco de tudo isto, encarrego-te da segurança e da prosperidade dos meus filhos. Vivemos num mundo duro, e eu criei-os como inocentes.
Três anos volvidos, Astorre meditava nestas palavras. O tempo passara, e parecia agora que os seus serviços não seriam necessários. O mundo do Don era indestrutível.
Nicole, porém, ainda não esgotara os seus argumentos.
― E a virtude da misericórdia? ― perguntou ao pai ― Sabe, aquilo que os Cristãos pregam?
― A misericórdia é um vicio, uma pretensão a poderes que não temos ― respondeu o Don instantaneamente. ― Aqueles que concedem misericórdia praticam uma ofensa imperdoável para com a vítima. E não é esse o nosso dever neste mundo.
― Não aceitaria então misericórdia? ― inquiriu Nicole.
― Nunca. Não a procuro nem a desejo. Se tiver de ser, aceitarei o castigo por todos os meus pecados.
Foi durante este jantar que o coronel Valerius Aprile convidou a família para assistir ao crisma do seu filho de doze anos, em Nova Iorque, daí a dois meses. A mulher insistira numa grande festa na velha igreja familiar. O Dom consistente com a sua nova maneira de ser, aceitou o convite.
Foi assim que, numa fria tarde de Dezembro, sob um céu cor de limão, a família Aprile se dirigiu à igreja de Saint Patrick, na Quinta Avenida, onde a luz brilhante do Sol recortava os contornos dessa grande catedral contra um pano de fundo das ruas circundantes. Don Aprile, Valerius e a esposa, Marcantonio, ansioso por uma desculpa para se escapar, e Nicole, encantadora no seu vestido negro, viram o cardeal em pessoa, de mitra vermelha na cabeça, beber vinho, dar a comunhão e aplicar na face dos fiéis a cerimonial palmada admonitória.
Era um doce e misterioso prazer ver aqueles rapazes à beira da puberdade, aquelas raparigas que amadureciam para a nubilidade, avançarem pelas coxias da catedral, envoltos nas suas capas brancas com a faixa de seda vermelha à cintura, sob o olhar benevolente dos anjos e santos de pedra. A confirmarem que serviriam a Deus pelo resto das suas vidas. Nicole tinha lágrimas nos olhos, embora não acreditasse numa palavra do que o cardeal dizia. Riu-se consigo mesma.
Nos degraus do pórtico, as crianças despojaram-se das capas e mostraram as belas roupas que elas escondiam. As raparigas, diáfanos vestidos de renda branca; os rapazes, ternos escuros, camisas brancas e o tradicional laço vermelho ao pescoço, para afastar o Demônio.
Don Aprile saiu da igreja, ladeado por Astorre e Marcantonio. As crianças reuniram-se num círculo. Valerius e a esposa seguravam orgulhosamente a capa branca do filho enquanto um fotógrafo lhes tirava a fotografia. Don Aprile começou a descer a escadaria sozinho. Encheu os pulmões de ar. Estava um dia magnífico; sentia-se vivo e alerta. E quando o seu recém-crismado neto se aproximou para abraçá-lo, afagou-lhe afetuosamente a cabeça e meteu-lhe na mão uma grande moeda de ouro ― a oferta tradicional que se faz às crianças no dia do crisma. Então, com mão generosa, meteu a mão no bolso do casaco e tirou um punhado de moedas de ouro menores, para distribuir pelos outros rapazes e raparigas. Gostou de ouvir os seus gritos de alegria, gostou de estar ali na cidade, onde os altos edifícios cinzentos lhe pareciam acolhedores como árvores. Estava completamente sozinho, com Astorre alguns passos mais atrás. Olhou para o fundo da escadaria e deteve-se por um instante quando um grande carro preto parou junto do passeio, como que para recebê-lo.
Em Brightwaters, na manhã desse domingo, Heskow levantou-se cedo e saiu para ir comprar pão e os jornais. Tinha escondido o carro roubado na garagem, um grande Sedan preto carregado com as armas e as máscaras e as caixas de munições. Verificou os pneus, o combustível e o óleo, as luzes dos travões. Perfeito. Entrou em casa para acordar Franky e Stace, mas, evidentemente, estavam já ambos a pé, e Stace tinha o café pronto.
Tomaram café em silêncio e leram os jornais de domingo. Franky verificou os resultados dos jogos de basquete universitário.
Às dez horas, Stace perguntou a Heskow: ― O carro está pronto?
E Heskow respondeu:
― Tudo pronto.
Meteram-se no carro e arrancaram. Franky sentado à frente, ao lado de Heskow, Stace no banco de trás. A viagem até à cidade demoraria uma hora, o que lhes deixava outra hora extra para entreter. O importante era chegar a tempo.
No carro, Franky verificou as armas. Stace experimentou uma das máscaras, pequenas conchas brancas presas por fitas elásticas laterais de modo a poderem usá-las penduradas ao pescoço até terem de colocá-las, no último momento.
Fizeram o percurso até à cidade a ouvir ópera no rádio do carro. Heskow era um excelente condutor, calmo, regular, sem acelerações ou travagens súbitas. Deixava sempre bastante espaço entre o seu próprio carro e o que seguia à frente. Stace fez um pequeno resmungo de aprovação, que aliviou um pouco a pressão; estavam tensos, mas não nervosos. Sabiam que tinham de ser perfeitos Não podiam falhar.
Heskow progrediu lentamente através da cidade. Parecia estar a apanhar todos os sinais vermelhos. Por fim, virou para a Quinta Avenida e parou a meio quarteirão das grandes portas da catedral. Os sinos da igreja começaram a tocar, e o som como que retinia nas estruturas de vidro e aço dos arranha-céus. Heskow ligou novamente o motor. Ficaram os três a ver as crianças que saíam da catedral como um bando de pombos. Aquilo preocupou-os.
― Franky, o tiro à cabeça ― murmurou Stace.
Nesse instante o Don apareceu, adiantou-se aos dois homens que o acompanhavam e começou a descer a escadaria sozinho. Parecia estar a olhar diretamente para eles.
― Máscaras ― disse Heskow. Acelerou ligeiramente, e Franky pousou a mão direita no fecho da porta ― Segurava a Uzi com a esquerda, pronto para saltar para o passeio.
O carro avançou e deteve-se no momento em que o Don chegava ao último degrau. Stace saltou do banco traseiro para a rua, com o carro entre ele e o seu alvo. Com um movimento rápido, apoiou a arma no teto, segurando-a com as duas mãos. Só disparou duas vezes.
A primeira bala atingiu o Don no meio da testa. A segunda rasgou-lhe a garganta. O sangue jorrou para o passeio, salpicando a luz amarelada do Sol com pingos cor-de-rosa.
No mesmo instante, no passeio, Franky disparou uma longa rajada da Uzi por cima da multidão.
Uma fração de segundo depois, os dois homens estavam no carro e Heskow acelerava avenida abaixo. Minutos mais tarde, metiam pelo túnel e rumavam ao pequeno aeroporto, onde um jato particular os aguardava.
Quando soaram os primeiros tiros, Valerius empurrou a mulher e o filho para o chão e cobriu-os com o próprio corpo. Na realidade, nada viu do que se passou. E Nicole, que olhava para o pai com o espanto estampado no rosto, também não. Marcantonio via sem compreender. A realidade era tão diferente da ficção das suas séries de televisão. A bala que atingira o Don na testa abrira-lhe a cabeça como se fosse uma melancia madura, deixando ver a massa de miolos e de sangue no interior. O tiro na garganta arrancara um grande pedaço de carne, como se o Don tivesse sido golpeado com uma faca de magarefe. E havia uma enorme quantidade de sangue no passeio à sua volta. Mais sangue do que se imaginaria existir num corpo humano. Marcantonio viu os dois homens com as máscaras brancas em forma de concha a cobrirem-lhes o rosto; viu também as armas que empunhavam, mas pareciam irreais. Não saberia dar qualquer indicação a respeito das roupas ou da cor dos cabelos. Ficou paralisado pelo choque. Nem sequer teria sabido dizer se eram brancos ou negros, se estavam nus ou vestidos. Tanto podiam ter três metros de altura como um.
Astorre, porém, ficara alerta mal vira o Sedan parar. Viu Stace disparar a arma e pensou que tinha usado a mão esquerda para apertar o gatilho. Viu Franky disparar a Uzi e era indiscutivelmente canhoto. Apanhou um relance do condutor, um homem de cabeça redonda, obviamente pesado. Os dois atiradores moviam-se com a agilidade de atletas treinados. Quando se atirou ao chão, estendeu os braços para arrastar o Don consigo, mas chegou uma fração de segundo demasiado tarde. E agora estava coberto com o sangue do Dom
Então viu as crianças fugirem num turbilhão de pânico, com uma grande mancha vermelha no centro. Estavam a gritar. Viu o Don espalhado nos degraus, como se a morte lhe tivesse desconjuntado o próprio esqueleto. E sentiu um medo enorme do que tudo aquilo ia fazer à sua vida e às vidas daqueles que amava.
Nicole aproximou-se do corpo estendido. Os joelhos dobraram-se-lhe sem que desse por isso, e ajoelhou junto dele. Silenciosamente, estendeu a mão e tocou na garganta dilacerada do pai. E então chorou como se fosse chorar para sempre.