Capítulo 13


Depois de ter encomendado, Nicole centrou a sua atenção em Marriano Rubio. Tinha duas mensagens importantes a entregar naquele dia, e queria certificar-se de que não cometia erros em qualquer delas.


Rubio escolhera o restaurante, um bistro francês de luxo onde os empregados andavam nervosamente de mesa em mesa transportando altos moinhos de pimenta de madeira envernizada e compridas cestas de verga cheias de pães acabados de sair do forno. Não gostava particularmente da comida, mas conhecia o maitre, o que lhe garantia sempre uma boa mesa num canto sossegado. Levava frequentemente ali as suas conquistas.


― Hoje estás mais calada que de costume ― disse, estendendo a mão por cima da mesa para agarrar a dela. Nicole sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Compreendeu que o odiava por ter aquele poder sobre ela, e retirou a mão.


― Sentes-te bem?


― Foi um dia dificil.


― Ah! ― exclamou ele, com um suspiro. ― É o preço de trabalhar com serpentes. ― Rubio não tinha a menor consideração pela firma de advogados de Nicole. ― Por que é que os aturas? Por que não deixas que em vez disso seja eu a tomar conta de ti?


Nicole perguntou a si mesma quantas mulheres teriam já ido naquela conversa e deitado janela fora as suas carreiras para estarem com ele.


― Não me tentes ― disse, coquetamente.


A resposta surpreendeu Rubio, que a sabia dedicada à carreira. Mas era aquela por que esperara.


― Deixa-me tomar conta de ti ― repetiu. ― Além disso, quantas mais empresas achas que consegues processar?


Um dos empregados abriu uma garrafa de vinho branco gelado, deu a rolha a cheirar a Rubio e verteu uma pequena quantidade num elegante copo de cristal. Rubio provou-o e assentiu com a cabeça. Depois voltou a dedicar a sua atenção a Nicole.


― Por mim, desistia já ― disse ela ―, mas há alguns casos pro bono que quero levar até ao fim. ― Bebeu um pequeno gole de vinho. ― Ultimamente, tenho andado a pensar na banca.


Rubio semicerrou os olhos.


― Bem, felizmente para ti, os bancos são hereditários na família.


― Pois são ― concordou ela. ― Mas, infelizmente, o meu pai não julgava as mulheres capazes de geri-los. Por isso sou obrigada a ficar a ver o maluco do meu primo dar cabo de tudo. ― Ergueu a cabeça para olhar para ele e acrescentou: ― A propósito, o Astorre acha que tu andas a tentar liquidá-lo.


Rubio tentou parecer divertido.


― A sério? E como conseguiria eu uma coisa dessas?


― Oh, não faço idéia! ― respondeu ela, aborrecida. ― Não esqueças que estamos a falar de alguém que ganha a vida a vender macarrão. Tem farinha no lugar do cérebro. Diz que queres os bancos para branquear dinheiro e não sei que mais. Até quis convencer-me de que tinhas tentado raptar-me. ― Nicole sabia que tinha de ser muito cuidadosa naquele ponto. ― Mas eu não acredito. Penso que é ele que está por detrás de tudo o que tem acontecido. Sabe que eu e os meus irmãos queremos controlar os bancos, por isso anda a tentar tornar-nos paranóicos. Mas nós estamos fartos de o ouvir.


Rubio estudou-lhe o rosto. Orgulhava-se da sua capacidade de distinguir a verdade da ficção. Ao longo dos seus anos como diplomata, ouvira mentiras da boca de alguns dos mais respeitados estadistas do mundo. E naquele momento, olhando Nicole no fundo dos olhos, decidiu que ela estava a dizer-lhe a verdade absoluta.


― Fartos a que ponto? ― perguntou.


― Estamos todos exaustos ― disse Nicole.


Vários empregados surgiram do nada e afadigaram-se à volta da mesa durante longos minutos para lhes servirem o prato principal. Quando finalmente se retiraram, Nicole inclinou-se para Rubio e sussurrou-lhe:


― Quase todas as noites o meu primo trabalha até tarde no armazém.


― O que é que estás a sugerir? ― perguntou Rubio.


Ela pegou na faca e começou a cortar o prato principal: escuros medalhões de pato a nadar num leve molho de laranja.


― Não estou a sugerir coisa nenhuma ― disse. ― Mas como é que o accionista maioritário de um banco internacional passa a maior parte do seu tempo num armazém de macarrão? Se eu tivesse o controle, estaria constantemente no banco, a fazer o possível para que os meus sócios recebessem o melhor retorno possível do seu investimento. ― Dito isto, provou o pato. Sorriu a Rubio. ― Delicioso - afirmou.


Além de todas as suas outras qualidades, Georgette Cilke era uma mulher muito organizada. Todas as terças-feiras à tarde passava exatamente duas horas na sede nacional da Campanha Contra a Pena de Morte, onde ajudava a atender os telefones e revia as petições dos advogados a favor de presos nas celas da morte. Por isso Nicole sabia exatamente onde entregar a sua segunda mensagem importante desse dia.


Quando Georgette viu Nicole entrar no gabinete, o rosto iluminou-se-lhe. Levantou-se para beijar a amiga.


― Graças a Deus ― disse. ― Tem sido um dia horrível. Ainda bem que vieste. Bem preciso de um pouco de apoio moral.


― Não sei se vou ser de grande ajuda ― respondeu Nicole. ― Há uma coisa que me está a perturbar e que quero discutir contigo.


Durante todos aqueles anos a trabalharem juntas, nunca Nicole fizera confidências a Georgette, embora mantivessem um caloroso relacionamento profissional. Georgette nunca discutia o trabalho do marido fosse com quem fosse. E Nicole nunca vira a vantagem de falar a respeito dos seus amantes com mulheres casadas, que se sentiam sempre na obrigação de dar conselhos sobre a melhor maneira de levar um homem ao altar, que era pecisamente o que ela não queria. Nicole peferia conversar a respeito de sexo, mas notara que o tema deixava normalmente as mulheres casadas pouco à-vontade. Talvez, pensava Nicole, não gostassem de ouvir falar a respeito daquilo que não tinham.


Georgette perguntou a Nicole se queria conversar em privado, e quando ela assentiu, encontraram um pequeno gabinete vazio ao fundo de um corredor.


― Nunca falei disto com ninguém ― começou Nicole ―, mas deves saber que o meu pai era Raymonde Aprile... conhecido como o Don. Alguma vez ouviste falar dele?


Georgette pôs-se de pé.


― Não me parece que deva ter esta conversa contigo...


― Senta-te, por favor ― interrompeu-a Nicole. ― Precisas de ouvir o que tenho para te dizer.


Georgette pareceu pouco à-vontade, mas fez o que Nicole lhe pedia. Na realidade, sempre tivera curiosidade em relação à família da amiga, mas sabia que não podia abordar o assunto. Como muitas outras pessoas, assumia que Nicole tentava, através do seu trabalho pro bono, compensar os pecados do pai. Que infância terrível devia ter sido a dela, crescendo à sombra de criminosos. E que embaraçante. Georgette imaginou a própria filha a ter vergonha de ser vista em público com qualquer dos pais. Perguntou a si mesma como teria Nicole sobrevivido àqueles anos.


Nicole sabia que Georgette nunca trairia o marido fosse de que maneira fosse, mas também sabia que era uma mulher cheia de compaixão e com um espírito aberto. Alguém que dedicava o seu tempo livre a defender assassinos condenados à morte. Pousou nela um olhar firme e disse: ― O meu pai foi morto por homens que têm uma relação muito próxima com o teu marido. E eu e os meus irmãos temos provas de que o teu marido recebeu subornos desses homens.


A primeira reAção de Georgette foi de choque, depois de incredulidade. Mas decorreram apenas segundos até que, pela primeira vez na sua vida, sentiu em si uma explosão de fúria.


― Como te atreves! ― sussurrou. Olhou Nicole bem nos olhos. ― O meu marido preferia morrer a violar a lei.


Nicole ficou surpreendida pela intensidade da resposta. Via agora que Georgette acreditava verdadeiramente no marido.


― O teu marido não é o homem que parece ser ― continuou. ― E eu sei como te sentes. Acabo de ler o processo do FBI sobre o meu pai, e por muito que o tenha amado, sei que me escondeu certas coisas. Tal como o Kurt te esconde certas coisas.


Contou-lhe então do milhão de dólares que Portella depositara na conta de Cilke, e das ligações de Portella com traficantes de droga e assassinos, que só podiam fazer o seu trabalho com a bênção tácita do marido dela.


― Não espero que acredites em mim. Tudo o que espero é que perguntes ao teu marido se o que estou a dizer-te é ou não verdade. Se ele é o homem que tu dizes, não mentirá.


Georgette não deixou transparecer o mais pequeno indício do tumulto que lhe ia na alma.


― Por que estás a contar-me tudo isso? ― perguntou.


― Porque o teu marido tem uma vendetta contra a minha família. Vai permitir que os associados dele matem o Astorre para poderem assumir o controle dos bancos da família. Será amanhã à noite, no armazém de macarrão do meu primo.


Quando Nicole falou de macarrão, Georgette riu-se e disse:


― Não acredito em ti. ― Levantou-se para sair. ― Lamento muito, Nicole ― acrescentou. ― Sei que estás perturbada, mas nada mais temos a dizer uma à outra.


Nessa noite, na sala escassamente mobilada da casa de campo para onde a família fôra transferida, Cilke enfrentou o seu pesadelo. Ele e a mulher tinham acabado de jantar e estavam sentados em frente um do outro, ambos a ler. Subitamente, Georgette pousou o livro e disse: ― Preciso de falar contigo a respeito de Nicole Aprile.


Nunca, em todos aqueles anos de casamento, Georgette pedira ao marido para falar de assuntos relacionados com a profissão dele. Não queria a responsabilidade de carregar segredos federais. E sabia que aquela era uma parte da sua vida que Cilke precisava de manter só para si. Por vezes, deitados na cama lado-a-lado, perguntava a si mesma como seria que ele fazia o seu trabalho ― as táticas que usava para obter informações, a pressão que devia ter de exercer sobre os suspeitos. Mas no seu espírito imaginava-o sempre como a epítome do agente federal, com o seu terno muito bem engomado, o seu muito folheado exemplar da Constituição enfiado no bolso de trás das calças. No fundo do coração, era suficientemente sagaz para saber que isto não passava de uma fantasia. O marido era um homem determinado. Iria aonde fosse preciso para derrotar os seus inimigos. Mas aquela era uma realidade que sempre preferira não examinar.


Cilke estava a ler um romance policial ― o terceiro volume de uma série a respeito de um assassino psicopata que criava o filho para o sacerdócio. Quando Georgette disse aquilo, fechou imediatamente o livro. ― Estou a ouvir ― disse.


― A Nicole disse-me hoje umas coisas... a teu respeito e a respeito da investigação que estás a conduzir ― continuou Georgette. ― Sei que não gostas de falar do teu trabalho, mas ela fez acusações muito sérias.


Cilke sentiu a raiva subir-lhe no peito, até transformar-se numa fúria cega. Primeiro tinham-lhe morto os cães. Depois tinham-lhe destruído a casa. E agora manchavam a mais pura das suas relações. Finalmente, quando o seu coração parou de rufar, pediu a Georgette, com uma voz muito calma, que lhe contasse exatamente o que tinha acontecido.


Georgette repetiu toda a conversa que tivera com Nicole e vigiou atentamente a expressão do marido à medida que absorvia a informação. O rosto dele não denunciou qualquer sinal de surpresa ou ofensa. Quando ela terminou, Cilke disse:


― Obrigado, querida. Sei que foi muito dificil para ti dizer-me isso. E lamento que tenhas tido de fazê-lo. Em seguida, levantou-se da cadeira e dirigiu-se à porta da frente.


― Aonde vais? ― perguntou Georgette.


― Preciso de apanhar ar ― respondeu Cilke. ― Preciso de pensar.


― Kurt, querido? ― A voz de Georgette soou interrogativamente; estava a pedir-lhe que a tranquilizasse, que lhe dissesse que os seus medos não tinham razão de ser.


Cilke jurara nunca mentir à mulher. Se ela insistisse na verdade, teria de dizer-lha e sofrer as conseqüências. Estava na esperança de que ela compreendesse e decidisse que era melhor fingir que aqueles segredos não existiam.


― Há alguma coisa que possas dizer-me? ― perguntou Georgette.


Ele abanou a cabeça.


― Não. Faria tudo por ti. Sabes isso, não sabes?


― Sim. Mas preciso de saber. Por nós e pela nossa filha.


Cilke viu que não havia por onde escapar. Compreendeu que a mulher nunca mais olharia para ele da mesma maneira se lhe contasse a verdade. Naquele instante, teve vontade de esmagar o crânio de Astorre Viola. Pensou no que poderia dizer a Georgette: só aceitei os subornos porque o FBI me pediu? Deixamos passar os pequenos crimes para nos concentrarmos nos grandes? Violamos algumas leis para podermos impor as mais importantes? Sabia que estas respostas só conseguiriam enfurecê-la, e amava-a e respeitava-a demasiado para fazer uma coisa dessas.


Saiu de casa sem dizer uma palavra. Quando voltou, Georgette fingiu estar a dormir. Foi nesse momento que tomou a sua decisão. Na noite seguinte confrontaria Astorre Viola e reclamaria a sua própria visão de justiça.


Aspinella Washington não odiava todos os homens, mas ficava muitas vezes surpreendida pela enorme quantidade dos que a decepcionavam. Eram tão... inúteis.


Depois de ter-se encarregado de Heskow, foi sumariamente interrogada por dois agentes da segurança do aeroporto, que eram demasiado estúpidos ou estavam demasiado intimidados para questionarem a versão que ela dava dos fatos. Quando descobriram os cem mil dólares presos ao corpo de Heskow, chegaram à conclusão de que o motivo dele era óbvio. Decidiram que era justo recompensarem-se a si mesmos com uma taxa de serviço por terem de limpar a porcaria que ela fizera antes da chegada da ambulância. Também deram a Aspinella um maço de notas manchadas de sangue, que ela juntou aos trinta mil que Heskow já lhe tinha dado.


Só tinha dois usos para o dinheiro. Guardou-o todo, menos três mil dólares, no seu cofre de depósito. Deixara à mãe instruções precisas no sentido de que, se lhe acontecesse alguma coisa, todo o dinheiro do cofre ― mais de trezentos mil dólares ― fosse depositado num fundo em nome da filha. Com os restantes três mil, apanhou um táxi para a esquina da Quinta Avenida com a Rua Cinqüenta e Três, entrou na mais luxuosa loja de artigos de couro da cidade e subiu no elevador até uma suite privada no terceiro andar.


Uma mulher que usava óculos de marca e um fato às riscas azuis aceitou o dinheiro e conduziu-a a uma sala ao fundo do corredor, onde tomou um banho com óleos aromáticos importados da China. Deixou-se ficar de molho mais de vinte minutos, a ouvir um pouco de canto gregoriano, enquanto esperava por Rudolfo, um terapeuta especializado em massagem-sexual. Rudolfo cobrava três mil dólares por cada sessão de duas horas, o que, como gostava de fazer notar às suas sempre satisfeitas clientes, era mais do que até os advogados mais famosos recebiam à hora. “A diferença”, dizia, com o seu sotaque bavaro e um sorriso malandro, “é que eles se limitam a fodê-las com truques, ao passo que eu as fodo a valer.”


Aspinella ouvira falar de Rudolfo durante uma investigação de costumes que, sob disfarce, conduzira nos hotéis mais caros da cidade. Um dos porteiros, preocupado com a possibilidade de ser chamado a depor, dera-lhe, a troco da promessa de que não seria citado, a dica a respeito de Rudolfo. A primeira intenção de Aspinella fora mandá-lo para a cadeia, mas depois de tê-lo conhecido e experimentado uma das suas massagens, pensara que seria um crime ainda maior negar às mulheres o prazer de tão extraordinários talentos.


Passados alguns minutos, Rudolfo bateu à porta e perguntou: ― Posso entrar?


― Estou a contar com isso, boneco ― respondeu ela. Ele entrou e examinou-a dos pés à cabeça.


― Bonita pala ― comentou.


Durante a sua primeira sessão, Aspinella ficara surpreendida ao vê-lo entrar na sala nu, mas ele explicara. “Para quê estar com o trabalho de vestir-me para ter de despir-me logo a seguir?” Rudolfo era um espécime impressionante, alto e forte, com um tigre tatuado no bícepe direito e uma sedosa mata da pêlos louros no peito. Aspinella gostava especialmente daqueles pêlos, que distinguiam Rudolfo desses modelos das revistas, tão cuidadosamente depilados, barbeados e engordurados que se tornava quase impossível saber se eram machos ou fêmeas...


― Como tem passado? ― perguntou ele.


― Isso não te interessa ― respondeu Aspinella. ― Tudo o que precisas de saber é que estou necessitada de um pouco de terapia sexual.


Rudolfo começou pelas costas, carregando com força, concentrando-se nos nós de nervos contraídos. Depois, massajou-lhe suavemente o pescoço antes de voltá-la e massajar ao de leve os seios e o estômago. Quando começou a acariciá-la entre as pernas, já ela estava úmida e a respirar ofegantemente.


― Por que é que os outros homens não me fazem isto? ― exclamou, com um suspiro de êxtase.


Rudolfo preparava-se para iniciar a melhor parte do seu serviço, a massagem de língua, que executava de uma forma particularmente hábil e com notável vigor. Mas a pergunta, que ouvira inúmeras vezes, fê-lo parar. Nunca deixava de surpreendê-lo. A impressão que tinha era de que a cidade estava a explodir de mulheres sexualmente subalimentadas.


― O motivo por que outros homens não o fazem constitui um mistério para mim ― disse. ― O que é que lhe parece?


Aspinella detestava interromper o seu devaneio sexual, mas compreendeu que Rudolfo precisava de um pouco de conversa de almofada antes do “grand finale.”


― Os homens são fracos ― explicou. ― Somos nós que tomamos todas as decisões importantes. Quando casar. Quando ter filhos. Mantemos-lhes a rédea curta e pedimos-lhes contas das coisas que fazem.


Rodolfo sorriu delicadamente.


― Sim, mas o que é que isso tem a ver com sexo?


Aspinella queria que ele voltasse ao trabalho.


― Não sei ― disse. ― É só uma teoria.


Rodolfo recomeçou a massajá-la, lentamente, regularmente, ritmicamente. Parecia nunca se cansar. E de cada vez que ele a levava aos píncaros do prazer, ela imaginava as profundezas de dor a que levaria Astorre Viola e o seu bando de assassinos na noite seguinte.


A Viola Macaroni Company tinha a sua sede num grande armazém de tijolo no Lower East Side de Manhattan. Trabalhavam ali mais de cem pessoas, descarregando grandes sacos de serapilheira de macaroni italiano para uma correia transportadora, que os separava e empacotava automaticamente.


Um ano antes, inspirado pelo artigo de uma revista a respeito de como as pequenas empresas estavam a expandir os seus negócios, Astorre contratara um consultor de gestão recém-licenciado pela Harvard Business School, para recomendar mudanças. O jovem dissera-lhe que dobrasse os preços, mudasse a marca do seu macaroni para Uncle Vitds Homemade Pasta e despedisse metade dos empregados, que poderiam ser substituídos por trabalhadores eventuais a ganhar metade do ordenado. Ao ouvir esta última sugestão, despedira o consultor.


O seu escritório ficava no piso principal, que tinha mais ou menos o tamanho de um campo de futebol e ao longo de cujas paredes se alinhavam reluzentes máquinas de aço inoxidável. As traseiras do edificio davam para um cais de carga e descarga. Havia câmaras de vídeo em todas as portas e espalhadas pelo interior da fábrica, o que lhe permitia manter um olho nos visitantes e na produção a partir do gabinete. Normalmente, o armazém fechava às seis da tarde, mas naquela noite Astorre retivera cinco dos seus empregados mais qualificados e Aldo Monza. Estava à espera.


Quando, na noite anterior, no apartamento de Nicole, lhe explicara o seu plano, ela opusera-se veementemente.


― Não ― dissera, abanando a cabeça. ― Em primeiro lugar, não vai resultar. E em segundo lugar, não quero tornar-me cúmplice de assassínio. ― Eles mataram a tua assistente e tentaram raptar-te ― dissera Astorre, calmamente. ― Estamos todos em perigo, a menos que eu tome medidas.


Nicole pensara em Helene e então recordara as suas muitas discussões à mesa com o pai, que teria sem a mínima dúvida procurado vingança. O pai ter-lhe-ia dito que devia aquilo à memória da amiga, e ter-lhe-ia feito notar que era razoável e necessário tomar medidas para proteger a família. ― Por que não procuramos as autoridades? ― perguntara.


A resposta de Astorre fora seca: ― É demasiado tarde para isso.


Agora estava sentado no seu gabinete, a servir de isca. Graças a Grazziella, sabia que Tulippa e Portella se encontravam na cidade para uma reunião do cartel. Não podia ter a certeza de que a dica dada por Nicole a Rubio os levaria a fazer-lhe uma visita, mas esperava que tentassem uma última vez convencê-lo a vender os bancos antes de recorrerem à violência. Assumiu que o revistariam, de modo que não não tinha qualquer arma consigo, com exceção de um estilete que guardou num bolso especial cosido à manga da camisa.


Estava a vigiar atentamente os monitores de vídeo quando viu meia dúzia de homens entrarem no edifício pelo cais de carga. Dera instruções aos seus próprios homens para que se escondessem e não atacassem antes de ele lhes fazer sinal.


Estudou o monitor e reconheceu Portella e Tulipa entre os seis visitantes. Então, quando as figuras desapareceram do visor, ouviu passos a aproximarem-se do gabinete. Se já tivessem decidido matá-lo, Monza e a sua equipe estavam a postos e poderiam intervir.


Ouviu, no entanto, Portella chamar por ele. Não respondeu.


Segundos depois, Portella e Tulippa apareceram à porta.


― Entrem ― convidou Astorre, com um amplo sorriso. Levantou-se para lhes apertar a mão. ― Que surpresa. Raramente tenho visitas a esta hora. Alguma coisa que possa fazer por vocês?

― Sim ― respondeu Portella, em ar de troça. ― Vamos ter um grande jantar e acabou-se-nos o macaroni.

Astorre agitou magnanimamente uma mão e declarou: ― O meu macaroni é o vosso macaroni.


― E que tal os seus bancos? ― perguntou Tulippa, sombriamente. Astorre estava preparado para aquilo.


― Chegou a altura de falarmos a sério. Chegou a altura de tratar de negócios. Mas primeiro quero mostrar-lhes a fábrica. Orgulho-me muito dela.


Tulippa e Portella trocaram um olhar confuso. Estavam desconfiados. ― OK, mas que seja rápido ― aquiesceu Tulippa, perguntando a si mesmo como fora possível um palhaço daqueles sobreviver tanto tempo. Astorre guiou-os. Os quatro homens que os tinham acompanhado estavam por perto. Astorre cumprimentou-os calorosamente, apertando a mão a cada um deles e elogiando-lhes as roupas.


Os seus próprios homens observavam-no atentamente, à espera da ordem para atacar. Monza colocara três atiradores na galeria que dominava a nave, fora das vistas. Os outros encontravam-se em lados opostos do armazém.


Passaram-se longos minutos, enquanto Astorre mostrava as instalações aos seus convidados. Até que, finalmente, Portella disse:


― Vê-se bem que é na verdade aqui que está o seu coração. Por que é que não nos deixa gerir os bancos? Fazemos-lhe uma nova oferta e ainda lhe damos uma percentagem.


Astorre preparava-se para fazer sinal aos seus homens quando ouviu uma longa rajada e viu três deles caírem da galeria e precipitarem-se de uma altura de seis metros no chão de cimento. Olhou em redor, à procura de Monza, ao mesmo tempo que se escondia rapidamente atrás de uma enorme máquina de embalar.


Dali, viu uma mulher negra com uma pala verde a tapar-lhe um olho correr para eles e agarrar Portella pelo pescoço. Espetou-lhe na proeminente barriga o cano da espingarda automática que empunhava, sacou de um revólver e atirou a espingarda para o chão.


― OK. ― disse Aspinella Washington. ― Toda a gente larga as armas! ― Quando ninguém se mexeu, não hesitou um segundo. Ainda a agarrar Portella pelo pescoço, fê-lo dar meia volta e disparou-lhe duas balas no estômago. Quando ele se dobrou para a frente, bateu-lhe com a coronha do revólver na nuca e pontapeou-o na boca. Quase no mesmo movimento, agarrou Tulippa e ameaçou: ― Tu és o próximo, a menos que toda a gente faça o que eu mando. Isto é olho por olho, seu filho-da-puta.


Portella soube que, sem ajuda, só viveria mais alguns minutos. Já começava a perder a visão. Estava estendido no chão, a respirar pesadamente, com a florida camisa empapada em sangue. Sentia a língua entorpecida.


― Façam o que ela diz ― murmurou, debilmente. Os seus homens obedeceram.


Portella sempre ouvira dizer que apanhar um tiro no estômago era a forma mais dolorosa de morrer. Agora sabia porquê. Cada vez que inspirava, era como se lhe espetassem uma faca no coração. Perdeu o controle da bexiga, e a urina pôs uma mancha escura nas suas calças azuis. Tentou focar os olhos na atiradora, uma atlética mulher negra que não reconheceu. Tentou formar as palavras “Quem é você?”, mas não conseguiu reunir força suficiente para isso. O seu último pensamento foi curiosamente sentimental: quem iria dizer a Bruno que ele tinha morrido?


Astorre só precisou de uma fração de segundo para compreender o que se tinha passado. Nunca vira a detetive Aspinella Washington, exceto nos jornais e nos noticiários da TV. Mas soube que se ela o tinha encontrado, era porque já conseguira apanhar John Heskow. E Heskow estava com toda a certeza morto. Não sentiu pena do escorregadio intermediário. Heskow tinha o grande defeito de ser um homem capaz de dizer fosse o que fosse para permanecer vivo. Ainda bem que estava debaixo de terra, a fazer crescer as flores de que tanto parecia gostar.


Tulippa não fazia a mínima idéia de quem era aquela cabra negra que lhe encostava ao pescoço o cano de um revólver. Confiara as questões de segurança a Portella e dera folga aos seus leais guarda-costas. Um estúpido erro. A América era um país tão estranho, pensou. Nunca se sabia de onde ia surgir a violência.


Enquanto o cano do revólver se lhe cravava na carne cada vez com mais força, Tulippa fez a si mesmo a promessa de que, se escapasse daquilo com vida e conseguisse voltar à América do Sul, aceleraria o seu programa de produção de um arsenal nuclear. Faria pessoalmente tudo o que pudesse para estourar a maior parte possível da América, especialmente Washington D.C., uma capital de fanfarrões arrogantes que passavam a vida com o cu sentado em cadeirões estofados, e Nova Iorque, onde os loucos como aquela puta zarolha pareciam nascer por geração espontânea.


― Muito bem ― disse Aspinella, dirigindo-se a Tulippa. ― Ofereceu-nos meio milhão para tomar conta deste tipo. ― Apontou para Astorre. ― Teria muito gosto em aceitar o serviço, mas, depois do meu acidente, fui obrigada duplicar o preço. Só com um olho, tenho de concentrar-me a dobrar.


Kurt Cilke passara o dia inteiro a vigiar o armazém. Sentado no seu Chevrolet sem mais companhia do que um pacote de pastilhas elásticas e um exemplar da Newsweek, esperou que Astorre fizesse a sua jogada.


Fôra sozinho, não querendo envolver quaisquer outros agentes naquilo que acreditava poder ser o fim da sua carreira. Quando viu Tulippa e Portella entrarem no edificio, a bílis subiu-lhe à garganta. E apercebeu-se de como Astorre era um inimigo astuto. Se, como suspeitava, aqueles dois tentassem atacá-lo, ele teria o dever legal de protegê-lo. Astorre ficaria livre e ilibaria o seu nome sem quebrar o silêncio. E Cilke veria anos de trabalho muito duro voarem pela janela.


O inesperado aparecimento de Aspinella Washington empunhando uma espingarda automática fê-lo sentir algo muito diferente: frio medo. Soubera do papel que Aspinella desempenhara nos acontecimentos do aeroporto. Tudo aquilo lhe parecera extremamente suspeito. Os elementos não se ajustavam.


Verificou o tambor do revólver e teve a remota esperança de poder contar com ela para o ajudar. Antes de sair do carro, decidiu que era altura de informar o Bureau. Ligou para Boxton, servindo-se do telefone celular.


― Estou à porta do armazém do Astorre Viola ― disse-lhe. E nesse momento ouviu o som de uma rajada. ― Vou entrar, e se as coisas correrem mal, quero que digas ao diretor que agi por minha conta e risco. Estás a gravar esta chamada?


Boxton hesitou, sem saber se Cilke gostaria de saber que estava a ser gravado. Mas, desde a tentativa de assassínio montada contra ele, todos os seus telefonemas eram monitorizados.


― Sim ― respondeu, por fim.


― Ótimo ― disse Cilke. ― Para que conste, nem tu nem qualquer outra pessoa do FBI e responsável pelo que vou fazer a seguir. Vou entrar numa situação hostil que envolve três figuras conhecidas do crime organizado e uma renegada do Departamento de Polícia de Nova Iorque, pesadamente armada.


Boxton interrompeu-o. ― Kurt, espera por apoio.


― Não há tempo. E além disso, este sarilho é meu. Compete-me a mim resolvê-lo. ― Pensou em deixar uma mensagem para Georgette, mas decidiu que seria demasiado mórbido e piegas. Mais valia deixar que as suas ações falassem por ele. Desligou o telefone sem mais uma palavra. Quando saiu do carro, reparou que estava mal-estacionado.


A primeira coisa que viu quando entrou no armazém foi a arma de Washington cravada no pescoço de Tulippa. Todos as personagens daquele drama estavam silenciosas. Ninguém se movia.


― Sou um agente federal ― anunciou, mostrando o revólver. ― Deixem cair as vossas armas no chão.


Aspinella voltou-se para ele e atirou-lhe, num tom carregado de desprezo.


― Sei muito bem que você é. Esta captura e minha. Vá prender uns contabilistas, ou corretores, ou lá o raio que vocês, seus janotas de merda, passam o tempo a fazer. Este é um caso do Departamento de Polícia de Nova Iorque.


― Detetive ― respondeu Cilke, calmamente ― deixe cair a sua arma, já. Caso contrário, usarei a força, se necessário. Tenho razões para pensar que está envolvida numa associação criminosa.


Aspinella não tinha contado com aquilo. Pela expressão nos olhos de Cilke e pela firmeza da sua voz, soube que ele não cederia. Mas ela também não estava disposta a ceder, pelo menos enquanto tivesse uma arma na mão. Muito provavelmente, aquele tipo não disparava contra uma pessoa havia anos, pensou.

― Acha que eu estou envolvida numa conspiração criminosa? ― gritou. ― Pois eu acho que você é que está envolvido numa associação criminosa. Acho que há anos que recebe subornos deste monte de merda. ― E empurrou ainda mais o cano da arma contra o pescoço de Tulippa. ― Não e verdade, senhor?


De início, Tulippa não respondeu, mas quando Aspinella lhe aplicou um pontapé entre as pernas, dobrou-se pela cintura e assentiu com a cabeça. ― Quanto? ― perguntou Aspinella.


― Mais de um milhão ― disse Tulippa, abrindo muito a boca para tentar respirar.


Cilke controlou a sua fúria e disse: ― Cada dólar depositado na minha conta foi controlado pelo FBI. Isto é uma investigação federal, detetive Washington. ― Inspirou fundo e fez uma contagem inversa, antes de dizer. ― Este é o meu último aviso. Largue essa arma, ou disparo.


Astorre observava-os friamente. Aldo Monza, estava escondido atrás de outra máquina. Astorre viu o rosto de Aspinella contorcer-se. Então, como se estivesse a acontecer em câmara lenta, viu-a deslizar para trás de Tulippa e disparar contra Cilke. Mas mal ela disparou, Tulippa libertou-se e mergulhou para o chão, desequilibrando-a.


Cilke fora atingido no peito. Mas disparou uma vez contra Aspinella, que cambaleou para trás, com o sangue a jorrar-lhe do ombro direito. Nenhum deles atirara a matar. Tinham obedecido ao seu treino até ao fim, visando a parte mais larga do corpo. Mas quando Aspinella sentiu a dor lancinante da bala e viu os estragos que ela fizera, soube que era tempo de esquecer as regras. Apontou para o meio dos olhos de Cilke e apertou o gatilho quatro vezes. Todas as balas acertaram no alvo, e o nariz de Cilke transformou-se numa polpa sangrenta, e pedaços de cérebro espalharam-se pelo que restava da testa dele.


Tulippa viu que Aspinella estava ferida e a cambalear. Agarrou-a pelas costas e desferiu-lhe uma cotovelada na cara, deixando-a inconsciente. Mas antes que conseguisse apanhar a arma dela, Astorre saiu de trás da máquina e, com um pontapé, atirou-a para o meio da nave. Depois aproximou-se de Tulippa e ofereceu-lhe galantemente a mão.


Tulippa aceitou-a e Astorre ajudou-o a levantar-se. Entretanto, Monza e os membros sobreviventes da sua equipe tinham dominado os homens de Portella, amarrando-os às colunas de aço que suportavam o tecto da nave. Ninguém tocou em Cilke nem em Portella.


― Ora bem ― disse Astorre ―, penso que temos um negócio para concluir.


Tulippa estava confuso. Aquele Astorre era uma massa de contradições ― um adversário amistoso, um assassino cantor. Poderia alguma vez confiar numa pessoa assim?


Astorre caminhou até ao centro da nave e indicou a Tulippa que o seguisse. Quando chegou a um espaço aberto, parou e voltou-se para o sul-americano: ― Mataste o meu tio e tentaste roubar os nossos bancos. Nem devia estar a despediçar palavras contigo. ― Tirou da manga da camisa o fino estilete, cuja lâmina prateada refulgiu à luz, e mostrou-o a Tulippa. ― O que devia era cortar-te a garganta e acabar com isto. Mas tu és fraco, e não há honra em matar um velho indefeso. Por isso vou dar-te uma hipótese.


Com estas palavras, e depois de ter feito um sinal quase imperceptível a Monza, levantou as duas mãos, como se estivesse a render-se, deixou cair o estilete e recuou vários passos. Tulippa era mais velho e mais pesado do que ele, e nos seus tempos fizera correr rios de sangue. Era um homem extremamente hábil com uma faca. Mas não o suficiente para Astorre. Tulippa apanhou o estilete e começou a avançar.


― És um indivíduo estúpido e descuidado ― disse. ― Estava disposto a aceitar-te como sócio.


Atacou a fundo várias vezes, mas Astorre foi mais rápido e evitou a lâmina. Quando Tulippa parou momentaneamente para recuperar o fôlego, Astorre tirou o medalhão de ouro do pescoço e atirou-o ao chão, expondo a cicatriz violácea na garganta.


― Quero que isto seja a última coisa que vês antes de morreres ― disse.


Tulippa ficou como que fascinado pela cicatriz, que tinha um tom de púrpura como nunca vira. E antes que percebesse o que estava a acontecer, Astorre arrancou-lhe o estilete da mão com um pontapé, agarrou-o por um ombro, fê-lo rodopiar, cravou-lhe um joelho nas costas e, com uma chave precisa, partiu-lhe o pescoço. O estalido foi claramente audível. Sem fazer uma pausa para olhar para a sua vítima, Astorre apanhou o medalhão, voltou a pô-lo no seu lugar e saiu do edificio.


Cinco minutos mais tarde, vários carros cheios de homens do FBI pararam diante da Viola Macaroni Company. Aspinella Washington, ainda viva, foi levada para a unidade de cuidados intensivos do hospital mais próximo.


Quando os agentes do FBI completaram o exame da fita de vídeo sem som que Monza lhes proporcionou, chegaram à conclusão de que Astorre, que largara a sua faca e erguera os braços, tinha agido em legítima defesa.

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