AS CRÔNICAS DE GELO
E FOGO
LIVRO UM
A GUERRA DOS TRONOS
Tradução
Jorge Candeias
2010
LeYa
Prólogo
- Deveríamos regressar - insistiu Gared quando os bosques
começaram a escurecer ao redor do grupo. - Os selvagens estão
mortos.
- Os mortos o assustam? - perguntou Sor Waymar Royce com não
mais do que uma sugestão de sorriso no rosto.
Gared não mordeu a isca. Era um homem velho, com mais de
cinquenta anos, e vira os nobres chegar e partir.
- Um morto é um morto - respondeu. - Nada temos a tratar com os
mortos.
- Mas estão mortos? - perguntou Royce com suavidade. - Que prova
temos disso?
- Will os viu - disse Gared. - Se ele diz que estão mortos, é prova
suficiente para mim.
Will já sabia que o arrastariam para a disputa mais cedo ou mais
tarde. Desejou que tivesse sido mais tarde.
- Minha mãe disse-me que os mortos não cantam - contou Will.
- Minha ama de leite disse a mesma coisa, Will - respondeu Royce. -
Nunca acredite em nada do que ouvir junto à mama de uma mulher.
Há coisas a aprender mesmo com os mortos - sua voz gerou ecos,
alta demais na penumbra da floresta.
- Temos perante nós uma longa cavalgada - salientou Gared. - Oito
dias, talvez nove. E a noite está para cair.
Sor Waymar Royce olhou o céu de relance, com desinteresse.
- Isso acontece todos os dias por esta hora. Você perde a virilidade
com o escuro, Gared?
Will via o aperto em torno da boca de Gared, a ira só a custo
reprimida nos olhos que espreitavam sob o espesso capuz negro de
seu manto. Ele passara quarenta anos na Patrulha da Noite, em
homem e em rapaz, e não estava acostumado a ser desvalorizado.
Mas era mais do que isso. Will conseguia detectar no homem mais
velho algo mais sob o orgulho ferido. Era possível sentir-lhe o gosto:
uma tensão nervosa que se aproximava perigosamente do medo.
Will partilhava o desconforto do outro homem. Estava havia quatro
anos na Muralha. Da primeira vez que fora enviado para lá, todas as
velhas histórias lhe tinham acorrido ao cérebro, e suas entranhas se
tinham feito em água. Era agora um veterano de cem patrulhas, e a
escura e infinita terra selvagem a que os sulistas chamavam floresta
assombrada já não tinha terrores para si.
Até aquela noite. Algo era diferente então. Havia naquela escuridão
algo de cortante que lhe fazia eriçar os pelos da nuca. Cavalgavam
havia nove dias, para norte e noroeste, e depois de novo para norte,
cada vez para mais longe da Muralha, seguindo sem desvios a trilha
de um bando de salteadores selvagens. Cada dia fora pior que o
anterior. Aquele tinha sido o pior de todos. Um vento frio soprava do
norte e fazia as árvores sussurrarem como coisas vivas. Durante todo
o dia
Will tivera uma sensação que era como se alguma coisa o estivesse
observando, algo frio e implacável que não gostava dele. Gared
também sentira. Will nada desejava com tanta força como cavalgar a
toda pressa de volta à segurança da Muralha, mas este não era um
sentimento que se pudesse partilhar com um comandante.
Especialmente com um comandante como aquele.
Sor Waymar Royce era o filho mais novo de uma Casa antiga com
demasiados herdeiros. Era um jovem bem-apessoado de dezoito anos,
de olhos cinzentos, elegante e esbelto como uma faca. Montando em
seu enorme corcel de batalha negro, o cavaleiro elevava-se bem
acima de Will e Gared, montados nos seus garranos de menores
dimensões. Trajava botas negras de couro, calças negras de lã, luvas
negras de pele de toupeira e uma cintilante cota de malha negra e
flexível por cima de várias camadas de lã negra e couro fervido. Sor
Waymar era um Irmão Juramentado da Patrulha da Noite havia
menos de meio ano, mas ninguém poderia dizer que não se
preparara para a sua vocação. Pelo menos no que dizia respeito ao
guarda-roupa.
O manto constituía a consumação da sua glória; zibelina, espessa e
negra, suave como pele. "Aposto que foi ele próprio quem as matou
todas, ah, pois aposto", dissera Gared na caserna, entre os vapores do
vinho, “torceu-lhes as cabecinhas e arrancou-as, o nosso poderoso
guerreiro". A gargalhada fora partilhada por todos.
"É difícil aceitar ordens de um homem de quem nos rimos de copo
na mão", refletiu Will, sentado, tremendo, sobre o dorso do garrano,
Gared devia sentir o mesmo.
- Mormont nos disse para os encontrarmos, e encontramos - disse
Gared. - Estão mortos. Não voltarão a nos causar problemas, Temos
uma dura cavalgada à nossa frente. Não gosto deste tempo. Se nevar,
poderemos levar uma quinzena para regressar, e a neve é o melhor
que podemos esperar. Alguma vez viu uma tempestade de gelo,
senhor?
O nobre pareceu não ouvi-lo. Estudava o crepúsculo, o que
aprofundava aquele seu modo meio aborrecido e meio distraído. Will
já cavalgava com o cavaleiro havia tempo suficiente para
compreender que era melhor não o interromper quando tinha aquela
expressão.
- Diga-me de novo o que viu, Will. Todos os detalhes. Não deixe nada
de fora,
Will fora um caçador antes de se juntar à Patrulha da Noite. Bem, na
verdade fora um caçador furtivo. Os cavaleiros livres de Mallister
tinham-no apanhado com a boca na botija nos bosques do próprio
Mallister, esfolando um dos seus gamos, e apenas pudera escolher
entre passar a vestir-se de negro e perder uma mão. Ninguém era
capaz de se mover pela floresta tão silenciosamente como Will, e os
irmãos negros não tinham demorado muito tempo para descobrir
seu talento.
- O acampamento fica duas milhas mais à frente, para lá daquela
cumeada, ao lado de um córrego - disse Will. - Cheguei o mais perto
que me atrevi. Eles são oito, com homens e mulheres. Não vi
crianças. Ergueram um abrigo contra a rocha. A neve já o cobriu
bem, mas mesmo assim consegui descortiná-lo. Não vi nenhum fogo
ardendo, mas a cova da fogueira ainda estava clara como o dia.
Ninguém se movia. Observei durante muito tempo. Nunca um
homem vivo ficou tão quieto.
- Viu algum sangue?
- Bem, não - admitiu Will.
- Viu armas?
- Algumas espadas, uns quantos arcos. Um homem tinha um
machado. Com ar de ser pesado, duas lâminas, um cruel bocado de
ferro. Estava no chão à seu lado, junto à sua mão.
- Prestou atenção à posição dos corpos?
Will encolheu os ombros.
- Um par deles está sentado junto ao rochedo. A maioria está no
chão. Como caídos.
- Ou dormindo - sugeriu Royce.
- Caídos - insistiu Will. - Há uma mulher numa árvore de pau-ferro,
meio escondida entre os ramos. Uma olhos-longos - ele deu um
tênue sorriso. - Assegurei-me de que não me conseguiria ver.
Quando me aproximei, vi que ela também não se movia - e sacudiu-
se por um estremecimento involuntário.
- Está enregelado? - perguntou Royce.
- Um pouco - murmurou Will. - É o vento, senhor.
O jovem cavaleiro virou-se para seu grisalho homem de armas.
Folhas pesadas de geada suspiravam ao passar por eles, e o corcel de
batalha movia-se de forma inquieta.
- Que lhe parece que possa ter matado aqueles homens, Gared? -
perguntou Sor Waymar com ar casual, ajustando a posição do longo
manto de zibelina.
- Foi o frio - disse Gared com uma certeza férrea. - Vi homens
congelar no inverno passado e no outro antes desse, quando eu era
pequeno. Toda a gente fala de neve com doze metros de
profundidade, e do modo como o vento de gelo chega do norte
uivando, mas o verdadeiro inimigo é o frio. Aproxima-se em silêncio,
mais furtivo do que o Will. A princípio estremece-se e os dentes
batem, e bate-se com os pés no chão e sonha-se com vinho aquecido
e boas e quentes fogueiras. Ele queima, ah, como queima. Nada
queima como o frio. Mas só durante algum tempo. Então, penetra no
corpo e começa a enchê-lo, e passado algum tempo já não se tem
força suficiente para combatê-lo. E mais fácil limitarmo-nos a nos
sentar ou a adormecer. Dizem que não se sente dor alguma perto do
fim. Primeiro, fica-se fraco e sonolento, e tudo começa a se des-
vanecer, e depois é como afundar num mar de leite morno. Como
que pacífico.
- Quanta eloquência, Gared - observou Sor Waymar. - Nunca
suspeitei que a tivesse dentro de si.
- Também tive o frio dentro de mim, nobre - Gared puxou para trás
o capuz, oferecendo a Sor Waymar um longo olhar sobre os cotos
onde as orelhas tinham estado. - Duas orelhas, três dedos dos pés e o
mindinho da mão esquerda. Tive sorte. Encontramos meu irmão
congelado no seu posto de vigia com um sorriso no rosto.
Sor Waymar encolheu os ombros.
- Deveria vestir coisas mais quentes, Gared.
Gared lançou ao nobre um olhar feroz, e as cicatrizes em redor das
suas orelhas ficaram vermelhas de fúria nos locais onde o Meistre
Aemon as cortara.
- Veremos quão quente poderá se vestir quando chegar o inverno -
puxou o capuz para cima e arqueou as costas sobre o garrano,
silencioso e carrancudo.
- Se Gared diz que foi o frio... - começou Will.
- Você fez alguma vigia nesta última semana, Will?
- Sim, senhor - nunca havia uma semana em que ele não fizesse uma
maldita dúzia de vigias. Aonde o homem queria chegar?
- E em que estado encontrou a Muralha?
- Úmida - Will respondeu, franzindo a sobrancelha. Agora que o
nobre o fizera notar, via os fatos com clareza. - Eles não podem ter
congelado. Se a Muralha está úmida, não podem. O frio não é
suficiente.
Royce anuiu.
- Rapaz esperto. Tivemos alguns frios ligeiros na semana passada, e
uma queda de neve rápida de vez em quando, mas com certeza não
houve nenhum frio suficientemente forte para matar oito homens
adultos. Homens vestidos de peles e couro, relembro, com um abrigo
ali à mão e meios para fazer fogo - o sorriso do cavaleiro ressumava
confiança. - Will, leve-nos lá. Quero ver esses mortos com meus
próprios olhos.
E a partir desse momento nada mais havia a fazer. A ordem fora
dada, e a honra os obrigava a obedecer.
Will seguiu à frente, com o pequeno garrano felpudo escolhendo com
cuidado o caminho por entre a vegetação rasteira. Uma neve ligeira
caíra na noite anterior, e havia pedras, raízes e covas escondidas por
baixo da sua crosta, à espreita dos descuidados e dos imprudentes.
Sor Waymar Royce vinha logo atrás, com o grande corcel negro de
batalha resfolegando de impaciência. Aquele cavalo era a montaria
errada para uma patrulha, mas tentem dizer isto ao nobre. Gared
fechava a retaguarda. O velho soldado resmungava para si próprio
enquanto avançava.
O crepúsculo aprofundava-se. O céu sem nuvens tomou um
profundo tom de púrpura, a cor de uma velha nódoa negra, e depois
se dissolveu em negro. As estrelas começaram a surgir. Uma meia-lua
se ergueu. Will estava grato pela luz.
- Podemos decerto avançar mais depressa do que isto - disse Royce
depois de a lua se erguer por completo.
- Com este cavalo, não - respondeu Will. O medo tornara-o insolente.
- Talvez meu senhor deseje tomar a dianteira?
Sor Waymar Royce não se dignou a responder. Em algum lugar nos
bosques um lobo uivou.
Will levou o garrano para baixo de uma velha e nodosa árvore de
pau-ferro e desmontou.
- Por que parou? - perguntou Sor Waymar.
- É melhor ir o resto do caminho a pé, senhor. O lugar é logo depois
daquela colina.
Royce fez uma pausa momentânea, de olhos presos na distância e o
rosto pensativo. Um vento frio sussurrou por entre as árvores. O
grande manto de zibelina agitou-se nas costas como uma coisa
semiviva.
- Há qualquer coisa de errado aqui - murmurou Gared.
O jovem cavaleiro dedicou-lhe um sorriso desdenhoso.
- Aí há?
- Não o sentiu? - perguntou Gared. - Escute a escuridão.
Will sentia. Em quatro anos na Patrulha da Noite, nunca estivera tão
temeroso. O que era aquilo?
- Vento. Ruído de árvores. Um lobo. Que som te apavora tanto,
Gared? - como Gared não respondeu, Royce deslizou graciosamente
da sela. Atou com segurança o corcel de batalha a uma ramada baixa,
bem afastado dos outros cavalos, e retirou a espada da bainha. Jóias
cintilaram no punho e o luar percorreu o aço brilhante. Era uma
arma magnífica, forjada num castelo e, segundo aparentava, novinha
em folha. Will duvidava que tivesse sido alguma vez brandida em
fúria.
- O arvoredo é espesso por aqui - preveniu Will. - Essa espada o
atrapalhará, senhor. Uma faca é melhor.
- Se precisar de instruções, eu as pedirei - disse o jovem senhor. -
Gared, fique aqui. Guarde os cavalos.
Gared desmontou.
- Precisamos de uma fogueira. Tratarei disso.
- Quanta tolice tem nessa cabeça, velhote? Se houver inimigos nesta
floresta, uma fogueira é a última coisa que queremos.
- Há alguns inimigos que uma fogueira manterá afastados - disse
Gared. - Ursos, lobos gigantes e.. e outras coisas...
A boca de Sor Waymar transformou-se numa linha dura.
- Não haverá fogo.
O capuz de Gared engolia-lhe o rosto, mas Will conseguia ver a
cintilação dura nos olhos que se fixavam no cavaleiro. Por um
momento, temeu que o homem mais velho puxasse a espada. Era
uma coisa curta e feia, com o punho desbotado pelo suor e o gume
denteado pelo muito uso, mas Will não daria um pendão de ferro
pela vida do nobre se Gared a desembainhasse.
Por fim, Gared olhou para baixo.
- Não haverá fogo - murmurou de forma quase inaudível. Royce
tomou aquilo como aquiescência e virou-se.
- Indique o caminho - disse a Will.
Will teceu um rumo através de um matagal, depois subiu o declive
da colina baixa onde encontrara seu ponto de vigia, por baixo de
uma árvore sentinela. Sob a fina crosta de neve o solo estava úmido
e lamacento, escorregadio, com rochas e raízes escondidas, prontas
para provocar tropeços.
Will não fez nenhum som enquanto subia. Atrás de si ouvia o suave
roçar metálico da cota de malha do nobre, o restolhar de folhas e
pragas murmuradas quando ramos espetados se agarravam à espada
e puxavam o magnífico manto de zibelina do outro homem.
A grande árvore estava mesmo no topo da colina onde Will sabia que
estaria, com os ramos inferiores não mais que trinta centímetros
acima do solo. Will deslizou por baixo, com a barriga apoiada na
neve e na lama, e olhou a clareira vazia mais abaixo.
O coração parou no seu peito. Por um momento não se atreveu a
respirar. O luar brilhava sobre a clareira, sobre as cinzas na cova da
fogueira, sobre o abrigo coberto de neve, sobre o grande rochedo,
sobre o pequeno riacho meio congelado. Tudo estava como estivera
algumas horas antes.
Eles não estavam lá. Todos os corpos tinham desaparecido.
- Deuses! - ouviu alguém dizer atrás de si. Uma espada golpeou um
ramo quando Sor Waymar Royce atingiu o topo da colina. Ficou em
pé ao lado da árvore, de espada na mão, com o manto a ondular nas
costas, soprado pelo vento que se levantava, nobremente delineado
contra as estrelas para que todos o vissem.
- Abaixem-se! - segredou Will com urgência. - Há algo de errado.
Royce não se moveu. Olhou para a clareira vazia e deu risada.
- Parece que seus mortos levantaram acampamento, Will.
A voz de Will o abandonou. Procurou palavras que não vieram. Não
era possível. Seus olhos percorreram para a frente e para trás o
acampamento abandonado e pararam no machado. Um enorme
machado de batalha de duas lâminas, ainda caído onde o vira pela
última vez, intocado. Uma arma valiosa...
- De pé, Will - ordenou Sor Waymar. - Não há ninguém aqui. Não
quero vê-lo escondido por baixo de um arbusto.
Relutante, Will obedeceu.
Sor Waymar olhou-o com aberta desaprovação:
- Não vou regressar a Castelo Negro com um fracasso na minha
primeira patrulha. Vamos encontrar aqueles homens - olhou de
relance em volta. - Suba na árvore. Seja rápido. Procure uma
fogueira.
Will virou-se, sem palavras. Não valia a pena argumentar. O vento
movia-se. Trespassava-o. Dirigiu-se para a árvore, uma sentinela
abobadada cinzenta esverdeada, e começou a subir. Em breve tinha
as mãos pegajosas de seiva e estava perdido entre as agulhas. O
medo enchia-lhe o estômago como uma refeição que fosse incapaz de
digerir. Murmurou uma prece aos deuses sem nome da floresta e
libertou o punhal da bainha. Colocou-o entre os dentes para manter
as mãos livres para a escalada. O sabor do ferro frio na boca o
confortou.
Embaixo, o nobre de repente gritou:
- Quem vem lá?
Will ouviu incerteza na chamada. Parou de escalar; escutou;
observou. Os bosques deram resposta: um restolhar de folhas, o
correr gelado do riacho, o pio distante de uma coruja das neves.
Os Outros não faziam som algum.
Will viu movimento com o canto do olho. Sombras pálidas que
deslizavam pela floresta. Virou a cabeça, viu de relance uma sombra
branca na escuridão. Logo depois ela desapareceu. Ramos agitaram-se
gentilmente ao vento, coçando-se uns aos outros com dedos de
madeira. Will abriu a boca para gritar um aviso, mas as palavras
pareceram congelar na garganta. Talvez estivesse errado. Talvez
tivesse sido apenas uma ave, um reflexo na neve, um truque
qualquer do luar. Afinal, o que vira?
- Will, onde está? - chamou Sor Waymar. - Vê alguma coisa? - o
homem descrevia um círculo lento, de súbito cauteloso, de espada na
mão. Deve tê-los pressentido, tal como Will os pressentia. Nada havia
para ver. - Responda! Por que está tão frio?
E estava frio. Tremendo, Will agarrou-se com mais força ao seu
poleiro. Apertou o rosto com força contra o tronco da árvore. Sentia
a seiva doce e pegajosa na bochecha.
Uma sombra emergiu da escuridão da floresta. Parou na frente de
Royce. Era alta, descarnada e dura como ossos velhos, com uma
carne pálida como leite. Sua armadura parecia mudar de cor quando
se movia; aqui era tão branca como neve recém-caída, ali, negra
como uma sombra, por todo o lado sarapintada com o profundo
cinzento esverdeado das árvores. Os padrões corriam como o luar na
água a cada passo que dava.
Will ouviu a exalação sair de Sor Waymar Royce num longo silvo.
- Não avance mais - preveniu o nobre. A voz estava quebrada como a
de um rapaz. Atirou o longo manto de zibelina para trás por sobre
os ombros, a fim de libertar os braços para a batalha, e pegou na
espada com ambas as mãos. O vento parara. Estava muito frio.
O Outro deslizou para a frente sobre pés silenciosos. Na mão trazia
uma espada que não era como nada que Will tivesse visto. Nenhum
metal humano tinha entrado na forja daquela lâmina. Estava viva de
luar, translúcida, um fragmento de cristal tão fino que parecia quase
desaparecer quando visto de frente. Havia naquela coisa uma tênue
cintilação azul, uma luz fantasmagórica que brincava com os seus
limites, e de algum modo Will soube que era mais afiada do que
qualquer navalha.
Sor Waymar enfrentou o inimigo com bravura.
- Neste caso, dance comigo.
Ergueu a espada bem alto acima da cabeça, desafiador. As mãos
tremiam com o peso da arma, ou talvez devido ao frio. Mas naquele
momento, pensou Will, já não era um rapaz, e sim um homem da
Patrulha da Noite. O Outro parou. Will viu seus olhos, azuis, mais
profundos e mais azuis do que quaisquer olhos humanos, de um azul
que queimava como gelo. Will fixou-se na espada que estremecia,
erguida, e observou o luar que corria, frio, ao longo do metal.
Durante um segundo, atreveu-se a ter esperança.
Emergiram em silêncio, das sombras, gêmeos do primeiro. Três..
quatro.. cinco... Sor Waymar talvez tivesse sentido o frio que vinha
com eles, mas não chegou a vê-los, não chegou a ouvi-los. Will tinha
de chamá-lo. Era seu dever. E sua morte, se o fizesse. Estremeceu,
abraçou a árvore e manteve o silêncio.
A espada clara veio pelo ar, tremendo.
Sor Waymar parou-a com o aço. Quando as lâminas se encontraram,
não se ouviu nenhum ressoar de metal com metal, apenas um som
agudo e fino, no limiar da audição, como um animal a guinchar de
dor. Royce deteve um segundo golpe, e um terceiro, e depois recuou
um passo. Outra chuva de golpes, e recuou outra vez.
Atrás dele, para a direita, para a esquerda, em seu redor, os
observadores mantinham-se em pé, pacientes, sem rosto, silenciosos,
com os padrões mutáveis de suas delicadas armaduras a torná-los
quase invisíveis na floresta. Mas não faziam um gesto para intervir.
Uma vez e outra, as espadas encontraram-se, até Will querer tapar os
ouvidos, protegendo-os do estranho e angustiado lamento de seus
choques. Sor Waymar já arquejava por causa do esforço, e a
respiração gerava nuvens ao luar. Sua lâmina estava branca de gelo; a
do Outro dançava com uma pálida luz azul.
Então, a parada de Royce chegou um momento tarde demais. A
espada cristalina trespassou a cota de malha por baixo de seu braço.
O jovem senhor gritou de dor. Surgiu sangue por entre os aros,
correu ao frio, e as gotas pareciam vermelhas como fogo onde
tocavam a neve. Os dedos de Sor Waymar esfregaram o flanco. Sua
luva de pele de toupeira veio empapada de vermelho.
O Outro disse qualquer coisa numa língua que Will não conhecia;
sua voz era como o quebrar do gelo num lago de inverno, e as
palavras, escarnecedoras.
Sor Waymar Royce encontrou sua fúria.
- Por Robert! - gritou, e atacou, rosnando, erguendo com ambas as
mãos a espada coberta de gelo e brandindo-a num golpe lateral
paralelo ao chão, carregado com todo seu peso. A parada do Outro
foi quase displicente.
Quando as lâminas se tocaram, o aço despedaçou-se.
Um grito ecoou pela noite da floresta, e a espada quebrou-se numa
centena de pedaços quebradiços, espalhando os estilhaços como uma
chuva de agulhas. Royce caiu de joelhos, guinchando, e cobriu os
olhos. Sangue jorrou-lhe por entre os dedos.
Os observadores aproximaram-se uns dos outros, como que em
resposta a um sinal. Espadas ergueram-se e caíram, tudo num
silêncio mortal.
Era um assassinato frio. As lâminas pálidas atravessaram a cota de
malha como se fosse seda. Will fechou os olhos. Muito abaixo, ouviu
as vozes e os risos, aguçados como pingentes.
Quando reuniu coragem para voltar a olhar, um longo tempo se
passara, e a colina lá embaixo estava vazia.
Ficou na árvore, quase sem se atrever a respirar, enquanto a lua foi
rastejando lentamente pelo céu negro. Por fim, com os músculos
cheios de cãibras e os dedos dormentes de frio, desceu.
O corpo de Royce jazia na neve de barriga para baixo, com um braço
aberto. O espesso manto de zibelina tinha sido cortado numa dúzia
de lugares. Jazendo assim morto, via-se como era novo. Um rapaz.
Will encontrou o que restava da espada a alguns pés de distância,
com a extremidade estilhaçada e retorcida, como uma árvore atingida
por um relâmpago. Ajoelhou-se, olhou em volta com cautela e a
apanhou. A espada quebrada seria sua prova. Gared saberia
compreendê-la, e, se não soubesse, então haveria o velho urso do
Mormont ou o Meistre Aemon. Estaria Gared ainda à espera com os
cavalos? Tinha de se apressar.
Will endireitou-se. Sor Waymar Royce erguia-se sobre ele.
Suas belas roupas eram farrapos, o rosto, uma ruína. Um estilhaço
da espada trespassara a pupila branca e cega do olho esquerdo.
O olho direito estava aberto. A pupila queimava, azul. Via.
A espada quebrada caiu de dedos despidos de força. Will fechou os
olhos para rezar. Mãos longas e elegantes roçaram na sua bochecha e
depois se fecharam em volta de sua garganta. Estavam enluvadas na
mais fina pele de toupeira e pegajosas de sangue, mas seu toque era
frio como gelo.
Bran
A manhã chegara límpida e fria, com uma aspereza que sugeria o fim
do verão. Partiram ao nascer do dia para ir ver a decapitação de um
homem, vinte ao todo, e Bran cavalgava com os outros, nervoso e
excitado. Fora a primeira vez que se considerara que ele tinha idade
suficiente para ir com o senhor seu pai e os irmãos ver fazer-se a
justiça do rei. Era o nono ano de verão, e o sétimo da vida de Bran.
O homem tinha sido capturado no exterior de um pequeno povoado
nos montes. Robb pensava que se tratava de um selvagem, com a
espada a serviço de Mance Rayder, o Rei-para-lá-da-Muralha. Pensar
nisso fazia a pele de Bran formigar. Lembrava-se das histórias que a
Velha Ama lhes contava à lareira. Os selvagens eram homens cruéis,
dizia, escravagistas, assassinos e ladrões. Faziam amizade com
gigantes e vampiros, raptavam meninas pela calada da noite e
bebiam sangue por cornos polidos. E suas mulheres deitavam-se com
os Outros durante a Longa Noite e geravam terríveis crianças meio
humanas.
Mas o homem que encontraram amarrado pelos pés e mãos ao muro
do povoado, à espera da justiça real, era velho e descarnado, não
muito mais alto do que Robb. Perdera ambas as orelhas e um dedo,
queimados pelo frio, e vestia-se todo de negro como um irmão da
Patrulha da Noite, não estivessem as peles esfarrapadas e besuntadas
de gordura.
As respirações de homens e cavalos misturavam-se em nuvens de
vapor no ar frio da manhã quando o senhor seu pai ordenou que
cortassem as cordas que prendiam o homem ao muro e o
arrastassem até junto do grupo. Robb e Jon sentavam-se, altos e
imóveis sobre os cavalos, com Bran entre eles, no seu pônei,
tentando parecer ter mais do que os seus sete anos, e fingindo que já
assistira antes a tudo aquilo. Um vento tênue soprava através do
portão do povoado. Sobre suas cabeças agitava-se o estandarte dos
Stark de Winterfell: um lobo gigante cinzento correndo por um
campo branco de gelo.
O pai de Bran sentava-se solenemente sobre o cavalo, com longos
cabelos castanhos a ondular ao vento. A barba bem aparada estava
salpicada de branco, fazendo-o parecer mais velho do que os seus
trinta e cinco anos. Hoje tinha uma sombra severa sobre os olhos
cinzentos, e parecia bem diferente do homem que se sentava em
frente ao fogo, à noite, e falava suavemente da era dos heróis e das
crianças da floresta. Tirara a cara de pai, pensou Bran, e colocara a
de Lorde Stark de Winterfell.
Houve questões que foram postas e suas respostas dadas ali, ao frio
da manhã, mas, mais tarde, Bran não recordaria muito do que fora
dito. Por fim, o senhor seu pai deu uma ordem, e dois dos seus
guardas arrastaram o homem esfarrapado até o toco de pau-ferro no
centro da praça. Empurraram-lhe a cabeça à força contra a madeira
dura e negra. Lorde Eddard Stark desmontou, e seu protegido, Theon
Greyjoy, apresentou-lhe a espada. Chamavam Gelo àquela espada. Era
larga como uma mão de homem e mais alta ainda do que Robb. A
lâmina era de aço valiriano, forjado com feitiços e escuro como fumo.
Nada mantinha o fio como o aço valiriano.
O pai de Bran descalçou as luvas e as entregou a Jory Cassei, o
capitão da guarda de sua casa. Pegou Gelo com ambas as mãos e
disse:
- Em nome de Robert da Casa Baratheon, o Primeiro do seu Nome,
rei dos Ândalos e dos Roinares e dos Primeiros Homens, Senhor dos
Sete Reinos e Protetor do Domínio, pela voz de Eddard da Casa
Stark, Senhor de Winterfell e Guardião do Norte, condeno-o à morte
-e ergueu a espada bem alto sobre a cabeça.
O irmão bastardo de Bran, Jon Snow, aproximou-se.
- Mantenha rédea curta sobre o pônei - sussurrou. - E não afaste os
olhos. O pai saberá se assim fizer.
Bran manteve rédea curta sobre o pônei e não afastou os olhos.
Seu pai cortou a cabeça do homem com um único golpe, dado com
segurança. O sangue borrifou a neve, tão vermelho como vinho de
verão,
Um dos cavalos empinou-se e teve de ser segurado para que não
fugisse. Bran não conseguia tirar os olhos do sangue. A neve que
rodeava o poste bebia-o com sofreguidão, ficando cada vez mais
vermelha enquanto ele observava.
A cabeça bateu numa raiz grossa e rolou. Parou perto dos pés de
Greyjoy. Theon era um jovem esguio e escuro de dezenove anos que
achava tudo divertido. Soltou uma gargalhada, pôs a bota sobre a
cabeça e deu-lhe um pontapé.
- Cretino - resmungou Jon, suficientemente baixo para que Greyjoy
não ouvisse. Pôs uma mão no ombro de Bran, que olhava o irmão
bastardo. - Esteve bem - disse-lhe Jon solenemente. Jon tinha catorze
anos, já era experiente na justiça.
O tempo parecia mais frio durante a longa viagem de regresso a
Winterfell, embora o vento tivesse caído e o sol estivesse mais alto
no céu. Bran cavalgava junto aos irmãos, bem adiantados em relação
ao resto dos cavaleiros, com o pônei esforçando-se ao máximo para
acompanhar o ritmo dos outros cavalos.
- O desertor morreu com bravura - disse Robb. Era grande e largo e
crescia dia a dia, com as cores da mãe, a pele clara, os cabelos
vermelho-acastanhados e os olhos azuis dos Tully de Correrrio. -
Tinha coragem, pelo menos.
- Não - disse Jon Snow calmamente. - Não era coragem. Este estava
morto de medo. Podia--se ver em seus olhos, Stark - os de Jon eram
de um cinzento tão escuro que pareciam quase negros, mas pouco
havia que não vissem. Tinha a mesma idade que Robb, mas os dois
não eram parecidos. Jon era esguio e escuro, enquanto Robb era
musculoso e claro; este era gracioso e ligeiro; seu meio-irmão, forte e
rápido.
Robb não estava impressionado.
- Que os Outros levem seus olhos - praguejou. - Ele morreu bem.
Fazemos uma corrida até a ponte?
- Fazemos - disse Jon, impulsionando o cavalo em frente. Robb
praguejou e seguiu-o, e galoparam pela trilha afora, com Robb aos
gritos e assobios, e Jon silencioso e concentrado. Os cascos dos
cavalos levantavam nuvens de neve por onde passavam.
Bran não tentou segui-los. Seu pônei não era capaz de acompanhá-
los. Vira os olhos do homem esfarrapado, e estava agora pensando
neles. Após algum tempo, o som das gargalhadas de Robb atenuou-se
e os bosques ficaram silenciosos novamente.
Estava tão embrenhado nos seus pensamentos que não ouviu o resto
do grupo, até que seu pai pôs o cavalo a par com sua montaria.
- Está bem, Bran? - perguntou, não sem simpatia.
- Sim, pai - disse Bran. Olhou para cima. Envolto em peles e couros,
montado no grande cavalo de guerra, o senhor seu pai pairava acima
de si como um gigante. - Robb diz que o homem morreu
bravamente, mas Jon disse que ele tinha medo.
- E o que pensa você? - perguntou-lhe o pai.
Bran refletiu sobre o assunto.
- Pode um homem continuar a ser valente se tiver medo?
- Esta é a única maneira de um homem ser valente - seu pai
respondeu. - Compreende por que o fiz?
- Ele era um selvagem - disse Bran. - Eles roubam mulheres e
vendem-nas aos Outros.
Seu pai sorriu.
- A Velha Ama tem andado outra vez a lhe contar histórias. Na
verdade, o homem era um insurreto, um desertor da Patrulha da
Noite. Ninguém pode ser mais perigoso. O desertor sabe que sua
vida está perdida se for capturado, e por isso não vacilará perante
nenhum crime, por mais vil que seja. Mas você não me compreendeu
bem. A pergunta não era sobre o motivo por que o homem tinha de
morrer, mas sim por que eu tive de fazê-lo.
Bran não tinha resposta para aquilo.
- O rei Robert tem um carrasco - respondeu, em tom incerto.
- Tem - admitiu o pai. - E os reis Targaryen também tiveram antes
dele. Mas o nosso costume é o mais antigo. O sangue dos Primeiros
Homens ainda corre nas veias dos Stark, e mantemos a crença de
que o homem que dita a sentença deve manejar a espada. Se tirar a
vida de um homem, deve olhá-lo nos olhos e ouvir suas últimas
palavras. E se não conseguir suportar fazê-lo, então talvez o homem
não mereça morrer. Um dia, Bran, será vassalo de Robb, mantendo
um domínio seu para o seu irmão e o seu rei, e a justiça caberá a
você. Quando esse dia chegar, não deve ter nenhum prazer na tarefa,
mas tampouco deverá desviar os olhos. Um governante que se
esconde atrás de executores pagos depressa se esquece do que é a
morte.
Foi então que Jon reapareceu sobre o cume da colina à frente do
grupo. Acenou e gritou-lhes:
- Pai, Bran, venham depressa ver o que Robb encontrou! - e depois
voltou a desaparecer. Jory pôs-se ao lado de Bran e do pai.
- Problemas, senhor?
- Sem nenhuma dúvida - disse o senhor seu pai. - Vamos, vamos ver
que velhacaria desenterraram agora os meus filhos - pôs o cavalo a
trote. Jory, Bran e o resto do grupo seguiram-no.
Encontraram Robb na margem do rio, ao norte da ponte, com Jon
ainda montado ao seu lado. As neves do fim do verão tinham sido
pesadas naquela volta da lua. Robb estava enterrado em branco até
os joelhos, com o capuz atirado para trás, e o sol brilhava nos seus
cabelos. Aconchegava alguma coisa no braço enquanto os rapazes
conversavam em vozes excitadas, mas baixas.
Os cavaleiros escolheram o caminho com cuidado através dos
detritos empilhados pelo rio, tateando em busca de apoio sólido no
terreno escondido e irregular. Jory Cassel e Theon Greyjoy foram os
primeiros a chegar perto dos rapazes. Greyjoy ria e gracejava
enquanto se aproximava. Bran ouviu o fôlego sair-lhe do peito.
- Deuses! - exclamou, lutando por manter o controle do cavalo
enquanto levava a mão à espada. A espada de Jory já estava na mão.
- Robb, afaste-se disso! - gritou, enquanto o cavalo empinava entre
suas pernas.
Robb sorriu e ergueu o olhar do volume que tinha nos braços.
- Ela não lhe pode fazer mal - disse. - Está morta, Jory.
Por aquela altura, Bran já ardia de curiosidade. Teria esporeado o
pônei para avançar mais depressa, mas o pai os fez desmontar junto
à ponte e aproximar-se a pé. Bran saltou do animal e correu.
Também Jon, Jory e Theon Greyjoy já tinham desmontado.
- O que, pelos sete infernos, é isso? - disse Greyjoy.
- Uma loba - disse Robb.
- Uma aberração - disse Greyjoy. - Olha o tamanho da coisa.
O coração de Bran martelava-lhe no peito enquanto abria caminho
através de uma pilha de detritos que lhe alcançava a cintura, até que
chegou ao lado do irmão.
Meio enterrada na neve manchada de sangue, uma forma enorme
atolava-se na morte. Em sua desgrenhada pelagem cinzenta formara-
se gelo, e um tênue cheiro de putrefação impregnava-a como
perfume de mulher. Bran viu de relance os olhos cegos repletos de
vermes, uma grande boca cheia de dentes amarelados, Mas foi o
tamanho da coisa que o fez ficar de boca aberta. Era maior que seu
pônei, com o dobro do tamanho do maior cão de caça do canil de
seu pai.
- Não é aberração nenhuma - disse Jon calmamente. - Isso é uma
loba gigante. Eles crescem mais do que os da outra espécie.
Theon Greyjoy disse:
- Não é visto nenhum lobo gigante ao sul da Muralha há duzentos
anos.
- Vejo um agora - respondeu Jon.
Bran desviou os olhos do monstro. Foi então que reparou no fardo
que estava nos braços de Robb. Soltou um grito de deleite e
aproximou-se. O filhote era uma minúscula bola de pelo cinza-
escuro, ainda com os olhos fechados. Batia cegamente com o focinho
contra o peito de Robb, procurando leite nos couros que o cobriam,
soltando um pequeno som lamentoso e triste, Bran estendeu uma
mão hesitante.
- Vá lá - disse-lhe Robb, - Pode tocá-lo,
Bran fez um afago rápido e nervoso no filhote e depois se virou
quando Jon disse:
- Ora, veja aqui - seu meio-irmão pôs um segundo filhote nos seus
braços. - Há cinco ao todo - Bran sentou-se na neve e abraçou a cria
de lobo, encostando-a ao rosto. O pelo do animal era suave e morno.
- Lobos gigantes à solta no reino depois de tantos anos - murmurou
Hullen, o mestre dos cavalos. - Não me agrada.
- É um sinal - disse Jory.
O pai franziu a sobrancelha.
- Isto é só um animal morto, Jory - disse, apesar de parecer
perturbado. A neve rangia sob seus pés enquanto passeava ao redor
do corpo. - Sabemos o que a matou?
- Há qualquer coisa na garganta - disse Robb, orgulhoso de ter
encontrado a resposta mesmo antes de o pai ter perguntado. - Ali,
por baixo da mandíbula.
O pai ajoelhou-se e tateou sob a cabeça do animal. Deu um puxão e
ergueu a coisa para que todos a vissem. Trinta centímetros de um
chifre estilhaçado de veado, com as pontas partidas, todo vermelho
de sangue. Um silêncio súbito caiu sobre o grupo. Os homens
olharam inquietos para o corno, mas ninguém se atreveu a falar.
Mesmo Bran pressentia seu medo, embora não compreendesse.
O pai atirou o chifre para o lado e limpou as mãos na neve.
- Surpreende-me que ela tenha vivido tempo suficiente para parir -
disse, e sua voz quebrou o encantamento.
- Talvez não tenha - disse Jory. - Ouvi histórias... talvez a loba já
estivesse morta quando os filhotes chegaram.
- Nascidos com os mortos - interveio outro homem. - Pior sorte.
- Não importa - disse Hullen. - Não tarda e estarão mortos também.
Bran soltou um grito inarticulado de desalento.
- Quanto mais depressa, melhor - concordou Theon Greyjoy e puxou
a espada. - Dê-me o animal, Bran.
A criaturinha enroscou-se nele, como se tivesse ouvido e
compreendido.
- Não! - gritou Bran ferozmente. - É meu.
- Guarda a espada, Greyjoy - disse Robb, que por um momento soou
tão autoritário como o pai, como o senhor que viria a ser um dia. -
Vamos ficar com esses filhotes.
- Não pode fazer isso, rapaz - disse Harwin, que era filho de Hullen.
- Será misericordioso matá-los - disse Hullen.
Bran olhou o senhor seu pai em busca de salvação, mas só recebeu
um franzir de cenho, uma testa cheia de sulcos.
- Hullen fala a verdade, filho. É melhor uma morte rápida do que
uma lenta, de frio e de fome.
- Não! - sentia que lágrimas lhe brotavam dos olhos e afastou-se. Não
queria chorar na frente do pai.
Robb resistia com teimosia.
- A cadela vermelha de Sor Rodrik pariu de novo na semana passada
- disse. - Foi uma ninhada pequena, só com dois cachorros vivos. Ela
terá leite suficiente.
- Ela os despedaçará quando tentarem mamar.
- Lorde Stark - disse Jon. Era estranho ouvi-lo chamar o pai assim, de
modo tão formal. Bran olhou-o com uma esperança desesperada. -
Há cinco crias. Três machos e duas fêmeas.
- E então, Jon?
- O senhor tem cinco filhos legítimos - disse Jon. - Três filhos e duas
filhas. O lobo gigante é o selo da vossa Casa. Os vossos filhos estão
destinados a ficar com essa ninhada, senhor.
Bran viu o rosto do pai mudar e os outros homens trocarem olhares.
Naquele momento, amou Jon de todo o coração. Mesmo com seus
sete anos, Bran compreendeu o que o irmão fizera. A conta estava
certa apenas porque Jon se omitira. Incluíra as moças e até Rickon, o
bebê, mas não o bastardo que usava o apelido Snow, o nome que,
pelo costume, devia ser dado a todos aqueles que, no Norte, eram
suficientemente infelizes para não possuir um nome seu.
O pai também o compreendera.
- Não quer uma cria para você, Jon? - perguntou brandamente.
- O lobo gigante honra os estandartes da Casa Stark - Jon retrucou. -
Eu não sou um Stark, pai.
O senhor seu pai o olhou, pensativo. Robb apressou-se a preencher o
silêncio que ele deixara.
- Cuidarei eu próprio dele, pai - prometeu. - Embeberei uma toalha
em leite morno e assim lhe darei de mamar.
- Eu também! - disse Bran num eco.
O senhor avaliou os filhos longa e cuidadosamente com os olhos.
- É fácil dizer, mas é difícil fazer. Não quero vê-los desperdiçando
com isto o tempo dos criados. Se querem esses filhotes, vocês os
alimentarão. Entendido?
Bran acenou com ardor. O animal contorceu-se nos seus braços e
lambeu-lhe o rosto com uma língua morna.
- Devem treiná-los também - disse-lhes o pai. - Devem ensiná-los. O
mestre do canil não vai querer ter nada a ver com esses monstros,
garanto a vocês. E que os deuses os protejam se negligenciarem,
maltratarem ou treinarem mal esses animais. Esses não são cães que
peçam festas ou se esquivem a um pontapé. Um lobo gigante é capaz
de arrancar o braço de um homem com tanta facilidade como um
cão mata uma ratazana. Têm certeza de que querem isto?
- Sim, pai - disse Bran.
- Sim - concordou Robb.
- Os filhotes podem morrer de qualquer modo, apesar de tudo o que
fizerem.
- Eles não morrerão - disse Robb. - Não deixaremos que morram.
- Fiquem então com eles, Jory, Desmond, recolham os demais. É
tempo de regressarmos a Winterfell.
Foi só depois de terem montado e de se terem posto a caminho que
Bran se permitiu saborear o doce ar da vitória. Nessa altura, seu
filhote estava aconchegado entre seus couros, quente contra seu
corpo, a salvo durante a longa viagem para casa. Bran perguntava-se
como haveria de chamá-lo.
No meio da ponte, Jon puxou subitamente as rédeas.
- Que se passa, Jon? - perguntou o senhor seu pai.
- O senhor não ouviu?
Bran ouvia o vento nas árvores, o ruído dos cascos nas tábuas de
pau-ferro, os lamentos da cria faminta, mas Jon escutava outra coisa.
- Ali - disse Jon. Fez o cavalo dar meia-volta e galopou pela ponte,
pelo caminho por onde viera. Viram-no desmontar onde a loba
gigante jazia morta na neve e ajoelhar-se. Um momento mais tarde,
cavalgava de regresso, sorrindo. - Deve ter se afastado dos outros -
ele disse.
- Ou sido afastado - disse o pai, olhando a sexta cria. A pelagem
desta era branca, enquanto a do resto da ninhada era cinzenta. Seus
olhos eram tão vermelhos como o sangue do homem esfarrapado que
morrera naquela manhã. Bran achou curioso que só aquele cachorro
tivesse aberto os olhos, enquanto os outros ainda estavam cegos.
- Um albino - disse Theon Greyjoy com um perverso divertimento. -
Este ainda vai morrer mais depressa do que os outros.
Jon Snow deitou sobre o protegido de seu pai um olhar longo e
gelado.
- Penso que não, Greyjoy - disse. - Este me pertence.
Catelyn
Catelyn nunca gostara daquele bosque sagrado.
Nascera entre os Tully, em Correrrio, mais ao Sul, nas margens do
Ramo Vermelho do Tridente. O bosque sagrado que lá havia era um
jardim, luminoso e arejado, onde grandes árvores de pau-brasil
espalhavam sombras sarapintadas por córregos que rumorejavam
entre as margens, aves cantavam em ninhos escondidos e o ar era
perfumado pelo odor de flores.
Os deuses de Winterfell mantinham um tipo diferente de bosque. Era
um lugar escuro e primordial, três acres de floresta antiga, intocada
ao longo de dez mil anos, enquanto o castelo se levantava a toda sua
volta. Cheirava a terra úmida e a decomposição. Ali não crescia o
pau-brasil. Aquele era um bosque de obstinadas árvores sentinelas,
revestidas de agulhas cinza-esverdeadas, de poderosos carvalhos, de
árvores de pau-ferro tão velhas como o próprio reino. Ali, espessos
troncos negros enroscavam-se uns aos outros, enquanto ramos
retorcidos teciam um denso dossel elevado e raízes deformadas
batalhavam sob o solo. Aquele era um lugar de profundo silêncio e
sombras meditativas, e os deuses que ali viviam não tinham nomes.
Mas ela sabia que naquela noite encontraria ali seu marido. Sempre
que ele tirava a vida de um homem, procurava depois o sossego do
bosque sagrado.
Catelyn fora ungida com os sete óleos e fora-lhe dado o nome no
arco-íris de luz que enchia o septo de Correrrio. Pertencia à Fé, tal
como o pai e o avô, e o pai deste antes dele. Seus deuses possuíam
nomes, e seus rostos eram-lhe tão familiares como os de seus pais. O
serviço religioso era um septão com um turíbulo, o cheiro do
incenso, um cristal de sete lados animado com luz, vozes erguidas
em canto. Os Tully mantinham um bosque sagrado, como todas as
grandes casas, mas era apenas um lugar para passear, ler ou ficar
deitado ao sol. A prece pertencia ao septo.
Por ela, Ned tinha construído um pequeno septo onde podia cantar
às sete caras de deus, mas o sangue dos Primeiros Homens ainda
corria nas veias dos Stark, e seus deuses eram os antigos, os deuses
sem nome nem rosto da mata verde que partilhavam com os filhos
desaparecidos da floresta.
No centro do bosque, um antigo represeiro reinava pensativo sobre
uma pequena lagoa onde as águas eram negras e frias. Ned chamava-
lhe "a árvore-coração". A casca do represeiro era branca como osso e
suas folhas, vermelhas como um milhar de mãos manchadas de
sangue. Uma cara tinha sido esculpida no tronco da grande árvore,
de traços compridos e melancólicos, com os olhos profundamente
escavados, vermelhos de seiva seca e estranhamente vigilantes.
Aqueles olhos eram velhos; mais velhos do que a própria Winterfell.
Se as lendas falavam a verdade, tinham visto Brandon, o Construtor,
assentar a primeira pedra; tinham visto as muralhas de granito do
castelo crescer à sua volta. Dizia-se que os filhos da floresta tinham
esculpido as caras nas árvores durante os séculos de alvorada, antes
da chegada dos Primeiros Homens, vindos do mar estreito.
No sul, os últimos represeiros tinham sido derrubados ou queimados
havia mil anos, exceto na Ilha das Caras, onde os homens verdes
mantinham sua vigilância silenciosa e as coisas eram diferentes. Aqui
cada castelo possuía seu bosque sagrado, e cada bosque sagrado
tinha sua árvore--coração, e cada árvore-coração, seu rosto.
Catelyn encontrou o marido sob o represeiro, sentado numa pedra
coberta de musgo. Tinha Gelo, a espada, pousada sobre as coxas, e
limpava-lhe a lâmina naquelas águas, negras como a noite. Mil anos
de húmus jaziam numa grossa camada no solo do bosque sagrado,
engolindo o som dos pés da mulher, mas os olhos vermelhos do
represeiro pareciam segui-la enquanto se aproximava.
- Ned - ela chamou, com suavidade. Ele ergueu a cabeça para olhá-la.
- Catelyn - disse. Sua voz era distante e formal. - Onde estão as
crianças? Ele sempre lhe perguntava aquilo.
- Na cozinha, discutindo nomes para as crias de lobo - ela estendeu o
manto sobre o chão da floresta e sentou-se junto à lagoa, de costas
voltadas para o represeiro. Podia sentir os olhos a observá-la, mas fez
o melhor que pôde para ignorá-los. - Arya já está apaixonada, e
Sansa, enfeitiçada e apiedada, mas Rickon não está muito seguro.
- Tem medo? - Ned perguntou.
- Um pouco - admitiu ela. - Só tem três anos. Ned franziu as
sobrancelhas.
- Ele tem de aprender a enfrentar seus medos. Não terá três anos
para sempre. E o inverno está para chegar.
- Sim - concordou Catelyn. As palavras provocaram-lhe um arrepio,
como sempre. As palavras Stark. Todas as casas nobres tinham as
suas palavras. Lemas de família, pedras de toque, espécies de orações,
que alardeavam honra e glória, prometiam lealdade e verdade,
juravam fé e coragem. Todas, menos a dos Stark. O inverno está para
chegar, diziam as palavras Stark. Refletiu sobre como aqueles
nortenhos eram um povo estranho, e já não era a primeira vez que o
fazia.
- O homem morreu bem, posso lhe assegurar - disse Ned. Tinha na
mão um bocado de couro oleado com o qual fazia percorrer com
leveza a espada enquanto falava, polindo o metal até soltar um brilho
escuro. - Fiquei contente por causa de Bran. Teria ficado orgulhosa
dele.
- Estou sempre orgulhosa de Bran - Catelyn respondeu, observando a
espada enquanto ele a esfregava. Conseguia ver as ondulações
profundas do aço, onde o metal fora dobrado sobre si próprio cem
vezes durante a forja. Catelyn não sentia qualquer amor por espadas,
mas não podia negar que Gelo possuía sua beleza. Tinha sido forjada
em Valíria antes de a destruição ter caído sobre a antiga cidade
franca, quando os ferreiros trabalhavam seus metais tanto com
feitiços como com martelos. Tinha já quatrocentos anos, e era tão
aguçada como no dia em que fora forjada. O nome que ostentava era
ainda mais antigo, um legado da era dos heróis, quando os Stark
eram reis no Norte.
- Foi o quarto este ano - disse Ned sombriamente. - O pobre homem
estava meio louco. Algo lhe incutiu um medo tão profundo que
minhas palavras não o alcançaram - suspirou. -Ben escreveu-me
dizendo que a força da Patrulha da Noite já não tem mil homens.
Não são só deserções. Tem também perdido homens nas patrulhas.
- São os selvagens? - ela perguntou.
- Quem mais poderia ser? - Ned ergueu Gelo e observou o aço frio
ao longo de todo seu comprimento. - E só vai piorar. Pode chegar o
dia em que eu não tenha escolha a não ser reunir os vassalos e
marchar para o norte a fim de lidar de uma vez por todas com esse
Rei-para-lá-da-Muralha.
- Para lá da Muralha? - a idéia fez Catelyn estremecer.
Ned viu o terror no seu rosto.
- Mance Rayder não é nada que devamos temer.
- Há coisas mais escuras para lá da Muralha - ela olhou de relance a
árvore-coração às suas costas, a casca clara e os olhos vermelhos,
observando, escutando, pensando seus longos e lentos pensamentos.
O sorriso dele era gentil.
- Você ouve em demasia as histórias da Velha Ama. Os Outros estão
tão mortos como os filhos da floresta, desaparecidos há oito mil
anos. Meistre Luwin lhe diria que nunca sequer chegaram a estar
vivos. Nenhum homem vivo alguma vez viu um.
- Até hoje de manhã, nenhum homem vivo tinha visto um lobo
gigante - recordou Catelyn.
- Já devia saber que não se pode discutir com uma Tully - ele disse
com um sorriso triste e devolveu Gelo à sua bainha. - Não veio até
aqui me contar histórias de embalar. Sei bem como gosta pouco
deste lugar. Que se passa, minha senhora?
Catelyn tomou nas suas a mão do marido.
- Hoje chegaram dolorosas novas, meu senhor. Não quis incomodá-lo
até se ter purificado - não havia maneira de suavizar o golpe, e ela o
disse sem rodeios. - Lamento tanto, meu amor. Jon Arryn está morto.
Os olhos dele encontraram os dela, e Catelyn viu como lhe custou,
como sabia que custaria. Na juventude, Ned tinha sido acolhido no
Ninho da Águia, e Lorde Arryn, que não tinha filhos seus, tinha se
tornado um segundo pai para ele e para o seu outro protegido,
Robert Baratheon. Quando o Rei Aerys n Targaryen, o Louco, exigira
suas cabeças, o Senhor do Ninho da Águia erguera em revolta os
seus estandartes da lua e do falcão em vez de entregar aqueles que
jurara proteger.
E um dia, há quinze anos, seu segundo pai tinha se transformado
também num irmão, quando ele e Ned se juntaram no septo de
Correrrio para desposar duas irmãs, as filhas de Lorde Hoster Tully,
-Jon.. - Ned disse. - Esta notícia é segura?
- Trazia o selo do rei, e a carta vinha escrita na caligrafia do próprio
Robert. Guardei-a para você. Diz que Lorde Arryn partiu depressa.
Nem Meistre Pycelle pôde fazer alguma coisa, mas trouxe o leite da
papoula, para que Jon não ficasse por muito tempo em sofrimento.
- Isto foi uma pequena misericórdia, suponho - ele disse. Catelyn via
o pesar em seu rosto, mas mesmo nesse momento seu primeiro
pensamento era-lhe dedicado. - A sua irmã - disse Ned. - E o filho de
Jon. Que notícias há deles?
- A mensagem dizia apenas que estavam bem e que tinham
regressado ao Ninho da Águia - ela respondeu. - Eu preferia que
tivessem ido para Correrrio. O Ninho da Águia é um lugar alto e
solitário, e sempre foi o lugar de Jon, não deles. A memória de Lorde
Jon assombrará cada pedra. Conheço minha irmã. Ela precisa do
conforto da família e dos amigos ao seu redor.
- Seu tio espera no Vale, não é verdade? Ouvi dizer que Jon o
nomeou Cavaleiro do Portão. Catelyn anuiu com a cabeça.
- Brynden fará por ela e pelo rapaz o que puder. E algum conforto,
mas mesmo assim..
- Vá ter com ela - Ned tentou animá-la. - Leva as crianças. Encha
aqueles salões de ruído, gritos e risos. Aquele rapaz precisa de outras
crianças a sua volta, e Lysa não deve ficar só na sua dor.
- Gostaria de poder fazer isso - disse Catelyn. - A carta trazia outras
notícias. O rei viaja para Winterfell à sua procura.
Ned precisou de um momento para ver o sentido daquelas palavras,
mas, quando as compreendeu, a escuridão abandonou seus olhos.
- Robert vem para cá? - quando ela anuiu, um sorriso abriu-se no
seu rosto.
Catelyn desejou poder compartilhar da alegria do marido. Mas ouvira
o que se dizia pelos pátios; um lobo gigante morto na neve, com um
chifre partido na garganta. O terror retorcia-se no seu interior como
uma serpente, mas forçou-se a sorrir para aquele homem que amava,
aquele homem que não punha fé alguma nos sinais.
- Sabia que te agradaria - disse. - Deveríamos enviar uma mensagem
ao seu irmão, na Muralha.
- Sim, claro - ele concordou. - Ben vai querer estar aqui. Direi a
Meistre Luwin para enviar sua ave mais rápida - Ned ergueu-se e
ajudou a esposa a pôr-se em pé. - Demônios, quantos anos já se
passaram? E não nos dá mais notícias do que estas? A mensagem
dizia quantos homens traz na comitiva?
- Penso que um cento de cavaleiros, pelo menos, com todos os seus
servidores, e vez e meia este número de cavaleiros livres. Cersei e as
crianças viajam com eles.
- Robert virá em passo moderado por causa delas - disse Ned. -
Ainda bem. Teremos mais tempo para nos preparar.
- Os irmãos da rainha também vêm na comitiva - ela completou.
Ao ouvir aquilo, Ned fez um trejeito. Catelyn sabia que pouca
simpatia havia entre ele e a família da rainha. Os Lannister de
Rochedo Casterly tinham chegado tarde à causa de Robert, quando a
vitória era praticamente certa, e ele nunca os perdoara por isso.
- Bem, se o preço a pagar pela companhia de Robert é uma
infestação de Lannister, que seja. Parece que Robert traz metade da
corte.
- Aonde o rei vai, o reino segue - ela respondeu.
- Será bom ver as crianças. O mais novo ainda mamava da teta da
Lannister da última vez que o vi. Agora deve ter o quê? Cinco anos?
- O Príncipe Tommen tem sete anos. A mesma idade de Bran. Por
favor, Ned, tenha tento na língua. Lannister é nossa rainha, e diz-se
que seu orgulho cresce a cada ano que passa.
Ned apertou-lhe a mão.
- Terá de haver um festim, bem-composto, com cantores, e Robert
vai querer caçar. Enviarei Jory para o sul com uma guarda de honra
ao seu encontro, a fim de escoltá-los no caminho até aqui pela
estrada do rei. Deuses, como iremos alimentar a todos? Maldito seja
o homem. Maldito seja o seu real couro.
Daenerys
O irmão ergueu o vestido para que ela o inspecionasse.
- Isto é uma beleza! Toque-o. Vamos. Acaricie o tecido,
Dany o tocou. O tecido era tão macio que parecia correr-lhe pelos
dedos como água. Não conseguia se lembrar de alguma vez ter usado
algo tão suave. Assustou-se. Afastou a mão.
- É mesmo meu?
- Um presente de Magíster Illyrio - disse Viserys, sorrindo. Seu irmão
estava de bom humor naquela noite. - A cor realçará o violeta dos
seus olhos. E você também terá ouro e jóias de todos os tipos. Illyrio
prometeu, Esta noite deve se parecer uma princesa.
Uma princesa, pensou Dany. Já se esquecera de como aquilo era.
Talvez nunca tivesse realmente sabido.
- Por que ele nos dá tanto? - ela perguntou. - O que quer de nós? -
há quase meio ano que viviam na casa do magíster, comiam da sua
comida, eram paparicados pelos seus criados. Dany tinha treze anos,
idade suficiente para saber que tais presentes raramente vêm sem
preço ali, na cidade livre de Pentos.
- Illyrio não é nenhum tolo - Viserys respondeu. Era um jovem
magro com mãos nervosas e um ar febril nos olhos de um tom claro
de lilás. - O magíster sabe que não esquecerei os amigos quando
subir ao trono.
Dany não disse nada. Magíster Illyrio era um comerciante de
especiarias, pedras preciosas, ossos de dragão e outras coisas menos
palatáveis. Tinha amigos em todas as Nove Cidades Livres, dizia-se, e
mesmo para lá delas, em Vaes Dothrak e nas terras das fábulas junto
ao Mar de Jade. Também se dizia que nunca tinha tido um amigo
que não fosse capaz de vender alegremente pelo preço justo. Dany
escutava o falatório nas ruas e ouvia essas coisas, mas também sabia
que era melhor não questionar o irmão enquanto tecia suas teias de
sonho. Quando era despertada, a ira de Viserys era algo terrível. Ele
a chamava "o acordar do dragão".
O irmão pendurou o vestido ao lado da porta.
- Illyrio enviará as escravas para lhe darem banho. Assegure-se de se
livrar do fedor dos estábulos. Khal Drogo tem mil cavalos e hoje vem
à procura de um tipo diferente de montaria - estudou-a criticamente.
- Ainda tem as costas tortas. Endireite-se - pôs-lhe as mãos nos om-
bros e puxou-os para trás. - Deixe-os ver que tem agora a forma de
uma mulher - os dedos do irmão roçaram levemente seus seios em
botão e apertaram num mamilo. - Não me falhará esta noite. Senão,
será mau para você. Não quer acordar o dragão, quer? - os dedos
torceram-se, um beliscão cruel e duro através do tecido grosseiro da
túnica. - Quer? - ele repetiu.
- Não - respondeu Dany docilmente.
O irmão sorriu.
- Ótimo - tocou-lhe os cabelos, quase com afeição. - Quando
escreverem a história do meu reinado, minha doce irmã, dirão que
começou esta noite.
Quando ele saiu, Dany foi até a janela e olhou, melancólica, as águas
da baía. As torres quadradas de tijolo de Pentos eram silhuetas
negras delineadas contra o sol poente. Ela conseguia ouvir os
sacerdotes vermelhos cantando, enquanto acendiam as piras
noturnas, e os gritos de crianças esfarrapadas que jogavam para lá
dos muros da propriedade. Por um momento desejou poder estar lá
fora com elas, de pés nus, sem fôlego e vestida de farrapos, sem
passado nem futuro, sem banquete para ir na mansão de Khal
Drogo.
Em algum lugar para lá do pôr do sol, do outro lado do estreito mar,
havia uma terra de colinas verdes e planícies cobertas de flores e
grandes rios caudalosos, onde torres de pedra negra se erguiam por
entre magníficas montanhas azul-acinzentadas e cavaleiros de
armadura cavalgavam para a batalha sob os estandartes dos seus
senhores. Os dothrakis chamavam a essa terra Rhaesb Andahli, a
terra dos ândalos. Nas Cidades Livres, falavam de Westeros e dos
Reinos do Poente. O irmão tinha um nome mais simples. Chamava-
lhe "nossa terra". Para ele, as palavras eram como uma prece, Se as
dissesse o número de vezes suficientes, os deuses certamente ouvi-
riam. "É nosso direito de sangue, usurpado por meios traiçoeiros.
Não se rouba um dragão, ah, não. O dragão se lembra."
E o dragão talvez recordasse mesmo, mas Dany não. Nunca vira
aquela terra que o irmão dizia que lhes pertencia, este domínio para
lá do estreito mar. Aqueles lugares de que falava, Rochedo Casterly e
o Ninho da Águia, Jardim de Cima e o Vale de Arryn, Dorne e a Ilha
das Caras, para ela eram apenas palavras. Viserys era um rapaz de
oito anos quando fugiram de Porto Real para escapar ao avanço dos
exércitos do Usurpador, mas Daenerys não passava de uma partícula
de vida no ventre da mãe.
Mesmo assim, por vezes, Dany conseguia visualizar os
acontecimentos, tantas tinham sido as ocasiões em que ouvira o
irmão contar as histórias. A fuga no meio da noite para a Pedra do
Dragão, com o luar cintilando nas velas negras do navio. Seu irmão,
Rhaegar, combatendo o Usurpador nas águas sangrentas do Tridente
e morrendo pela mulher que amava. O saque de Porto Real por
aqueles a quem Viserys chamava os cães do Usurpador, os senhores
Lannister e Stark. A princesa Elia de Dorne suplicando misericórdia
quando o herdeiro de Rhaegar lhe fora arrancado do seio e
assassinado perante seus olhos. Os crânios polidos dos últimos
dragões a olhar sem ver do alto das paredes da sala do trono quando
o Regicida abrira a garganta do Pai com uma espada dourada.
Nascera em Pedra do Dragão quatro luas depois da fuga, durante a
fúria de uma tempestade de verão que ameaçava destroçar a
estabilidade da ilha. Diziam que aquela tempestade tinha sido
terrível. A frota Targaryen fora esmagada enquanto estava ancorada
e enormes blocos de pedra foram arrancados dos parapeitos e
precipitados sobre as águas encapeladas do mar estreito. A mãe
morrera ao dá-la à luz, e por este fato o irmão Viserys nunca a
perdoara.
Tampouco se lembrava de Pedra do Dragão. Tinham fugido de novo,
imediatamente antes de o irmão do Usurpador zarpar com sua nova
frota. Por essa altura, dos Sete Reinos que tinham pertencido aos
seus, apenas Pedra do Dragão restava, a antiga sede de sua Casa. Mas
não por muito tempo, A guarnição estava preparada para vendê-los
ao Usurpador, mas, uma noite, Sor Willem Darry e quatro homens
leais invadiram o quarto das crianças, raptaram-nas e sua ama de
leite, e zarparam sob a escuridão da noite em busca da segurança da
costa bravosiana.
Lembrava-se vagamente de Sor Willem, um homem que mais parecia
um grande urso cinzento, meio cego, a rugir e berrar ordens de sua
cama de doente. Os criados tinham vivido aterrorizados por causa
dele, que sempre fora bondoso para Dany. Chamava a "pequena
princesa" e, por vezes, "minha senhora", e suas mãos eram suaves
como couro velho. Mas nunca deixava a cama, e o cheiro da doença
impregnava-o de dia e de noite, com um odor quente, úmido, de
uma doçura doentia. Nessa altura viviam em Bravos, na casa grande
de porta vermelha, Dany tinha seu próprio quarto, com um limoeiro
junto à janela. Depois da morte de Sor Willem, os criados roubaram
o pouco dinheiro que lhes restava e em breve os irmãos foram
postos fora da casa grande, Dany chorara quando a porta vermelha
se fechara às suas costas para sempre.
Desde então, tinham andado de um lado para outro, de Bravos para
Myr, de Myr para Tyrosh e daí para Qohor, Volantis e Lys, sem
nunca ficarem muito tempo no mesmo lugar. O irmão não permitia.
Insistia que os traidores contratados pelo Usurpador viriam atrás
deles, embora Dany nunca tivesse visto nenhum.
A princípio, os magísteres, arcontes e príncipes mercadores tinham
se sentido felizes por dar as boas-vindas aos últimos Targaryen às
suas casas e mesas, mas, à medida que os anos foram passando e o
Usurpador continuou sentado no Trono de Ferro, as portas foram se
fechando e suas vidas tornaram-se mais pobres. Anos antes, tinham
se visto forçados a vender os últimos tesouros, e agora, até o
dinheiro que tinham obtido pela coroa da mãe desaparecera. Nas
vielas e tabernas de Pentos chamavam o irmão de "rei pedinte". Dany
não queria saber do que a chamavam.
"Um dia teremos tudo de volta, minha doce irmã", prometia-lhe
Viserys. Às vezes as mãos tremiam-lhe quando falava daquilo. "As
jóias e as sedas, Pedra do Dragão e Porto Real, o Trono de Ferro e os
Sete Reinos, tudo o que nos roubaram, teremos tudo de volta." Ele
vivia para esse dia. Tudo o que Daenerys queria de volta era a
grande casa de porta vermelha com o limoeiro em frente à janela do
seu quarto, a infância que nunca conhecera.
Ouviu-se um suave toque na porta.
- Entre - disse Dany, virando as costas à janela. As criadas de Illyrio
entraram com reverências e começaram a tratar de suas tarefas.
Eram escravas, um presente de um dos muitos amigos dothrakis do
magíster. A escravatura não existia na cidade livre de Pentos. E, no
entanto, elas eram escravas. A mulher mais velha, pequena e cinzenta
como um rato, nunca dizia uma palavra, mas a moça compensava.
Era a favorita de Illyrio, uma jovem de dezesseis anos, cabelos claros
e olhos azuis, que tagarelava sem cessar enquanto trabalhava.
Encheram a banheira com água quente trazida da cozinha e
perfumaram-na com óleos odoríferos. A moça puxou a túnica de
algodão grosseiro pela cabeça de Dany e a ajudou a entrar na
banheira. A água escaldava, mas Daenerys não hesitou nem gritou.
Gostava do calor. Fazia-a sentir-se limpa. Além disso, o irmão
dissera-lhe com frequência que nunca nada estava quente demais
para um Targaryen. "A nossa é a Casa do dragão", dizia. "O fogo está
em nosso sangue."
A mulher mais velha lavou seus longos cabelos esbranquiçados e
removeu suavemente os nós com uma escova, sempre em silêncio. A
moça esfregou-lhe as costas e os pés e disse-lhe como tinha sorte.
- Drogo é tão rico que até seus escravos usam colares de ouro. Seu
khalasar tem cem mil cavaleiros, e seu palácio em Vaes Dothrak,
duzentos quartos e portas de prata sólida - e houve mais do mesmo
gênero, muito mais; como o khal era um homem bonito, alto e feroz,
destemido em batalha, o melhor cavaleiro que alguma vez montara
um cavalo, um arqueiro demoníaco. Daenerys nada disse. Sempre
assumira que se casaria com Viserys quando chegasse à idade adulta.
Durante séculos, os Targaryen tinham se casado irmão com irmã,
desde que Aegon, o Conquistador, tomara as irmãs como noivas,
Viserys dissera-lhe mil vezes que a pureza da linhagem devia ser
mantida, que o sangue real era deles, o sangue dourado da antiga
Valíria, o sangue do dragão. Os dragões não acasalavam com os
animais dos campos, e os Targaryen não misturavam seu sangue com
o de homens menores. E, no entanto, agora Viserys conspirava para
vendê-la a um estranho, a um bárbaro.
Quando ficou limpa, as escravas ajudaram-na a sair da água e
secaram-na com toalhas. A moça escovou-lhe os cabelos até fazê-los
brilhar como prata derretida, enquanto a mulher mais velha a untava
com o perfume de flores de especiarias das planícies dothrakianas,
um salpico em cada pulso, atrás das orelhas, na ponta dos seios e,
por fim, um refrescante, lá embaixo, entre as pernas. Vestiram-lhe a
roupa de baixo que Magíster Illyrio lhe enviara e depois o vestido, de
seda, com um profundo tom de ameixa para realçar o violeta dos
seus olhos. A moça enfiou-lhe as sandálias douradas nos pés
enquanto a mulher mais velha lhe fixava a tiara na cabeça e fazia
deslizar pulseiras douradas incrustadas de ametistas em seus pulsos.
O último adorno foi o colar, um pesado cordão de ouro torcido
ornado com antigos glifos valirianos.
- Agora, sim, se parece com uma princesa - disse a moça, sem fôlego,
quando terminaram. Dany olhou de relance para sua imagem no
espelho prateado que Illyrio tão previdentemente lhe fornecera. Uma
princesa, pensou, mas lembrou-se do que a moça dissera, de como
Khal Drogo era tão rico que até seus escravos usavam colares de
ouro. Sentiu um súbito arrepio percorrer os braços nus.
O irmão a esperava na frescura do átrio, sentado na margem da
fonte, arrastando a mão pela água. Pôs-se em pé quando ela surgiu e
observou-a com olhos críticos.
- Venha aqui - disse. - Vire-se. Sim. Ótimo. Você tem um ar. .
- Real - disse Magíster Illyrio, entrando por uma arcada. Movia-se
com uma delicadeza surpreendente para um homem tão corpulento.
Sob vestimentas soltas de seda cor de fogo, nuvens de gordura
oscilavam enquanto ele caminhava. Pedras preciosas cintilavam em
todos os dedos, e seu criado oleara-lhe a barba amarela bifurcada até
que brilhasse como ouro verdadeiro.
- Que o Senhor da Luz a banhe em bênçãos neste tão afortunado dia,
Princesa Daenerys - disse o magíster quando lhe tomou a mão.
Inclinou a cabeça, mostrando um fino relance de dentes amarelos e
tortos através do dourado da barba. - Ela é uma visão, Vossa Graça,
uma visão - exclamou, dirigindo-se a Viserys. - Drogo ficará
arrebatado.
- É magra demais - disse Viserys. Seus cabelos, do mesmo tom louro-
prateado dos dela, tinham sido puxados para trás e bem atados com
uma presilha de osso de dragão. Era um visual severo que dava
ênfase às linhas duras e magras de seu rosto. Pousou a mão no
punho da espada que Illyrio lhe emprestara e disse: - Tem certeza de
que Khal Drogo gosta das suas mulheres assim tão novas?
- Ela já teve o seu sangue. Tem idade suficiente para o khal -
respondeu Illyrio, e já não era a primeira vez que dizia aquilo. - Olhe
para ela. Aqueles cabelos louro-prateados, aqueles olhos púrpuros...
ela é do sangue da antiga Valíria, sem dúvida, sem dúvida... e bem-
nascida, filha do antigo rei, irmã do novo, não é possível que não
arrebate nosso Drogo - quando Illyrio largou sua mão, Daenerys
percebeu que estava tremendo.
- Suponho que sim - disse o irmão em tom duvidoso. - Os selvagens
têm gostos estranhos. Rapazes, cavalos, ovelhas...
- É melhor não sugerir isso a Khal Drogo - disse Illyrio.
A ira flamejou nos olhos lilás de Viserys.
- Toma-me por tolo?
O magíster fez uma ligeira reverencia.
- Tomo-o por um rei. Aos reis falta a cautela dos homens vulgares.
Minhas desculpas se o ofendi - virou-se e bateu palmas para chamar
os carregadores.
As ruas de Pentos estavam escuras como breu quando saíram na
liteira elaboradamente esculpida de Illyrio. Dois criados iam à frente
para alumiar o caminho, transportando ornamentadas lanternas a
óleo com vidraças de um vidro azul-claro, e uma dúzia de homens
fortes conduziam a liteira aos ombros. O espaço lá dentro, por trás
das cortinas, era quente e apertado. Dany conseguia sentir o fedor da
carne pálida de Illyrio sob seus pesados perfumes.
O irmão, esparramado em almofadas a seu lado, nada notava. Sua
mente estava longe, do outro lado do mar estreito.
- Não necessitaremos de todo o seu khalasar - disse Viserys. Os
dedos brincavam no punho da lâmina emprestada, embora Dany
soubesse que ele nunca usara uma espada a sério. - Dez mil serão
suficientes, posso varrer os Sete Reinos com dez mil guerreiros
dothrakis. O domínio se erguerá em nome do seu rei de direito.
Tyrell, Redwyne, Darry, Greyjoy não sentem mais amor pelo
Usurpador do que eu. Os homens de Dome ardem pela possibilidade
de vingar Elia e os seus filhos. E as pessoas simples estarão conosco.
Elas choram pelo seu rei - olhou ansioso para Illyrio. - Choram, não é
verdade?
- São o vosso povo, e o amam bastante - disse amavelmente Magíster
Illyrio. - Em povoados por todo o território, os homens fazem
brindes secretos à vossa saúde, enquanto as mulheres cosem
estandartes do dragão e os escondem até o dia do vosso regresso do
outro lado das águas - encolheu os maciços ombros. - Ou pelo
menos é o que me dizem meus agentes.
Dany não tinha agentes, nenhuma maneira de saber o que alguém
estaria fazendo ou pensando do outro lado do mar estreito, mas
desconfiava das palavras doces de Illyrio do mesmo modo que
desconfiava de tudo o que dizia respeito a ele. Mas o irmão acenava
com ardor.
- Matarei eu próprio o Usurpador - prometeu, ele que nunca matara
ninguém -, tal como ele matou meu irmão Rhaegar. E também
Lannister, o Regicida, pelo que fez ao meu pai.
- Isso será muito adequado - disse Magíster Illyrio. Dany viu a
minúscula sugestão de sorriso que brincava nos lábios cheios do
homem, mas o irmão não reparou em nada. Acenando, ele afastou
uma cortina e perdeu o olhar na noite, e Dany soube que estava
lutando de novo a Batalha do Tridente.
A mansão de nove torres de Khal Drogo erguia-se junto às águas da
baía, com hera de tons claros cobrindo seus grandes muros de tijolo.
Tinha sido oferecida ao khal pelos magísteres de Pentos, Illyrio lhes
disse. As Cidades Livres eram sempre generosas com os senhores dos
cavalos.
- Não é que temamos esses bárbaros - explicava Illyrio com um
sorriso. - O Senhor da Luz poderia defender nossas muralhas contra
um milhão de dothrakis, ou pelo menos é isso que prometem os
sacerdotes vermelhos... Mas para que correr riscos quando a amizade
deles sai tão barata?
A liteira em que seguiam foi parada ao portão e as cortinas, puxadas
rudemente para trás por um dos guardas da casa. Possuía a pele
acobreada e os olhos escuros e amendoados de um doth-raki, mas
tinha o rosto livre de pelos e usava o capacete guarnecido de pontas
agudas dos Imaculados. Avaliou-os friamente. Magíster Illyrio rosnou-
lhe qualquer coisa no rude idioma dothraki; o guarda respondeu-lhe
no mesmo tom e lhes deu passagem com um gesto através dos
portões.
Dany reparou que a mão do irmão estava cerrada com força no
punho de sua espada emprestada. Parecia quase tão assustado como
ela se sentia.
- Eunuco insolente - murmurou Viserys enquanto a liteira subia aos
balanços até a mansão. As palavras de Magíster Illyrio eram mel.
- Esta noite estarão muitos homens importantes no banquete.
Homens assim têm inimigos. O khal deve proteger seus convidados,
vós acima de todos, Vossa Graça. Não há dúvidas de que o
Usurpador pagaria bem pela vossa cabeça.
- Ah, sim - disse sombriamente Viserys. - Ele tentou, Illyrio, asseguro-
lhe. Seus traidores contratados nos seguem para todo o lado. Sou o
último dragão, e ele não dormirá descansado enquanto eu viver.
A liteira desacelerou e parou. As cortinas foram puxadas e um
escravo ofereceu a mão para ajudar Daenerys a sair. Seu colar,
reparou ela, era de bronze comum. O irmão a seguiu, com uma das
mãos ainda cerrada com força no punho da espada. Foram precisos
dois homens fortes para pôr Magíster Illyrio de pé.
Dentro da mansão, o ar estava pesado com o cheiro de especiarias,
noz-de-fogo, limão-doce e canela. Foram levados através do átrio,
onde um mosaico de vidro colorido retratava a Destruição de Valíria.
Óleo ardia em lanternas negras de ferro dispostas ao longo das
paredes. Sob uma arcada composta por folhas de pedra interligadas,
um eunuco cantou a chegada:
- Viserys da Casa Targaryen, o Terceiro de seu Nome - gritou numa
voz doce e aguda -, Rei dos Ândalos, dos Roinares e dos Primeiros
Homens, Rei dos Sete Reinos e Protetor do Território. Sua irmã,
Daenerys, Filha da Tormenta, Princesa de Pedra do Dragão. Seu
honorável anfitrião, Illyrio Mopatis, Magíster da Cidade Livre de
Pentos.
Passaram pelo eunuco e entraram num pátio orlado de pilares
cobertos de hera clara. O luar pintava as folhas em tons de osso e
prata enquanto os convidados vagueavam por entre elas. Muitos
eram senhores dos cavalos dothrakis, grandes homens de pele
vermelho-acastanhada, com os bigodes pendentes presos por anéis de
metal e os cabelos negros oleados, trançados e atados a campainhas.
Mas por entre eles moviam-se sicários e mercenários de Pentos, Myr
e Tyrosh, um sacerdote vermelho ainda mais gordo que Illyrio,
homens peludos vindos do Porto de Ibben e senhores das Ilhas do
Verão com a pele negra como ébano. Daenerys olhou a todos
maravilhada... e compreendeu, com um súbito sobressalto de medo,
que era a única mulher ali presente.
Illyrio sussurrou-lhes:
- Aqueles três são os companheiros de sangue de Drogo, ali - ele
mostrou. - Junto ao pilar está Khal Moro com o filho Rhogoro. O
homem de barba verde é irmão do Arconte de Tyrosh, e o homem
que está atrás dele é Sor Jorah Mormont.
O último nome capturou a atenção de Daenerys.
- Um cavaleiro?
- Nem mais, nem menos - Illyrio sorriu sob a barba. - Ungido com os
sete óleos pelo próprio Alto Septão.
- Que faz ele aqui? - ela perguntou.
- O Usurpador quis vê-lo morto - disse-lhes Illyrio. - Uma
afrontazinha qualquer. Vendeu alguns caçadores furtivos a um
negociante de escravos de Tyrosh em vez de entregá-los à Patrulha
da Noite. Uma lei absurda. Um homem deve ser autorizado a fazer o
que bem entenda com seus bens.
- Quero falar com Sor Jorah antes do fim da noite - disse Viserys.
Dany deu por si olhando com curiosidade o cavaleiro. Era um
homem velho, com mais de quarenta anos e perdendo cabelo, mas
mantinha-se forte e em forma. Em vez de sedas e algodão, trajava lã
e couro. Sua túnica era verde-escura, bordada com a imagem de um
urso negro em pé sobre duas patas.
Ainda observava aquele estranho homem vindo da pátria que nunca
conhecera quando Ma-gíster Illyrio colocou a mão úmida em seu
ombro nu.
- Ali, doce princesa - sussurrou -, está o próprio khal.
Dany quis fugir e se esconder, mas o irmão a estava observando, e
ela sabia que se lhe desagradasse acordaria o dragão. Ansiosa, virou-
se e olhou o homem que Viserys esperava que pedisse para desposá-
la antes de a noite acabar.
A jovem escrava não se enganara muito, pensou. Khal Drogo era uma
cabeça mais alto do que o mais alto dos presentes na sala, mas de
certo modo leve de pés, tão gracioso como a pantera que havia na
coleção de Illyrio. Era mais novo do que ela pensara, não tinha mais
de trinta anos. A pele era da cor de cobre polido, e o espesso bigode
estava preso com anéis de ouro e bronze.
- Devo ir fazer as minhas apresentações - disse Magíster Illyrio. -
Esperem aqui. Eu o trarei até vós.
O irmão tomou-lhe o braço quando Illyrio se dirigiu, bamboleante,
até o khal, e seus dedos apertaram-na com tanta força que a
machucaram.
- Vê a sua trança, querida irmã?
A trança de Drogo era negra como a meia-noite, pesada de óleo
perfumado e repleta de minúsculas campainhas que tiniam
suavemente quando ele se movia. Chegava-lhe bem abaixo do cinto,
até mesmo abaixo das nádegas; a ponta roçava-lhe a parte de trás
das coxas.
- Vê como é longa? - continuou Viserys. - Quando os dothrakis são
derrotados em combate, cortam as tranças em desgraça para que o
mundo saiba da sua vergonha. Khal Drogo nunca perdeu um
combate. É Aegon, o Senhor do Dragão regressado, e você será a sua
rainha.
Dany olhou Khal Drogo. Seu rosto era duro e cruel, os olhos tão frios
e escuros como ônix. O irmão às vezes a magoava, quando acordava
o dragão, mas não a assustava como aquele homem.
- Não quero ser sua rainha - ouviu sua voz dizer num tom fraco e
agudo. - Por favor, por favor, Viserys, não quero. Quero ir para casa.
- Para casa? - ele manteve a voz baixa, mas ela conseguia ouvir a
fúria na entoação. - Como havemos de ir para casa, minha doce
irmã? Eles roubaram nossa casa! - levou-a para as sombras, para fora
da vista dos convidados, com os dedos enterrados em sua pele. -
Como havemos de ir para casa? - repetiu, referindo-se a Porto Real, à
Pedra do Dragão e a todo o território que tinham perdido.
Dany se referira apenas aos seus quartos na propriedade de Illyrio,
que certamente não seria uma casa verdadeira, mas era tudo o que
possuíam; no entanto, seu irmão não quis ouvir assim, Ali não havia
para ele uma casa. Mesmo a casa grande com a porta vermelha não
tinha sido uma casa para ele. Seus dedos enterravam-se com força no
braço dela, exigindo uma resposta.
- Não sei.. - Dany disse por fim, com a voz perdendo a firmeza.
Lágrimas jorraram-lhe dos olhos.
- Mas eu sei - disse ele com voz cortante, - Vamos para casa com um
exército, minha doce irmã. Com o exército de Khal Drogo, eis como
vamos para casa. E se para isso tiver de se casar com ele e com ele
dormir, é isto o que fará. - sorriu-lhe. - Deixaria que todo o seu
khalasar a fodesse se fosse preciso, minha doce irmã, todos os
quarenta mil homens e também os seus cavalos, se isto fosse
necessário para obter o meu exército. Fique grata que seja só o
Drogo. Com o tempo, pode até aprender a gostar dele. Agora seque
os olhos. Illyrio o está trazendo para cá, e ele não vai vê-la chorar.
Dany virou-se e viu que era verdade. Magíster Illyrio, todo sorrisos e
reverências, escoltava Khal Drogo em direção ao lugar onde se
encontravam. Afastou com as costas da mão as lágrimas que não
tinham saído dos seus olhos.
- Sorria - murmurou Viserys nervosamente, com a mão caindo sobre
o punho da espada. - E fique ereta. Deixe que ele veja que você tem
seios. Bem sabem os deuses que os tem bem pequenos.
Daenerys sorriu e se aprumou.
Eddard
Os visitantes entraram pelos portões do castelo como um rio de ouro
e prata e aço polido, trezentos homens, um esplendor de vassalos e
cavaleiros, soldados juramentados e cavaleiros livres. Sobre suas
cabeças, uma dúzia de estandartes dourados abanavam de um lado
para outro ao sabor do vento do Norte, adornados com o veado
coroado de Baratheon.
Ned conhecia muitos dos cavaleiros. Ali vinha Sor Jaime Lannister
com os cabelos tão brilhantes como ouro batido, e ali estava Sandor
Clegane com a face terrivelmente queimada. O rapaz alto ao seu lado
só podia ser o príncipe herdeiro, e aquele homenzinho atrofiado ao
lado era certamente o Duende, Tyrion Lannister.
Mas o homem enorme que vinha à cabeça da coluna, flanqueado por
dois cavaleiros que usavam os mantos brancos como a neve da
Guarda Real, pareceu a Ned quase um estranho... Até saltar de cima
de seu cavalo de guerra com um rugido familiar e o esmagar num
abraço de partir ossos.
- Ned! Ah, como é bom ver essa sua cara congelada - o rei o
observou de cima a baixo e soltou uma gargalhada. - Não mudou
nem um bocadinho.
Ned gostaria de poder dizer o mesmo. Quinze anos antes, quando
tinham cavalgado juntos para conquistar um trono, o Senhor de
Ponta Tempestade era um homem sem barba, de olhos claros e
musculoso como um sonho de donzela. Quase com dois metros de
altura, erguia-se acima dos outros homens e, quando punha a
armadura e o grande capacete provido de chifres de sua Casa,
transformava-se num autêntico gigante. Também tinha a força de
um gigante, e sua arma predileta era um martelo de batalha com
ponta aguçada que Ned quase não conseguia erguer do chão. Nesses
tempos, o cheiro do couro e do sangue aderia à sua pele como
perfume.
Agora era perfume mesmo que aderia à sua pele, e ele tinha uma
largura que se equiparava a altura. Ned tinha visto o rei pela última
vez nove anos antes, durante a rebelião de Balon Greyjoy, quando o
veado e o lobo gigante tinham se juntado para acabar com as
pretensões do auto-proclamado Rei das Ilhas de Ferro. Desde a noite
em que estiveram lado a lado no quartel-general caído de Greyjoy,
quando Robert aceitara a rendição do senhor rebelde e Ned tomara
seu filho Theon como refém e protegido, o rei ganhara pelo menos
cinquenta quilos. Uma barba tão grosseira e negra como fio de ferro
cobria-lhe a face, escondendo o duplo queixo e o descaimento das
reais bochechas, mas nada conseguia esconder seu estômago ou os
círculos escuros sob os olhos.
Mas Robert era agora o rei de Ned, e não apenas um amigo;
portanto, limitou-se a dizer:
- Vossa Graça. Winterfell é vossa.
Por essa altura já os outros estavam também a desmontar, e
avançavam moços de estrebaria para lhes recolher as montadas. A
rainha de Robert, Cersei Lannister, entrou a pé com seus filhos mais
novos. A caravana em que tinham vindo, uma enorme carruagem de
dois pisos feita de carvalho untado e metal dourado, puxada por
quarenta cavalos de tração pesada, era larga demais para passar pelo
portão do castelo. Ned ajoelhou-se na neve a fim de beijar o anel da
rainha, enquanto Robert abraçou Catelyn como a uma irmã há muito
perdida. Depois as crianças foram trazidas, apresentadas e aprovadas
por ambas as partes.
Assim que aquelas formalidades de saudação se completaram, o rei
disse ao anfitrião:
- Leve-me à sua cripta, Eddard. Quero apresentar os meus respeitos.
Ned o adorou por isso, por se lembrar ainda dela, depois de tantos
anos. Gritou por uma lanterna. Não foram necessárias mais palavras.
A rainha começara a protestar. Que tinham viajado desde a
madrugada, que estavam todos cansados e com frio, que decerto
deveriam descansar primeiro. Que os mortos podiam esperar. Não
disse mais que isso; Robert olhou-a, o irmão gêmeo Jaime pegou-lhe
calmamente no braço e ela não disse mais nada.
Desceram juntos para a cripta, Ned e seu rei, que quase não
reconhecia. Os degraus de pedra em espiral eram estreitos. Ned
seguiu à frente com a lanterna.
- Já começava a pensar que nunca mais chegaríamos a Winterfell -
queixou-se Robert enquanto desciam. - No Sul, do modo como falam
dos meus Sete Reinos, um homem se esquece de que a sua parte é
tão grande quanto as outras seis juntas.
- Espero que tenha apreciado a viagem, Vossa Graça. Robert
resfolegou.
- Lodaçais, florestas e campos, e quase sem uma estalagem decente a
norte do Gargalo. Nunca vi um vazio tão vasto. Onde estão todas as
suas gentes?
- Provavelmente estavam muito acanhadas para sair - brincou Ned.
Sentia o frio que subia as escadas, a respiração gelada vinda das
profundezas da terra. - Os reis são uma visão rara no Norte.
Robert resfolegou.
- O mais certo é que estivessem escondidas debaixo da neve. Neve,
Ned! - o rei pôs a mão na parede para se manter firme enquanto
descia.
- As neves do fim do verão são bastante comuns - disse Ned. -
Espero que não lhe tenham causado problemas. São geralmente
suaves.
- Que os Outros carreguem as suas neves suaves - praguejou Robert.
- Como será este lugar no inverno? Estremeço só de pensar.
- Os invernos são duros - admitiu Ned. - Mas os Stark os suportarão.
Sempre os suportamos.
- Tem de vir até o Sul - disse Robert. - Precisa experimentar o verão
antes que ele fuja. Em Jardim de Cima há campos de rosas douradas
que se estendem até perder de vista. Os frutos estão tão maduros
que explodem na boca: melões, pêssegos, ameixas-de-fogo, nunca
saboreou tamanha doçura. Verá, eu trouxe algumas. Mesmo em
Ponta Tempestade, com aquele bom vento da baía, os dias são tão
quentes que quase não conseguimos nos mexer. E precisa ver as
vilas, Ned! Flores por toda parte, os mercados a rebentar de comida,
os vinhos estivais tão bons e baratos que podemos nos embebedar só
de respirar o ar. Toda a gente é gorda, bêbada e rica - soltou uma
gargalhada e deu uma palmada no amplo estômago. - E as moças,
Ned! - exclamou com os olhos faiscando. - Juro, as mulheres perdem
toda a modéstia ao calor. Nadam nuas no rio, mesmo por baixo do
castelo. Até nas ruas está calor demais para lã ou peles, e elas andam
por aí com aqueles vestidos curtos de seda, se tiverem prata, ou
algodão, se não tiverem, mas é tudo igual quando começam a suar e
o tecido lhes adere à pele, é como se andassem nuas - o rei riu, feliz.
Robert Baratheon sempre fora um homem de enormes apetites, um
homem que sabia como conquistar seus prazeres. Essa não era uma
acusação que alguém pudesse deixar à porta de Eddard Stark. No
entanto, Ned não podia deixar de notar que esses prazeres estavam
cobrando seu preço do rei. Robert respirava pesadamente quando
chegaram ao fundo das escadas, e com a cara vermelha à luz da
lanterna quando penetraram na escuridão da cripta.
- Vossa Graça - disse Ned respeitosamente. Moveu a lanterna num
largo semicírculo. As sombras moveram-se e balançaram. A vacilante
luz tocou as pedras do chão e roçou numa longa procissão de pilares
de granito que marchavam em frente a eles, dois a dois, na direção
das trevas. Entre os pilares sentavam-se os mortos nos seus tronos
de pedra apoiados nas paredes, de costas voltadas para os sepulcros
que continham seus restos mortais. - Ela está lá ao fundo, com o Pai
e Brandon.
Indicou o caminho por entre os pilares e Robert seguiu-o sem uma
palavra, estremecendo com o frio subterrâneo. Ali fazia sempre frio.
Seus passos soavam nas pedras e ecoavam na abóbada que se erguia
sobre suas cabeças enquanto caminhavam por entre os mortos da
Casa Stark. Os Senhores de Winterfell viam-nos passar. Suas imagens
tinham sido esculpidas nas pedras que selavam as tumbas. Sentavam-
se em longas filas, olhos cegos virados para a escuridão eterna,
enquanto grandes lobos gigantes de pedra se aninhavam junto aos
seus pés. As sombras móveis faziam com que as figuras de pedra
parecessem mover-se quando os vivos passavam por elas.
Seguindo um costume antigo, uma espada de ferro tinha sido
colocada sobre o colo de todos os que tinham sido Senhores de
Winterfell, a fim de manter os espíritos vingativos em suas criptas. A
mais antiga já há muito enferrujara até a inexistência, deixando
apenas algumas manchas vermelhas onde o metal tocara na pedra.
Ned perguntou a si próprio se isso significava que aqueles espíritos
estavam agora livres para passear pelo castelo. Esperava que não. Os
primeiros Senhores de Winterfell tinham sido homens tão duros
como a terra que governavam. Nos séculos anteriores à vinda dos
Senhores do Dragão do outro lado do mar, não tinham jurado
fidelidade a ninguém, fazendo tratar-se por Reis do Norte.
Ned parou, finalmente, e ergueu a lanterna de óleo, A cripta
continuava à sua frente, mergulhando na escuridão, mas para lá
daquele ponto as tumbas estavam vazias e por selar; buracos negros
à espera de seus mortos, à espera dele e de seus filhos. Ned não
gostava de pensar naquilo.
- Aqui - disse ele ao seu rei.
Robert acenou em silêncio, ajoelhou-se e inclinou a cabeça.
Havia três tumbas, dispostas lado a lado. Lorde Rickard Stark, o pai
de Ned, tinha um rosto longo e austero. O esculpidor conhecera-o
bem. Estava sentado com uma calma dignidade, com os dedos de
pedra agarrados com força à espada que tinha no colo, mas em vida
todas as espadas lhe tinham falhado. Em dois sepulcros menores, de
ambos os lados, estavam seus filhos.
Brandon morrera com vinte anos, estrangulado por ordem do Rei
Louco Aerys Targaryen, poucos dias apenas antes de se casar com
Catelyn Tully de Correrrio. O pai fora obrigado a vê-lo morrer. Era
ele o verdadeiro herdeiro, o mais velho, nascido para governar.
Lyanna tinha apenas dezesseis anos, uma menina-mulher de
inigualável encanto. Ned amara-a de todo o coração. Robert amara-a
ainda mais. Ela estava destinada a ser sua noiva.
- Era mais bela que isto - disse o rei após um silêncio. Seus olhos
demoravam-se no rosto de Lyanna, como se pudesse trazê-la de volta
à vida por um esforço de vontade. Por fim, ergueu-se, com o peso a
torná-lo desajeitado. - Ah, maldição, Ned, tinha de enterrá-la num
lugar como este? - sua voz estava enrouquecida com a lembrança do
desgosto. - Ela merecia mais que trevas..
- Ela era uma Stark de Winterfell - disse Ned calmamente. - Este é
seu lugar.
- Podia estar em algum lugar numa colina, sob uma árvore de fruto,
com o sol e nuvens acima dela e a chuva para lavá-la.
- Eu estava com ela quando morreu - lembrou Ned ao rei. - Queria
regressar à nossa casa para descansar ao lado de Brandon e do Pai -
por vezes ainda conseguia ouvi-la. Promete-me, suplicara, num
quarto que cheirava a sangue e a rosas. Promete-me, Ned. A febre
levara-lhe as forças e a voz era tênue como um suspiro, mas quando
ele lhe dera sua palavra, o medo saíra dos olhos da irmã. Ned
recordava o modo como então sorrira, a força com que seus dedos
agarraram os dele quando ela desistira de se agarrar à vida, as
pétalas de rosa que se derramaram de sua mão, mortas e negras.
Depois daquilo, não se lembrava de mais nada. Tinham-no
encontrado ainda abraçado ao seu corpo, silenciado pela dor. O
pequeno cranogmano, Howland Reed, retirara a mão dela da dele.
Ned nada recordava.
- Trago-lhe flores sempre que posso - disse. - Lyanna era.. amiga das
flores.
O rei tocou o rosto da estátua, roçando os dedos na pedra áspera tão
suavemente como se fosse carne viva.
- Jurei matar Rhaegar pelo que lhe fez.
- E foi o que Vossa Graça fez - lembrou-lhe Ned.
- Só uma vez - disse Robert amargamente.
Tinham chegado juntos ao baixio do Tridente enquanto a batalha
rugia em seu redor, Robert com seu martelo de batalha e seu grande
elmo dos chifres de veado, e o príncipe Targaryen revestido de
armadura negra. No peitoral trazia o dragão de três cabeças de sua
Casa, todo trabalhado com rubis que relampejavam como fogo à luz
do sol. As águas do Tridente corriam vermelhas sob os cascos de
seus cavalos de batalha, enquanto eles andavam em círculos e
entrechocavam as armas, uma e outra vez, até que, por fim, um
tremendo golpe do martelo de Robert abriu um rombo no dragão e
no peito que estava por baixo. Quando Ned finalmente chegou ao
local, Rhaegar jazia morto na corrente, enquanto homens de ambos
os exércitos escarafunchavam as águas rodopiantes em busca de
rubis que se tivessem soltado de sua armadura.
- Nos meus sonhos mato-o todas as noites - admitiu Robert. - Mil
mortes ainda serão menos do que ele merece.
Não havia nada que Ned pudesse responder àquilo. Depois de uma
pausa, disse:
- Devemos regressar, Vossa Graça. Sua esposa está à espera.
- Que os Outros carreguem minha esposa - murmurou Robert em
tom azedo, mas encaminhou-se com passos pesados na direção de
onde tinham vindo. - E se ouvir mais alguma vez "Vossa Graça",
enfio sua cabeça num espeto. Somos mais que isso um para o outro.
- Não me esqueci - respondeu Ned calmamente. - Fale-me dejon.
Robert sacudiu a cabeça.
- Nunca vi um homem adoecer tão depressa. Organizamos um
torneio no dia do nome do meu filho. Se tivesse visto Jon nesse dia,
poderia jurar que viveria para sempre. Uma quinzena depois, estava
morto, A doença foi como um incêndio em suas tripas. Queimou-o
todo por dentro - fez uma pausa junto a um pilar, em frente à
tumba de um Stark há muito morto. - Adorava aquele velho.
- Ambos o adorávamos - Ned fez uma pausa momentânea. - Catelyn
teme pela irmã. Como Lysa está suportando a dor?
A boca de Robert fez um trejeito amargo.
- Não muito bem, na verdade - admitiu. - Penso que a perda de Jon
levou a mulher à loucura, Ned. Levou o rapaz de volta para o Ninho
da Águia. Contra os meus desejos. Tinha planejado criá-lo com
Tywin Lannister em Rochedo Casterly. Jon não tinha irmãos nem
outros filhos. Deveria eu deixá-lo ser educado por mulheres?
Ned mais depressa confiaria uma criança a uma víbora do que ao
Lorde Tywin, mas guardou para si essa opinião. Algumas velhas
feridas nunca chegavam a sarar de verdade, e voltavam a sangrar à
primeira palavra.
- A mulher perdeu o marido - disse cuidadosamente. - Talvez a mãe
tema perder o filho. O rapaz é muito novo.
- Tem seis anos, é enfermiço e Senhor do Ninho da Águia, que os
deuses o salvem - praguejou o rei. - Lorde Tywin nunca antes tinha
tomado um protegido. Lysa devia se sentir honrada. Os Lannister são
uma Casa grande e nobre. Ela recusou até ouvir falar do assunto. E,
depois, foi-se embora na calada da noite, sem sequer um com-licença.
Cersei ficou furiosa - soltou um profundo suspiro. - O rapaz é meu
homônimo, sabias? - "Robert Arryn". Jurei protegê-lo. Como poderei
fazer isso se a mãe o rapta e o leva?
- Posso tomá-lo como protegido, se assim desejar - disse Ned. - Lysa
certamente consentirá. Ela e Catelyn eram próximas quando moças, e
ela própria também será aqui bem-vinda.
- Uma oferta generosa, meu amigo - disse o rei -, mas chegou tarde
demais. Lorde Tywin já deu seu consentimento. Criar o rapaz em
outro lugar seria uma grave afronta.
- Preocupa-me mais o bem-estar do meu sobrinho que o orgulho de
um Lannister - declarou Ned.
- Isto é porque não dorme com uma Lannister - Robert soltou uma
gargalhada, fazendo o som chocalhar por entre as sepulturas e
ressoar no teto abobadado. - Ah, Ned, continua sério demais - pôs
um braço maciço em torno dos ombros de Ned. - Tinha planejado
esperar alguns dias antes de falar contigo, mas agora vejo que não há
necessidade. Venha, acompanhe-me.
Os dois voltaram por entre os pilares. Olhos cegos de pedra
pareciam segui-los quando por eles passavam. O rei manteve o braço
ao redor dos ombros de Ned.
- Deve estar curioso sobre o motivo que me fez finalmente vir para o
norte até Winterfell depois de tanto tempo.
Ned tinha suas suspeitas, mas não disse nada.
- Pela alegria da minha companhia, certamente - disse, com ligeireza.
- E há também a Muralha. Tem de vê-la, Vossa Graça, tem de
caminhar entre suas ameias e falar com aqueles que a guarnecem. A
Patrulha da Noite é uma sombra do que já foi. Benjen diz...
- Sem dúvida que ouvirei o que diz seu irmão muito em breve -
respondeu Robert. - A Muralha está ali há, o quê?, oito mil anos?
Pode esperar mais alguns dias. Tenho preocupações mais urgentes.
Estes são tempos difíceis. Necessito de bons homens ao meu redor.
Homens como Jon Arryn. Ele serviu como Senhor do Ninho da Águia,
como Protetor do Leste, como a Mão do Rei. Não será fácil substituí-
lo.
- Seu filho... - começou Ned.
- Seu filho herdará o Ninho da Águia e todos os seus rendimentos -
disse Robert bruscamente, - Nada mais.
Aquilo apanhou Ned de surpresa. Parou, surpreso, e virou-se para
olhar o rei. As palavras saíram-lhe espontâneas:
- Os Arryn sempre foram Protetores do Leste. O título vem com o
domínio.
- Talvez quando tenha idade a honraria lhe seja restaurada - disse
Robert. - Tenho este ano e o seguinte para pensar no assunto. Um
rapaz de seis anos não é um líder de guerra, Ned.
- Em tempo de paz, o título é apenas uma honraria. Deixe que o
rapaz o mantenha. Pelo seu pai, se não por ele. Decerto deve isto
ajon pelos seus serviços.
O rei não estava contente. Tirou o braço dos ombros de Ned.
- Os serviços de Jon constituíram seu dever para com seu senhor.
Não sou ingrato, Ned. Você, de todos os homens, deveria sabê-lo.
Mas o filho não é o pai. Um mero rapaz não pode defender o Leste -
então o tom suavizou-se. - Basta disto. Há um cargo mais importante
sobre que conversar, e não desejo discutir contigo. - Robert agarrou
Ned pelo cotovelo. - Preciso de você, Ned.
- Estou às vossas ordens, Vossa Graça. Sempre - eram palavras que
tinha de pronunciar, e ficou apreensivo com o que poderia vir a
seguir.
Robert quase não pareceu ouvi-lo.
- Aqueles anos que passamos no Ninho da Águia... deuses, foram
bons anos. Quero você de novo a meu lado, Ned. Quero-o lá
embaixo, em Porto Real, e não aqui no fim do mundo, onde não tem
utilidade para ninguém - Robert olhou a escuridão, por um momento
tão melancólico como um Stark. - Juro-lhe, estar sentado num trono
é mil vezes mais difícil que conquistar um. As leis são uma coisa
entediante, e contar tostões é pior. E o povo... não tem fim. Sento-me
naquela maldita cadeira de ferro e ouço-os se queixarem até ficar
com a mente embotada e o rabo em carne viva. Todos querem
qualquer coisa, dinheiro, terra ou justiça. As mentiras que contam. . e
os meus senhores e senhoras não são melhores. Estou rodeado de
aduladores e idiotas. Aquilo pode levar um homem à loucura, Ned.
Metade deles não se atreve a me dizer a verdade, e a outra metade
não é capaz de encontrá-la. Há noites em que desejo que tivéssemos
perdido no Tridente. Ah, não, não de verdade, mas...
- Compreendo - disse Ned com voz suave. Robert olhou para ele.
- Penso que compreende. E se compreende, é o único, meu velho
amigo - sorriu. - Lorde Eddard Stark, é meu desejo nomeá-lo a Mão
do Rei.
Ned caiu sobre um joelho. A oferta não o surpreendera; que outra
razão teria Robert para viajar até tão longe? A Mão do Rei era o
segundo homem mais poderoso nos Sete Reinos. Falava com a voz do
rei, comandava seus exércitos, esboçava suas leis. Por vezes até se
sentava no Trono de Ferro para fazer a justiça do rei, quando este se
encontrava ausente, ou doente, ou indisposto de outra maneira
qualquer. Robert agora oferecia uma responsabilidade tão grande
quanto o próprio reino. Era a última coisa no mundo que desejava.
- Vossa Graça, não sou merecedor de tal honra. Robert grunhiu com
uma impaciência bem-humorada.
- Se quisesse honrá-lo, deixaria que se aposentasse? Planejo fazê-lo
gerir o reino e lutar as guerras enquanto eu como, bebo e fornico a
caminho de uma cova antecipada - deu uma palmada no estômago e
deu um sorriso. - Conhece aquele ditado sobre o rei e a sua Mão?
Ned conhecia o ditado:
- Aquilo que o rei sonha a Mão constrói.
- Uma vez dormi com uma peixeira que me disse que os de baixo
nascimento têm uma versão mais refinada. O rei come, dizem eles, e
a Mão recolhe a merda - atirou a cabeça para trás e rebentou em
sonoras gargalhadas. Os ecos ressoaram pela escuridão, e, ao seu
redor, os mortos de Winterfell pareceram observar com olhos frios e
desaprovadores.
Por fim, o riso diminuiu e cessou. Ned continuava sobre o joelho,
sem alegria nos olhos.
- Que diabos, Ned - queixou-se o rei. - Podia ao menos brindar-me
com um sorriso.
- Dizem que fica tão frio por aqui no inverno que as gargalhadas dos
homens congelam em suas gargantas e os sufocam até a morte -
disse Ned em tom monocórdio. - Talvez seja por isso que os Stark
possuem tão pouco humor.
- Vem comigo para o Sul e o ensino de novo a rir - prometeu o rei. -
Ajudou-me a ganhar este maldito trono, ajude-me agora a mantê-lo.
Estamos destinados a governar juntos. Se Lyanna tivesse sobrevivido,
teríamos sido irmãos, ligados pelo afeto e também pelo sangue. Pois
bem, não é tarde demais. Eu tenho um filho. Você tem uma filha.
Meu Joff e sua Sansa unirão as nossas Casas, como Lyanna e eu
poderíamos ter feito em tempos.
Aquela oferta o surpreendeu.
- Sansa tem apenas onze anos.
Robert fez um gesto impaciente com a mão.
- Tem idade que chegue para ficar prometida. O casamento pode
esperar alguns anos - ele sorriu. - Agora, ponha-se em pé e diz que
sim, maldito.
- Nada me daria maior prazer, Vossa Graça - respondeu Ned. Mas
hesitou. - Todas estas honrarias são tão inesperadas. Posso ter algum
tempo para refletir, Preciso contar à minha esposa...
- Sim, sim, claro, conta a Catelyn, durma sobre o assunto se for
preciso - o rei estendeu a mão, agarrou a de Ned e puxou-o
rudemente, pondo-o em pé. - Basta que não me deixe à espera
tempo demais. Não sou o mais paciente dos homens.
Por um momento Eddard Stark sentiu-se atacado por uma terrível
sensação de mau presságio. Aquele era seu lugar, ali no Norte. Olhou
as figuras de pedra que o rodeavam, inspirou profundamente no
silêncio gelado da cripta. Conseguia sentir os olhos dos mortos. Sabia
que todos eles escutavam. E o inverno estava a caminho.
Jon
Havia momentos - não muitos, mas alguns - em que Jon Snow ficava
feliz por ser um bastardo. Enquanto enchia uma vez mais sua taça de
vinho de um jarro que ia passando, deu-se conta de que aquele
poderia ser um desses momentos.
Voltou a se instalar no seu lugar ao banco, entre os escudeiros mais
novos, e bebeu. O sabor doce e frutado do vinho estival encheu-lhe a
boca e trouxe-lhe um sorriso aos lábios.
O ar no Salão Grande de Winterfell estava nevoento de fumo e
pesado com os cheiros de carne assada e pão acabado de cozer. As
grandes paredes de pedra do salão estavam adornadas com
estandartes. Bianco, dourado, carmesim: o lobo gigante de Stark, o
veado coroado de Baratheon, o leão de Lannister. Um cantor tocava
harpa e recitava uma balada, mas nesta ponta do salão quase não se
conseguia ouvir sua voz acima do rugir do fogo, do clangor de pratos
e taças de peltre, e do burburinho grave de uma centena de
conversas ébrias.
Estava-se na quarta hora do banquete de boas-vindas oferecido ao
rei. Os irmãos e irmãs de Jon tinham sido postos junto dos filhos do
rei, por baixo da plataforma elevada onde o Senhor e a Senhora Stark
recebiam o rei e a rainha. Em honra da ocasião, o senhor seu pai iria
sem dúvida permitir a cada filho um copo de vinho, mas não mais
que isso. Ali, nos bancos, não havia ninguém para impedir que Jon
bebesse tanto quanto sua sede exigisse.
E estava descobrindo que tinha uma sede de homem, para a áspera
satisfação dos jovens que o rodeavam e que o incentivavam a cada
vez que esvaziava um copo. Eram boa companhia, e Jon apreciava as
histórias que contavam, histórias de batalha, de cama e de caça.
Tinha certeza de que os companheiros eram mais divertidos do que
a prole do rei. Saciou sua curiosidade a respeito dos visitantes
quando estes entraram. A procissão passara a não mais de um pé do
local que lhe fora atribuído no banco, e Jon deitara um forte e
demorado olhar em todos eles.
O senhor seu pai viera à frente, acompanhando a rainha. Ela era tão
bela como os homens diziam. Uma tiara cravejada de jóias brilhava
entre os seus longos cabelos dourados, e as esmeraldas que continha
combinavam perfeitamente com o verde de seus olhos. O pai de Jon
a ajudou a subir os degraus que levavam ao tablado e indicou-lhe o
caminho até seu lugar, mas a rainha nunca chegou sequer a olhar
para ele. Mesmo com catorze anos, Jon era capaz de ver para lá do
seu sorriso.
A seguir veio o próprio Rei Robert, trazendo a Senhora Stark pelo
braço. O rei foi uma grande desilusão para Jon. O pai falara dele com
frequência: o inigualável Robert Baratheon, demônio do Tridente, o
mais feroz guerreiro do reino, um gigante entre os príncipes. Jon viu
apenas um homem gordo, com o rosto vermelho sob a barba,
transpirando através de suas sedas. Caminhava como um homem
meio embriagado.
Depois vieram os filhos. Primeiro o pequeno Rickon, dominando a
longa caminhada com toda a dignidade que um rapazinho de três
anos era capaz de reunir. Jon teve de incentivá-lo a seguir quando
parou ao seu lado. Logo atrás veio Robb, vestido de lã cinzenta
ornamentada de branco, as cores dos Stark. Trazia pelo braço a
Princesa Myrcella. Era uma pequena menina, com quase oito anos, o
cabelo feito uma cascata de caracóis dourados sob uma rede
cravejada de jóias, on reparou nos olhares acanhados que ela dirigia a
Robb enquanto passavam por entre as mesas e no modo tímido
como lhe sorria. Decidiu que a menina era insípida. Robb nem tinha
o bom--senso de notar quão estúpida ela era, e sorria como um tolo.
Suas meias-irmãs acompanhavam os príncipes reais. Arya tinha como
par o roliço jovem iommen, cujos cabelos louro-esbranquiçados eram
mais longos que os dela. Sansa, dois anos mais velha, puxava o
príncipe real, Joffrey Baratheon. Ele tinha doze anos, menos que Jon
ou _-\obb, mas era mais alto que qualquer um deles, para sua grande
frustração. Príncipe Joffrey tinha os cabelos da irmã e os profundos
olhos verdes da mãe. Uma espessa mata de caracóis louros caía para
lá de sua gargantilha dourada e da alta gola de veludo. Sansa parecia
radiante enquanto caminhava a seu lado, mas Jon não gostou dos
lábios mal-humorados de Joffrey nem do modo aborrecido e
desdenhoso com que avaliou o Salão Grande de Winterfell.
Interessou-lhe mais o par que veio a seguir: os irmãos da rainha, os
Lannister de Rochedo Casterly. O Leão e o Duende; não havia forma
de confundi-los. Sor Jaime Lannister era gêmeo oa Rainha Cersei; alto
e dourado, com flamejantes olhos verdes e um sorriso que cortava
como uma faca. Trajava seda carmesim, botas negras de cano alto,
um manto de cetim negro. No peito da túnica, o leão de sua Casa
estava bordado em fio de ouro, rugindo em desafio. Chamavam-lhe
Leão de Lannister na sua presença e "Regicida" às suas costas.
Jon sentiu dificuldade em desviar o olhar do homem. É este o aspecto
que um rei deve ter, pensou consigo mesmo quando o príncipe
passou por ele.
Então viu o outro, bamboleando ao lado do irmão, meio escondido
pelo seu corpo. Tyrion Lannister, o mais novo dos filhos de Lorde
Tywin e de longe o mais feio. Tudo o que os deuses tinham dado a
Cersei e Jaime negaram a Tyrion. Era um anão, com metade da
altura do irmão, .utando para acompanhar seu passo sobre pernas
atrofiadas. A cabeça era grande demais para o corpo, com uma cara
animalesca esborrachada por baixo de uma sobrancelha saliente. Um
olho verde e um negro espreitavam sob uma cascata de cabelos
corredios e tão louros que pareciam brancos. Jon o observou
fascinado.
O último dos grandes senhores a entrar foi seu tio, Benjen Stark, da
Patrulha da Noite, e o protegido do pai, o jovem Theon Greyjoy.
Benjen dirigiu a Jon um sorriso caloroso quando passou por ele.
Theon o ignorou por completo, mas nisso nada havia de novo.
Depois de todos se terem sentado, foram feitos brindes, dados e
devolvidos agradecimentos e, então, deu-se início ao festim.
Jon começara a beber nesse momento e ainda não parara. Algo roçou
sua perna sob a mesa. Ele viu olhos vermelhos que o encaravam.
- Outra vez com fome? - perguntou. Ainda havia meia galinha com
mel no centro da mesa. Jon esticou o braço para arrancar uma perna,
mas depois teve uma ideia melhor. Espetou uma faca na ave inteira e
a deixou escorregar para o chão por entre as pernas. Fantasma a
atacou em silêncio selvagem. Não tinham permitido aos irmãos e
irmãs que trouxessem seus lobos para o banquete, mas naquela
ponta do salão havia mais rafeiros do que Jon conseguia contar, e
ninguém dissera uma palavra sobre seu cachorro. Disse a si próprio
que também nisto era afortunado.
Seus olhos ardiam. Jon os esfregou furiosamente, amaldiçoando o
fumo. Engoliu outro trago de vinho e observou seu lobo gigante
devorando a galinha.
Cães moviam-se por entre as mesas, perseguindo as criadas. Um
deles, uma cadela preta vira--lata com longos olhos amarelos,
detectou o cheiro da galinha. Parou e meteu-se por baixo do banco
para obter uma parte. Jon observou o confronto. A cadela soltou uma
rosnadela profunda e aproximou-se. Fantasma ergueu os olhos
quentes e rubros, em silêncio, e se fixou nela. A cadela soltou um
desafio irado. Tinha três vezes seu tamanho, mas Fantasma não se
afastou. Ergueu-se sobre ela e abriu a boca, mostrando as presas. A
cadela ficou tensa, ladrou uma vez mais, e depois pensou melhor a
respeito da luta. Virou-se e escapuliu, com um último latido
desafiador para salvar o orgulho. Fantasma voltou a prestar atenção à
refeição,
Jon sorriu e esticou o braço para lhe acariciar o pelo branco. O lobo
gigante olhou para ele, deu-lhe uma dentadinha gentil na mão e
novamente pôs-se a comer.
- Este é um dos lobos gigantes de que tanto ouvi falar? - perguntou
perto dele uma voz familiar.
Jon ergueu seus olhos, feliz, quando tio Ben lhe pôs a mão na cabeça
e desalinhou seus cabelos tanto quanto ele fizera com os pelos do
lobo.
- Sim - disse. - Chama-se Fantasma.
Um dos escudeiros interrompeu a história obscena que estava
contando para abrir lugar na mesa para o irmão de seu senhor.
Benjen Stark escarranchou-se no banco com pernas longas e tirou a
taça de vinho da mão de Jon.
- Vinho de verão - disse depois de provar. - Não há nada tão doce.
Quantas taças já bebeu, Jon?
Jon sorriu.
Ben Stark soltou uma gargalhada.
- Tal como eu temia. Ah, bem, Acho que era mais novo do que você
da primeira vez que fiquei verdadeira e sinceramente bêbado -
surrupiou de uma travessa próxima uma cebola assada que pingava
molho de carne e mordeu-a. A cebola estalou.
O tio de Jon tinha feições angulosas e era descarnado como um
penhasco, mas havia sempre uma sugestão de riso em seus olhos
azul-acinzentados. Vestia-se de negro, como era próprio de um
homem da Patrulha da Noite. Hoje trajava um rico veludo negro,
com grandes botas de couro e um cinto largo com fivela de prata.
Uma pesada corrente de prata curvava-se em torno do seu pescoço.
Benjen observou Fantasma, divertido, enquanto comia a cebola.
- Um lobo muito sossegado - observou.
- Não é como os outros - disse Jon. - Nunca solta um som. Foi por
isso que o chamei Fantasma. Por isso e porque é branco. Os outros
são todos escuros, cinzentos ou pretos.
- Ainda há lobos gigantes para lá da Muralha. Ouvimo-los nas nossas
patrulhas - Benjen Stark olhou longamente para Jon. - Não costuma
comer à mesa dos seus irmãos?
- Na maior parte das ocasiões - respondeu Jon em voz monocórdia. -
Mas hoje a Senhora Stark pensou que poderia ser um insulto para a
família real se um bastardo se sentasse entre eles.
- Estou vendo - o tio olhou por sobre o ombro para a mesa elevada
na outra ponta do salão. - Meu irmão não parece muito festivo hoje.
Jon também notara. Um bastardo tinha de aprender a reparar nas
coisas, a ler a verdade que as pessoas escondiam por trás dos olhos.
Seu pai observava todas as cortesias, mas havia nele uma rigidez que
Jon raramente vira antes. Pouco falava, olhando o salão com olhos
cobertos, sem nada ver. A dois lugares de distância, o rei estivera
toda a noite bebendo muito. O rosto largo estava corado por trás da
barba negra. Fizera muitos brindes, rira sonoramente com todas as
brincadeiras e atacara todos os pratos como um faminto, mas, ao seu
lado, a rainha parecia tão fria como uma escultura de gelo.
- A rainha também está zangada - disse Jon ao tio com uma voz
calma e baixa. - Meu pai levou o rei às criptas esta tarde. A rainha
não queria que ele fosse.
Benjen deitou ajon um olhar cauteloso e avaliador,
- Não deixa passar muitas coisas, não é, Jon? Podíamos fazer uso de
um homem como você na Muralha.
Jon inchou de orgulho.
- Robb é um lanceiro mais forte que eu, mas sou melhor espadachim,
e Hullen diz que me sento num cavalo tão bem como qualquer outro
no castelo.
- Notáveis realizações.
- Leve-me consigo quando regressar à Muralha - disse Jon com súbita
precipitação. - Meu pai me dará licença para ir se lhe pedir, eu sei
que dará.
Tio Benjen estudou seu rosto com cuidado.
- A Muralha é um lugar duro para um rapaz, Jon.
- Sou quase um homem feito - Jon protestou. - Vou fazer quinze
anos no próximo dia do meu nome, e Meistre Luwin diz que os
bastardos crescem mais depressa que as outras crianças.
- Isso é verdade - disse Benjen, retorcendo a boca para baixo. Tomou
a taça de Jon, encheu-a de um jarro que encontrou ali perto e bebeu
um longo gole.
- Daeren Targaryen tinha só quinze anos quando conquistou Dorne -
disse Jon. O Jovem Dragão era um dos seus heróis.
- Uma conquista que durou um verão - o tio ressaltou. - Seu Rei
Rapaz perdeu dez mil homens na conquista do lugar e outros
cinquenta ao tentar mantê-lo. Alguém devia ter-lhe dito que a guerra
não é um jogo - bebeu outro gole de vinho. - Além disso - disse,
limpando a boca -, Daeren Targaryen tinha só dezoito anos quando
morreu. Ou será que se esqueceu dessa parte?
- Não me esqueço de nada - vangloriou-se Jon. O vinho o estava
deixando ousado. Tentou sentar-se muito ereto para parecer mais
alto. - Quero servir na Patrulha da Noite, tio.
Tinha refletido sobre o assunto longa e duramente, deitado na cama
à noite enquanto os irmãos dormiam à sua volta. Robb um dia
herdaria Winterfell, comandaria grandes exércitos enquanto Protetor
do Norte. Bran e Rickon seriam vassalos de Robb e governariam
castros em seu nome. As irmãs, Arya e Sansa, se casariam com os
herdeiros de outras grandes Casas e iriam para o sul como senhoras
dos seus próprios castelos. Mas a que lugar podia um bastardo
aspirar?
- Não sabe o que está pedindo, Jon. A Patrulha da Noite é uma
irmandade juramentada. Não temos famílias. Nenhum de nós será
algum dia pai. Somos casados com o dever. Nossa amante é a honra.
- Um bastardo também pode ter honra - disse Jon. - Estou pronto
para prestar o juramento.
- Você é um rapaz de catorze anos - disse Benjen. - Não é um
homem. Ainda não. Até ter conhecido uma mulher, não pode
compreender o que estará deixando para trás.
- Isto não me interessa! - Jon respondeu ardentemente.
- Mas poderia se interessar se soubesse a que me refiro - disse
Benjen. - Se soubesse o que o juramento lhe custará, estaria menos
ansioso por pagar o preço, filho.
Jon sentiu a ira crescer no peito.
- Não sou seu filho! Benjen Stark pôs-se em pé.
- Maior é a pena - pôs uma mão no ombro de Jon. - Venha ter
comigo depois de ter sido pai de alguns bastardos seus e veremos
então como se sente.
Jon estremeceu.
- Nunca serei pai de um bastardo - disse com cuidado. - Nunca! -
cuspiu a palavra como se fosse veneno.
De súbito, percebeu que a mesa caíra em silêncio e que todos o
estavam olhando. Sentiu que as lágrimas começavam a jorrar por
trás de seus olhos e pôs-se em pé.
- Devo me retirar - disse, com o resto de sua dignidade. Virou-se e
fugiu antes que o vissem chorar. Devia ter bebido mais vinho do que
se dera conta. Seus pés emaranhavam-se debaixo do corpo quando
tentou sair do salão e cambaleou de lado, esbarrando numa criada,
atirando ao chão um jarro de vinho com especiarias. Gargalhadas
trovejaram por todo o lado à sua volta, e Jon sentiu lágrimas quentes
nas bochechas. Alguém tentou equilibrá-lo, mas ele saiu com violên-
cia daquelas mãos e correu meio cego para a porta. Fantasma o
seguiu de perto para a noite.
O pátio estava silencioso e vazio. Uma sentinela solitária estava bem
no alto, nas ameias da muralha interior, bem enrolada no manto
contra o frio. O homem parecia aborrecido e infeliz ao apertar-se ali,
sozinho, mas Jon teria rapidamente trocado de lugar com ele. Além
da sentinela, o castelo estava escuro e deserto. Jon vira certa vez um
castro abandonado, um lugar lúgubre onde nada se movia além do
vento e as pedras mantinham o silêncio acerca de quem ali vivera.
Hoje, Winterfell lembrava-lhe esse dia.
Os sons de música e cantos derramavam-se pelas janelas abertas em
suas costas. Eram as últimas coisas que Jon queria ouvir. Limpou as
lágrimas na manga da camisa, furioso por tê-las deixado fluir, e
virou-se para ir embora.
- Rapaz - chamou uma voz.
Jon voltou-se.
Tyrion Lannister estava sentado na saliência por cima da porta do
grande salão, assemelhando-se por completo a uma gárgula. O anão
sorriu-lhe.
- Esse animal é um lobo?
- Um lobo gigante - disse Jon. - Chama-se Fantasma - pôs-se a olhar
o homenzinho, de súbito esquecido do desapontamento. - O que faz
aí? Por que não está no banquete?
- Está demasiado quente, demasiado ruidoso e bebi demasiado vinho
- disse o anão. -Aprendi há muito que se considera má-educação
vomitar por cima do irmão. Posso ver o seu lobo mais de perto?
Jon hesitou, mas depois concordou devagar.
- Consegue descer daí ou devo ir buscar uma escada?
- Ah, que se dane - disse o homenzinho. Atirou-se da saliência para o
ar vazio. Jon sobressaltou-se, depois viu com um temor respeitoso
como Tyrion Lannister rodopiou numa bola apertada, aterrissou
ligeiro sobre as mãos e depois volteou para trás, caindo em pé.
Fantasma afastou-se dele com receio.
O anão sacudiu o pó e soltou uma gargalhada.
- Creio que assustei seu lobo. Minhas desculpas.
- Não está assustado - disse Jon. Ajoelhou-se e chamou seu lobo. -
Fantasma, vem cá. Anda. Isso mesmo.
A cria de lobo aproximou-se e encostou o focinho no rosto de Jon,
mas manteve um olho cuidadoso em Tyrion Lannister, e, quando o
anão estendeu a mão para lhe fazer uma festa, afastou-se e mostrou
os caninos num rosnado silencioso.
- É tímido, não é? - observou Lannister.
- Senta, Fantasma - ordenou Jon. - Isso mesmo. Quieto - ergueu os
olhos para o anão. - Pode tocá-lo agora. Ele não se mexerá até que eu
lhe diga para fazê-lo. Eu o tenho treinado.
- Compreendo - disse o Lannister. Esfregou o pelo branco como a
neve entre as orelhas de Fantasma e disse: - Bonito lobo.
- Se eu não estivesse aqui, ele rasgaria sua garganta - disse Jon.
Ainda não era bem verdade, mas viria a ser.
- Nesse caso, é melhor que fique por perto - disse o anão. Inclinou a
cabeça grande demais rara um lado e observou Jon com seus olhos
desiguais. - Chamo-me Tyrion Lannister.
- Eu sei - disse Jon. Ergueu-se. Em pé, era mais alto que o anão. Mas
isto o fazia sentir-se estranho.
- E você é o bastardo de Ned Stark, não é?
Jon sentiu-se atravessado por uma sensação de frio. Apertou os lábios
e não disse nada.
- Eu o ofendi? - disse Lannister. - Perdão. Os anões não têm de ter
tato. Gerações de bobos Tiriegados conquistaram para mim o direito
de me vestir mal e de dizer qualquer maldita coisa que me venha à
cabeça - ele sorriu. - Mas você é o bastardo.
-Lorde Eddard Stark é meu pai - admitiu Jon rigidamente. Lannister
estudou-lhe o rosto.
- Sim - disse. - Consigo ver. Você tem em si mais do Norte que seus
irmãos.
- Meios-irmãos - Jon corrigiu. O comentário do anão o agradara, mas
tentou não mostrar.
- Deixe-me lhe dar um conselho, bastardo - disse Lannister. - Nunca
se esqueça de quem é, porque é certo que o mundo não se lembrará.
Faça disso sua força. Assim, não poderá ser nunca a sua fraqueza.
Arme-se com esta lembrança, e ela nunca poderá ser usada para
magoá-lo.
Jon não estava com disposição de ouvir conselhos de ninguém.
- Que sabe você de ser um bastardo?
- Todos os anões são bastardos aos olhos dos pais.
- Você é filho legítimo de Lannister.
- Ah, sou? - respondeu o anão, sarcástico. - Vá dizer isso ao senhor
meu pai. Minha mãe morreu ao dar-me à luz, e ele nunca teve
certeza.
- Nem sequer sei quem foi minha mãe - disse Jon.
- Uma mulher qualquer, sem dúvida. A maior parte delas é isso -
dirigiu a Jon um sorriso tristonho. - Lembre-se disto, rapaz. Todos os
anões serão bastardos, mas nem todos os bastardos precisam ser
anões - e, com aquelas palavras, virou as costas e regressou
vagarosamente ao banquete, assobiando uma canção. Quando abriu a
porta, a luz vinda de dentro atirou sua sombra bem definida pelo
pátio afora e, só por um momento, Tyrion Lannister ergueu-se alto
como um rei.
Catelyn
Entre todos os quartos da Torre Grande de Winterfell, os aposentos
de Catelyn eram os mais freqüentes. Ela raramente tinha de acender
uma fogueira. O castelo tinha sido construído sobre nascentes
naturais de água quente, e as águas escaldantes corriam pelas suas
paredes e quartos como sangue pelo corpo de um homem, afastando
o frio dos salões de pedra, enchendo os jardins de vidro com um
calor úmido, impedindo o congelamento da terra. Lagoas ao ar livre
fumegavam noite e dia numa dúzia de pequenos pátios. Isso, no
verão, era coisa pouca; no inverno, era a diferença entre a vida e a
morte.
O banho de Catelyn era sempre quente e cheio de vapor, e suas
paredes, mornas ao toque. O calor lembrava-lhe Correrrio, dias ao
sol com Lysa e Edmure, mas Ned nunca conseguira se habituar. Os
Stark eram feitos para o frio, dizia-lhe, e ela ria e respondia que
neste caso tinham certamente construído seu castelo no lugar errado.
Por isso, quando terminaram, Ned rolou e saltou para fora da cama,
como já fizera mil vezes antes. Atravessou o quarto, afastou as
pesadas tapeçarias e abriu as altas e estreitas janelas uma a uma,
deixando entrar o ar da noite.
O vento rodopiou à sua volta quando parou para olhar a escuridão,
nu e de mãos vazias. Catelyn puxou as peles até o queixo e o
observou. Parecia de certo modo menor e mais vulnerável, como o
jovem com quem se casara no septo de Correrrio havia quinze
longos anos. Seus rins ainda doíam da urgência do amor. Era uma
dor boa. Conseguia sentir a semente dele dentro de si. Rezou para
que pudesse aí brotar. Tinham-se passado três anos desde Rickon.
Ela não era velha demais. Podia lhe dar outro filho.
- Vou dizer-lhe que não - disse Ned quando se voltou de novo para
ela. Tinha os olhos assombrados por fantasmas e a voz espessa de
dúvidas.
Catelyn sentou-se na cama.
- Não pode. Não deve.
- Meus deveres estão aqui no Norte. Não tenho nenhum desejo de
ser a Mão de Robert.
- Ele não o compreenderá. E agora um rei, e os reis não são como os
outros homens. Se se recusar a servi-lo, ele quererá saber por que, e
mais cedo ou mais tarde começará a suspeitar de que se opõe a ele.
Não vê o perigo em que nos colocaria?
Ned abanou a cabeça, recusando-se a acreditar.
- Robert nunca me faria mal, nem a nenhum dos meus. Éramos mais
próximos que irmãos. Ele me adora. Se lhe disser que não, ele rugirá,
praguejará e estrondeará, e uma semana mais tarde estaremos juntos
a rir do assunto. Conheço o homem!
- Conhece o homem - disse ela. - O rei é um estranho para você -
Catelyn recordava o lobo gigante morto na neve, com o chifre
quebrado profundamente alojado na garganta. Tinha de fazê-lo
compreender. - O orgulho é tudo para um rei, meu senhor. Robert
percorreu toda esta distância para vê-lo, para lhe trazer estas
grandes honrarias, não pode atirá-las à cara.
- Honrarias? - Ned soltou uma gargalhada amarga.
- Aos seus olhos, sim - disse ela.
- E aos seus?
- Aos meus também - exclamou ela, agora zangada. Por que ele não
compreendia? - Oferece o próprio filho em casamento à nossa filha,
que outro nome daria a isso? Sansa pode vir um dia a ser rainha. Os
filhos deles poderão governar da Muralha até as montanhas de
Dorne. O que tem isso de errado?
- Deuses, Catelyn, Sansa tem só onze anos - Ned respondeu. - E
Joffrey.. Joffrey é... Ela acabou a frase por ele.
- ... príncipe da coroa e herdeiro do Trono de Ferro. E eu só tinha
doze anos quando meu pai me prometeu ao seu irmão Brandon.
Aquilo trouxe um trejeito amargo aos lábios de Ned.
- Brandon. Sim. Brandon saberia o que fazer. Sabia sempre. Tudo
estava destinado a Brandon. Você, Winterfell, tudo. Ele nasceu para
ser Mão do Rei e pai de rainhas. Eu nunca pedi para que este cálice
me fosse transmitido.
- Talvez não - disse Catelyn -, mas Brandon está morto, o cálice foi
transmitido, e agora você deve beber dele, goste ou não.
Ned virou-lhe as costas, devolvendo o olhar à noite. E ficou
observando talvez a lua e as estrelas, talvez as sentinelas na muralha.
Então Catelyn enterneceu-se ao ver sua dor. Eddard Stark casara
com ela ocupando o lugar de Brandon, como mandava o costume,
mas a sombra do irmão morto ainda pairava entre eles tal como a
outra, a sombra da mulher que dera à luz seu filho bastardo.
Preparava-se para se aproximar dele quando alguém bateu à porta,
sonora e inesperadamente. Ned virou-se, franzindo o olho.
- Que é?
A voz de Desmond soou através da porta.
- Senhor, Meistre Luwin está lá fora e suplica uma audiência urgente.
- Disse-lhe que deixei ordens para não ser incomodado?
- Sim, senhor. Ele insiste.
- Muito bem. Mande-o entrar,
Ned atravessou o quarto na direção de um roupeiro e enfiou-se num
roupão pesado. Catelyn subitamente percebeu como tinha ficado frio.
Sentou-se na cama e puxou as peles até o queixo.
- Talvez devêssemos fechar as janelas - sugeriu.
Ned anuiu de forma ausente. Meistre Luwin foi introduzido no
aposento.
O meistre era um pequeno homem cinzento, como seus olhos,
rápidos, que viam muito. Os cabelos, o pouco que os anos lhe tinham
deixado, eram cinzentos. Sua toga era de lã cinza ornamentada com
pelo branco, as cores dos Stark. As grandes mangas pendentes
tinham bolsos escondidos no interior. Luwin passava a vida a enfiar
coisas nessas mangas e a delas extrair outras mais: livros, mensagens,
estranhos artefatos, brinquedos para as crianças. Com tudo o que
mantinha escondido nas mangas, Catelyn surpreendia-se de o Meistre
Luwin ser capaz de erguer os braços.
O meistre esperou até que a porta fosse fechada atrás de si antes de
falar.
- Meu senhor - disse a Ned -, perdoe-me por perturbar seu descanso.
Foi-me deixada uma mensagem.
Ned parecia irritado.
- Foi-lhe deixada? Por quem? Chegou um cavaleiro? Não fui
informado.
- Não houve nenhum cavaleiro, senhor. Apenas uma caixa de madeira
esculpida, deixada sobre a mesa do meu observatório enquanto eu
cochilava. Meus servos não viram ninguém, mas deve ter sido trazida
por alguém da comitiva do rei. Não recebemos nenhum outro
visitante vindo do Sul.
- Uma caixa de madeira, você diz? - falou Catelyn.
- Lá dentro vinha uma nova lente de qualidade para o observatório,
aparentemente proveniente de Myr. Os fabricantes de lentes de Myr
não têm igual,
Ned franziu a testa. Catelyn sabia que ele tinha pouca paciência para
aquele tipo de coisa.
- Uma lente - disse. - Que tem isso a ver comigo?
- Fiz-me a mesma questão - disse o Meistre Luwin. - Era claro que
havia ali mais do que parecia.
Sob o peso de suas peles, Catelyn estremeceu.
- Uma lente é um instrumento para auxiliar a visão.
- De fato, é - o meistre levou os dedos ao colar da sua ordem; uma
corrente pesada, apertada em torno do pescoço sob a toga, com cada
elo forjado de um metal diferente.
Catelyn podia sentir o terror a agitar-se de novo dentro dela.
- O que é que eles querem que vejamos mais claramente?
- Foi isto mesmo o que me perguntei. - Meistre Luwin retirou um
papel muito bem enrolado de dentro da manga. - Encontrei a
verdadeira mensagem escondida num fundo falso quando
desmantelei a caixa em que a lente tinha vindo, mas não é para os
meus olhos.
Ned estendeu a mão.
- Então dê-me.
Luwin não se mexeu.
- Meus perdões, senhor. A mensagem também não é para o senhor.
Está marcada para os olhos da Senhora Catelyn, e apenas para ela.
Posso me aproximar?
Catelyn anuiu, faltando-lhe a confiança necessária para falar. O
meistre colocou o papel na mesa ao lado da cama. Estava selado com
uma pequena gota de cera azul. Luwin fez uma reverência e
começou a retirar-se.
- Fique - ordenou-lhe Ned. Sua voz era grave. Olhou para Catelyn.
- Que se passa? Senhora, está tremendo.
- Tenho medo - ela admitiu. Esticou o braço e pegou na carta com
mãos trementes. As peles caíram, revelando sua nudez olvidada. Na
cera azul encontrava-se o selo do falcão e da lua da Casa Arryn, - É
de Lysa - Catelyn olhou para o marido. - Não o deixará contente - ela
disse ao marido. - Há dor nesta mensagem, Ned. Posso senti-la.
Ned franziu a sobrancelha, e uma sombra cobriu seu rosto.
- Abra-a.
Catelyn quebrou o selo.
Seus olhos moveram-se sobre as palavras. A princípio pareceu não
encontrar nenhum sentido. Mas depois se recordou.
- Lysa não deixou nada ao acaso. Quando éramos meninas, tínhamos
uma língua privada.
- Consegue lê-la?
- Sim - admitiu Catelyn.
- Então nos conte o que diz.
Talvez deva me retirar - disse o Meistre Luwin.
- Não - Catelyn pediu. - Precisaremos do seu aconselhamento - atirou
as peles para o lado e saiu da cama. Ao caminhar pelo aposento,
sentiu na pele nua o ar da noite, tão frio como uma sepultura.
Meistre Luwin afastou o olhar. Até Ned pareceu chocado.
- Que está fazendo? - perguntou.
- Estou acendendo o fogo - ela informou. Encontrou um roupão e
encolheu-se para dentro dele, ajoelhando-se depois junto à lareira
fria.
- O Meistre Luwin... - começou Ned.
- O Meistre Luwin pôs no mundo todos os meus filhos - disse
Catelyn. - Isto não é hora para falsos pudores - enfiou o papel entre
os gravetos e colocou os troncos mais pesados por cima.
Ned atravessou o quarto, agarrou-lhe o braço e a pôs de pé.
Segurou-a assim, com o rosto a polegadas do dela.
- Minha senhora, diga! O que era esta mensagem?
Catelyn ficou tensa sob o aperto.
- Um aviso - disse com suavidade. - Se tivermos perspicácia para
escutá-lo. Os olhos dele perscrutaram seu rosto.
- Prossiga.
- Lysa diz que Jon Arryn foi assassinado. Os dedos dele endureceram
no seu braço.
- Por quem?
- Os Lannister - ela disse. - A rainha,
Ned largou o braço. Havia profundas marcas vermelhas na pele dela.
- Deuses - murmurou. Sua voz estava rouca. - Vossa irmã está
doente de dor. Não pode saber o que diz.
- Mas sabe - disse Catelyn. - Lysa é impulsiva, sim, mas esta
mensagem foi cuidadosamente planejada, e inteligentemente
escondida. Ela sabia que, se a carta caísse nas mãos erradas, isto sig-
nificaria a morte. Para arriscar tanto, deve ter mais que meras
suspeitas - Catelyn olhou para o marido. - Agora realmente não
temos escolha. Você tem de ser a Mão de Robert. Tem de ir com ele
para o Sul e saber a verdade.
Viu de imediato que Ned tinha chegado a uma conclusão muito
diferente.
- As únicas verdades que conheço estão aqui. O Sul é um ninho de
víboras que eu faria bem em evitar.
Luwin puxou a corrente de seu colar no local onde lhe irritara a pele
suave da garganta.
- A Mão do Rei possui grande poder, senhor. Poder para descobrir a
verdade sobre a morte de Lorde Arryn, para trazer seus assassinos à
justiça do rei. Poder para proteger a Senhora Arryn e seu filho, se o
pior se confirmar.
Ned olhou desamparado em torno do aposento. O coração de
Catelyn apiedou-se dele, mas sabia que ainda não podia tomá-lo nos
braços. Primeiro a vitória tinha de ser conseguida, para o bem de
seus filhos.
- Você diz que ama Robert como a um irmão. Gostaria de ver seu
irmão rodeado pelos Lannister?
- Que os Outros levem os dois - murmurou Ned em tom sombrio.
Virou-lhes as costas e foi até a janela. Ela nada disse, assim como o
meistre. Esperaram, calados, enquanto Eddard Stark dizia um
silencioso adeus à casa que amava. Quando por fim se afastou da
janela, tinha a voz cansada, repleta de melancolia, e um leve brilho
úmido nos cantos dos olhos. - Meu pai foi uma vez para o Sul, a fim
de responder à convocatória de um rei. Nunca mais regressou para
sua casa.
- Um tempo diferente - disse Meistre Luwin. - Um rei diferente.
- Sim - disse Ned com uma voz entorpecida. Sentou-se numa cadeira
perto da lareira. -Catelyn, você ficará aqui em Winterfell.
As palavras foram como um sopro gelado que atravessava seu
coração.
- Não - respondeu, de súbito temerosa. Seria aquela a sua punição?
Nunca voltar a ver o rosto dele, nem sentir seus braços em volta do
seu corpo?
- Sim - disse Ned, num tom de quem não toleraria discussões. - Deve
governar o Norte em meu nome enquanto trato dos recados de
Robert. Tem de haver sempre um Stark em Winterfell. Robb tem
catorze anos. Em breve será homem feito. Tem de aprender a
governar, e eu não estarei aqui para ajudá-lo. Faça-o tomar parte dos
conselhos. Ele tem de estar pronto quando sua hora chegar.
- Que os deuses permitam que ela não chegue por muitos anos -
murmurou Meistre Luwin.
- Meistre Luwin, confio em vós como no meu próprio sangue. Dê à
minha esposa a sua voz em todas as coisas grandes e pequenas.
Ensine a meu filho aquilo que ele precisa saber. O inverno está para
chegar.
Meistre Luwin anuiu com gravidade. Então caiu o silêncio, até
Catelyn reunir coragem e colocar a questão cuja resposta mais temia.
- E as outras crianças?
Ned levantou-se e tomou-a nos braços, trazendo-lhe o rosto para
junto do seu.
- Rickon é muito novo - disse, com suavidade. - Deve ficar aqui
contigo e com Robb. Os outros levarei comigo.
- Eu não suportaria - disse Catelyn, tremendo.
- Tem de suportar - disse ele. - Sansa deverá desposar Joffrey, isto é
agora claro; não devemos lhes dar bases para suspeitar da nossa
devoção. E já é mais que tempo de Arya aprender os costumes de
uma corte do Sul. Dentro de poucos anos também ela estará em
idade de casar.
Sansa brilharia no Sul, pensou Catelyn para si própria, e os deuses
bem sabiam como Arya precisava de requinte. Relutantemente, abriu
mão delas no coração. Mas Bran não. Bran nunca.
- Sim - disse -, mas, por favor, Ned, pelo amor que me tem, deixe
que Bran fique aqui em Winterfell. Ele só tem sete anos.
- Eu tinha oito quando meu pai me enviou para ser criado no Ninho
da Águia - ele respondeu. - Sor Rodrik me disse que existem maus
sentimentos entre Robb e o Príncipe Joffrey. Isto não é saudável.
Bran pode construir uma ponte sobre essa distância. É um rapaz
amável, rápido para rir, fácil de amar. Deixe que cresça com os
jovens príncipes, deixe que se torne seu amigo como Robert se
tornou meu. Nossa Casa ficará mais segura assim.
Ele tinha razão, e Catelyn sabia. Mas isto não tornava a dor mais fácil
de suportar. Então perderia todos os quatro: Ned e ambas as
meninas, e o seu doce, amoroso Bran. Só lhe restariam Robb e o
pequeno Rickon. Já se sentia só. Winterfell era um lugar tão vasto.
- Então mantenha-o longe das muralhas - ela disse com bravura. -
Você sabe como Bran gosta de escalar.
Ned secou-lhe as lágrimas nos olhos com beijos, não lhes dando
tempo de cair.
- Obrigado, senhora minha - murmurou. - Isto é duro, bem sei.
- E quanto ajon Snow, senhor? - perguntou Meistre Luwin.
Catelyn retesou-se ao ouvir a menção ao nome. Ned sentiu a ira nela
e afastou-se.
Muitos homens eram pais de bastardos. Catelyn crescera com esse
conhecimento. Não tinha sido surpresa para ela, no primeiro ano do
casamento, saber que Ned fora pai de uma criança nascida de uma
mulher qualquer, encontrada por acaso em campanha. Afinal de
contas, tinha as necessidades de um homem, e os dois tinham
passado aquele ano afastados, com Ned no Sul, na guerra, enquanto
ela permanecia em segurança no castelo do pai, em Correrrio. Seus
pensamentos iam mais para Robb, o bebê que amamentava, do que
para o marido, que pouco conhecia. Qualquer consolo que ele
encontrasse entre batalhas era-lhe indiferente, e se algum bebê vin-
gasse, ela esperava que Ned assegurasse as necessidades da criança.
Ele fez mais do que isso. Os Stark não eram como os outros homens.
Ned trouxe o bastardo para casa consigo e chamou-o de "filho" para
que todo o Norte ouvisse. Quando as guerras enfim terminaram e
Catelyn viajou para Winterfell, Jon e sua ama de leite já tinham
estabelecido residência.
O golpe foi profundo. Ned não falava da mãe, nem uma palavra, mas
um castelo não tem segredos, e Catelyn escutou suas aias repetirem
histórias que tinham ouvido dos maridos soldados. Segredavam sobre
Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã, o mais mortífero dos sete
cavaleiros da Guarda Real de Aerys, e sobre o modo como seu jovem
senhor o tinha matado em combate singular. E contavam como Ned
levara depois a espada de Sor Arthur à bela jovem irmã que o
esperava num castelo chamado Tombastela, na costa do Mar do
Verão. A Senhora Ashara Dayne, alta e de pele clara, com
assombrosos olhos cor de violeta. Levara uma quinzena para reunir
coragem, mas, por fim, uma noite na cama, Catelyn perguntara ao
marido se aquilo era verdade, confrontando-o com a história.
Fora a única vez em todos os anos passados juntos em que Ned a
assustara.
- Nunca me pergunte sobre Jon - ele dissera, frio como gelo. - É do
meu sangue, e é tudo o que precisa saber. E agora vou saber onde
ouviu esse nome, minha senhora - ela tinha jurado obedecer.
Cumprira a promessa. E a partir daquele dia os segredos pararam, e
o nome de Ashara Dayne nunca mais voltou a ser ouvido em
Winterfell.
Quem quer que tivesse sido a mãe de Jon, Ned devia tê-la amado
ferozmente, pois nada do que Catelyn dizia era capaz de convencê-lo
a mandar o rapaz embora. Era a única coisa que nunca lhe perdoaria.
Tinha acabado por amar o marido de todo o coração, mas nunca
encontrara em si lugar para amar Jon. Por Ned, poderia ter ignorado
uma dúzia de bastardos, desde que fossem mantidos longe de sua
vista. Jon nunca estava longe da vista, e à medida que crescia ficava
mais parecido com o pai do que qualquer um dos filhos legítimos
que lhe dera. De algum modo isso tornava as coisas piores.
- Jon tem de ir - ela dizia agora.
- Ele e Robb são próximos - disse Ned. - Tive esperança...
- Ele não pode ficar aqui - disse Catelyn, interrompendo-o. - É seu
filho, não meu. Não o quero aqui - ela sabia que era duro, mas não
menos verdade por isso. Ned não faria bem algum ao rapaz
deixando-o em Winterfell.
O olhar que Ned lhe deitou foi de angústia.
- Sabe que não posso levá-lo para o Sul. Não haverá lugar para ele na
corte. Um rapaz com nome de bastardo.. Sabe o que dirão dele. Será
posto de lado.
Catelyn fortificou o coração contra o apelo mudo nos olhos do
marido.
- Diz-se que seu amigo Robert foi pai de uma dúzia de bastardos.
- E nenhum deles foi algum dia visto na corte! - exclamou Ned. - A
Lannister assegurou-se disso. Como pode ser tão cruel, Catelyn? Ele
não passa de um rapaz. Ele...
Ele tinha a fúria no corpo. Poderia ter dito mais, e pior, mas Meistre
Luwin intrometeu-se:
- Outra solução se apresenta - disse, com voz calma. - O vosso irmão
Benjen veio há alguns dias falar-me de Jon. Parece que o rapaz aspira
a vestir negro.
Ned pareceu chocado.
- Ele pediu para se juntar à Patrulha da Noite?
Catelyn nada disse. Que Ned trabalhe sozinho a ideia em sua mente;
sua voz não seria agora bem-vinda. Mas de bom grado teria beijado
o meistre naquele momento. Aquela era a solução perfeita. Benjen
Stark era um Irmão Juramentado. Jon seria para ele um filho, o filho
que nunca teria. E a seu tempo, o rapaz faria também o juramento.
Não seria pai de filhos que poderiam um dia competir com os netos
de Catelyn pela posse de Winterfell.
Meistre Luwin disse:
- Existe grande honra no serviço na Muralha, senhor.
- E mesmo um bastardo pode erguer-se a grande altura na Patrulha
da Noite - refletiu Ned. Apesar disso, sua voz estava perturbada. - Jon
é tão novo. Se o tivesse pedido depois de ter se tornado homem
feito, seria uma coisa, mas um rapaz de catorze anos...
- É um sacrifício duro - concordou Meistre Luwin. - Mas estes são
tempos duros, senhor. O caminho dele não é mais cruel que o vosso
ou o da vossa senhora.
Catelyn pensou nos três filhos que teria de perder. Não foi fácil se
manter em silêncio. Ned virou-lhes as costas para olhar pela janela,
com o longo rosto silencioso e pensativo. Por fim, suspirou e voltou a
virar-se.
- Muito bem - disse a Meistre Luwin. - Suponho que é o melhor.
Falarei com Ben.
- Quando devemos dizê-lo ajon? - perguntou o meistre.
- Quando tiver de ser. Há que se fazer preparativos. Passará uma
quinzena antes de estarmos prontos para partir. Prefiro deixar Jon
usufruir destes últimos dias, O fim do verão já está próximo, e o da
infância também. Quando o momento certo chegar, comunicarei a
ele eu próprio.
Arya
Os pontos de Arya estavam de novo tortos.
Franziu a sobrancelha, desapontada, e olhou de relance para onde a
irmã Sansa estava entre as outras moças. Os bordados de Sansa eram
magníficos. Todos assim diziam. "O trabalho de Sansa é tão belo
como ela" dissera uma vez Septã Mordane à senhora sua mãe. "Ela
tem mãos tão bonitas e delicadas." Quando a Senhora Catelyn lhe
perguntara por Arya, a septã fungara: "Arya tem as mãos de um
ferreiro".
Arya atravessou a sala com um olhar furtivo, com receio de que
Septã Mordane pudesse ter lido seus pensamentos, mas hoje a septã
não lhe prestava atenção. Estava sentada junto da Princesa Myrcella,
toda sorrisos e admiração. Não era frequente que a septã fosse
privilegiada com a instrução de uma princesa real nas artes
femininas, como ela própria afirmara quando a rainha trouxera
Myrcella, A Arya pareceu que os pontos de Myrcella também
estavam um pouco tortos, mas ninguém o adivinharia pelo modo
como a Septã Mordane tanto elogiava.
Voltou a estudar o trabalho, procurando alguma maneira de salvá-lo,
mas então suspirou e pousou a agulha. Olhou, carrancuda, para a
irmã. Sansa tagarelava enquanto trabalhava, feliz. Beth Cassei, a filha
mais nova de Sor Rodrik, estava sentada a seus pés, escutando cada
palavra que ela dizia, e Jeyne Poole inclinava-se para lhe segredar
qualquer coisa ao ouvido.
- De que vocês falam? - perguntou Arya de súbito.
Jeyne olhou-a com ar sobressaltado, e depois soltou um risinho.
Sansa pareceu atrapalhada. Beth corou. Ninguém respondeu.
- Digam-me - disse Arya.
Jeyne olhou de relance para a Septã Mordane, a fim de se assegurar
de que não a ouviria. Myrcella disse então qualquer coisa, e a septã
riu como o resto das damas.
- Estávamos falando do príncipe - disse Sansa, com a voz suave como
um beijo.
Arya sabia a que príncipe se referia: Joffrey, claro. O alto e bonito.
Sansa pudera sentar-se a seu lado no banquete. Arya tivera que se
sentar ao lado do pequeno e gordo. Naturalmente.
-Joffrey gosta da sua irmã - segredou Jeyne, tão orgulhosa como se
tivesse alguma coisa a ver com o assunto. Era filha do intendente de
Winterfell e a melhor amiga de Sansa. - Disse-lhe que é muito bonita.
- Vai casar com ela - disse a pequena Beth em tom sonhador,
abraçando-se ao ar. - Depois Sansa será rainha de todo o reino.
Sansa teve a delicadeza de corar, E corava lindamente. Fazia tudo
lindamente, pensou Arya com um ressentimento surdo.
- Beth, não devia inventar histórias - Sansa a censurou, afagando-lhe
suavemente os cabelos para retirar a rispidez das palavras. Olhou
para Arya: - Que pensa do Príncipe Joff, irmã? E muito galante, não
acha?
- Jon diz que parece uma moça - Arya respondeu. Sansa suspirou
enquanto dava um pesponto.
- Pobre Jon. Ele tem ciúmes porque é um bastardo.
- Ele é nosso irmão - disse Arya, alto demais. Sua voz cortou o
sossego da tarde na sala da torre.
Septã Mordane ergueu os olhos. Tinha o rosto ossudo, olhos
aguçados e uma fina boca sem lábios, feita para ser franzida. E agora
assim estava.
- Do que estão falando, crianças?
- De nosso meio-irmão - respondeu Sansa, suave e precisa. Sorriu
para a septã. - Arya e eu estávamos observando como é agradável
termos a princesa hoje conosco - disse.
Septã Mordane acenou com a cabeça,
- De fato. Uma grande honra para todas nós - a Princesa Myrcella
recebeu o cumprimento com um sorriso pouco firme. - Arya, por
que você não está trabalhando? - perguntou a septã. Pôs-se de pé,
fazendo restolhar as saias engomadas ao atravessar a sala. - Deixe-me
ver os seus pontos.
Arya quis gritar. Era mesmo do feitio de Sansa atrair a atenção da
septã.
- Aqui está - disse, entregando o trabalho. A septã examinou o