afirmam os cantores. Bran, isso é só uma história, como os
contos de Florian, o Tolo. Uma fábula da Era dos Heróis - o
meistre soltou um estalido com a língua. - É preciso que ponha
esses sonhos de lado, só vão lhe partir o coração.
A menção a sonhos despertou-lhe a memória.
- Sonhei outra vez com o corvo na noite passada. Aquele com
três olhos. Voou até o meu quarto e me disse para ir com ele,
e foi o que fiz. Descemos às criptas. Meu pai estava lá, e
conversamos. Ele estava triste.
- E por quê? - Luwin espreitou pela sua luneta.
- Tinha qualquer coisa a ver com Jon, parece-me - o sonho fora
profundamente perturbador, mais que qualquer outro dos
sonhos com o corvo. - Hodor não quer descer às criptas.
O meistre estivera desatento, Bran percebeu. Tirou o olho da
luneta, pestanejando.
- Hodor não quer...
- Descer às criptas. Quando acordei, disse-lhe para me levar até
lá embaixo, para ver se meu pai estava mesmo lá. A princí pio,
não entendia o que eu dizia, mas levei-o até os degraus
dizendo--lhe para ir por ali e depois acolá, só que, lá chegando,
não quis descer. Limitou-se a ficar no degrau superior e a
dizer "Hodor", como se estivesse com medo do escuro, mas eu
tinha um archote. Deixou-me tão furioso que quase lhe dei
uma pancada na cabeça, como a Velha Ama faz sempre -
viu o modo como o meistre franzia as sobrancelhas e
acrescentou depressa: - Mas não dei.
- Ótimo. Hodor é um homem, não uma mula que se possa
espancar.
- No sonho, voei até lá embaixo com o corvo, mas não posso
fazer isso quando estou acordado - Bran explicou.
- Por que quer descer às criptas?
- Já disse. Para ir atrás do meu pai.
O meistre puxou a corrente que lhe envolvia o pescoço, como
fazia muitas vezes quando se sentia desconfortável.
- Bran, querida criança, um dia, Lorde Eddard se sentará lá
embaixo, na pedra, ao lado de seu pai e do pai de seu pai e de
todos os Stark até os velhos Reis do Norte... mas, se os deuses
forem bondosos, isso não acontecerá senão daqui a muitos
anos. Seu pai é prisioneiro da rainha em Porto Real. Não está
nas criptas.
- Ele estava lá ontem à noite. Conversei com ele.
- Rapaz teimoso - suspirou o meistre, pondo o livro de lado. -
Quer ir ver?
- Não posso, Hodor não quer ir, e os degraus são estreitos e
tortuosos demais para a Dançarina.
- Acho que posso resolver esse problema.
Em vez de Hodor, chamaram a selvagem Osha. Era alta, dura e
não se queixava, indo de bom grado onde quer que a
mandassem.
- Vivi a minha vida para lá da Muralha, um buraco no chão não
há de me aborrecer, senhores - ela disse.
- Verão, anda - chamou Bran quando ela o ergueu em braços
fortes como metal. O lobo gigante largou o osso e seguiu Osha,
que atravessou o pátio com Bran e desceu os degraus em
espiral até a fria abóbada subterrânea. Meistre Luwin seguia à
frente com um archote. Bran nem se importou - muito - que
ela o transportasse nos braços, e não às costas. Sor Rodrik
ordenara que tirassem as correntes de Osha, pois a mulher
servira bem e fielmente desde que estava em Winterfell. Ainda
usava as pesadas grilhetas de ferro em torno dos tornozelos -
um sinal de que ainda não confiavam inteiramente nela -mas
não prejudicavam seus passos seguros nos degraus.
Bran não recordava a última vez em que estivera nas criptas.
Fora antes, com certeza. Quando era pequeno, costumava
brincar ali com Robb, Jon e as irmãs.
Desejou que estivessem ali agora; a cripta talvez não parecesse
tão escura e assustadora. Verão avançou pelas sombras cheias
de ecos, e então parou, ergueu a cabeça e farejou o ar gelado e
morto. Mostrou os dentes e rastejou para trás, com os olhos
brilhando, dourados à luz do archote do meistre. Até Osha,
dura como ferro velho, parecia desconfortável.
- Gente sombria - disse ao observar a longa fila Stark em
granito, nos seus tronos de pedra.
- Eram os Reis do Inverno - sussurrou Bran. Por algum motivo,
parecia errado falar alto naquele lugar.
Osha sorriu.
- O inverno não tem rei. Se o tivesse visto, saberia, rapaz de
verão.
- Eles foram os Reis do Norte durante milhares de anos - disse
Meistre Luwin, erguendo o archote bem alto para que a luz
brilhasse nos rostos de pedra. Alguns eram homens cabeludos
e barbudos, desgrenhados como os lobos que se agachavam a
seus pés. Outros se apresentavam escanhoados, com traços
magros e aguçados como as espadas longas que tinham sobre
as pernas. Homens duros para tempos duros. Venham -
caminhou vivamente pela cripta, passando pela procissão de
pilares de pedra e pelas infinitas figuras esculpidas. Uma língua
de chamas projetava-se do archote erguido enquanto ele
prosseguia.
A abóbada era cavernosa, mais longa que o próprio Winterfell,
e Jon dissera-lhe uma vez que havia outros níveis abaixo,
criptas ainda mais profundas e mais escuras onde estavam
enterrados os outros reis. Não seria bom perder a luz. Verão
recusou-se a se afastar dos degraus, mesmo quando Osha
seguiu o archote com Bran nos braços.
- Lembra de suas histórias, Bran? - perguntou o meistre
enquanto caminhavam. - Conta a Osha quem eles eram e o que
fizeram, se puder.
Bran olhou para os rostos que passavam e as histórias vieram -
lhe à memória. O meistre contara-as, e a Velha Ama dera-lhes
vida.
- Aquele é Jon Stark. Quando os atacantes vindos do mar
desembarcaram no leste, expulsou--os e construiu o castelo em
Porto Branco. O filho foi Rickard Stark, não o pai do meu pai,
mas outro Rickard, que conquistou o Gargalo do Rei do
Pântano e casou-se com sua filha. Theon Stark é aquele muito
magro de cabelos compridos e barba estreita. Chamavam -no
"Lobo Faminto", porque estava sempre em guerra. Aquele é um
Brandon, o alto com ar sonhador, era Brandon, o Construtor
Naval, porque adorava o mar. Sua tumba está vazia. Tentou
navegar para oeste, através do Mar do Poente, e nunca mais foi
visto. O filho era Brandon, o Incendiário, porque passou o
archote em todos os navios do pai por desgosto. Ali está
Rodrik Stark, que conquistou a Ilha dos Ursos num combate de
luta livre e a deu aos Mormont. E aquele é Torrhen Stark, o
Rei Que Ajoelhou. Foi o último Rei do Norte e o primeiro
Senhor de Winterfell, depois de se render a Aegon, o
Conquistador. Ah, ali, aquele é Cregan Stark. Lutou uma vez
contra o Príncipe Aemon, e o Cavaleiro do Dragão disse que
nunca tinha defrontado melhor espadachim - estavam agora
quase no fim, e Bran sentiu-se submergir em tristeza. - E ali
está o meu avô, Lorde Rickard, que foi decapitado pelo Rei
Louco Aerys. A filha Lyanna e o filho Brandon estão nas
sepulturas ao seu lado. Eu, não, outro Brandon, irmão do meu
pai. Não era previsto que tivessem estátuas, que i sto é só para
os senhores e reis, mas meu pai os amava tanto que as mandou
fazer.
- A donzela é bonita - disse Osha.
- Estava prometida a Robert, mas o Príncipe Rhaegar a raptou
e violentou - explicou Bran.
- Robert lutou uma guerra para reconquistá-la. Matou Rhaegar
no Tridente com o seu martelo, mas Lyanna morreu e ele
nunca a teve de volta.
- Uma história triste - disse Osha -, mas aqueles buracos vazios
são mais tristes.
- A tumba de Lorde Eddard, para quando seu dia chegar - disse
Meistre Luwin. - Foi aqui que viu seu pai no sonho, Bran?
- Sim
-
a
memória
o
fez
estremecer,
Olhou
desconfortavelmente em volta, com os pelos da nuca eriçados.
Ouvira um ruído? Estaria alguém ali?
Meistre Luwin aproximou-se do sepulcro aberto, com o archote
na mão.
- Como pode ver, ele não está aqui. Nem estará, durante muitos
anos. Os sonhos são apenas sonhos, menino - enfiou o braço
na escuridão do interior da tumba, como se fosse a boca de um
grande animal qualquer. - Vê? Está bem vaz...
A escuridão saltou sobre ele, rosnando.
Bran viu olhos que eram como fogo verde, uma cintilação de
dentes, pelo tão negro como o breu que os rodeava. O archote
saltou dos dedos do meistre, rolou pelo rosto de pedra de
Brandon Stark e caiu aos pés da estátua, com as chamas
lambendo-lhe as pernas. A luz ébria e irregular do archote,
viram Luwin lutar com o lobo gigante, batendo-lhe no focinho
com a mão enquanto os maxilares se fechavam sobre a outra.
- Verão! - Bran gritou.
E Verão veio, precipitando-se das trevas atrás deles, uma
sombra em salto. Esbarrou em Cão Felpudo e atirou-o para
trás, e os dois lobos gigantes rolaram e voltaram a rolar num
emaranhado de pelo cinzento e negro, mordendo-se um ao
outro, enquanto Meistre Luwin se punha em pé com
dificuldade, com o braço rasgado e ensanguentado. Osha
apoiou Bran no lobo de pedra de Lorde Rickard e correu para
prestar assistência ao meistre, A luz do archote que se
extinguia, lobos de sombra com seis metros de altura lutavam
na parede e no teto.
- Felpudo - chamou uma voz sumida. Quando Bran ergueu os
olhos, o irmão mais novo estava em pé na abertura da
sepultura do pai. Dando uma última dentada no focinho de
Verão, Cão Felpudo afastou-se e pôs-se ao lado de Rickon. -
Deixe meu pai em paz - avisou Rickon a Luwin. - Deixe-o em
paz.
- Rickon - disse Bran suavemente. - O pai não está aqui,
- Está, sim, Eu o vi - lágrimas brilhavam no rosto de Rickon. -
Eu o vi ontem à noite.
- No seu sonho?...
Rickon confirmou com a cabeça.
- Deixe-o. Deixe-o em paz. Ele agora vem para casa, como
prometeu. Vem para casa.
Bran nunca antes vira Meistre Luwin com uma expressão tão
incerta. Sangue pingava-lhe do braço, onde Cão Felpudo
rasgara a lã da manga e a carne que estava por baixo.
- Osha, o archote - ele pediu, mordendo a dor, e ela o apanhou
antes que se apagasse. Manchas de fuligem enegreciam ambas
as pernas do retrato do tio de Bran, - Aquele... aquele animal -
prosseguiu Luwin - devia estar acorrentado nos canis.
Rickon deu uma palmadinha no focinho de Cão Felpudo, úmido
de sangue.
- Eu o libertei. Ele não gosta de correntes - o lobo lambeu-lhe
os dedos.
- Rickon - disse Bran -, quer vir comigo?
- Não. Gosto disto aqui.
- Aqui está escuro. E frio.
- Não tenho medo. Tenho de esperar pelo pai.
- Pode esperar comigo - disse Bran. - Vamos esperar juntos, eu,
você e os nossos lobos -ambos os lobos lambiam as feridas, e
precisavam de um exame atento.
- Bran - disse firmemente o meistre -, eu sei que você tem boas
intenções, mas Cão Felpudo é selvagem demais para andar à
solta. Eu sou o terceiro homem que ele ataca. Dê -lhe a
liberdade do castelo, e é só questão de tempo antes que mate
alguém. A verdade é dura, mas o lobo tem de ser acorrentado,
ou... - hesitou.
... ou morto, pensou Bran, mas o que disse foi:
- Ele não foi feito para correntes. Esperaremos na sua torre,
todos nós.
- Isso é completamente impossível - disse Meistre Luwin.
Osha sorriu.
- Se bem me lembro, o pequeno lorde aqui é o rapaz -
devolveu o archote a Luwin e voltou a pegar Bran. - A torre do
meistre.
- Você vem, Rickon?
O irmão concordou.
- Se Felpudo vier também - disse, correndo atrás de Osha e
Bran, e não houve nada que Meistre Luwin pudesse fazer a não
ser segui-los, mantendo um olho cauteloso nos lobos.
A torre de Luwin estava tão atravancada que Bran se espantava
de o meistre conseguir encontrar fosse o que fosse. Instáveis
pilhas de livros cobriam mesas e cadeiras, fileiras de frascos
rolhados revestiam as prateleiras, tocos de velas e poças de
cera seca estavam espalhados pela mobília, a luneta miriana,
feita de bronze, apoiava-se num tripé perto da porta da
varanda, cartas estelares pendiam das paredes, mapas
sombreados encontravam-se espalhados por entre as esteiras,
havia papéis, penas e potes de tinta por toda a parte, e tudo se
achava manchado pelos excrementos dos corvos que se
empoleiravam nas traves. Seus estridentes quorcs soaram,
vindos do teto, enquanto Osha lavava, limpava e enfaixava as
feridas do meistre, seguindo suas concisas instruções.
- Isto é uma loucura - disse o pequeno homem cinzento
enquanto ela pincelava as dentadas do lobo com um unguento
que ardia. - Concordo que é estranho que ambos tenham
sonhado o mesmo sonho, mas quando paramos para pensar,
vemos que é natural. Sentem saudade do senhor seu pai, e
sabem que ele está preso. O medo pode tornar febril a mente
de um homem e lhe dar estranhos pensamentos. Rickon é novo
demais para perceber...
-Já tenho quatro anos - disse Rickon, Espiava as gárgulas na
Primeira Fortaleza pela luneta. Os lobos selvagens estavam
instalados em lados opostos da grande sala redonda, lambendo
as feridas e roendo ossos.
- ...novo demais e... ooh, pelos sete infernos, isso arde, não, não
pare, mais. Novo demais, como dizia, mas você, Bran, já tem
idade para saber que sonhos são apenas sonhos.
- Alguns são, outros, não - Osha jogou leite de fogo vermelho-
claro num longo corte. Luwin arquejou. - Os filhos da floresta
podiam lhe dizer uma coisa ou duas a respeito dos sonhos.
Corriam lágrimas pelo rosto do meistre, mas ele sacudiu a
cabeça teimosamente.
- Os filhos... sobrevivem apenas em sonhos. Hoje. Mortos e
enterrados. Chega, já chega. Agora as ataduras. Unguentos e
depois as faixas, e aperte-as bem, porque vai sangrar.
- A Velha Ama diz que os filhos conheciam as canções das
árvores, que podiam voar como aves e nadar como peixes e
falar com os animais - disse Bran. - Diz que criavam música
tão bela que nos fazia chorar como bebês só de ouvi-la.
- E faziam tudo isso com magia - disse Meistre Luwin,
distraído. - Gostaria que aqui estivessem agora. Um feitiço
curaria meu braço com menos dor, e poderiam falar com Cão
Felpudo e dizer-lhe para não morder - lançou ao grande lobo
negro um relance zangado pelo canto do olho. - Aprenda o
seguinte, Bran: o homem que confia em feitiços luta com
espada de vidro. E os filhos confiavam. Venha cá, deixe -me
mostrar uma coisa - pôs-se abruptamente em pé, atravessou a
sala e regressou com um frasco verde na mão boa. - Olhe para
isto - disse, enquanto tirava a rolha e, com um abanão, fazia
cair um punhado de pontas de seta brilhantes e negras.
Bran pegou uma.
- É feita de vidro - curioso, Rickon aproximou-se da mesa para
espiar.
- Vidro de dragão - disse Osha ao sentar-se ao lado de Luwin,
com as ataduras na mão.
- Obsidiana - insistiu Meistre Luwin, estendendo o braço
ferido. - Forjada nas fogueiras dos deuses, nas profundezas da
terra. Os filhos da floresta caçavam com isso há milhares de
anos. Eles não trabalhavam o metal. Em lugar de cota de
malha, usavam longas camisas de folhas entrelaçadas e
envolviam as pernas com cortiça, para que parecessem se
fundir com a floresta. No lugar de espadas, usavam lâminas de
obsidiana.
- E ainda usam - Osha colocou unguentos suaves sobre as
mordidas no braço do meistre e os atou bem apertados com
longas faixas de linho.
Bran aproximou a ponta de seta dos olhos. O vidro negro era
liso e brilhante. Achou-o belo.
- Posso ficar com uma?
- Como quiser - disse o meistre.
- Também quero uma - disse Rickon. - Quero quatro. Tenho
quatro anos.
Luwin o obrigou a contá-las.
- Cuidado, ainda são afiadas, podem cortá-lo.
- Fala mais dos filhos - Bran pediu. Era importante.
- Que quer saber?
- Tudo.
Meistre Luwin puxou o colar de correntes onde lhe irritava o
pescoço.
- Eram pessoas da Era da Aurora, as primeiras, de antes dos
reis e dos reinos. Naquele tempo, não havia castelos ou
fortalezas, não havia cidades, nem sequer se encontrava uma
vila mercantil entre aqui e o mar de Dorne. Não havia homens
nenhuns. Só os filhos da floresta habitavam as terras a que
hoje chamamos os Sete Reinos. Eram um povo escuro e belo,
de baixa estatura, não eram mais altos que crianças, mesmo na
idade adulta. Viviam nas profundezas dos bosques, em
cavernas, no meio dos lagos e em aldeias secretas nas árvores.
Como eram leves, os filhos eram ligeiros e graciosos. Os dois
sexos caçavam juntos, com arcos de represeiros e laços. Seus
deuses eram os deuses da floresta, dos rios e das pedras, os
velhos deuses cujos nomes são secretos. Seus sábios
chamavam-se videntes verdes, e esculpiam estranhos rostos
nos represeiros para vigiar os bosques. Ninguém sabe durante
quanto tempo os filhos reinaram aqui nem de onde vieram.
Mas, há cerca de doze mil anos, os Primeiros Homens
chegaram do oriente, atravessando o Braço Partido de Dorne
antes de ele ter sido partido. Chegaram com espadas de bronze
e grandes escudos de couro, montados em cavalos. Nenhum
cavalo fora alguma vez visto deste lado do mar estreito. Não há
dúvida que os filhos ficaram tão atemorizados pelos cavalos
como os Primeiros Homens, pelos rostos nas árvores. Quando
os Primeiros Homens construíram fortalezas e fazendas,
abateram os rostos e os queimaram. Horrorizados, os filhos
partiram para a guerra. As antigas canções dizem que os
videntes verdes usaram magia negra para fazer o mar subir e
varrer a terra, quebrando o Braço, mas era tarde demais para
fechar a porta. As guerras prolongaram-se até a terra ficar
rubra com o sangue de homens e filhos da floresta, mais destes
que daqueles, pois os homens eram maiores e mais fortes, e
madeira, pedra e obsidiana eram fraca oposição contra o
bronze. Por fim, prevaleceu a sensatez das duas raças, e os
chefes e heróis dos Primeiros Homens encontraram-se com os
videntes verdes e dançarinos da floresta nos bosques de
represeiros de uma ilhota no grande lago chamado Olho de
Deus. Foi aí que forjaram o Pacto. Aos Primeiros Homens
foram dadas as terras costeiras, os planaltos e os prados
luminosos, as montanhas e os pântanos, mas a floresta
profunda ficaria para sempre nas mãos dos filhos, e nenhum
outro represeiro seria destruído pelo machado em todo o
território. Para que os deuses testemunhassem a assinatura, a
todas as árvores da ilha foi dada uma cara e, mais tarde, foi
formada a sagrada Ordem dos Homens Verdes para vigiar a
Ilha das Caras. O Pacto iniciou quatro mil anos de amizade
entre os homens e os filhos da floresta. Com o tempo, os
Primeiros Homens até puseram de lado os deuses que tinham
trazido
consigo
e
passaram a adorar os deuses secretos da floresta. A assinatura
do Pacto pôs fim à Era da Aurora e iniciou a Era dos Heróis.
O punho de Bran enrolou-se em volta da brilhante ponta de
seta negra.
- Mas o senhor disse que os filhos da floresta estão agora todos
mortos.
- Aqui estão - disse Osha, enquanto cortava com os dentes o
fim da última atadura. - A norte da Muralha as coisas são
diferentes. Foi para lá que os filhos foram, tal como os gigantes
e as outras raças antigas.
Meistre Luwin suspirou.
- Mulher, por favor, devia estar morta ou encarcerada. Os Stark
a trataram com mais bondade do que merece. Não é bom
retribuir-lhes a simpatia enchendo a cabeça dos rapazes de
besteiras,
- Diz para onde eles foram - Bran desafiou. - Quero saber.
- Eu também - disse Rickon, num eco.
- Ah, muito bem - resmungou Luwin, - Enquanto os reinos dos
Primeiros Homens mantiveram o poder, o pacto manteve-se ao
longo de toda a Era dos Heróis, da Longa Noite e do
nascimento dos Sete Reinos, mas por fim chegou uma época,
muitos séculos mais tarde, em que outros povos atravessaram
o mar estreito. Os ândalos foram os primeiros; uma raça de
guerreiros altos de cabelos claros que chegaram com aço, fogo
e a estrela de sete pontas dos novos deuses pintada no peito.
As guerras prolongaram-se ao longo de centenas de anos, mas,
no fim, todos os seis reinos do Sul caíram perante eles. Só
aqui, onde o Rei do Norte repeliu todos os exércitos que
tentaram atravessar o Gargalo, permaneceu a lei dos Primeiros
Homens. Os ândalos incendiaram os bosques de represeiros,
destruíram os rostos a machadadas, mataram os filhos da
floresta onde os encontraram e proclamaram por todo o lado o
triunfo dos Sete sobre os velhos deuses. Por isso, os filhos
fugiram para o norte...
Verão começou a uivar.
Meistre Luwin interrompeu-se, sobressaltado. Quando Cão
Felpudo se ergueu de um salto e juntou sua voz à do irmão, o
terror apertou o coração de Bran.
- Está para chegar - sussurrou, com a certeza, do desespero.
Compreendeu que o sabia desde a noite anterior, desde que o
corvo o levara até as criptas para dizer adeus. Sabia, mas não
acreditara. Desejava que Meistre Luwin tivesse razão. O corvo,
pensou, o corvo de três olhos...
Os uivos pararam tão subitamente como tinham começado.
Verão atravessou o chão da torre até junto de Cão Felpudo e
pôs-se a lamber um emaranhado de pelo ensanguentado no
pescoço do irmão. Da janela veio um ruído de asas.
Um corvo pousou no parapeito de pedra cinzenta, abriu o bico
e soltou um ruído duro e rouco de aflição.
Rickon começou a chorar. As pontas de seta caíram de sua mão
uma por uma e tamborilaram no chão. Bran o puxou para si e
o abraçou.
Meistre Luwin olhou para a ave negra como se fosse um
escorpião com penas. Ergueu-se, lento como um sonâmbulo, e
dirigiu-se à janela. Quando assobiou, o corvo saltou para cima
de seu braço enfaixado. Trazia sangue seco nas asas.
- Um falcão - murmurou Luwin -, talvez uma coruja. Pobre
animal, é incrível que tenha sobrevivido - tirou-lhe a carta da
perna.
Bran deu por si tremendo enquanto o meistre desenrolava o
papel.
- O que é? - perguntou, apertando o irmão com mais força
ainda.
- Você sabe o que é, rapaz - disse Osha, de uma forma que não
era desprovida de bondade, e pousou-lhe a mão na cabeça.
Meistre Luwin olhou-os, estupidificado, um homenzinho
cinzento com sangue na manga da veste de lã cinzenta e
lágrimas nos olhos brilhantes e cinzentos.
- Senhores - disse aos rapazes, numa voz que se tinha tornado
rouca e sem força -, nós... teremos de encontrar um escultor
que conheça bem as suas feições...
Sansa
No quarto da torre, no coração da Fortaleza de Maegor, Sansa
entregou-se às trevas. Ar Fechou as cortinas em volta da cama,
dormiu, acordou chorando e voltou a adormecer. Quando não
mais conseguiu dormir, ficou deitada sob os cobertores,
tremendo de desgosto. Os criados iam e vinham trazendo
refeições, mas a visão de comida era mais do que conseguia su -
portar. Os pratos empilhavam-se na mesa junto à janela,
intocados, estragando, até que os criados os levassem de volta.
Por vezes, seu sono era de chumbo e sem sonhos, e acordava
mais cansada do que estivera quando fechara os olhos. Mas
esses eram os melhores momentos, pois, quando sonhava,
sonhava com o pai. Acordada ou dormindo, via-o, via os
homens de manto dourado empurrá-lo para baixo, via Sor Ilyn
avançar a passos largos, desembainhando Gelo da bainha que
levava às costas, via o momento... o momento em que... quisera
afastar os olhos, quisera fazê-lo, perdera o apoio das pernas e
caíra de joelhos, mas de algum modo não fora capaz de virar a
cabeça, e todo mundo gritava e berrava, e o seu príncipe
sorrira-lhe, ele sorrira e ela se sentira segura, mas só por um
momento, até dizer aquelas palavras, e as pernas do pai... era
isso que recordava, as pernas, a maneira como elas se tinham
sacudido quando Sor Ilyn... quando a espada...
Se calhar, também vou morrer, disse a si mesma, e a ideia
não lhe pareceu assim tão terrível. Se se atirasse da janela,
poderia pôr fim ao sofrimento, e nos anos vindouros os
cantores escreveriam canções sobre o seu pesar. Seu corpo
jazeria sobre as pedras, lá embaixo, quebrado e inocente,
envergonhando todos aqueles que a tinham traído. Sansa
chegara a atravessar o quarto e a abrir as venezianas... mas
então a coragem a deixara, e correra de volta à cama, aos
soluços.
As criadas tentavam conversar com ela quando lhe traziam as
refeições, mas nunca lhes deu resposta. Uma vez, o Grande
Meistre Pycelle veio ao quarto com uma caixa cheia de frascos
e garrafas, para perguntar se estava doente. Pôs a mão em sua
testa, obrigou-a a despir-se e tocou-a por todo o lado enquanto
a criada a segurava. Quando saiu, deu-lhe uma poção de
aguamel e ervas e disse-lhe para beber um gole todas as noites.
Ela a bebeu toda de uma vez e voltou a adormecer.
Sonhou com passos na escada da torre, um agourento raspar
de couro em pedra feito por um homem que subia lentamente
até seu quarto, degrau por degrau. Tudo o que podia fazer era
comprimir-se contra a porta e escutar, tremendo, enquanto ele
se aproximava cada vez mais. Sabia que era Sor Ilyn Payne
vindo buscá-la, com Gelo na mão, para cortar-lhe a cabeça. Não
havia para onde fugir, não havia esconderijo nenhum, nenhuma
maneira de trancar a porta. Por fim, os passos pararam e ela
soube que ele estava mesmo do outro lado, ali, em pé,
silencioso, com seus olhos mortos e a longa cara marcada. Foi
então que se percebeu nua. Agachou-se, tentando cobrir-se
com as mãos, ao mesmo tempo em que a porta começava a se
abrir, rangendo, com a ponta da espada espreitando...
Acordou murmurando:
- Por favor, por favor, serei boa, serei boa, por favor, não -
mas não havia ninguém para ouvi-la.
Quando por fim vieram realmente buscá-la, Sansa não chegou
a ouvir os passos. Foi Joffrey quem abriu a porta, não Sor Ilyn,
e sim o rapaz que fora o seu príncipe. Estava na cama,
enrolada sobre si mesma, com as cortinas cerradas, e não
soube dizer se era meio-dia ou meia-noite. A primeira coisa
que ouviu foi a porta batendo. Depois, as colchas da cama
foram puxadas para trás, e ela ergueu a mão contra a sú bita
luz e os viu em pé a seu lado.
- Esta tarde a apresentarei na audiência - disse Joffrey. - Trate
de se banhar e vestir algo próprio para minha prometida -
Sandor Clegane estava ao lado dele com um gibão simples
marrom e uma capa verde, com o rosto queimado hediondo à
luz da manhã. Atrás deles encontravam-se dois cavaleiros da
Guarda Real trajando longos mantos de cetim branco.
Sansa puxou a manta até o queixo para se cobrir.
- Não - choramingou -, por favor... deixe-me em paz.
- Se recusar a se levantar e se vestir, meu Cão de Caça fará
isso por você - disse Joffrey.
- Suplico-lhe, meu príncipe...
- Eu agora sou rei. Cão, tire-a da cama.
Sandor Clegane agarrou-a pela cintura e a ergueu da cama de
penas enquanto ela se debatia numa luta frágil. O cobertor
caiu ao chão. Por baixo, tinha apenas uma fina camisa de
dormir cobrindo-lhe a nudez.
- Faz o que lhe pedem, criança - disse Clegane. - Vista-se -
empurrou-a até o roupeiro, quase com gentileza.
Sansa afastou-se deles.
- Eu fiz o que a rainha pediu, escrevi as cartas, escrevi o que
ela me disse para escrever. Vossa Graça prometeu que seria
misericordioso. Por favor, deixe-me ir para casa. Não cometerei
traições, serei boa, juro, não tenho sangue de traidor, não
tenho. Só quero ir para casa - recordando-se da boa educação,
baixou a cabeça. - Se for sua vontade - terminou em voz fraca.
- Não é - disse Joffrey. - A mãe diz que eu ainda devo me casar
com você, portanto, ficará aqui e obedecerá.
- Eu não quero me casar com você - choramingou Sansa. -
Cortou a cabeça do meu pai!
- Ele era um traidor. Nunca prometi poupá-lo, só ser
misericordioso, e isso fui. Se ele não fosse seu pai, teria
mandado dilacerá-lo ou flagelá-lo, mas lhe ofereci uma morte
limpa.
Sansa fixou os olhos nele, vendo-o pela primeira vez. Vestia um
gibão carmesim almofadado com um padrão de leões e uma
capa de pano de ouro com um colarinho elevado que lhe en -
quadrava o rosto. Perguntou-se como podia alguma vez tê-lo
achado bonito. Tinha uns lábios tão moles e vermelhos como
os vermes que se encontravam depois das chuvas, e os olhos
eram vaidosos e cruéis.
- Odeio-o - sussurrou.
O rosto do Rei Joffrey endureceu.
- Minha mãe me disse que não é próprio que um rei bata na
esposa. Sor Meryn.
O cavaleiro estava em cima dela antes sequer de ter tempo de
pensar, puxando-lhe a mão para trás quando tentou proteger o
rosto e dando-lhe um murro na orelha com as costas de um
punho enluvado. Sansa não se lembrava de ter caído, mas,
quando deu por si, estava estatelada nas estei ras. A cabeça
ressoava. Sor Meryn Trant pairava sobre ela, com sangue nos
nós dos dedos de sua luva de seda branca.
- Irá me obedecer agora, ou terei de mandá-lo castigá-la de
novo?
Sansa sentia a orelha dormente. Tocou-a, e as pontas dos
dedos vieram úmidas e vermelhas,
- Eu... como... às suas ordens, senhor.
- Vossa Graça — corrigiu Joffrey. - Procurarei por você na
audiência - virou-se e saiu.
Sor Meryn e Sor Arys seguiram-no, mas Sandor Clegane ficou
por tempo suficiente para a colocá-la em pé.
- Poupe-se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer.
- O que... o que ele quer? Diga-me, por favor.
- Quer vê-la sorrindo, perfumada, e sendo a senhora sua amada
- rouquejou Cão de Caça. - Quer ouvi-la recitar todas as
palavrinhas bonitas da maneira que a septã lhe ensinou. Quer
que o ame... e que o tema.
Depois de ele sair, Sansa voltou a estender-se nas esteiras,
olhando fixamente para a parede, até que duas criadas de
quarto deslizaram timidamente para dentro do aposento.
- Vou precisar de água quente para o meu banho, por favor -
disse-lhes -, e de perfume, e algum pó para esconder este roxo
- o lado direito do rosto estava inchado e começava a doer,
mas sabia que Joffrey queria vê-la bela.
A água quente a fez pensar em Winterfell, e retirou forças daí.
Não se lavara desde o dia em que o pai morrera, e f icou
sobressaltada ao ver como a água ficara suja. As criadas
limparam o sangue do rosto, rasparam a sujeira das costas,
lavaram os cabelos e os escovaram até saltarem em espessos
caracóis ruivos. Sansa não falou nada, exceto para lhes dar
ordens; eram criadas Lannis-ter, não suas, e não confiava nelas.
Quando chegou a hora de se vestir, escolheu o vestido de seda
verde que usara no torneio. Lembrou-se de como Joff fora
galante naquela noite no banquete. Talvez o vestido o fizesse
recordar também e talvez a tratasse com mais gentileza.
Bebeu um copo de soro de leite coalhado e beliscou alguns
biscoitos doces enquanto esperava, para acalmar o estômago.
Era meio-dia quando Sor Meryn regressou. Tinha envergado a
armadura branca; um camisão de escamas esmaltada s com
relevos em ouro, um elmo alto com um esplendor dourado
como timbre, grevas, gorjal, manoplas e botas de metal
reluzente, um pesado manto de lã preso com um leão dourado.
O visor fora removido do elmo para exibir seu rosto severo;
bolsas sob os olhos, uma boca larga e amarga, cabelos cor de
ferrugem pintalgados de cinza.
- Minha senhora - disse, fazendo uma reverência, como se não
a tivesse espancado havia menos de três horas. - Sua Graça
ordenou-me que a escoltasse até a sala do trono.
- Ordenou também que me batesse se me recusasse a ir?
- Está se recusando a vir, senhora? - o olhar não tinha
expressão alguma. Nem sequer olhou de relance a marca que
lhe deixara.
Sansa compreendeu que o homem não a odiava; nem a amava.
Não sentia absolutamente nada por ela. Para ele, era apenas
uma... uma coisa.
- Não - respondeu, pondo-se em pé. Quis exaltar-se, magoá-lo
como ele a magoara, prevenido de que, quando fosse rainha, o
mandaria para o exílio se alguma vez se atrevesse a lhe bater
de novo... mas lembrou-se do que Cão de Caça lhe dissera, e
tudo o que disse foi: - Farei o que quer que Sua Graça ordene.
- Tal como eu - ele respondeu.
- Sim... mas o senhor não é um verdadeiro cavaleiro, Sor
Meryn.
Sansa sabia que Sandor Clegane teria rido se tivesse ouvido
aquilo. Outros homens a teriam amaldiçoado, avisado para que
se calasse, até suplicado perdão. Sor Meryn Trant não fez nada
disso. Ele simplesmente não se importou.
Além de Sansa, o balcão estava deserto. Ficou em pé, de cabeça
baixa, lutando por reter as lágrimas, enquanto lá embaixo
Joffrey se sentava no seu Trono de Ferro e distribuía o que lhe
aprazia chamar justiça. Nove casos em dez pareciam aborrecê-
lo; esses, permitia que o conselho deles tratasse, contorcendo -
se continuamente enquanto Lorde Baelish, o Grande Meistre
Pycelle ou a Rainha Cersei resolviam o assunto. Mas quando
escolhia decidir, nem mesmo a rainha sua mãe era capaz de
influenciado.
Um ladrão foi trazido à sua presença e ele mandou Sor Ilyn
cortar-lhe a mão, ali mesmo, na sala de audiências. Dois
cavaleiros vieram apresentar-lhe uma disputa sobre umas
terras, e ele decretou que deveriam decidida em duelo na
manhã seguinte.
- Até a morte - acrescentou. Uma mulher caiu de joelhos para
pedir a cabeça de um homem executado por traição. Que o
amava, disse ela, e que o queria ver decentemente enterrado. -
Se amou um traidor, deve ser também traidora - disse Joffrey.
Dois homens de mantos dourados arrastaram-na para as
masmorras.
Lorde Slynt, o da cara de sapo, sentava-se ao fundo da mesa do
conselho, usando um gibão de veludo negro e uma reluzente
capa de pano de ouro, acenando com aprovação cada vez que o
rei pronunciava uma sentença. Sansa fitou duramente aquele
rosto feio, lembrando-se de como o homem atirara o pai ao
chão para que Sor Ilyn o decapitasse, desejando poder feri-lo,
desejando que algum herói lhe atirasse ao chão e lhe cortasse
a cabeça. Mas uma voz em seu interior sussurrou: Não há
heróis, e ela se lembrou do que Lorde Petyr lhe dissera, ali
naquela mesma sala: "A vida não é uma canção, querida.
Poderá aprender isso um dia, para sua mágoa". Na vida, os
monstros vencem, disse a si mesma, e agora era a voz de Cão
de Caça que ouvia, um raspar frio, de metal em pedra. "Poupe -
se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer."
O último caso foi o de um roliço cantor de taberna, acusado de
fazer uma canção que ridicularizava o falecido Rei Robert. Joff
ordenou-lhe que fosse buscar sua harpa e o obrigou a cantar a
canção perante a corte. O cantor chorou e jurou que nunca
mais voltaria a cantá-la, mas o rei insistiu. Era uma canção
mais ou menos engraçada, toda ela sobre Robert lutando com
um porco. Sansa sabia que o porco era o javali que o matara,
mas em alguns versos quase parecia que o que o homem
cantava era sobre a rainha. Depois de a canção terminar,
Joffrey anunciou que decidira ser misericordioso. O cantor
poderia ficar ou com os dedos ou com a língua. Teria um dia
para escolher. Janos Slynt acenou.
Sansa viu, aliviada, que aquele foi o último caso da tarde, mas
sua provação ainda não tinha terminado. Quando a voz do
arauto pôs fim à audiência, ela fugiu do balcão, mas foi
deparar com Joffrey à sua espera no fundo da escada curva.
Cão de Caça encontrava-se com ele, bem como Sor Meryn. O
jovem rei a examinou com ar crítico dos pés à cabeça.
- Está com aspecto muito melhor do que de manhã.
- Obrigada, Vossa Graça - disse Sansa. Palavras ocas, mas que o
fizeram acenar e sorrir.
- Acompanhe-me - ordenou Joffrey, oferecendo-lhe o braço. Ela
não teve alternativa a não ser aceitar. O toque da mão dele a
teria arrebatado em outros tempos; agora lhe causava arrepios.
- O dia do meu nome chegará em breve - disse Joffrey
enquanto se esgueiravam pelos fundos da sala do trono. -
Haverá um grande banquete e presentes. Que irá me oferecer?
- Eu... eu não pensei nisso, senhor.
- Vossa Graça - disse ele em tom cortante. - É mesmo uma
menina estúpida, não é? É o que a minha mãe diz.
- Diz? - depois de tudo o que aconteceu, aquelas palavras
deviam ter perdido o poder de magoá-la, mas de algum modo
não era assim. A rainha sempre fora tão boa para ela.
- Ah, sim. Preocupa-se com os nossos filhos, com a hipótese de
serem estúpidos como você, mas eu lhe disse que não se
preocupasse - o rei fez um gesto, e Sor Meryn abriu uma porta
para eles passarem.
- Obrigada, Vossa Graça - murmurou Sansa. Cão de Caça
tinha razão, pensou. Sou só um passarinho, repetindo as
palavras que me ensinaram. O sol descera abaixo da muralha
ocidental, e as pedras da Fortaleza Vermelha brilhavam,
escuras como sangue.
- Eu a engravidarei assim que seja capaz de conceber - disse
Joffrey enquanto a levava pelo pátio de treinos. - Se o primeiro
for estúpido, cortarei sua cabeça e arranjarei uma esposa mais
inteligente. Quando será capaz de ter filhos?
Sansa não conseguia olhar para ele, de tanto que se
envergonhava.
- Septã Mordane diz que a maior parte... a maior parte das
moças bem-nascidas tem o desabrochar aos doze ou treze anos.
Joffrey acenou com a cabeça.
- Por aqui - levou-a para dentro da guarita, até a base dos
degraus que levavam às ameias. Sansa sacudiu-o, tremendo. Só
agora compreendera para onde se dirigiam.
- Não - disse, com a voz transformada num arquejo assustado.
- Por favor, não, não me obrigue, suplico-lhe...
Joffrey apertou os lábios.
- Quero lhe mostrar o que acontece aos traidores.
Sansa sacudiu violentamente a cabeça.
- Não vou. Não vou.
- Posso dizer a Sor Meryn que a arraste até lá em cima - disse.
- Não gostaria disso. É melhor que faça o que eu digo - Joffrey
estendeu o braço para ela, e Sansa esquivou-se, recuando até
esbarrar em Cão de Caça.
- Obedece, menina - disse-lhe Sandor Clegane, voltando a
empurrá-la para o rei. Sua boca torceu-se no lado queimado do
rosto, e Sansa quase foi capaz de ouvir o resto. Ele conseguirá
que suba, aconteça o que acontecer; portanto, dê -lhe o
que quer.
Forçou-se a tomar a mão do Rei Joffrey, A subida era algo
saído de um pesadelo; cada degrau era uma luta, como se
puxasse os pés de dentro da lama que lhe chegava aos
tornozelos, e havia mais degraus do que teria acreditado, um
milhar de milhares de degraus, e o horror que a esperava nas
muralhas.
Visto das altas ameias da guarita, o mundo inteiro estendia -se
abaixo deles. Sansa via o Grande Septo de Baelor, na colina de
Visenya, onde o pai morrera. Na outra extremidade da Rua das
Irmãs erguiam-se as ruínas enegrecidas pelo fogo do Poço dos
Dragões. A oeste, o sol, vermelho e inchado, estava meio
escondido por trás do Portão dos Deuses. Tinha o mar salgado
nas costas, e ao sul via-se o mercado dos peixes, as docas e a
corrente cheia de remoinhos da Torrente da Água Negra. E ao
norte...
Virou-se para esse lado, e viu apenas a cidade, ruas, vielas,
colinas e vales, e mais ruas e mais vielas, e a pedra de
muralhas distantes. Mas sabia que para lá delas havia campo
aberto, fazendas, prados e florestas, e para lá de tudo isso, ao
norte, ao norte e depois ainda mais para o norte, fi cava
Winterfell.
- Está olhando para onde? - Joffrey perguntou. - O que queria
que visse é isto, aqui mesmo.
Um espesso parapeito de pedra protegia o limite exterior da
muralha, erguendo-se até o queixo de Sansa, com fendas
abertas a cada metro e meio para os arqueiros. As cabeças
estavam encravadas entre as fendas, ao longo do topo da
muralha, empaladas em hastes de ferro para ficarem viradas
para a cidade. Sansa as vira no momento em que pusera os pés
ali, mas o rio, as ruas agitadas e o sol poente eram muito mais
bonitos. Ele pode me obrigar a olhar para as cabeças, disse
consigo mesma, mas não pode me obrigar a vê -las,
- Este é seu pai - disse. - Este aqui. Cão, vire-o para que ela
consiga vedo.
Sandor Clegane pegou na cabeça pelos cabelos e a virou. A
cabeça cortada fora mergulhada em alcatrão para se manter
preservada durante mais tempo. Sansa olhou-a calmamente,
sem veda totalmente. Não se assemelhava mesmo a Lorde
Eddard, pensou; nem sequer parecia real.
- Tenho de olhar durante quanto tempo?
Joffrey pareceu desapontado.
- Quer ver os outros? - havia uma longa fileira.
- Se der prazer a Vossa Graça...
Joffrey marchou com ela ao longo do muro, passando por mais
uma dúzia de cabeças e duas hastes vazias.
- Estou reservando aquelas para meus tios Stannis e Renly -
explicou. As outras cabeças estavam mortas e encravadas na
muralha havia muito mais tempo que a do seu pai. Apesar do
alcatrão, a maioria estava irreconhecível. O rei apontou para
uma e disse: - Ali está sua septã - mas Sansa nem se teria
apercebido de que se tratava de uma mulher. O maxilar
apodrecera e caíra, e as aves tinham comido uma orelha e a
maior parte de uma bochecha.
Sansa se perguntara o que teria acontecido a Septã Mordane,
embora agora lhe parecesse que sempre o soubera.
- Por que foi morta? - perguntou. - Jurara perante os deuses...
- Era uma traidora - Joffrey parecia mal-humorado. De algum
modo, Sansa o estava aborrecendo. - Não disse o que pretende
me dar pelo dia do meu nome. Em vez disso, talvez deva ser eu
a lhe dar algo, gostaria?
- Se lhe agradar, senhor - disse Sansa,
Quando ele sorriu, Sansa compreendeu que caçoava dela.
- Seu irmão também é um traidor, compreende? - voltou a
virar a cabeça de Septã Mordane ao contrário. - Lembro-me do
seu irmão de Winterfell. Meu cão o chamou de senhor da
espada de madeira. Não é verdade, cão?
- Chamei? - respondeu Cão de Caça. - Não me lembro.
Joffrey deu petulantemente de ombros.
- Seu irmão derrotou meu tio Jaime. Minha mãe diz que foi por
traição e engano. Chorou quando ouviu a notícia. As mulheres
são todas fracas, até ela, embora finja que não é. Diz que
temos de ficar em Porto Real para o caso de meus outros tios
atacarem, mas eu não me importo. Depois do banquete do dia
do meu nome, vou reunir uma tropa e matarei eu mesmo seu
irmão. Será isso que lhe darei, Senhora Sansa. A cabeça de seu
irmão.
Uma espécie de loucura tomou conta de Sansa naquele
instante, e ouviu-se a dizer:
- Talvez meu irmão me dê a vossa cabeça..
Joffrey fez uma carranca.
- Nunca deve zombar de mim dessa maneira. Uma esposa fiel
não zomba de seu senhor. Sor Meryn, ensine-lhe.
Daquela vez, o cavaleiro a agarrou pelo queixo e manteve sua
cabeça imóvel enquanto lhe batia. Bateu-lhe duas vezes, da
esquerda para a direita e, com mais força, da direita para a
esquerda. O lábio de Sansa abriu-se e correu-lhe sangue pelo
queixo, misturando-se com o sal de suas lágrimas.
- Não devia passar o tempo todo chorando - disse-lhe Joffrey. -
É mais bela ao sorrir.
Sansa obrigou-se a sorrir, com medo de que ele pudesse dizer
a Sor Meryn para que batesse de novo se não o fizesse, mas
não bastou, o rei ainda balançou a cabeça.
- Limpe o sangue, está toda descomposta.
O parapeito exterior chegava-lhe ao peito, mas ao longo da
borda interna do caminho não havia nada, nada, a não ser um
longo mergulho até o chão, vinte ou vinte e cinco metros mais
abaixo. Bastaria um empurrão, disse a si mesma. Ele estava
mesmo ali, bem ali, sorrindo-lhe afetadamente com aqueles
lábios que eram como vermes gordos. Podia fazê-lo. Podia.
Faça-o agora mesmo, Nem importaria se caísse com ele. Não
importaria nem um bocadinho.
- Vem cá, menina - Sandor Clegane ajoelhou à sua frente, entre
ela e Joffrey. Com uma delicadeza surpreendente para um
homem tão grande, limpou o sangue que lhe escorria do lábio
aberto.
O momento passara. Sansa baixou os olhos.
- Obrigada - disse quando ele acabou. Era uma boa menina, e
lembrava-se sempre da boa educação.
Daenerys
Asas ensombraram seus sonhos febris.
- Você não quer acordar o dragão, não é?
Caminhava por um longo corredor sob grandes arcos de pedra.
Não devia olhar para trás, não podia olhar para trás. A frente
havia uma porta, minúscula na distância, mas mesmo de longe
viu que estava pintada de vermelho. Caminhou mais depressa,
e seus pés nus deixaram pegadas sangrentas na pedra.
- Você não quer acordar o dragão, quer?
Viu a luz do sol no mar dothraki, na planície viva, rica com os
odores da terra e da morte. O vento agitava o capim, que
ondulava como água. Drogo a envolvia em braços fortes, e a
mão dele afagou-lhe o sexo e o abriu, e acordou aquela doce
umidade que era só dele, e as estrelas lhes sorriram, estrelas
num céu diurno. "Casa", ela sussurrou quando ele a penetrou e
a encheu com o seu sêmen, mas de súbito as estrelas
desapareceram, e as grandes asas varreram o céu azul e o
mundo pegou fogo.
- ... não quer acordar o dragão, quer?
O rosto de Sor Jorah estava contraído e desgostoso. "Rhaegar
foi o último dragão", disse-lhe. Aquecia suas mãos translúcidas
num braseiro brilhante onde ovos de pedra cintilavam, verme-
lhos como carvões. Num momento estava ali, e no seguinte
desvanecia-se, sem cor na pele, menos sólido que o vento. "O
último dragão", sussurrou, em um frágil fio de voz, e
desapareceu. Dany sentiu a escuridão atrás de si, e a porta
vermelha parecia mais longínqua que nunca.
- ... não quer acordar o dragão, quer?
Viserys estava à sua frente, gritando. "O dragão não pede,
puta. Você não dá ordens ao dragão. Eu sou o dragão e serei
coroado." O ouro derretido escorria-lhe pelo rosto como cera,
abrindo profundos canais em sua carne."Eu sou o dragão e
serei coroado!" guinchou, e seus dedos saltaram como
serpentes, apertando-lhe os mamilos, beliscando, torcendo,
mesmo depois de os olhos estourarem e escorrerem como
gelatina por bochechas secas e enegrecidas.
- ... não quer acordar o dragão...
A porta vermelha estava tão longe à sua frente, e Dany sentia a
respiração gelada atrás de si, aproximando-se pesadamente, Se
a apanhasse, teria uma morte que seria mais que morte,
uivando para sempre sozinha na escuridão. Pôs-se a correr.
não quer acordar o dragão...
Conseguia sentir o calor dentro de si, um terrível ardor no
ventre. O filho era alto e orgulhoso, com a pele acobreada de
Drogo e os cabelos louros prateados dela, com olhos violeta em
forma de amêndoas. E sorriu-lhe, e começou a erguer a mão na
direção da dela, mas quando abriu a boca, o fogo jorrou. Viu o
coração arder-lhe no peito, e num instante ele desaparecera,
consumido como uma traça por uma vela, transformado em
cinzas. Chorou pelo filho, pela promessa de uma boca querida
no seu seio, mas as lágrimas transformaram-se em vapor
quando lhe tocaram a pele.
- ... quer acordar o dragão...
Fantasmas alinhavam-se ao longo do corredor, vestidos com as
vestes desbotadas de reis. Nas mãos traziam espadas de fogo
pálido. Tinham cabelos de prata, cabelos de ouro e cabelos
brancos de platina, e seus olhos eram de opala e ametista, de
turmalina e jade. "Mais depressa", gritaram, "mais depressa,
mais depressa". Ela correu, com os pés derretendo a pedra
onde a tocavam. "Mais depressa!", gritavam os fantasmas
como se fossem um só, e ela gritou e atirou-se em frente. Uma
grande faca de dor rasgou-lhe as costas, e sentiu a pele abrir-
se, cheirou o fedor de sangue ardendo e viu a sombra de asas.
E Daenerys Targaryen levantou voo.
- ... acordar o dragão...
A porta erguia-se na sua frente, a porta vermelha, tão próxima,
tão próxima, o corredor era um borrão à sua volta, o frio
ficava para trás. E agora já não havia pedra, e ela voava pelo
mar dothraki, cada vez mais alto, com o verde ondulando por
baixo, e tudo o que vivia e respirava fugia aterrorizado da
sombra de suas asas. Conseguia sentir o cheiro de casa,
conseguia vê-la, ali, por trás daquela porta, campos verdejantes
e grandes casas de pedra e braços que a mantivessem quente,
ali. Escancarou a porta.
-... o dragão...
E viu o irmão Rhaegar, montado num garanhão tão negro
como a sua armadura. Fogo cintilava, vermelho, através da
fenda estreita da viseira de seu elmo. "O último dragão",
sussurrou, tênue, a voz de Sor Jorah."O último, o último." Dany
ergueu o polido visor negro do irmão. O rosto que estava lá
dentro era o dela.
Depois daquilo, durante muito tempo, só houve dor, o fogo em
seu interior e os sussurros das estrelas.
Acordou sentindo o sabor das cinzas.
- Não - gemeu -, por favor, não.
- Khaleesi? - Jhiqui pairou sobre ela, como uma corça
assustada.
A tenda estava mergulhada em sombras, silenciosa e fechada.
Flocos de cinzas saltavam de um braseiro, e Dany seguiu-os
com os olhos enquanto atravessavam o buraco da fumaça, no
topo da tenda. Voar, pensou. Tinha asas, estava voando. Mas
fora apenas um sonho.
- Ajude-me - sussurrou, lutando por se erguer. - Traga-me... -
tinha a voz em sangue como uma ferida, e não conseguia
pensar no que queria. Por que doía tanto? Era como se seu
corpo tivesse sido rasgado em fatias e reconstruído. - Quero...
- Sim, khaleesi - e nesse mesmo instante Jhiqui partira,
saltando da tenda, aos gritos.
Dany precisava... de alguma coisa... de alguém... de quê? Sabia
que era importante. Era a única coisa do mundo que
importava. Rolou de lado, apoiando-se sobre um cotovelo,
lutando contra a manta que se emaranhava nas pernas. Mexer-
se era tão difícil. O mundo nadou, entontecido. Tenho de...
Encontraram-na caída sobre o tapete, rastejando na direção de
seus ovos de dragão. Sor Jo-rah Mormont ergueu-a nos braços
e a levou de volta às sedas de dormir, enquanto ela lutava
debilmente contra ele. Por cima do ombro do cavaleiro, viu as
três aias, Jhogo, com sua pequena sombra de bigode, e a cara
larga e achatada de Mirri Maz Duur.
- Tenho - tentou dizer-lhes -, preciso...
- ... dormir, princesa - disse Sor Jorah.
- Não - disse Dany. - Por favor. Por favor.
- Sim - cobriu-a com seda, apesar de ela estar ardendo. -
Durma e ficará de novo forte, khaleesi. Volte para nós - e
então Mirri Maz Duur estava ali, a maegi, inclinando uma taça
contra seus lábios. Sentiu o sabor de leite azedo e mais alguma
outra coisa, algo espesso e amargo. Líquido quente escorreu-
lhe pelo queixo. Sem saber bem como, engoliu. A tenda ficou
mais sombria, e o sono tomou-a de novo. Desta vez não
sonhou. Flutuou, serena e em paz, num mar negro que não
conhecia litorais.
Depois de algum tempo, uma noite, um dia, um ano, não
saberia dizer, voltou a acordar. A tenda estava escura, com as
paredes de seda batendo como asas quando as rajadas de vento
sopravam lá fora. Dessa vez Dany não tentou se levantar.
- Irri - chamou -, Jhiqui, Doreah - chegaram imediatamente. -
Tenho a garganta seca, tão seca - e trouxeram-lhe água. Estava
morna e sem sabor, mas Dany bebeu sofregamente e mandou
Jhiqui buscar mais. Irri umedeceu um pano suave e afagou -lhe
a testa. - Estive doente - disse
Dany.
A
jovem
dothraki
confirmou com um gesto. - Quanto tempo? - o pano era cal-
mante, mas Irri parecia tão triste que a assustou.
- Muito - sussurrou a jovem. Quando Jhiqui regressou com
mais água, Mirri Maz Duur veio com ela, com olhos pesados de
sono.
- Beba - disse a maegi, voltando a levantar a cabeça de Dany
até a taça, mas desta vez era só vinho. Doce, doce vinho. Dany
bebeu e voltou a deitar-se, ouvindo o som suave da própria
respiração. Sentiu o peso nos membros quando o sono deslizou
para voltar a tomá-la.
- Traga-me... - murmurou, com a voz embaraçada e sonolenta. -
Traga... quero segurar...
- Sim? - perguntou a maegi - Que deseja, khaleesi!
- Traga-me... ovo... ovo de dragão... por favor... - as pestanas
transformaram-se em chumbo, e ficou cansada demais para
segurá-las.
Quando acordou pela terceira vez, um dardo de luz d ourada do
sol jorrava pelo buraco de fumaça da tenda, e tinha os braços
enrolados em volta de um ovo de dragão, Era o mais claro,
com escamas da cor de creme de manteiga, com veios em
volutas de ouro e bronze, e Dany conseguia sentir seu calor.
Sob as sedas de dormir, uma fina película de transpiração
cobria-lhe a pele nua. Orvalho de dragão, pensou. Passou
levemente os dedos sobre a superfície da casca, seguindo as
volutas de ouro, e na profundidade da rocha sentiu que algo se
torcia e esticava em resposta. Não se assustou. Todo seu medo
tinha desaparecido, ardera.
Dany tocou a testa. Sob a película de suor a pele estava fria ao
toque, a febre desaparecera. Esforçou-se para sentar. Houve um
momento de tontura, e uma dor profunda entre as coxas. Mas
sentia-se forte. As aias se precipitaram ao som de sua voz.
- Água - disse-lhes -, um jarro de água, a mais fria que
consigam encontrar. E fruta, acho eu. Tâmaras.
- Às suas ordens, khaleesi.
- Quero ver Sor Jorah - disse, pondo-se em pé. Jhiqui trouxe-
lhe um roupão de sedareia e envolveu-lhe os ombros com ele. -
E também quero um banho quente, e Mirri Maz Duur, e... -
as recordações chegaram-lhe todas ao mesmo tempo, e ela
vacilou. - Khal Drogo - forçou-se a dizer, observando o rosto
delas com terror. – Ele...?
- O khal vive - respondeu Irri em voz baixa... Mas Dany viu-
lhe uma escuridão nos olhos quando disse as palavras, e assim
que acabou de falar, a jovem fugiu para ir buscar água.
Dany virou-se para Doreah.
- Conte-me.
- Eu... eu vou buscar Sor Jorah - disse ajovem lysena, inclinando
a cabeça e fugindo da tenda. Jhiqui teria fugido também, mas
Dany a segurou pelo pulso e a manteve presa.
- O que está acontecendo? Tenho de saber. Drogo... e meu filho
- por que não teria se lembrado da criança até agora? - O meu
filho... Rhaego... onde está ele? Quero vê-lo.
A aia baixou os olhos.
- O menino... não sobreviveu, khaleesi - a voz dela era um
murmúrio assustado.
Dany soltou-lhe o pulso. Meu filho está morto, pensou,
enquanto Jhiqui saía da tenda. De algum modo já o sabia.
Soubera desde que acordara pela primeira vez com as lágrimas
de Jhiqui. Não, soubera-o antes de acordar. O sonho regressou-
lhe, súbito e vívido, e lembrou-se do homem alto com a pele
acobreada e a longa cabeleira de prata dourada, rebentando em
chamas.
Sabia que devia chorar, mas tinha os olhos secos como cinza.
Chorara no sonho, e as lágrimas tinham se transformado em
vapor no rosto. Todo o pesar foi queimado em mim, disse a
si mesma. Sentia-se triste, e no entanto... conseguia sentir
Rhaego afastando-se dela, como se nunca tivesse existido.
Sor Jorah e Mirri Maz Duur entraram alguns momentos mais
tarde, e deram com Dany em pé junto aos outros ovos de
dragão, os que ainda estavam dentro do cofre. Pareciam -lhe tão
quentes como aquele com o qual dormira, o que era muito
estranho.
- Sor Jorah, venha cá - disse. Tomou-lhe a mão e pousou-a no
ovo negro com as volutas escarlates. - O que sente?
- Casca, dura como pedra - o cavaleiro estava cauteloso. -
Escamas.
- Calor?
- Não. Pedra fria - afastou a mão. - Princesa, está bem? Devia
estar de pé, assim tão fraca?
- Fraca? Sinto-me forte, Jorah - para agradá-lo, reclinou-se
numa pilha de almofadas. -Conte-me como meu filho morreu.
- Não chegou a viver, minha princesa. As mulheres dizem... -
vacilou, e Dany reparou como a carne pendia solta no seu
corpo, e como coxeava quando se movia.
- Conte-me. Conte-me o que as mulheres dizem.
Ele virou o rosto. Tinha os olhos assombrados.
- Elas dizem que a criança era...
Dany esperou, mas Sor Jorah não foi capaz de dizer. Seu rosto
escureceu de vergonha. Ele próprio parecia quase um cadáver.
- Monstruosa - terminou Mirri Maz Duur por ele. O cavaleiro
era um homem poderoso, mas Dany compreendeu naquele
momento que a maegi era mais forte, e mais cruel, e infinita-
mente mais perigosa. - Deformada, Fui eu quem a puxou.
Tinha escamas como um lagarto, era cega, trazia um vestígio
de cauda e pequenas asas de couro como as de um morcego.
Quando o toquei, a carne desprendeu-se do osso, e por dentro
estava cheia de vermes e fedia a decomposi ção. Estava morta
havia anos.
Escuridão, pensou Dany. A terrível escuridão que vinha por
trás para devorá-la. Se olhasse para trás, estaria perdida.
- Meu filho estava vivo e forte quando Sor Jorah me trouxe
para esta tenda - disse. - Sentia-o dar pontapés e lutar para
nascer.
- Pode ser que sim, pode ser que não - respondeu Mirri Maz
Duur -, mas a criatura que saiu de seu ventre era como eu
disse. Havia morte naquela tenda, khaleesi.
- Só sombras - desvendou Sor Jorah, mas Dany conseguia sentir
a dúvida em sua voz. - Eu vi, maegi. Vi-a, sozinha, dançando
com as sombras.
- A sepultura produz longas sombras, Senhor de Ferro - disse
Mirri. - Longas e escuras, e no fim nenhuma luz consegue
resistir a elas.
Dany sabia que Sor Jorah matara seu filho. Fizera aquilo por
amor e lealdade, mas a transportara para um lugar onde
nenhum homem vivo devia ir e entregara seu filho às trevas.
Ele também o sabia; o rosto cinzento, os olhos vazios, o coxear.
- As sombras também o tocaram, Sor Jorah - disse-lhe Dany. O
cavaleiro não deu resposta. Ela se virou para a esposa de deus.
- Preveniu-me de que só a morte podia pagar pela vida. Pen sei
que se referisse ao cavalo.
- Não - disse Mirri Maz Duur. - Era nisso que queria acreditar.
Conhecia o preço. Conhecia? Conhecia? Se olhar para trás,
estou perdida.
- O preço foi pago - disse Dany. - O cavalo, meu filho, Quaro e
Qotho, Haggo e Cohollo. O preço foi pago, pago e pago -
ergueu-se das almofadas. - Onde está Khal Drogo? Mostre-me,
esposa de deus, maegi, maga de sangue, o que quer que seja.
Mostre-me Khal Drogo. Mostre-me o que comprei com a vida
de meu filho.
- Às suas ordens, khaleesi - disse a velha. - Venha, a levarei
até ele.
Dany estava mais fraca do que julgara. Sor Jorah pôs o braço
ao seu redor e a ajudou a ficar em pé.
- Há tempo suficiente para isto mais tarde, princesa - disse ele
em voz baixa.
- Quero vê-lo agora, Sor Jorah.
Depois da escuridão da tenda, o mundo lá fora era tão
brilhante que cegava. O sol queimava como ouro derretido, e a
terra estava seca e vazia. As aias esperavam com frutas, vinho
e água, e Jhogo aproximou-se para ajudar Sor Jorah a suportar-
lhe o peso. Aggo e Rakharo seguiam atrás. O clarão do sol na
areia fez com que lhe fosse difícil ver mais, até Dany erguer a
mão para dar sombra aos olhos. Viu as cinzas de uma fogu eira,
alguns cavalos que andavam às voltas, apaticamente, em busca
de um pouco de capim, tendas e esteiras espalhadas. Uma
pequena multidão de crianças reunira-se para vê-la, e atrás
delas vislumbrou mulheres que tratavam de seus deveres e
velhos mirrados que olhavam o céu azul uniforme com olhos
cansados, enxotando fracamente moscas de sangue. Uma
contagem mostraria umas cem pessoas, não mais. Onde as
outras quarenta mil tinham montado acampamento, só o vento
e a poeira restavam agora.
- O khalasar de Drogo desapareceu - disse ela.
- Um khal que não pode montar não é um khal - disse Jhogo.
- Os dothrakis seguem apenas os fortes - disse Sor Jorah. -
Lamento, minha princesa. Não havia maneira de detê -los. Ko
Pono foi o primeiro a partir, chamando-se a si mesmo Khal
Pono, e muitos o seguiram. Jhaqo não esperou muito tempo
para fazer o mesmo. O resto foi se esgueirando noite após
noite, em bandos grandes e pequenos. Há uma dúzia de novos
khalasares no mar dothraki, no lugar que em tempos passados
foi apenas de Drogo.
- Os velhos ficaram - disse Aggo. - Os assustados, os fracos e
os doentes. E nós, que juramos. Nós ficamos.
- Levaram as manadas de Khal Drogo, khaleesi - disse Rakharo.
- Não éramos suficientes para impedir. É direito dos fortes
roubar dos fracos. Levaram também muitos escravos, do khal e
seus, mas deixaram alguns.
- Eroeh? - perguntou Dany, lembrando-se da criança assustada
que salvara fora da cidade dos Homens-Ovelhas.
- Mago, que é agora companheiro de sangue de Khal Jhaqo,
capturou-a para si - disse Jhogo. - Montou-a por cima e por
baixo e a deu ao seu khal, e Jhaqo a deu aos seus outros
companheiros de sangue. Eram seis. Quando ficaram satisfeitos,
cortaram-lhe a garganta.
- Foi o destino dela, khaleesi - disse Aggo.
Se olhar para trás, estou perdida.
- Foi um destino cruel - disse Dany -, mas não tão cruel como
será o de Mago, Prometo, pelos velhos deuses e pelos novos,
pelo deus-ovelha e pelo deus-cavalo e por todos os deuses que
vivem. Juro pela Mãe das Montanhas e o Ventre do Mundo.
Antes de acabar com eles, Mago e Ko Jhaqo suplicarão pela
clemência que mostraram a Eroeh,
Os dothrakis trocaram olhares inseguros.
- Khaleesi - explicou a aia Irri, como se estivesse falando com
uma criança. - Jhaqo é agora um khal, à frente de vinte mil
cavaleiros.
Dany ergueu a cabeça,
- E eu sou Daenerys, nascida na Tempestade, Daenerys da Casa
Targaryen, do sangue de Aegon, o Conquistador, e Maegor, o
Cruel, e da velha Valíria antes deles. Sou a filha do dragão, e,
juro-lhes, esses homens morrerão aos gritos. Agora leve -me a
Khal Drogo.
Jazia sobre a terra vermelha e nua, de olhos fixos no sol.
Uma dúzia de moscas de sangue pousara em seu corpo,
embora ele não parecesse senti-las, Dany enxotou-as e
ajoelhou-se a seu lado. Os olhos dele estavam muito abertos,
mas não viam, e ela compreendeu de imediato que Drogo
estava cego. Quando sussurrou seu nome, não pareceu ouvir. A
ferida no peito estava curada como jamais poderia estar, com a
cicatriz que a cobria cinzenta e vermelha e hedionda.
- Por que ele está aqui sozinho ao sol? - perguntou-lhes.
- Parece gostar do calor, princesa - disse Sor Jorah. - Seus
olhos seguem o sol, embora não o veja. Consegue fazer algo
semelhante ao andar. Vai para onde o levam, mas não mais
longe. Come se lhe puserem comida na boca e bebe se lhe
escorrerem água para os lábios.
Dany beijou o seu sol-e-estrelas suavemente na testa, e ergueu-
se para encarar Mirri Maz Duur.
- Seus feitiços são caros, maegi.
- Ele vive - disse Mirri Maz Duur. - Você pediu vida, e pagou
por vida.
- Isto não é vida para quem era como Drogo. Sua vida eram
gargalhadas e carne assando numa fogueira, e um cavalo entre
as pernas. Sua vida eram um arakh na mão e as campainhas
tinindo no cabelo enquanto cavalgava ao encontro de um
inimigo. Sua vida eram os seus companheiros de sangue, e eu,
e o filho que lhe devia ter dado.
Mirri Maz Duur não deu resposta.
- Quando voltará a ser como era? - quis saber Dany.
- Quando o sol nascer no ocidente e se puser no oriente - disse
Mirri Maz Duur. - Quando os mares secarem e as montanhas
forem sopradas pelo vento como folhas. Quando seu ventre
voltar a ganhar vida para dar à luz um filho vivo. Então, e não
antes, ele regressará.
Dany fez um gesto para Sor Jorah e os outros.
- Deixem-nos. Quero falar a sós com esta maegi - Mormont e
os dothrakis retiraram-se. - Você sabia - disse Dany depois de
eles irem embora. Sentia dor, por dentro e por fora, mas a
fúria dava-lhe forças. - Você sabia o que eu estava comprando
e conhecia o preço, e mesmo assim me deixou pagá-lo.
- Foi errado da parte deles terem queimado meu templo - disse
placidamente a pesada mulher de nariz achatado. - Isso
enfureceu o Grande Pastor.
- Isto não foi trabalho de nenhum deus -Dany disse friamente.
Se olhar para trás, estou perdida.
- Enganou-me. Assassinou meu filho dentro de mim.
- O garanhão que monta o mundo já não queimará cidades. O
seu khalasar não transformará nações em poeira.
- Eu intervim por você - disse Dany, angustiada. - Salvei-a.
- Salvou-me? - cuspiu a lhazarena. - Três guerreiros já tinham
me possuído, não como um homem possui uma mulher, mas
por trás, como um cão possui uma cadela. O quarto estava
dentro de mim quando você passou por ali. Como foi que me
salvou? Vi a casa do meu deus arder, o lugar onde curei
homens bons sem conta. Também me queimaram a casa, e na
rua vi pilhas de cabeças. Vi a cabeça de um padeiro que me
fazia o pão. Vi a cabeça de um rapaz que salvei da febre do
olho morto havia só três luas. Ouvi crianças chorando quando
os guerreiros as arrancaram de casa à chicotada. Diga-me lá
outra vez o que salvou.
- A sua vida.
Mirri Maz Duur soltou uma gargalhada cruel.
- Olha para o seu khal e vê de que serve a vida quando todo o
resto desapareceu.
Dany chamou os homens do seu khas e lhes pediu para
prenderem Mirri Maz Duur e atarem seus pés e mãos, mas a
maegi sorriu-lhe quando a levaram, como se partilhassem um
segredo. Uma palavra, e Dany podia ter feito com que a
decapitassem... mas o que teria então? Uma cabeça? Se a vida
não tinha valor, que valor tinha a morte?
Levaram Khal Drogo até sua tenda, e Dany ordenou-lhes que
enchessem uma banheira, e desta vez não houve sangue na
água. Foi ela mesma que lhe deu o banho, lavando a terra e o
pó dos braços e do peito, limpando o-rosto com um pano
suave, ensopando os longos cabelos negros e escovando os nós
e embaraços até ficarem de novo brilhantes como os recordava.
Quando acabou, o sol já tinha se posto havia muito, e Dany
estava exausta. Parou para beber e comer, mas só conseguiu
mordiscar um figo e engolir um gole de água. O sono teria
sido uma libertação, mas já dormira o suficiente... na verdade,
até demais. Devia aquela noite a Drogo, por todas as noites
que tinham existido e ainda poderiam existir.
A memória da primeira cavalgada juntos a acompanhou quando
o levou para a escuridão do exterior, pois os dothrakis
acreditavam que todas as coisas de importância na vida de um
homem tinham de ser realizadas a céu aberto. Disse a si
mesma que havia poderes mais fortes que o ódio, e feitiços
mais velhos e verdadeiros que qualquer um que a maegi
tivesse aprendido em Asshai. A noite estava negra e sem lua,
mas por cima de sua cabeça mil estrelas ardiam, brilhantes.
Tomou aquilo como um presságio.
Nenhum suave cobertor verde lhes deu ali as boas-vindas, só o
chão duro e poeirento, nu e semeado de pedras. Não havia
árvores agitando-se ao vento, e não havia um córrego que lhe
acalmasse os medos com a música suave das águas. Dany disse
a si mesma que as estrelas bastariam.
- Lembre-se, Drogo - murmurou. - Lembre-se da nossa primeira
cavalgada juntos, no dia em que casamos. Lembre -se da noite
em que fizemos Rhaego, com o khalasar à nossa volta e os
seus olhos no meu rosto. Lembre-se de como a água estava fria
e limpa no Ventre do Mundo. Lembre-se, meu sol-e-estrelas.
Lembre-se e volte para mim.
O parto a tinha deixado demasiado dolorida e r asgada para
introduzi-lo dentro de si como teria desejado, mas Doreah
ensinara-lhe outras maneiras. Dany usou as mãos, a boca, os
seios. Arranhou-o com as unhas, cobriu-o de beijos e segredou-
lhe, rezou e contou-lhe histórias, e quando terminou, o tinha
banhado com as suas lágrimas. Mas Drogo nem sentiu, nem
falou, nem se ergueu.
E quando a alvorada sem vida surgiu num horizonte vazio,
Dany compreendeu que ele estava realmente perdido.
- Quando o sol nascer a oeste e se puser a leste - disse
tristemente. - Quando os mares secarem e as montanhas forem
sopradas pelo vento como folhas. Quando meu ventre voltar a
ganhar vida e der à luz um filho vivo. Então regressará, meu
sol-e-estrelas, e não antes.
Nunca, gritou a escuridão, nunca, nunca, nunca.
Dentro da tenda Dany encontrou uma almofada de seda suave
estofada de penas. Apertou-a contra os seios enquanto voltava
para junto de Drogo, para junto do seu sol-e-estrelas. Se olhar
para trás, estou perdida, Até andar lhe doía, e queria dormir,
dormir e não sonhar.
Ajoelhou, beijou Drogo nos lábios e apertou a almofada contra
o rosto.
Tyrion
- Eles têm o meu filho - disse Tywin Lannister.
- Têm, senhor - a voz do mensageiro estava abafada de
exaustão. No peito de seu manto rasgado o javali malhado de
Crakehall encontrava-se meio obscurecido por sangue seco.
Um dos seus filhos, pensou Tyrion. Bebeu um gole de vinho e
não disse uma palavra, pensando em Jaime. Quando ergueu o
braço, uma dor atacou-lhe o cotovelo, lembrando-o da sua
própria breve experiência de batalha. Amava o irmão, mas não
gostaria de estar com ele no Bosque dos Murmúrios nem por
todo o ouro de Rochedo Casterly.
Os capitães e vassalos do senhor seu pai tinham se tornado
muito silenciosos à medida que o emissário ia contando sua
história. O único som que se ouvia eram os estalidos e silvos
do tronco que ardia na lareira ao fundo da longa e arejada sala
comum.
Depois das dificuldades do longo e implacável avanço para o
sul, a ideia de passar nem que fosse uma só noite numa
estalagem tinha animado imensamente Tyrion... embora tivesse
preferido que não fosse outra vez aquela estalagem, com todas
as recordações que trazia. O pai estabe lecera um ritmo
desgastante, que cobrara seu preço. Homens feridos na batalha
o acompanhavam o melhor que podiam, ou eram abandonados
à própria sorte. Todas as manhãs deixavam mais al guns à beira
da estrada, homens que adormeciam para nunca mais acordar.
Todas as tardes eram mais alguns os que caíam no caminho. E
todas as noites mais alguns desertavam, esgueirando -se na
direção das sombras. Tyrion sentira-se quase tentado a ir com
eles.
Estava no primeiro andar, desfrutando o conforto de uma cama
de penas e do calor do corpo de Shae a seu lado, quando o
escudeiro o acordara para dizer que chegara um mensageiro
com novas terríveis de Correrrio. Queria dizer que tudo fora
em vão. A corrida para o sul, as marchas forçadas que
pareciam não ter fim, os cadáveres abandonados junto à
estrada... tudo para nada. Robb Stark chegara a Correrrio já há
vários dias,
- Como pôde isto acontecer? - gemeu Sor Harys Swyft - Como?
Mesmo depois do Bosque dos Murmúrios, Correrrio estava
cercado por um anel de ferro, rodeado por uma grande tropa...
Que loucura fez Sor Jaime decidir dividir seus homens em três
acampamentos separados? Certamente sabia como isso os
deixaria vulneráveis.
Melhor que você, seu covarde sem queixo, pensou Tyrion.
Jaime podia ter perdido Correrrio, mas enfurecia-o ouvir o
irmão ser caluniado por gente como aquele Swyft, um lambe-
botas sem vergonha, cuja maior realização fora casar a filha,
igualmente desprovida de queixo, com Sor Kevan, ligando-se
assim aos Lannister.
- Eu teria feito o mesmo - respondeu o tio, de forma bem mais
calma do que Tyrion teria respondido. - O senhor nunca viu
Correrrio, Sor Harys, caso contrário saberia que Jaime pouca
escolha teve. O castelo ergue-se na extremidade da ponta de
terra onde o Pedregoso deságua no
Ramo Vermelho do Tridente. Os rios formam dois lados de um
triângulo, e quando o perigo espreita, os Tully abrem as
comportas a montante para criar um fosso largo no terceiro
lado, transformando Correrrio numa ilha. As muralhas erguem -
se a pique da água, e de suas torres os defensores controlam as
margens opostas ao longo de muitas milhas. Para cortar todos
os caminhos, um sitiante tem de erguer um acampamento a
norte do Pedregoso, outro a sul do Ramo Vermelho, e um
terceiro entre os rios, a oeste do fosso. Não há outra maneira,
nenhuma.
- Sor Kevan fala a verdade, senhores - disse o emissário. -
Construímos paliçadas de hastes aguçadas em volta dos
acampamentos, mas não foi o suficiente, em especial sem aviso
e com os rios a nos separar uns dos outros. Caíram primeiro
sobre o acampamento norte. Ninguém esperava um ataque.
Marq
Piper
andara
atacando
nossos
comboios
de
abastecimentos, mas não tinha mais de cinquenta homens. Sor
Jaime saíra para lidar com eles na noite anterior... bem, com o
que pensávamos que fossem eles. Fora-nos dito que a tropa
Stark se encontrava a leste do Ramo Verde, marchando para o
sul...
- E seus batedores? - o rosto de Sor Gregor Clegane poderia
ter sido talhado em pedra. O fogo na lareira dava-lhe à pele
um sombrio tom alaranjado e profundas sombras sobre os
olhos. - Não viram nada? Não lhes avisaram de nada?
O mensageiro manchado de sangue balançou a cabeça.
- Nossos batedores iam desaparecendo. Pensávamos que fosse
obra de Marq Piper. Aqueles que voltavam nada tinham visto.
- Um homem que nada vê não tem necessidade de olhos -
declarou Montanha. - Arranqueis e os dê ao batedor seguinte.
Diga-lhe que espera que quatro olhos possam ver melhor que
dois... e, senão, o homem que vier depois terá seis.
Lorde Tywin Lannister virou a cabeça para estudar Sor Gregor.
Tyrion viu uma cintilação de ouro quando a luz brilhou nas
pupilas do pai, mas não saberia dizer se o olhar era de
aprovação ou repugnância. Era frequente que Lorde Tywin se
mantivesse em silêncio em conselho, preferindo escutar antes
de falar, um hábito que o próprio Tyrion tentava imitar. Mas
aquele silêncio não era comum, até para ele, e não tinha tocado
no vinho.
- Disse que chegaram de noite? - interveio Sor Kevan.
O homem confirmou fatigadamente com a cabeça.
- O Peixe Negro comandou a vanguarda, abatendo as nossas
sentinelas e afastando as paliçadas para o assalto principal.
Quando nossos homens perceberam o que estava acontecendo,
já jorravam cavaleiros das margens, e galopavam pelo
acampamento de espadas e archotes na mão. Eu estava
dormindo no acampamento ocidental, entre os rios. Quando
ouvimos a luta e vimos as tendas que eram incendiadas, Lorde
Brax nos levou para as jangadas e tentamos atravessar, mas a
corrente nos puxou para jusante e os Tully começaram a atirar
pedras com as catapultas que tinham nas muralhas. Vi uma
jangada ser esmagada até restarem apenas gravetos, e mais três
que foram viradas, e os homens atirados ao rio e afogados... e
aqueles que conseguiram atravessar encontraram os Stark à
sua espera nas margens do rio.
Sor Flement Brax usava um capote prateado e roxo e tinha a
expressão de um homem que não conseguia compreender o
que acabara de ouvir.
- O senhor meu pai...
- Lamento, senhor - disse o mensageiro. - Lorde Brax envergava
armadura e cota de malha quando sua jangada se virou. Era
muito nobre.
Era um tolo, pensou Tyrion, movendo a taça em círculos e
fitando as profundezas do vinho. Atravessar um rio de noite
numa jangada tosca, usando armadura, com um inimigo à
espera do outro lado... se isso era nobreza, escolheria sempre a
covardia. Perguntou a si mesmo se Lorde Brax se teria sentido
particularmente nobre quando o peso de seu aço o puxou para
baixo nas águas negras.
- O acampamento entre os rios também foi derrotado - dizia o
mensageiro. - Enquanto tentávamos fazer a travessia, mais
homens dos Stark vieram do oeste, duas colunas de cavalaria
armada. Vi o gigante acorrentado de Lorde Umber e a á guia
dos Mallister, mas era o rapaz quem os comandava, com um
lobo monstruoso correndo ao seu lado. Não estava lá para ver,
mas diz-se que o animal matou quatro homens e dilacerou uma
dúzia de cavalos. Nossos lanceiros formaram uma linha de
defesa e aguentaram a primeira investida deles, mas quando os
Tully os viram em combate, abriram os portões de Correrrio e
Tytos Blackwood comandou um ataque pela ponte levadiça e os
apanhou pela retaguarda.
- Que os deuses nos protejam - exclamou Lorde Lefford.
- Grande-Jon Umber incendiou as torres de cerco que
estávamos construindo. Lorde Blackwood encontrou Edmure
Tully a ferros entre os outros cativos, e fugiu com todos eles.
Nosso acampamento ao sul estava sob o comando de Sor Forley
Préster. Retirou em boa ordem quando viu que os outros
acampamentos estavam perdidos, com dois mil lanceiros e
outros tantos arqueiros, mas o mercenário tyroshi que
comandava seus cavaleiros livres abaixou seus estandartes e
passou para o lado do inimigo,
- Maldito seja o homem - o tio Kevan soava mais zangado que
surpreso. - Preveni Jaime para não confiar nele. Um homem
que luta por dinheiro é leal apenas à sua bolsa.
Lorde Tywin entrecruzou os dedos sob o queixo. Só os olhos se
moviam enquanto escutava. As suíças eriçadas e douradas
enquadravam um rosto tão imóvel que poderia ter sido uma
máscara, mas Tyrion via minúsculas gotículas de suor que
salpicavam a cabeça rapada do pai.
- Como pôde isto acontecer? - gemeu de novo Sor Harys
Swyft. - Sor Jaime aprisionado, o cerco quebrado... isto é uma
catástrofel
Sor Addam Marbrand disse:
- Estou certo de que todos nos sentimos gratos pela sua
reafirmação do óbvio, Sor Harys. A questão é: o que vamos
fazer agora?
- Que podemos fazer? A tropa de Jaime está toda massacrada,
capturada ou posta em fuga, e os Stark e os Tully instalaram-
se bem no meio da nossa linha de abastecimento. Estamos
separados do oeste! Eles podem marchar sobre Rochedo
Casterly se bem entenderem, e quem os impedirá? Senhores,
estamos derrotados. Temos de pedir a paz.
- Paz? - Tyrion fez rodar o vinho pensativamente, bebeu um
grande trago e atirou a taça vazia ao chão, estilhaçando -a em
mil pedaços. - Aí está a sua paz, Sor Harys. Meu querido sobri-
nho a quebrou de vez quando decidiu ornamentar a Fortaleza
Vermelha com a cabeça de Lorde Eddard. Será mais fácil beber
vinho desta taça do que convencer Robb Stark a fazer a paz
agora. Ele está ganhando... ou não reparou ainda?
- Duas batalhas não fazem uma guerra - insistiu Sor Addam. -
Estamos longe da derrota. Eu gostaria de ter oportunidade de
experimentar meu aço contra este rapaz Stark.
- Talvez consintam numa trégua e nos permitam trocar os
nossos prisioneiros pelos deles - sugeriu Lorde Lefford.
- A menos que troquem três por um, ainda sairemos perdendo
- disse Tyrion em voz ácida.
- E que temos nós para oferecer pelo meu irmão? A cabeça
podre de Lorde Eddard?
- Ouvi dizer que a Rainha Cersei tem as filhas da Mão - disse
esperançosamente Lefford.
- Se devolvêssemos as irmãs ao rapaz...
Sor Addam soltou uma fungadela de desdém.
- Teria de ser um completo idiota para trocar a vida de Jaime
Lannister por duas meninas.
- Então temos de pagar resgate por Sor Jaime, custe o que
custar - disse Lorde Lefford. Tyrion revirou os olhos.
- Se os Stark sentirem necessidade de ouro, podem derreter a
armadura de Jaime.
- Se pedirmos uma trégua, nos julgarão fracos - argumentou
Sor Addam. - Devíamos marchar imediatamente contra eles.
- Certamente que os nossos amigos na corte podem ser
persuadidos ajuntar tropas frescas às nossas - disse Sor Harys.
- E alguém poderia regressar a Rochedo Casterly a fim de
recrutar uma nova tropa.
Lorde Tywin Lannister pôs-se em pé.
- Eles têm o meu filho - voltou a dizer, numa voz que cortou
a conversa como uma espada corta sebo, - Deixem-me. Todos
vocês.
Como se fosse a própria alma da obediência, Tyrion levantou-
se para sair com os outros, mas o pai fixou os olhos nele.
- Você não, Tyrion. Fica. E você também, Kevan. O resto, fora.
Tyrion voltou a deixar-se cair no banco, surpreendido até ficar
sem fala. Sor Kevan atravessou a sala até as barricas de vinho.
- Tio - chamou Tyrion -, se fizesse o favor...
- Toma - o pai ofereceu-lhe a sua taça, com o vinho intocado.
Agora Tyrion estava realmente perplexo. Bebeu.
Lorde Tywin sentou-se.
- Tem razão quanto ao Stark. Vivo, podíamos ter usado Lorde
Eddard para forjar uma paz com Winterfell e Correrrio, uma
paz que nos daria o tempo de que precisamos para lidar com
os irmãos de Robert. Morto... - sua mão enrolou-se num
punho. - Loucura. Completa loucura.
- Joff é só um rapaz - fez notar Tyrion. - Na sua idade também
fiz alguns disparates. O pai lançou-lhe um olhar penetrante.
- Suponho que devamos nos sentir gratos por ele ainda não ter
casado com uma prostituta. Tyrion bebericou o vinho,
perguntando-se qual seria a reação de Lorde Tywin se lhe
atirasse a taça na cara.
- Nossa posição é pior do que julga - continuou o pai. - Parece
que temos um novo rei. Sor Kevan pareceu abatido.
- Um novo... quem? Que fizeram a Joffrey?
A mais tênue das centelhas de desagrado brincou nos finos
lábios de Lorde Tywin.
- Nada... por enquanto. Meu neto ainda ocupa o Trono de
Ferro, mas o eunuco ouviu sussurros vindos do sul. Renly
Baratheon casou-se com Margaery Tyrell em Jardim de Cima
nesta quinzena que passou, e agora reivindicou a coroa. O pai
e os irmãos da noiva dobraram os joelhos e lhe prestaram
juramento.
- Essas são novas graves - quando Sor Kevan franzia a testa, as
rugas que nela havia aprofundavam-se como precipícios.
- Minha filha ordena que cavalguemos para Porto Real de
imediato, a fim de defender a Fortaleza Vermelha contra o Rei
Renly e o Cavaleiro das Flores - sua boca apertou-se. -
Ordena, notem bem. Em nome do rei e do conselho.
- Como está o Rei Joffrey com essas notícias? - perguntou
Tyrion, com certo humor negro.
- Cersei ainda não achou por bem contar-lhe - disse Lorde
Tywin. - Teme que ele possa insistir em marchar ele próprio
contra Renly.
- Com que exército? - perguntou Tyrion. - Espero que não
tenha em mente lhe dar este.
- Ele fala em comandar a Patrulha da Cidade - disse Lorde
Tywin.
- Se ele levar a Patrulha, deixará a cidade indefesa - disse Sor
Kevan. - E com Lorde Stannis em Pedra do Dragão...
- Sim - Lorde Tywin baixou o olhar para o filho. - Eu pensava
que fosse você aquele que nasceu para bobo, Tyrion, mas
parece que me enganei.
- Ora, pai - disse Tyrion -, isso quase que soa como um elogio
- inclinou-se para a frente, concentrado. - E Stannis? É ele o
mais velho, não Renly. Que sente ele a propósito da pretensão
do irmão?
O pai franziu as sobrancelhas.
- Desde o princípio sinto que Stannis é maior ameaça do que
todos os outros juntos. E, no entanto, não faz nada. Ah, Varys
ouve os seus sussurros. Que Stannis está construindo navios,
que Stannis está contratando mercenários, que Stannis mandou
vir um umbromante6 de Asshai. Que quer dizer isso? Será
alguma parte verdade? - encolheu os ombros, irritado. - Kevan,
traga o mapa.
Sor Kevan fez o que lhe foi pedido. Lorde Tywin desenrolou o
couro, alisando-o.
- Jaime deixou-nos em mau estado. Roose Bolton e o resto de
sua tropa estão a norte de nós. Nossos inimigos possuem as
Gêmeas e Fosso Cailin. Robb Stark está instalado a oeste,
portanto não podemos retirar para Lannisporto e para o
Rochedo, a menos que decidamos dar batalha, Jaime encontra -
se prisioneiro, e o seu exército, para todos os fins práticos,
deixou de existir. Tho-ros de Myr e Beric Dondarrion
continuam a incomodar nossos destacamentos logísticos. Para
leste temos os Arryn, Stannis Baratheon ocupa Pedra do
Dragão e, no sul, Jardim de Cima e Ponta Tempestade
convocam os vassalos.
Tyrion deu um sorriso torto.
- Anime-se, pai. Pelo menos Rhaegar Targaryen continua morto.
- Tive esperança de que tivesse mais que gracejos a oferecer,
Tyrion - disse Lorde Tywin Lannister.
Sor Kevan franziu as sobrancelhas sobre o mapa, com a testa
abrindo sulcos.
- Robb Stark já terá agora consigo Edmure Tully e os senhores
do Tridente. Seu poderio combinado pode exceder o nosso. E
com Roose Bolton atrás de nós... Tywin, se permanecermos
aqui, temo que possamos ser apanhados entre três exércitos.
- Não tenho nenhuma intenção de permanecer aqui. Temos de
tratar dos nossos assuntos com o jovem Lorde Stark antes que
Renly Baratheon tenha chance de se pôr em marcha desde
Jardim de Cima. Bolton não me preocupa. É um homem
cuidadoso, e o tornamos mais cuidadoso no Ramo Verde. Ele
será lento na perseguição. Portanto... de manhã partimos para
Harrenhal. Kevan, quero que os batedores de Sor Addam nos
6 Leitor de sombras.
ocultem os movimentos. Dê-lhe todos os homens que te peça, e
mande-os em grupos de quatro. Não quero desaparecimentos.
- Às suas ordens, senhor, mas... por que Harrenhal? É um lugar
sombrio e sem sorte. Há quem diga que é amaldiçoado.
- Que digam - disse Lorde Tywin. - Solte de Sor Gregor e
mande-o à nossa frente com os seus salteadores. Mande
também Vargo Hoat e os seus cavaleiros livres, e Sor Amory
Lorch.
Cada um deve ter trezentos homens a cavalo. Digadhes que
quero ver as terras do rio em chamas do Olho de Deus ao
Ramo Vermelho.
- Elas arderão, senhor - disse Sor Kevan, pondo-se de pé. -
Darei as ordens - fez uma reverência e dirigiu-se à porta.
Quando ficaram sós, Lorde Tywin olhou de relance para Tyrion.
- Seus selvagens podem apreciar um pouco de rapina. Diga-lhes
que podem acompanhar Vargo Hoat e saquear à vontade...
bens, gado, mulheres, podem ficar com o que quiserem e
queimar o resto.
- Dizer a Shagga e a Timett como pilhar é como dizer a um
galo como cantar - comentou Tyrion -, mas preferia mantê-los
comigo - os selvagens podiam ser rudes e indisciplinados, mas
eram dele, e confiava mais neles do que em quaisquer dos
homens do pai. Não iria abrir mão de seus homens.
- Então é melhor que aprenda a controlá-los. Não quero ver a
cidade saqueada.
- A cidade? - Tyrion sentiu-se perdido. - Que cidade seria essa?
- Porto Real. Vou mandá-lo para a corte.
Era a última coisa em que Tyrion Lannister teria pensado.
Estendeu a mão para o vinho e pensou no assunto por um
momento, enquanto bebia,
- E que devo eu fazer lá?
- Governar - seu pai disse concisamente.
Tyrion estremeceu de riso.
- Minha querida irmã pode ter uma coisa ou duas a dizer a
respeito disso.
- Deixe-a dizer o que quiser. O filho dela tem de ser controlado
antes que nos arruíne a todos. Culpo esses patetas do
conselho... o nosso amigo Petyr, o venerável Grande Meistre e
aquela maravilha castrada, Lorde Varys. Que tipo de conselhos
eles estão dando a Joffrey enquanto ele salta de loucura em
loucura? De quem foi a ideia de fazer senhor aquele Janos
Slynt? O pai do homem era um açougueiro, e dão a ele
Harrenhal. Harrenhal, que foi a sede de reis! Não que ele
algum dia ponha os pés no castelo enquanto eu tiver algo a
dizer sobre o assunto. Dizem--me que escolheu para símbolo
uma lança ensanguentada. Minha escolha teria sido um cutelo
ensanguentado - o pai não levantara a voz, mas Tyrion
conseguia ver a ira no ouro de seus olhos. - E demitir Selmy,
qual é o sentido disso? Sim, o homem está velho, mas o nome
de Barristan, o Ousado, ainda tem peso no reino. Emprestava
honra a qualquer homem que servisse. Poderá alguém dizer o
mesmo de Cão de Caça? Alimenta-se o cão com ossos por
baixo da mesa, não se dá a ele um lugar ao lado do trono -
brandiu o dedo na cara de Tyrion. - Se Cersei não conseguir
domar o rapaz, você tem de fazê-lo. E se esses conselheiros
estiverem fazendo jogo duplo...
Tyrion sabia.
- Hastes - suspirou. - Cabeças. Muralhas.
- Vejo que aprendeu algumas lições comigo.
- Mais do que pensa, pai - respondeu Tyrion em voz baixa.
Terminou o vinho e pôs a taça de lado, pensativo, Uma parte
de si estava mais satisfeita do que queria admitir. A outra
recordava a batalha a montante do rio, e perguntava a si
mesmo se estava sendo de novo enviado para defender o flanco
esquerdo. - Por que eu? - perguntou, inclinando a cabeça para
o lado. - Por que não meu tio? Por que não Sor Addam, Sor
Flement ou Lorde Serrett? Por que não um homem... maior?
Lorde Tywin pôs-se abruptamente em pé.
- É meu filho.
Foi então que compreendeu. Desistiu dele, pensou. Seu
maldito canalha, julga que Jaime é um homem morto, e
portanto eu sou tudo o que lhe resta, Tyrion quis
esbofeteado, cuspir-lhe na cara, puxar o punhal, arrancar-lhe o
coração e ver se era feito de ouro velho e duro como diziam os
plebeus. Mas ficou ali sentado, em silêncio e imóvel.
Os cacos da taça partida rangeram sob os saltos do pai quando
Lorde Tywin atravessou a sala.
- Uma última coisa - disse ele da porta. - Não levará a
prostituta para a corte.
Tyrion ficou sozinho na sala comum durante um longo tempo
depois de o pai ir embora. Por fim, subiu os degraus até suas
acolhedoras águas-furtadas sob a torre sineira. O teto era
baixo, mas isso para um anão não chegava a ser um problema.
Da janela via o cadafalso que o pai erigira no pátio. O cadáver
da estalajadeira girava lentamente na ponta de uma corda
sempre que o vento noturno soprava. Sua carne tornara-se tão
escassa e esfarrapada como as esperanças dos Lannister.
Shae soltou um murmúrio sonolento e rolou para ele quando
se sentou na borda da cama de penas. Enfiou a mão sob a
manta e envolveu com ela um seio suave, e os olhos dela se
abriram.
- Senhor - disse, com um sorriso sonolento.
Quando sentiu o mamilo enrijecer, Tyrion beijou-a.
- Tenho em mente levá-la para Porto Real, querida - sussurrou.
Jon
A égua relinchou baixinho quando Jon apertou a cilha.
- Calma, querida senhora - disse ele em voz suave, acalmando-a
com um afago. O vento sussurrava no estábulo, uma fria
respiração de morte no seu rosto, mas Jon não lhe prestou
atenção. Atou o rolo à sela, sentindo os dedos cheios de
cicatrizes rígidos e desastrados. - Fantasma - chamou, em voz
baixa -, aqui - e o lobo ali estava, com olhos que eram como
brasas. -Jon, por favor. Não pode fazer isto.
Ele montou, com as rédeas na mão, e fez o cavalo girar para a
noite. Samwell Tarly estava à porta do estábulo, com a lua
cheia espreitando-lhe sobre o ombro. Gerava uma sombra de
gigante, imensa e negra.
- Sai da minha frente, Sam.
-Jon, não pode - disse Sam. - Não vou deixar que faça isso.
- Eu preferia não machucá-lo - disse-lhe Jon. - Afaste-se, Sam,
ou o atropelo.
- Não fará. Precisa me ouvir. Por favor...
Jon enterrou as esporas na carne da égua, que saltou para a
porta. Por um instante Sam manteve-se imóvel, com o rosto
tão redondo e pálido como a lua que tinha atrás, a boca trans -
formada num O de surpresa que se alargava. No último
momento, quando já estavam quase sobre ele, saltou para o
lado como Jon soubera que faria, tropeçou e caiu. A égua
saltou sobre ele, penetrando na noite.
Jon subiu o capuz de seu pesado manto e deixou as rédeas
soltas. Castelo Negro encontrava-se silencioso e imóvel quando
cavalgou para o exterior, com Fantasma correndo a seu lado.
Sabia que havia homens observando na muralha atrás de si,
mas os olhos deles estavam virados para o norte, não para o
sul. Ninguém o veria partir, ninguém além de Sam Tarly, que
lutava para se pôr de pé na poeira dos velhos estábulos.
Esperava que Sam não tivesse se machucado ao cair daquela
maneira. Era tão pesado e desajeitado que seria mesmo coisa
de Sam quebrar o pulso ou torcer o tornozelo ao sair do
caminho.
- Eu o preveni - disse Jon em voz alta. - De qualquer forma,
isto não tinha nada a ver com ele - flexionou a mão queimada
enquanto cavalgava, abrindo e fechando os dedos cheios de
cicatrizes. Ainda lhe doíam, mas era bom não ter as ataduras.
O luar prateava os montes enquanto ele seguia a fita retorcida
da estrada real. Precisava se afastar o máximo possível da
Muralha antes que percebessem que desaparecera. De manhã
deixaria a estrada e avançaria por campos, florestas e córregos
a fim de despistar os perseguidores, mas no momento a
velocidade era mais importante que a dissimulação. Afinal, não
era como se eles não adivinhassem para onde se dirigia.
O Velho Urso estava habituado a se levantar à primeira luz da
aurora, portanto, Jon tinha até essa hora para pôr tantas léguas
quantas pudesse entre si e a Muralha,., se Sam Tarly não o
traísse. O gordo rapaz era obediente e fácil de assustar, mas
amava Jon como a um irmão. Se fosse interrogado, não havia
dúvida de que Sam lhes diria a verdade, mas Jon não o
imaginava desafiando os guardas à porta da Torre do Rei para
acordar Mormont,
Quando Jon não aparecesse na cozinha para ir buscar o café da
manhã do Velho Urso, procurariam na sua cela e encontrariam
Garralonga sobre a cama. Tinha sido duro abandoná-la, mas
Jon não estava suficientemente despido de honra para levá -la
consigo. Nem mesmo Jorah Mormont o fizera quando fugira em
desgraça. Sem dúvida que Lorde Mormont encontraria alguém
mais merecedor daquela lâmina. Jon sentia-se mal ao pensar no
velho. Sabia que sua deserção seria como sal na ferida, ainda
em carne viva, da desgraça do filho. Parecia uma pobre
maneira de lhe pagar pela confiança, mas nada havia a fazer.
Fizesse o que fizesse, Jon sentia-se como se estivesse traindo
alguém.
Nem mesmo agora sabia se estava fazendo a coisa honrosa. Os
sulistas tinham a vida mais facilitada. Tinham seus septões com
quem falar, alguém para lhes desvendar a vontade dos deuses e
os ajudar a distinguir o bem do mal. Mas os Stark adoravam os
velhos deuses, os deuses sem nome, e se as árvores -coração
ouviam, não falavam.
Quando as últimas luzes de Castelo Negro desapareceram atrá s
dele, Jon refreou a égua, pondo-a a trote. Tinha uma longa
viagem à sua frente e só aquele cavalo para transportá -lo.
Havia fortificações e aldeias de agricultores ao longo do
caminho ao sul, onde conseguiria trocar a égua por uma
montaria descansada quando precisasse de uma, mas não se
estivesse ferida ou arrebentada.
Precisaria encontrar novas roupas em breve; o mais provável
era que tivesse de roubar. Estava vestido de negro dos pés à
cabeça; botas altas de montar em couro, calças e túnica de
ráfia, um colete de couro e um pesado manto de lã. A espada e
o punhal estavam embainhados em pele negra de toupeira, e a
camisa e a touca que tinha guardados no alforje eram de cota
de malha negra. Qualquer uma daquelas peças significaria sua
morte se fosse apanhado. Um estranho vestido de negro era
visto com uma suspeita fria em todas as aldeias e fortalezas a
norte do Gargalo, e haveria em breve homens à sua procura.
Assim que os corvos de Meistre Aemon levantassem voo, Jon
sabia que não encontraria porto seguro. Nem mesmo em
Winterfell. Bran poderia querer deixado entrar, mas Meistre
Luwin tinha mais bom-senso. Trancaria os portões e o
mandaria embora, tal como devia fazer. Era melhor nem passar
por lá.
Mas via claramente o castelo com o olho da mente, como se
tivesse partido no dia anterior; as grandes muralhas de granito,
o Grande Salão com os seus cheiros de fumaça, de cães e de
carne assando, o aposento privado do pai, o quarto na torre
onde dormira. Parte de si nada mais desejava do que ouvir de
novo a gargalhada de Bran, jantar uma das tortas de carne com
bacon de Gage, ouvir a Velha Ama contar as suas histórias
sobre os filhos da floresta e Florian, o Tolo.
Mas não abandonara a Muralha para isso; partira porque era,
no fim das contas, filho de seu pai e irmão de Robb. O
presente de uma espada, mesmo de uma espada tão boa como
Garralonga, não fazia dele um Mormont. Tampouco era Aemon
Targaryen. Três vezes o velho escolhera, e três vezes escolhera
a honra, mas isso era ele. Mesmo agora Jon não conseguia
decidir se o meistre ficara por ser fraco e covarde ou por ser
forte e leal. Mas compreendia o que o velho quisera dizer
quando falara da dor da escolha; compreendia isso bem demais.
Tyrion Lannister afirmara que a maior parte dos homens mais
depressa negava uma verdade dura do que a encarava, mas Jon
estava farto de negações. Ele era quem era: Jon Snow, bastardo
e perjuro, sem mãe, sem amigos e perdido. Durante o resto de
sua vida, não importa o quanto durasse, estaria condenado a
viver como um estranho, o homem silencioso nas sombras que
não se atreve a pronunciar o seu verdadeiro nome. Aonde quer
que fosse nos Sete Reinos precisaria viver uma mentira, para
que todas as mãos não se levantassem contra ele. Mas não
importava, desde que vivesse tempo suficiente para ocupar o
seu lugar ao lado do irmão e ajudar a vingar o pai.
Lembrava-se de Robb como o vira pela última vez, em pé, no
pátio, com neve derretendo nos cabelos ruivos. Jon teria de
encontrá-lo em segredo, disfarçado. Tentava imaginar a
expressão na cara de Robb quando ele se revelasse, O irmão
sacudiria a cabeça e sorriria, e diria... diria...
Não conseguia ver o sorriso. Por mais que tentasse, não
conseguia vê-lo. Deu por si pensando no desertor que o pai
decapitara no dia em que encontraram os lobos gigantes.
- Você disse as palavras - dissera-lhe Lorde Eddard. - Você fez
um juramento perante os seus irmãos, perante os velhos
deuses e os novos - Desmond e Gordo Tom tinham arrastado o
homem até ao toco. Os olhos de Bran estavam dilatados como
pires, e Jon tivera de lhe lembrar que mantivesse o cavalo
controlado. Lembrava-se da expressão no rosto do pai quando
Theon Greyjoy lhe dera Gelo, dos salpicos de sangue na neve,
do modo como Theon pontapeara a cabeça quando ela rolara
até junto de seus pés.
Perguntou-se o que teria feito Lorde Eddard se o desertor fosse
o irmão Benjen em vez daquele estranho esfarrapado. Teria
sido diferente? Tinha de ser, com certeza, com certeza... e
Robb lhe daria as boas-vindas, sem dúvida. Tinha de fazê-lo,
caso contrário...
Não valia a pena pensar nisso. A dor latejou, bem no interior
dos dedos, quando se agarrou com força às rédeas. Jon bateu
com os calcanhares no cavalo e pôs-se a galope, correndo pela
estrada real como que para fugir das suas dúvidas. Não tinha
medo da morte, mas não queria morrer assim, amarrado e
decapitado como um simples salteador. Se tinha de perecer,
que fosse de espada na mão, lutando contra os assassinos do
pai. Não era um verdadeiro Stark, nunca o fora... mas podia
morrer como se fosse. Que dissessem que Eddard Stark fora
pai de quatro filhos, não de três.
Fantasma manteve o ritmo durante quase meia légua, com a
língua vermelha pendendo da boca. O homem e o cavalo
abaixaram a cabeça quando ele pediu mais velocidade à égua.
O lobo desacelerou, parou, observando, com os olhos
brilhando, vermelhos, o luar. Desapareceu atrás dele, mas Jon
sabia que o seguiria, no seu próprio ritmo.
Luzes dispersas cintilaram através das árvores em frente, de
ambos os lados da estrada: Vila Toupeira. Um cão ladrou
quando Jon passou por ele, e ouviu o zurro rouco de uma mula
vindo do estábulo, mas fora isso a vila estava silenciosa. Aqui e
ali, a cintilação das lareiras brilhava em janelas cobertas,
esgueirando-se por entre ripas de madeira, mas eram só uma
mão-cheia.
Vila Toupeira era maior do que parecia, pois três quartos dela
eram subterrâneos, estendendo--se em profundas caves quentes
ligadas por um labirinto de túneis. Até o bordel ficava lá em -
baixo, sem nada na superfície além de uma cabana de madeira
que não era maior que uma latrina, com uma lanterna
vermelha pendurada sobre a porta. Na Muralha podia-se ouvir
os homens chamando às prostitutas "tesouros enterrados", Jon
perguntou a si mesmo se algum de seus irmãos de negro
estaria lá embaixo naquela noite, escavando. Isso também era
quebra de votos, mas ninguém parecia se importar.
Só bem depois de passar pela vila é que Jon voltou a reduzir o
passo. Nessa altura ele e a montaria já estavam úmidos de
suor. Desmontou, tremendo, com a mão queimada doendo. En-
controu um monte de neve que derretia sob as árvores, clara
ao luar, pingando água que ia formar pequenos charcos pouco
profundos. Jon acocorou-se e juntou as mãos em taça,
aprisionando a água corrente entre os dedos. A neve derretida
estava fria como gelo. Bebeu, espalhou um pouco no rosto, até
sentir um formigamento nas bochechas. Os dedos latejavam
mais do que em qualquer dos últimos dias, e também sentia a
cabeça palpitar. Estou fazendo o que é certo, disse a si
mesmo, então, por que me sinto tão mal?
O cavalo estava espumando, e Jon pegou nas rédeas e o levou a
pé durante algum tempo. A estrada quase não era
suficientemente larga para que dois cavaleiros passassem lado a
lado, com o piso entrecortado por pequenos córregos e cheio
de pedras. Aquela corrida fora realmente estúpida, um convite
para um pescoço quebrado. Jon se questionou o que lhe teria
dado. Estaria assim com tanta pressa de morrer? No meio das
árvores, o grito distante de um animal assustado qualquer o
fez erguer os olhos, A égua relinchou nervosamente. Teria o
lobo encontrado alguma presa? Envolveu a boca nas mãos.
- Fantasma1. - gritou. - Fantasma, a mim - a única resposta foi
um rumor de asas atrás de si quando uma coruja levantou vôo.
Franzindo as sobrancelhas, Jon prosseguiu caminho. Levou a
égua durante meia hora, até que ela secou. Fantasma não
apareceu. Jon queria montar e voltar a cavalgar, mas estava
preocupado com o lobo desaparecido.
- Fantasma - voltou a chamar. - Onde está? A mim! Fantasma!
- nada naquela floresta podia incomodar um lobo gigante, até
um lobo gigante meio crescido, a menos que... não, Fantasma
era inteligente demais para atacar um urso, e se houvesse uma
alcateia de lobos nas imediações, Jon certamente os teria
ouvido uivando.
Devia comer, decidiu. Os alimentos lhe acalmariam o estômago
e dariam a Fantasma a chance de alcançá-lo. Ainda não havia
perigo; Castelo Negro ainda dormia. No alforje encontrou um
biscoito, um pedaço de queijo e uma pequena maçã escura e
murcha. Trouxera também carne de vaca salgada e uma fat ia
de bacon que surrupiara das cozinhas, mas queria poupar a
carne para o dia seguinte. Depois de ficar sem ela, teria de
caçar, e isso por hora o atrasaria.
Jon sentou-se sob as árvores e comeu biscoito e queijo
enquanto a égua pastava ao longo da Estrada do Rei. Deixou a
maçã para o fim. Tinha se tornado um pouco mole, mas a
polpa ainda estava ácida e sumarenta. Já chegara ao caroço
quando ouviu os sons: cavalos, vindos do norte. Rapidamente,
Jon saltou e correu para a égua. Poderia fugir? Não, estavam
perto demais, certamente os ouviriam, e se viessem de Castelo
Negro...
Levou a égua para longe da estrada, para trás de uma espessa
mata de árvores-sentinela cinza-- esverdeadas.
- Agora silêncio - disse, numa voz abafada, agachando-se a fim
de espreitar por entre os ramos. Se os deuses fossem bondosos,
os cavaleiros passariam sem detectá-lo. O mais provável era
que fossem apenas pessoas simples de Vila Toupeira,
lavradores a caminho dos campos, se bem que, o que estariam
fazendo na estrada no meio da noite...
Ficou ouvindo o som dos cascos que aumentava a um ritmo
constante, enquanto os cavalos se aproximavam a trote rápido
pela Estrada do Rei. Julgando pelo ruído, eram pelo menos
cinco ou seis cavaleiros. As vozes esgueiraram-se por entre as
árvores.
- ...certeza de que ele veio por aqui?
- Não podemos ter certeza..
- Tanto quanto sabem, pode bem ter se dirigido para o leste.
Ou abandonado a estrada para cortar através da floresta. Era o
que eu faria.
- Na escuridão? Estúpido. Se não caísse do cavalo e quebrasse o
pescoço, se perderia e acabaria de volta à Muralha quando o
sol nascesse.
- Não acabava nada - Grenn soava irritado. - Cavalgava para o
sul. Pode-se guiar pelas estrelas.
- E se o céu estivesse nublado? - perguntou Pyp.
- Então não ia.
Outra voz interrompeu.
- Sabem onde eu estaria, se fosse comigo? Em Vila Toupeira,
para escavar tesouros enterrados - o riso estridente do Sapo
trovejou através das árvores. A égua de jon resfolegou.
- Calem-se todos - disse Halder. - Acho que ouvi qualquer
coisa.
- Onde? Não ouvi nada - os cavalos pararam.
- Você não consegue ouvir o próprio peido.
- Consigo, sim - insistiu Grenn.
- Calem-se!
Caíram todos no silêncio, à escuta. Jon deu por si prendendo a
respiração. Sam, pensou. Não fora até o Velho Urso, mas
também não fora para a cama, acordara os outros rapazes.
Malditos sejam todos. Chegada a alvorada, se não estivessem
nas camas, seriam também chamados desertores. Que
pensavam eles que estavam fazendo?
O silêncio abafado pareceu esticar-se e voltar a esticar-se. De
onde Jon espreitava, conseguia ver as pernas dos cavalos deles
através dos galhos. Por fim, Pyp falou.
- Que foi que ouviu?
- Não sei - admitiu Halder. - Um som, pensei que pudesse ser
um cavalo, mas...
- Ali não há nada.
Pelo canto do olho Jon vislumbrou uma forma branca que se
deslocava por entre as árvores. Ouviu-se o restolhar de folhas,
e Fantasma saiu das sombras aos saltos, tão subitamente que a
égua de Jon se assustou e soltou um relincho.
- Ali! - gritou Halder.
- Também ouvi!
- Traidor - disse Jon ao lobo gigante enquanto saltava para a
sela. Virou a cabeça da égua para escapulir por entre as
árvores, mas eles estavam em cima antes que avançasse três
metros.
-Jon! - gritou Pyp às suas costas.
- Para - disse Grenn, - Não pode escapar de todos.
Jon fez rodopiar a montaria para enfrentá-los, puxando a
espada.
- Voltem. Não quero machucar ninguém, mas o farei se tiver de
ser.
- Um contra sete? - Halder fez um sinal. Os rapazes
espalharam-se, rodeando-o.
- Que querem de mim? - Jon quis saber.
- Queremos levá-lo de volta para o seu lugar - disse Pyp.
- Meu lugar é com meu irmão.
- Seus irmãos agora somos nós - disse Grenn.
- Eles cortam sua cabeça se o apanharem, sabe? - Sapo soltou
uma gargalhada nervosa. -Isto é tão estúpido, é como alguma
coisa que um auroque poderia fazer.
- Não é nada - disse Grenn. - Não sou perjuro nenhum. Disse
as palavras e foi a sério.
- Eu também - disse-lhes Jon. - Não compreendem? Eles
assassinaram meu pai. É a guerra, meu irmão Robb está
lutando nas terras do rio...
- Nós sabemos - disse Pyp solenemente. - Sam nos contou tudo.
- Temos pena pelo seu pai - disse Grenn -, mas não importa.
Depois de dizer as palavras, não pode partir, aconteça o que
acontecer.
- Tenho de partir - disse Jon fervorosamente.
- Você disse as palavras - lembroudhe Pyp. - Agora começa a
minha vigia, foi isto que disse. Não terminará até a minha
morte.
- Viverei e morrerei no meu posto - acrescentou Grenn,
concordando com a cabeça.
- Não é preciso me dizer as palavras, conheço-as tão bem como
vocês - agora estava zangado. Por que não podiam deixá-lo ir
em paz? Só tornavam as coisas mais difíceis.
- Soa a espada na escuridão - entoou Halder.
- O vigilante nas muralhas - piou Sapo.
Jon insultou-os a todos. Eles não lhe deram atenção. Pyp fez
avançar o cavalo, recitando:
- Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo
a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o
escudo que defende os reinos dos homens.
- Não se aproxime - preveniu-o Jon, brandindo a espada. - Falo
sério, Pyp - eles nem sequer traziam armaduras, podia cortá-
los aos pedacinhos se tivesse de ser.
Matthar rodeara-o por trás. E juntou-se ao coro.
- Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite.
Jon bateu com os calcanhares na égua, fazendo-a descrever um
círculo. Os rapazes estavam agora em toda a sua volta,
aproximando-se por todos os lados.
- Por esta noite... - Halder aproximou-se a trote, vindo da
esquerda.
- ...e por todas as noites que estão por vir - terminou Pyp.
Estendeu a mão para as rédeas de Jon. - Portanto, sua escolha
é esta. Ou me mata ou torna comigo.
Jon ergueu a espada... e a abaixou, impotente.
- Maldito seja - disse. - Malditos sejam todos,
- Temos de atar suas mãos ou promete que voltará
pacificamente? - perguntou Halder.
- Não fugirei, se é isso que quer saber - Fantasma saiu das
árvores e Jon enviou-lhe um olhar zangado. - Pouca ajuda você
me deu - disse. Os profundos olhos vermelhos olharam-no com
inteligência.
- É melhor que nos apressemos - disse Pyp. - Se não estivermos
de volta antes da primeira luz da aurora, o Velho Urso terá
todas as nossas cabeças.
Da viagem de regresso Jon Snow pouco recordaria. Pareceu
mais curta que a viagem para o sul, talvez por ter a cabeça em
outro lugar. Pyp marcou o ritmo, galopando, ritmando o passo,
trotando e depois rebentando de novo a galope. Vila Toupeira
chegou e partiu, já com a lanterna por cima do bordel há
muito extinta. Fizeram um bom tempo. A alvorada ainda estava
a uma hora de distância quando Jon vislumbrou as torres de
Castelo Negro à frente do grupo, escuras contra a pálida
imensidão da Muralha. Dessa vez não as sentia como uma casa.
Podiam levá-lo de volta, disse Jon a si mesmo, mas não podiam
obrigá-lo a ficar. A guerra não terminaria de manhã, nem no
dia seguinte, e os amigos não podiam vigiá-lo dia e noite.
Esperaria a sua hora, faria com que pensassem que se sentia
satisfeito por permanecer ali... e então, quando relaxassem,
partiria de novo. Da próxima vez, evitaria a Estrada do Rei.
Seguiria a Muralha para o leste, talvez até mesmo ao mar, uma
trajetória mais longa, mas mais segura. Ou até talvez para o
oeste, para as montanhas, e depois para o sul pelos passos de
altitude. Era esse o caminho dos selvagens, duro e perigoso,
mas pelo menos ninguém o seguiria. Não se aproximaria cem
léguas de Winterfell ou da Estrada do Rei.
Samwell Tarly os esperava nos estábulos velhos, abandonado
no chão e de encontro a um fardo de feno, ansioso demais para
dormir. Ergueu-se e sacudiu-se.
- Eu... estou feliz por terem te encontrado, Jon.
- Mas eu não - disse Jon, desmontando.
Pyp saltou do cavalo e olhou para o céu que clareava,
descontente.
- Dá-nos uma ajuda para tratar dos cavalos, Sam - disse o
pequeno rapaz. - Temos um longo dia pela frente e nenhum
descanso para enfrentá-lo, graças a Lorde Snow.
Quando o dia rompeu, Jon dirigiu-se às cozinhas como fazia
todas as madrugadas. Hobb Três-Dedos não lhe disse nada
quando lhe deu a refeição matinal do Velho Urso, Naquele dia
eram três ovos vermelhos cozidos, com pão frito, uma fatia de
presunto e uma tigela de ameixas secas. Jon levou a comida
para a Torre do Rei. Foi encontrar Mormont no banco da
janela, escrevendo. O corvo caminhava de um lado para o
outro por cima de seus ombros, resmungando "Grão, grão,
grão", A ave soltou um guincho quando Jon entrou.
- Põe a comida na mesa - disse o Velho Urso, olhando-o de
relance. - Quero um pouco de cerveja.
Jon abriu uma janela que tinha os tapumes corridos, tirou o
jarro de cerveja do parapeito exterior e encheu um corno.
Hobb dera-lhe um limão, ainda frio da Muralha. Jon o esmagou
no punho. O sumo escorreu-lhe por entre os dedos. Mormont
bebia limão na cerveja todos os dias, e dizia que era por isso
que ainda tinha os dentes,
- Sem dúvida que amava seu pai - disse Mormont quando Jon
lhe trouxe o corno. - As coisas que amamos destroem-nos
sempre, rapaz. Lembra de quando lhe disse isso?
- Lembro - disse Jon em tom carrancudo. Não queria falar da
morte do pai, nem mesmo com Mormont.
- Vê se nunca se esquece. As verdades duras são aquelas que se
deve segurar bem. Vá buscar meu prato. E outra vez presunto?
Que seja. Está com um ar cansado. Seu passeio ao luar foi as-
sim tão cansativo?
Jon sentiu a garganta seca.
- Você sabe?
"Saber", disse o corvo dos ombros de Mormont.
"Saber". O Velho Urso bufou.
-Julga que me escolheram para Senhor Comandante da
Patrulha da Noite por ser estúpido que nem um toco, Snow ?
Aemon disse-me que partiria. Eu lhe disse que regressaria.
Conheço os meus homens... e também os meus rapazes, A
honra o levou à Estrada do Rei... e a honra o trouxe de volta.
- Foram os meus amigos que me trouxeram de volta - disse
Jon.
- Acaso disse que tinha sido a sua honra? - Mormont
inspecionou o prato.
- Mataram meu pai. Esperavam que eu não fizesse nada?
- Em boa verdade, esperávamos que fizesse precisamente o que
fez - Mormont experimentou uma ameixa e cuspiu o caroço. -
Ordenei que fosse vigiado. Você foi visto saindo. Se seus
irmãos não o tivessem ido buscar, teria sido apanhado no
caminho, e não por amigos. A menos que tenha um cavalo com
asas como um corvo. Tem?
- Não - Jon sentia-se um idiota.
- Ê pena, um cavalo assim nos seria útil.
Jon empertigou-se. Disse a si mesmo que morreria bem; isso,
pelo menos, podia fazer.
- Conheço a pena por deserção, senhor. Não tenho medo de
morrer.
"Morre!", gritou o corvo.
- Nem de viver, espero eu - disse Mormont, cortando o
presunto com o punhal e dando um bocado à ave. - Não
desertou... ainda.
Está aqui. Se decapitássemos todos os rapazes que vão a
Vila Toupeira durante a noite, só fantasmas patrulhariam a
Muralha. Mas talvez pretenda fugir de novo amanhã, ou daqui
a uma quinzena. E isso? É essa a sua esperança, rapaz?
Jon manteve-se em silêncio.
- Era o que eu pensava - Mormont tirou a casca de um ovo
cozido. - Seu pai está morto, rapaz. Julga que pode trazê -lo de
volta?
- Não - respondeu, carrancudo.
- Ótimo - disse Mormont. - Vimos os mortos regressar, você e
eu, e não é algo que eu queira ver de novo - comeu o ovo em
duas dentadas e arrancou um pedaço de casca do meio dos
dentes. - Seu irmão está no terreno com todo o poder do Norte
com ele. Qualquer um dos senhores seus vassalos comanda
mais espadas do que poderá encontrar em toda a Patrulha da
Noite. Por que imaginará você que precisam da sua ajuda? É
um guerreiro assim tão poderoso, ou tem um gramequim no
bolso para te dar magia à espada?
Jon não tinha resposta para lhe dar. O corvo bicava um ovo,
quebrando a casca. Enfiando o bico através do buraco, puxou
bocados de clara e de gema. O Velho Urso suspirou.
- Não é o único atingido por esta guerra. Quer eu goste quer
não, minha irmã marcha na tropa do seu irmão, ela e aquelas
suas filhas, vestidas com cotas de malha de homem. Maege é
uma velha snark grisalha, teimosa, com mau gênio e
voluntariosa. A bem da verdade, quase não consigo estar perto
da maldita mulher, mas isso não quer dizer que meu amor por
ela seja menor que o amor que sente pelas suas meias -irmãs -
franzindo as sobrancelhas, Mormont pegou o último ovo e o
esmagou no punho até que a casca estalou. - Ou talvez queira.
Mas, seja como for, me desgostaria da mesma forma se ela
fosse morta, e você não me vê fugir. Eu disse as palavras, tal
como você. Meu lugar é aqui... Onde é o seu, rapaz?
Não tenho lugar nenhum, Jon quis dizer. Sou um bastardo,
não tenho direitos, nem nome, nem mãe, e agora nem
sequer um pai. Mas as palavras não vinham.
- Não sei.
- Eu sei - disse o Senhor Comandante Mormont. - Os ventos
frios se levantam, Snow. Para lá da Muralha, as sombras
alongam-se. Cotter Pyke escreve sobre vastas manadas de alces
correndo ao sul e a leste na direção do mar, e também de
mamutes. Diz que um de seus homens descobriu enormes
pegadas deformadas a menos de três léguas de Atalaialeste.
Patrulheiros da Torre Sombria encontraram aldeias inteiras
abandonadas, e de noite Sor Denys diz que veem fogueiras nas
montanhas, enormes clarões que ardem do pôr do sol até a
alvorada. Quorin Halfhand trouxe um cativo das profundezas
da Garganta, e o homem jura que Mance Rayder está reunindo
toda a sua gente num novo forte secreto que acreditam ter
encontrado, para que fim só os deuses sabem. Julga que seu tio
Benjen foi o único patrulheiro que perdemos neste último ano?
"Ben Jen", crocitou o corvo, inclinando a cabeça., com
pedacinhos de ovo caindo do bico. "Ben Jen. Ben Jen"
- Não - disse Jon. Tinha havido outros. Muitos.
- Julga que a guerra do seu irmão é mais importante que a
nossa? - ladrou o velho.
Jon mordeu o lábio. O corvo bateu as asas na sua direção.
"Guerra, guerra, guerra, guerra", cantou.
- Não é - disse-lhe Mormont. - Os deuses nos salvem, rapaz,
você não é cego e não é estúpido. Quando os mortos andam à
caça na noite, julga que importa quem se senta no Trono de
Ferro?
- Não - Jon não pensara no assunto daquela maneira.
- O senhor seu pai o enviou até nós, Jon. Por que,
quem poderá dizê-lo? "Por quê? Por quê? Por
quê?", gritou o corvo.
- Tudo o que sei é que o sangue dos Primeiros Homens corre
nas veias dos Stark. Os Primeiros Homens construíram a
Muralha, e diz-se que se lembram de coisas que os outros
esqueceram. E aquele seu animal... foi ele que nos levou às
criaturas, que o preveniu do morto nas escadas. Sor Jaremy
chamaria sem dúvida a isso um acaso, mas ele está morto, e eu
não - Lorde Mormont espetou a ponta do punhal num pedaço
de presunto. - Acho que era o seu destino estar aqui, e quero
você e seu lobo conosco quando avançarmos para lá da
Muralha.
As palavras fizeram com que as costas de Jon se arrepias sem
de excitação.
- Para lá da Muralha?
- Você ouviu o que eu disse. Pretendo encontrar Ben Stark,
vivo ou morto - mastigou e engoliu. - Não vou ficar aqui
docilmente sentado à espera das neves e dos ventos gelados.
Temos de saber o que está acontecendo. Desta vez, a Patrulha
da Noite avançará em força, contra o Rei-para-lá-da-Muralha,
os Outros, ou seja o que for que se encontre por lá. Pretendo
ser eu próprio a comandá-los - apontou o punhal para o peito
de Jon. - Segundo o costume, o intendente do Senhor
Comandante é também o seu escudeiro... mas não pretendo
acordar todas as manhãs perguntando a mim mesmo se terá
fugido de novo. Por isso quero uma resposta de você, Lorde
Snow, e quero-a já. É um irmão da Patrulha da Noite... ou só
um rapazinho bastardo que quer brincar de guerra?
Jon Snow endireitou-se e inspirou profunda e longamente.
Perdoem-me, pai, Robb, Arya, Bran. .. perdoem-me não
posso ajudá-los. Ele tem razão. É este o meu lugar.
- Eu sou... seu, senhor. Seu homem.Juro. Não voltarei a fugir.
O Velho Urso resfolegou.
- Ótimo. Agora vá buscar sua espada.
Catelyn
Parecia terem se passado mil anos desde que Catelyn Stark
levara o filho bebê de Correrrio, atravessando o Pedregoso
num pequeno barco para dar início à viagem para o norte até
Winterfell. E era pelo Pedregoso que regressavam agora para
casa, embora o rapaz vestisse armadura e cota de malha em
vez de cueiros.
Robb estava sentado à proa com Vento Cinzento, descansando
a mão na cabeça do lobo gigante enquanto os remadores
puxavam os remos. Theon Greyjoy encontrava-se com ele. O tio
Brynden vinha depois no segundo barco, com Grande -Jon e
Lorde Karstark.
Catelyn ocupou um lugar perto da popa. Correram pelo
Pedregoso, deixando a forte corrente empurrá-los para lá da
Torre da Roda, O trovejar da grande roda de água que havia lá
dentro era um som de infância que trouxe um sorriso triste ao
rosto de Catelyn. Das muralhas de arenito do castelo, soldados
e criados gritavam o nome dela, e o de Robb, e "Winterfell!".
Em todos os baluartes esvoaçava o estandarte da Casa Tully:
uma truta saltante, de prata, em fundo ondulado de azul e
vermelho. Era uma visão estimulante; no entanto, não lhe
alegrava o coração. Gostaria de saber se o coração voltaria a
alegrar-se algum dia. Ah, Ned...
Abaixo da Torre da Roda descreveram uma curva larga e
cortaram as águas agitadas. Os homens puseram os ombros no
esforço. O arco largo do Portão da Água surgiu à vista, e
Catelyn ouviu o tinir de pesadas correntes quando a grande
porta levadiça de ferro foi içada. Ergueu-se lentamente
enquanto se aproximavam, e Catelyn viu que a parte de baixo
estava vermelha de ferrugem. Os trinta centímetros inferiores
pingaram lama sobre eles quando passaram por baixo, com as
pontas farpadas a meros centímetros de suas cabeças. Catelyn
ergueu o olhar para as barras e se perguntou até que
profundidade iria a ferrugem, como aguentaria a porta levadiça
um aríete e se deveria ser substituída. Nos dias que corriam,
era raro que pensamentos como aquele andassem longe de sua
mente.
Passaram sob o arco e as muralhas, saindo do sol para a
sombra e de novo para o sol. Havia barcos, grandes e
pequenos, amarrados em toda a volta, presos a anéis de ferro
incrustados na pedra. Os guardas do pai esperavam com o
irmão na escada da água. Sor Edmure Tully era um jovem
troncudo, de cabelos ruivos desgrenhados e barba cor de fogo.
Sua placa de peito tinha arranhões e deformações de batalha, e
o manto azul e vermelho estava manchado de sangue e de
fumaça. Tinha ao lado Lorde Tytos Blackwood, um homem
duro e espigado, de suíças cinzentas cortadas rente e nariz
adunco. Sua armadura, de um amarelo vivo, era incrustada de
azeviche em elaborados padrões que lembravam trepadeiras e
folhas, e um manto feito de penas de corvo envolvia os ombros
magros. Fora Lorde Tytos quem liderara a investida que
arrancara o irmão de Catelyn do acampamento Lannister.
- Traga-os - ordenou Sor Edmure.Três homens precipitaram-se
pelas escadas, entraram na água até os joelhos e puxaram o
barco para perto com longos ganchos. Quando Vento Cinzento
saltou para a terra, um deles deixou cair o cabo e cambaleou
para trás, tropeçando e sentando-se abruptamente no rio. Os
outros riram, e o homem ficou com expressão envergonhada.
Theon Greyjoy saltou por cima da borda do barco e ergueu
Catelyn pela cintura, pousando-a num degrau seco acima dele
enquanto a água lhe batia nas botas.
Edmure desceu os degraus para abraçá-la.
- Querida irmã - murmurou com voz rouca. Possuía profundos
olhos azuis e uma boca feita para sorrisos, mas agora não
sorria. Parecia desgastado e cansado, consumido pela batalha e
macilento de tensão. Tinha um curativo no pescoço, no local
onde fora ferido. Catelyn o abraçou com toda a força.
- Sua dor é minha, Cat - disse quando se separaram. - Quando
soubemos o que aconteceu a Lorde Eddard... os Lannister
pagarão, juro, terá a sua vingança.
- Isso me trará Ned de volta? - ela disse em tom cortante. A
ferida ainda era demasiado recente para palavras mais suaves.
Agora não conseguia pensar em Ned. Não queria. Não seria
bom. Tinha de ser forte. - Tudo isso pode esperar. Tenho de
ver meu pai.
- Ele a espera em seu aposento privado - disse Edmure.
- Lorde Hoster está acamado, senhora - explicou o intendente
do pai. Quando ficara aquele bom homem tão grisalho? - Deu-
me instruções para levá-la até ele imediatamente.
- Eu a levo - Edmure a acompanhou pela escada da água e pela
muralha inferior, onde Petyr Baelish e Brandon Stark tinham
no passado cruzado espadas pela sua estima. As maciças mura -
lhas de arenito da fortaleza erguiam-se ao redor. Ao
atravessarem uma porta, entre dois guardas com elmos
encimados por peixes, ela perguntou:
- Como está ele? - já temendo a resposta enquanto pronunciava
as palavras.
O olhar de Edmure era melancólico.
- Os meistres dizem que não ficará conosco muito tempo. A
dor é... constante, e atroz. Uma raiva cega a devastou, uma
raiva contra o mundo inteiro, contra o irmão Edmure e a irmã
Lysa, contra os Lannister, contra os meistres, contra Ned e
contra o pai e contra os deuses monstruosos que queriam lhe
roubar os dois.
- Devia ter me contado - disse. - Devia ter enviado uma
mensagem assim que soube.
- Ele nos proibiu. Não queria que os inimigos soubessem que
estava morrendo. Com o reino tão perturbado, temeu que, se
os Lannister soubessem como estava frágil...
- ... pudessem atacar? - terminou Catelyn, dura. Foi obra sua,
sua, sussurrou uma voz dentro dela. Se não tivesse decidido
capturar o anão...
Subiram em silêncio a escada em espiral.
A fortaleza tinha três lados, como o próprio Correrrio, e o
aposento privado de Lorde Hoster era também triangular, com
uma varanda de pedra que se projetava ao leste como se fosse
a proa de um grande navio de arenito. Dali, o senhor do
castelo podia olhar de cima para as suas muralhas e ameias, e
para lá delas, para onde as águas se encontravam. Tinha m
posto a cama do pai na varanda.
- Ele gosta de ficar ao sol, observando os rios - explicou
Edmure. - Pai, olhe quem eu trouxe. Cat veio vê-lo...
Hoster Tully sempre fora um homem grande, alto e largo na
juventude, corpulento quando envelheceu. Agora pare cia
encolhido, com o músculo e a carne arrancados dos ossos. Até
o rosto cedera. Da última vez que Catelyn o vira, os cabelos e
a barba eram castanhos, profusamente grisalhos. Agora tinham
se tornado brancos como a neve. Os olhos dele se abriram ao
som da voz de Edmure.
- Gatinha - murmurou numa voz fraca e fina, arruinada pela
dor. - Minha gatinha - um sorriso trêmulo tocoudhe o rosto
enquanto a mão procurava a dela às apalpadelas. - Fiquei à sua
espera...
- Vou deixados conversar - disse o irmão, beijando suavemente
o senhor seu pai na testa antes de se retirar.
Catelyn ajoelhou e tomou a mão do pai nas suas. Era uma mão
grande, mas estava agora sem carne, com os ossos movendo -se
soltos sob a pele, desaparecida toda a sua força.
- Devia ter me contado - disse ela. - Um mensageiro, um
corvo...
- Os mensageiros são capturados e interrogados - ele
respondeu. - Os corvos são abatidos... - foi tomado por um
espasmo de dor, e os dedos apertaram os dela com força. -
Tenho caranguejos na barriga... mordendo, sempre mo rdendo.
Dia e noite. Têm garras duras, os caranguejos. Meistre Vyman
faz-me vinho de sonhos, leite da papoula... durmo muito... Mas
quis estar acordado para vê-la, quando chegasse. Tive medo...
Quando os Lannister capturaram seu irmão, com os
acampamentos a toda a volta... tive medo de partir antes de
poder voltar a vê-la... tive medo...
- Estou aqui, pai - ela disse. - Com Robb, o meu filho. Ele
também virá vê-lo.
- O seu rapaz - ele sussurrou. - Se bem me lembro, ele tinha os
meus olhos...
- Tinha e ainda tem. E trouxemos Jaime Lannister a ferros.
Correrrio está de novo livre, pai. Lorde Holster sorriu.
- Eu vi. Ontem à noite, quando começou, eu lhes disse ... tinha
de ver. Levaram-me para a guarita... Observei das ameias. Ah,
foi uma beleza... os archotes chegaram numa onda, conseguia
ouvir os gritos que pairavam sobre o rio... doces gritos...
Quando aquela torre de cerco pegou fogo, deuses... teria
morrido então, e contente, se pudesse tê-la visto primeiro,
criança. Foi o seu rapaz que assim fez? Foi o seu R obb?
- Sim - disse Catelyn, imensamente orgulhosa. - Foi Robb... e
Brynden. Seu irmão também está aqui, senhor.
- Ele - a voz do pai era um tênue sussurro. - O Peixe Negro...
regressou? Do Vale?
- Sim.
- E Lysa? - um vento frio moveu-se através de seus finos
cabelos brancos. - Que os deuses sejam bondosos, a sua irmã...
ela também veio?
A voz dele estava tão cheia de esperança e desejo que foi duro
dizer-lhe a verdade.
- Não. Lamento...
- Ah - o rosto descaiu, e alguma luz desapareceu dos olhos. -
Tive esperança... teria gostado devê-la, antes de...
- Ela está com o filho, no Ninho da Águia.
Lorde Hoster fez um aceno cansado.
- Agora Lorde Robert, com o pobre Arryn falecido... eu me
lembro... Por que é que ela não veio com você?
- Está assustada, senhor. No Ninho da Águia sente-se segura -
beijou a testa enrugada do pai. - Robb deve estar à espera.
Quer vê-lo? E Brynden?
- O seu filho - segredou ele. - Sim. O filho de Cat. Lembro-me
que ele tinha os meus olhos. Quando nasceu.Traga-o... sim.
- E seu irmão?
O pai olhou de relance para os rios.
- Peixe Negro - disse. - Já se casou? Tomou alguma... mulher
como esposa?
Até no leito de morte, pensou Catelyn com tristeza.
- Ele não se casou. Sabe disso, pai. Nem nunca casará.
- Eu lhe disse... ordenei. Casa! Era o seu senhor. Ele sabe. Era
meu direito, arranjar-lhe um partido. Um bom partido. Uma
Redwyne. Casa antiga. Uma doce jovem, bonita... sardas...
Bethany, sim. Pobre criança. Ainda espera. Sim. Ainda...
- Bethany Redwyne casou há anos com Lorde Rowan -
lembroudhe Catelyn. - Tem três filhos dele.
- Mesmo assim - resmungou Lorde Hoster. - Mesmo assim.
Cuspiu na moça. Nos Redwyne. Cuspiu em mim. O seu senhor,
seu irmão... esse Peixe Negro. Tinha outras ofertas. A filha de
Lorde Bracken. Walder Frey... qualquer uma das três, disse
ele... Casou? Com alguém? Alguém?
- Ninguém - disse Catelyn. - Mas percorreu muitas léguas para
vê-lo, abrindo caminho, lutando até Correrio. Eu não estaria
aqui agora se Sor Brynden não nos tivesse ajudado.
- Ele sempre foi um guerreiro - sussurrou o pai. - Isso podia
fazer. Cavaleiro do Portão, sim - reclinou-se e fechou os olhos,
extremamente fatigado. - Mande-o vir. Mais tarde. Agora quero
dormir. Estou muito doente para discutir. Mande -o vir aqui
mais tarde, o Peixe Negro...
Catelyn deu-lhe um beijo suave, alisou-lhe o cabelo e deixou-o
ali, à sombra da sua fortaleza, com os seus rios a correr
embaixo. Adormecera antes ainda de ela sair do aposento.
Quando voltou à muralha inferior, Sor Brynden Tully
encontrava-se na escada da água com as botas molhadas,
conversando com o capitão dos guardas de Correrrio. Foi
imediatamente ao seu encontro.
- Ele está...?
- Morrendo - disse ela. - Como temíamos.
O rosto escarpado do tio mostrou claramente a dor que sentia.
Fez correr os dedos pelos espessos cabelos grisalhos.
- Vai me receber?
Ela confirmou com a cabeça.
- Diz que está muito doente para discutir.
Brynden Peixe Negro soltou um risinho.
- Sou um soldado velho demais para acreditar nisso. Hoster há
de ralhar comigo a respeito da jovem Redwyne até quando
acendermos a sua pira funerária, malditos sejam os seus ossos.
Catelyn sorriu, sabendo que aquilo era verdade.
- Não vejo Robb.
- Acho que foi com Greyjoy até o salão.
Theon Greyjoy estava sentado num banco no Salão Grande de
Correrrio, saboreando um corno de cerveja e ofere cendo à
guarnição do pai de Catelyn um relato do massacre no Bosque
dos Murmúrios.
- Alguns tentaram fugir, mas nós tínhamos fechado o vale pelos
dois lados, e saltamos da escuridão com espadas e lanças. Os
Lannister deviam ter pensado que eram os Outros quem os
atacava quando aquele lobo do Robb surgiu entre eles. Vi -o
arrancar o braço de um homem, e os cavalos deles
enlouqueceram com o seu cheiro. Não sei dizer quantos
homens foram atirados...
- Theon - interrompeu Catelyn -, onde posso encontrar meu
filho?
- Lorde Robb foi visitar o bosque sagrado, senhora.
Era o que Ned teria feito. Tenho de me lembrar que ele é
tanto filho do seu pai como meu. Ah, deuses, Ned...
Encontrou Robb sob a verde abóbada de folhas, rodeado de
altas sequoias e grandes e velhos olmos, ajoelhado perante a
árvore-coração, um esguio represeiro com uma cara que era
mais triste que feroz. Tinha a espada à sua frente, com a ponta
espetada na terra, e as mãos enluvadas a agarravam pelo
punho. Ao seu redor, ajoelhavam-se também: Grande-Jon
Umber, Rickard Karstark, Maege Mormont, Galbart Glover e
outros. Até Tytos Blackwood se encontrava entre eles, com o
grande manto de corvo aberto atrás de si. Estes são os que
fazem culto aos velhos deuses, percebeu Catelyn. Perguntou-se
que deuses ela cultuava nos dias que corriam, e não encontrou
resposta.
Não podia perturbá-los nas suas preces. Os deuses têm de
receber o que lhes é devido... mesmo deuses cruéis que
quiseram lhe roubar Ned e também o senhor seu pai. Por isso,
Catelyn esperou. O vento do rio soprava através dos ramos
mais altos, e olhou para a Torre da Roda, à sua direita, com
hera subindo pela parede. Enquanto esperava, foi inundada por
todas as memórias, O pai lhe ensinara a montar entre aquelas
árvores, e aquele era o olmo de onde Edmure caíra quando
quebrara o braço, e mais adiante, sob aquele caramanchão,
Lysa e ela tinham brincado aos beijos com Petyr.
Havia anos que não pensava naquilo. Como eram todos novos
então... ela não seria mais velha que Sansa, Lysa, mais nova que
Arya, e Petyr, ainda mais novo, mas ávido. As meninas tinham-
no trocado entre elas, por vezes sérias, por vezes aos risinhos.
A recordação era tão viva que quase conseguia sentir os dedos
suados dele nos seus ombros e saborear a menta de seu hálito.
Havia sempre menta crescendo no bosque sagrado, e Petyr
gostava de mascá-la. Fora um rapazinho tão ousado, sempre
metido em confusões. "Ele tentou enfiar a língua na minha
boca", confessara Catelyn à irmã mais tarde, quando ficaram a
sós. "Fez o mesmo comigo", segredara Lysa, tímida e sem
fôlego. "Eu gostei."
Robb pôs-se lentamente em pé e embainhou a espada, e
Catelyn perguntou-se se o filho teria alguma vez beijado uma
moça no bosque sagrado. Certamente que sim. Vira Jeyne Poole
lançar--lhe olhares úmidos, e algumas das criadas, mesmo as
que já tinham feito dezoito anos... Ele participara de batalhas e
matara homens com uma espada, com certeza já fora beijado.
Havia lágrimas nos olhos dela. Limpou-as, zangada.
- Mãe - chamou Robb quando a viu ali em pé. - Temos de
convocar um conselho. Há coisas para decidir.
- Seu avô gostaria de vê-lo - ela disse. - Robb, ele está muito
doente.
- Sor Edmure me disse. Lamento, mãe... por Lorde Hoster e
pela senhora. Mas primeiro temos de nos reunir. Recebemos
notícias do sul. Renly Baratheon reivindicou o trono do irmão.
- Renly? - ela disse, chocada. - Pensei que seria certamente
Lorde Stannis...
- Todos nós pensávamos o mesmo, senhora - disse Galbart
Glover,
O conselho de guerra reuniu-se no Grande Salão, em quatro
longas mesas de montar dispostas num quadrado quebrado.
Lorde Hoster estava muito fraco para participar e dormia em
sua varanda, sonhando com o sol nos rios de sua juventude.
Edmure ocupava o cadeirão dos Tully, com Brynden Peixe
Negro a seu lado e os vassalos do pai dispostos à esquerda e à
direita e ao longo das mesas laterais. A notícia da vitória em
Correrrio chegara aos senhores fugitivos do Tridente, atraindo -
os de volta. Karyl Vance entrou, agora um lorde, com o pai
morto sob o Dente Dourado. Sor Marq Piper estava com ele, e
trouxeram um Darry, filho de Sor Raymun, um rapaz que não
era mais velho que Bran. Lorde Jonos Bracken chegou das
ruínas da Barreira de Pedra, carrancudo e fanfarrão, e ocupou
um lugar tão afastado de Tytos Blackwood quanto as mesas
permitiam.
Os senhores do Norte sentaram-se do lado oposto, com Catelyn
e Robb em frente ao irmão dela. Eram menos. Grande -Jon
sentou-se à esquerda de Robb, e em seguida Theon Greyjoy;
Galbart Glover e a Senhora Mormont estavam à direita de
Catelyn. Lorde Rickard Karstark, desolado e de olhos vazios na
sua dor, ocupou seu lugar como um homem perdido num
pesadelo, com a longa barba por lavar e pentear. Deixara dois
filhos mortos no Bosque dos Murmúrios e não havia notícias
do terceiro, o mais velho, que liderara os lanceiros Ka rstark
contra Tywin Lannister no Ramo Verde.
A discussão prolongou-se noite dentro. Cada senhor tinha
direito a falar, e foi o que fizeram... e também gritaram, e
praguejaram, e argumentaram, e lisonjearam, e brincaram, e
regatearam, e bateram na mesa com canecas de cerveja, e
ameaçaram, e saíram, e regressaram, mal-humorados ou
sorrindo. Catelyn permaneceu sentada ouvindo tudo.
Roose Bolton tinha reunido os restos de sua maltratada tropa
no início do talude. Sor Heiman Tallhart e Walder Frey ainda
mantinham as Gêmeas, o exército de Lorde Tywin atravessara o
Tridente e dirigia-se para Harrenhal. E havia dois reis no reino.
Dois reis e nenhum acordo.
Muitos dos senhores vassalos queriam marchar sobre
Harrenhal de imediato, a fim de defrontar Lorde Tywin e
terminar com o poderio dos Lannister de uma vez por todas. O
jovem e temperamental Marq Piper sugeria, em vez disso, um
ataque a oeste contra Rochedo Casterly. Outros ainda
aconselhavam paciência. Correrrio estava atravessado nas
linhas de abastecimento dos Lannister, fez notar Jason
Mallister; que aguardassem o tempo certo, negando a Lorde
Tywin provisões e soldados frescos, enquanto iam fortalecendo
as defesas e descansando as tropas fatigadas. Lorde Blackwood
não queria ouvir falar daquilo. Deveriam term inar o trabalho
que tinham começado no Bosque dos Murmúrios. Marchar
contra Harrenhal e trazer também para baixo o exército de
Roose Bolton. Àquilo que Blackwood sugeria, Bracken opunha-
se, como sempre; Lorde Jonos Bracken pôs-se em pé a fim de
insistir que deviam declarar lealdade ao Rei Renly e ir para o
sul juntar as suas forças às dele.
- Renly não é o rei - disse Robb. Era a primeira vez que o filho
de Catelyn falava. Tal como o pai, sabia ouvir.
- Não pode pretender aderir a Joffrey, senhor - disse Galbart
Glover. - Ele ordenou a morte de seu pai.
- Isso faz dele um mal - respondeu Robb. - Não sei se faz de
Renly rei. Joffrey ainda é o filho legítimo mais velho de Robert,
por isso o trono é dele segundo todas as leis do reino. Se ele
morresse, e pretendo fazer com que morra, tem um irmão mais
novo. Tommen segue na linha de sucessão a Joffrey.
- Tommen não é menos Lannister que o irmão - exclamou Sor
Marq Piper.
- E como diz - disse Robb, perturbado. - Mas, mesmo assim, se
nenhum deles for rei, como pode Lorde Renly sê-lo? Ele é o
irmão mais novo de Robert. Bran não pode ser Senhor de
Winter-fell antes de mim, e Renly não pode ser rei antes de
Lorde Stannis.
A Senhora Mormont concordou.
- Lorde Stannis tem a melhor pretensão.
- Renly foi coroado - disse Marq Piper, - Jardim de Cima e
Ponta Tempestade apoiam sua pretensão, e os de Dorne não
ficarão atrás. Se Winterfell e Correrrio acrescentarem suas for -
ças às dele, teremos cinco das sete grandes casas atrás dele.
Seis, se os Arryn se moverem! Seis contra o Rochedo!
Senhores, dentro de um ano teremos todas as suas cabeças em
lanças, a rainha e o rei rapaz, Lorde Tywin, o Duende, o
Regicida, Sor Kevan, todosl Será isto que ganharemos se nos
juntarmos ao Rei Renly. Que tem Lorde Stannis contra isso
para que ponhamos tudo de lado?
- O direito - disse teimosamente Robb, Catelyn achou que o
filho soara estranhamente como o pai,
- Tem então tenção de nos declarar por Stannis? - perguntou
Edmure.
- Não sei - disse Robb. - Rezei para saber o que fazer, mas os
deuses não responderam. Os Lannister mataram meu pai por
traição, e sabemos que isso foi uma mentira, mas se Joífrey for
o rei de direito e lutarmos contra ele, nós seremos traidores.
- O senhor meu pai aconselharia cautela - disse o idoso Sor
Stevron, com o sorriso de fuinha de um Frey. - Esperem,
deixem que esses dois reis joguem o seu jogo de tronos.
Quando terminarem de lutar, podemos dobrar os joelhos ao
vencedor, ou podemos nos opor a ele, conforme seja a nossa
escolha. Com Renly armando-se, é provável que Lorde Tywin
acolha bem uma trégua... e a devolução em bom estado de seu
filho. Nobres senhores, permitam-me que vá conferenciar com
ele em Harrenhal e nos arranje bons termos e resgates...
Um rugido de afronta afogou a sua voz.
- Covarde! - trovejou Grande-Jon.
- Suplicar por uma trégua só fará com que pareçamos fracos -
declarou a Senhora Mor-mont.
- Que se danem os resgates, não devemos abdicar do Regicida
- gritou Rickard Karstark.
- Por que não fazer a paz? - perguntou Catelyn.
Os senhores olharam-na, mas foram os olhos de Robb que
sentiu, os dele, e apenas os dele.
- Senhora, eles assassinaram o senhor meu pai, seu esposo -
disse ele em tom sombrio. Desembainhou a espada e pousou-a
na mesa à sua frente, fazendo cintilar o aço brilhante contra a
madeira rústica. - Esta é a única paz que eu tenho a dar aos
Lannister.
Grande-Jon berrou a sua concordância, e outros homens
acrescentaram suas vozes, gritando, desembainhando espadas e
batendo na mesa com os punhos. Catelyn esperou até que se
calassem.
- Senhores - disse ela então -, Lorde Eddard era seu suserano,
mas eu partilhei sua cama e dei à luz os seus filhos. Julgam
que o amo menos que os senhores? - sua voz quase se
quebrou, mas Catelyn inspirou longamente e sossegou. - Robb,
se esta espada pudesse trazê-lo de volta, eu nunca deixaria que
a embainhasse até que Ned estivesse de novo ao meu lado...
Mas ele partiu, e uma centena de Bosques dos Murmúrios não
mudarão isso. Ned partiu, tal como Daryn Hornwood, tal como
os valentes filhos de Lorde Karstark, tal como muitos outros
bons homens, e nenhum deles regressará para nós.
Precisaremos ainda de mais mortes?
- É uma mulher, senhora - estrondeou Grande-Jon com sua voz
grave, - As mulheres não compreendem estas coisas.
- É o sexo gentil - disse Lorde Karstark, com rugas de dor
frescas no rosto. - Um homem tem necessidade de vingança.
- Dê-me Cersei Lannister, Lorde Karstark, e verá quão gentil
uma mulher pode ser - respondeu Catelyn. - Eu talvez não
compreenda as táticas e a estratégia... mas compreendo a futi-
lidade. Partimos para a guerra quando os exércitos Lannister
assolavam as terras do rio, e Ned era um prisioneiro,
falsamente acusado de traição. Lutamos para nos defender e
para conquistar a liberdade do meu senhor. Pois bem, uma
parte está feita, e a outra, para sempre além do n osso alcance.
Farei luto por Nec! até o fim dos meus dias, mas tenho de
pensar nos vivos. Quero as minhas filhas de volta, e a rainha
ainda as tem. Se tiver de trocar os nossos quatro Lannister
pelas duas Stark deles, chamarei a isso uma pechincha e darei
graças aos deuses. Quero-o a salvo, Robb, governando em
Winterfell do assento do seu pai. Quero que desfrute sua vida,
que beije uma moça, case com uma mulher e gere um filho.
Quero pôr fim a isto. Quero ir para casa, senhores, e chorar
pelo meu esposo.
O salão ficou muito silencioso quando Catelyn parou de falar.
- Paz - disse o tio Brynden. - A paz é doce, minha senhora...
mas em que termos? De nada serve forjar um arado a partir de
uma espada se for necessário forjar de novo a espada no dia
seguinte.
- Para que morreram Torrhen e o meu Eddard, se tiver de
regressar a Karhold sem nada a não ser os seus ossos? -
perguntou Rickard Karstark.
- Sim - disse Lorde Bracken, - Gregor Clegane arrasou meus
campos, massacrou meu povo e transformou Barreira de Pedra
em uma ruína fumegante. Deverei agora dobrar o joelho
àqueles que lhe deram as ordens? Para que lutamos, se
pusermos tudo como era antes?
Lorde Blackwood concordou, para surpresa e desânimo de
Catelyn.
- E se fizéssemos a paz com o Rei Joífrey, não seríamos entã o
traidores para o Rei Renly? E se o veado vencer o leão, em que
situação ficaremos?
- Seja o que for que decidirem, nunca chamarei um Lannister
de rei - declarou Marq Piper.
- Nem eu! - gritou o pequeno Derry. - Nunca o farei!
De novo começaram os gritos. Catelyn sentou-se, desesperada.
Estivera tão perto, pensou. Tinham quase escutado, quase,.,
mas o momento passara. Não haveria paz, não haveria pos -
sibilidade de sarar, não haveria segurança. Olhou para o filho,
observou-o enquanto escutava o debate dos senhores, de
sobrancelha franzida, perturbado, mas casado com a sua
guerra. Tinha prometido desposar uma filha de Walder Frey,
mas agora Catelyn via claramente a sua esposa: a espada que
pousara na mesa.
Catelyn estava pensando nas filhas, perguntando-se se alguma
vez voltaria a vê-las, quando Grande-Jon se pôs em pé de um
salto, - senhores! - gritou, fazendo a voz reverberar nas traves. -
Eis o que eu digo a esses dois reis! - cuspiu. - Renly Baratheon
não é nada para mim, e Stannis também não. Por que haveriam
de governar a mim e aos meus de uma cadeira florida qualquer
em Jardim de Cima ou Dorne? Que sabem eles da Muralha ou
da Mata de Lobos, ou das sepulturas dos Primeiros Homens?
Até os seus deuses estão errados. Que os Outros levem
também os Lannister, já tive deles mais do que a minha conta -
esticou a mão atrás do ombro e puxou a sua imensa espada
longa de duas mãos. - Por que não havemos de nos governar
de novo a nós próprios? Foi com os dragões que casamos, e os
dragões estão todos mortos! - apontou com a lâmina para
Robb. - Está ali o único rei perante o qual pretendo vergar o
meu joelho, senhores - trovejou. - O Rei do Norte!
Ajoelhou-se, e depositou a espada aos pés do filho de Catelyn.
- Aceitarei a paz nesses termos - disse Lorde Karstark. - Podem
ficar com o seu castelo vermelho e com a sua cadeira de ferro
também - tirou a espada da bainha. - O Rei do Norte! - disse,
ajoelhando-se ao lado de Grande-Jon.
Maege Mormont pôs-se em pé.
- O Rei do Inverno! - declarou, e pousou sua maça de espigões
ao lado das espadas. E os senhores do rio também estavam se
erguendo, Blackwood, Bracken e Mallister, casas que nunca ti -
nham sido governadas por Winterfell, mas Catelyn viu-os
erguer-se e puxar as lâminas, vergando os joelhos e gritando as
velhas palavras que não eram ouvidas no reino havia mais de
trezentos anos, desde que Aegon, o Dragão, chegara para fazer
dos Sete Reinos um só... mas agora eram ouvidas de novo,
ressoando no madeirame do salão de seu pai:
- O Rei do Norte!
- O Rei do Norte!
- O Rei do Norte!
Daenerys
A terra era vermelha, morta e ressequida, e era difícil
encontrar boa madeira. Os forrageiros regressaram com
algodoeiros nodosos, arbustos roxos, feixes de grama seca.
Abateram as duas árvores menos retorcidas, desbastaram os
galhos, arrancaram a casca e dividiram-nas, dispondo as toras
em quadrado. Encheram o centro com palha, arbustos, aparas
de casca de árvore e fardos de mato seco. Rakharo escolheu um
garanhão da pequena manada que lhes restava; não era tão
nobre como o vermelho de Khal Drogo, mas poucos cavalos o
eram. No centro do quadrado, Aggo deu-lhe uma maçã mirrada
e o abateu num instante com um golpe de machado dado entre
os olhos.
Atada de pés e mãos, Mirri Maz Duur observava da poeira com
inquietação em seus olhos negros.
- Não basta matar um cavalo - disse a Dany, - Em si mesmo, o
sangue não é nada. Não sabe as palavras para fazer um feitiço,
nem tem a sabedoria para encontrá-las. julga que a magia de
sangue é um jogo de crianças? Chamam-me maegi como se
fosse uma praga, mas tudo o que isso significa é sábio. E uma
criança, com a ignorância de uma criança. Seja o que for que
pretenda fazer, não dará resultado. Solte-me destes nós, e eu a
ajudo.
- Estou farta dos zurros da maegi - disse Dany a Jhogo. Ele
brindou-a com o chicote, e depois daquilo a esposa de deus
manteve-se em silêncio.
Por cima da carcaça do cavalo, construíram uma plataforma de
toras decepadas; troncos de árvores menores e braços das
maiores, e os mais grossos e direitos galhos que conseguiram
encontrar. Dispuseram a madeira de leste para oeste, do
nascente ao poente. Sobre a plataforma, empilharam os
tesouros de Khal Drogo: sua grande tenda, os coletes pintados,
as selas e arreios, o chicote que o pai lhe dera quando se fizera
um homem, o arakh que usara para matar Khal Ogo e o filho,
um grande arco de osso de dragão. Aggo queria juntar também
as armas que os companheiros de sangue de Drogo tinham
dado a Dany como presentes de noivado, mas ela o proibiu.
- Essas são minhas - disse-lhe - e quero ficar com elas - outra
camada de arbustos foi depositada em volta dos tesouros do
khal, e feixes de mato seco foram espalhados sobre eles.
Sor Jorah Mormont puxou-a de lado quando o sol se
aproximava do zénite.
- Princesa... - começou.
- Por que me chama assim? - desafiou Dany. - Meu irmão
Viserys era seu rei, não é verdade?
- Era, senhora.
- Viserys está morto. Eu sou sua herdeira, o último sangue da
Casa Targaryen. O que quer que fosse dele é agora meu.
- Minha... rainha - disse Sor Jorah, caindo sobre um joelho. -
Minha espada, que era dele, é sua, Daenerys. E o meu coração
também, que nunca pertenceu a vosso irmão. Sou apenas um
cavaleiro, e nada tenho a oferecerdhe exceto o exílio, mas
escute-me, suplico-lhe. Esqueça Khal Drogo. Não estará só.
Prometo-lhe que nenhum homem a levará para Vaes Dothrak a
menos que deseje ir. Não tem de se juntar às dosh khaken.
Venha para o leste comigo, Yi Ti, Qarth, o Mar de Jade, Asshai
da Sombra. Veremos todas as maravilhas que ainda há para
ver, e beberemos os vinhos que os deuses achem por bem nos
oferecer. Por favor, khakesi. Sei o que pretende fazer. Não o
faça. Não o faça.
- Tenho de fazê-lo - disse-lhe Dany. Tocou-lhe o rosto, com
carinho, com tristeza. - O senhor não compreende.
- Compreendo que o amava - disse Sor Jorah com uma voz
carregada de desespero. - Há tempos amei a senhora minha
esposa, mas não morri com ela. É a minha rainha, a minha
espada é sua, mas não me peça para me afastar enquanto sobe
para a pira de Drogo, Não a verei arder.
- É isso o que teme? - Dany deu-lhe um leve beijo na testa
larga. - Não sou assim tão infantil, querido sor.
- Não planeja morrer com ele? Jura, minha rainha?
-Juro - disse ela no Idioma Comum dos Sete Reinos que por
direito eram seus.
O terceiro nível da plataforma foi tecido com ramos que não
eram mais grossos que um dedo, e coberto com folhas e
raminhos secos. Dispuseram-nos de norte a sul, do gelo ao
fogo, e em cima colocaram uma grande pilha de suaves
almofadas e sedas de dormir. O sol começava a bai xar em
direção a oeste quando terminaram. Dany chamou os
dothrakis. Restavam menos de uma centena. Com quantos
começara Aegon?, perguntou ela a si mesma. Não importava.
- Serão o meu khalasar - disse-lhes. - Vejo os rostos de
escravos. Liberto-os. Tirem as coleiras. Partam se quiser,
ninguém lhes fará mal. Se ficarem, serão como irmãos e irmãs,
maridos e esposas - os olhos negros observavam, cautelosos,
sem expressão. - Vejo crianças, mulheres, os rostos enrugados
dos idosos. Ontem era uma criança. Hoje sou uma mulher.
Amanhã serei velha. A cada um de vocês digo: deem-me suas
mãos e os seus corações, e haverá sempre lugar para todos -
virou-se para os três jovens guerreiros do seu khas. - Jhogo, a
você ofereço o chicote de cabo de prata que foi meu presente
de noivado, nomeio-o ko e peço que jure que viverá e morrerá
como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado para me
manter a salvo do mal.
Jhogo aceitou o chicote de suas mãos, mas o rosto mostrava
confusão.
- Khakesi - disse hesitantemente -, isto não se faz. Seria uma
vergonha ser companheiro de sangue de uma mulher.
- Aggo - chamou Dany, sem prestar atenção às palavras de
Jhogo. Se olhar para trás, estou perdida. - A você ofereço o
arco de osso de dragão que foi meu presente de noivado -
tinha dupla curvatura, era de um negro brilhante e requintado,
mais alto que ela. - Nomeio-o ko, e peço que jure que viverá e
morrerá como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado
para me manter a salvo do mal,
Aggo aceitou o arco com os olhos baixos.
- Não posso dizer essas palavras. Só um homem pode liderar
um khalasar ou nomear um ko.
- Rakharo - disse Dany, virando as costas à recusa -, você ficará
com o grande arakh que foi meu presente de noivado, com
ouro incrustado no cabo e na lâmina. E também o nomeio ko,
e peço que jure que viverá e morrerá como sangue do meu
sangue, cavalgando ao meu lado para me manter a salvo do
mal.
- É khaleesi - disse Rakharo, recebendo o arakh. - Cavalgarei
ao seu lado até Vaes Dothrak sob a Mãe das Montanhas, e a
manterei a salvo do mal até ocupar o seu lugar com as
feiticeiras do dosh khaleen. Não posso prometer mais.
Ela acenou, tão calmamente como se não tivesse ouvido sua
resposta, e virou-se para o último de seus campeões.
- Sor Jorah Mormont - disse -, primeiro e maior dos meus
cavaleiros, não tenho presente de noivado para lhe oferecer,
mas juro que um dia receberá das minhas mãos uma espada
longa como o mundo nunca viu outra igual, forjada por um
dragão e feita de aço valiriano. E quero pedir também seu
juramento.
- É seu, minha rainha - disse Sor Jorah, ajoelhando-se para
depositar a espada aos pés dela. -Juro servi-la, obedecê-la,
morrer pela senhora se for necessário.
- Aconteça o que acontecer?
- Aconteça o que acontecer.
- Lembrarei desse juramento. Rezo para que nunca se
arrependa de tê-lo feito - Dany o fez se levantar. Pondo-se na
ponta dos pés para lhe chegar aos lábios, deu um leve beijo no
cavaleiro e disse: - É o primeiro da minha Guarda Real.
Conseguia sentir os olhos do khalasar postos nela ao entrar na
tenda. Os dothrakis resmungavam e lançavam-lhe estranhos
olhares de soslaio com seus olhos escuros e amendoados. Dany
compreendeu que a julgavam louca. Talvez estivesse. Saberia
em breve. Se olhar para trás, estou perdida,
O banho estava escaldando quando Irri a ajudou a entrar na
banheira, mas Dany não vacilou nem gritou. Gostava do calor.
Fazia-a sentir-se limpa. Jhiqui aromatizara a água com os óleos
que Dany encontrara no mercado em Vaes Dothrak; o vapor
subia úmido e odorífero. Doreah lavou-lhe os cabelos e os
escovou, soltando os nós e os desembaraçando. Irri escovou -lhe
as costas. Dany fechou os olhos e deixou que o cheiro e a
tepidez a envolvessem. Sentia o calor ensopando a região
machucada entre as coxas. Estremeceu quando a penetrou, e
sua dor e rigidez pareceram se dissolver. Flutuou.
Quando ficou limpa, as aias ajudaram-na a sair da água. Irri e
Jhiqui secaram-na, enquanto Doreah lhe escovava os cabelos
até deixá-los como um rio de prata que lhe descia pelas costas.
Perfumaram-na com florespeciaria e canela; uma gota em cada
pulso, atrás das orelhas, na ponta dos seios pesados de leite. O
último salpico destinava-se ao sexo. O dedo de Irri foi tão
ligeiro e fresco como o beijo de um amante ao deslizar
suavemente entre seus lábios.
Depois, Dany mandou todos embora para que pudesse preparar
Khal Drogo para a sua última cavalgada às terras da noite.
Lavou-lhe o corpo e escovou e oleou seus cabelos, fazendo
correr os dedos por eles uma última vez, sentindo-lhes o peso,
recordando a primeira vez que os tocara, na noite da cavalgada
de casamento. Seus cabelos nunca foram cortados. Quantos
homens podiam morrer sem nunca terem cortado os cabelos?
Submergiu o rosto neles e inalou a escura fragrância dos óleos.
Cheirava a erva e a terra quente, a fumaça, a sêmen e a
cavalos. Cheirava a Drogo. Perdoa-me, sol da minha vida,
pensou. Perdoa-me por tudo o que fiz e por tudo o que
tenho de fazer. Paguei o preço, minha estrela, mas foi alto
demais, alto demais...
Dany entrançou seus cabelos, prendeu seus anéis de prata no
bigode e pendurou as campainhas, uma a uma. Tantas
campainhas, de ouro, prata e bronze. Campainhas para que os
inimigos o ouvissem chegar e ficassem fracos de medo. Vestiu -
o com calções de pelo de cavalo e botas altas, afivelando à
cintura um pesado cinto de medalhões de ouro e prata. Sobre
seu peito marcado por cicatrizes, enfiou um colete pintado,
velho e desbotado, aquele de que Drogo mais gostava. Para si
escolheu calças largas de sedareia, sandálias atadas até o meio
da perna e um colete como o de Drogo.
O sol estava descendo quando voltou a chamá-los para levarem
o corpo dele até a pira. Os dothrakis observaram em silêncio
quando Jhogo e Aggo o trouxeram da tenda. Dany os seguia.
Depositaram-no nas almofadas e sedas, com a cabeça voltada
para a Mãe das Montanhas, lá longe para nordeste,
- Óleo - ordenou ela, e trouxeram os jarros e despejaram o óleo
sobre a pira, empapando as sedas, os arbustos e os feixes de
mato seco, até que pingou sob as toras e o ar ficou rico de fra-
grâncias. - Tragam-me os meus ovos - ordenou Dany às aias.
Algo na sua voz as fez correr.
Sor Jorah pegou-lhe no braço.
- Minha rainha, Drogo não terá nenhuma utilidade para ovos
de dragão nas terras da noite. E melhor vendê-los em Asshai.
Venda um, e poderá comprar um navio que nos leve de volta
para as Cidades Livres. Venda os três, e será uma mulher
abastada até o fim dos seus dias.
- Não me foram dados para vender - disse-lhe Dany.
Subiu ela mesma na pira para colocar os ovos em volta do seu
sol-e-estrelas. O negro junto ao coração, debaixo do braço. O
verde ao lado da cabeça, com a trança enrolada nele. O creme
e dourado entre as pernas. Quando o beijou pela última vez,
Dany sentiu a doçura do óleo em seus lábios.
Ao descer da pira, reparou que Mirri Maz Duur a observava.
- É louca - disse roucamente a esposa de deus.
- Há assim tão grande distância entre a loucura e a sabedoria?
- perguntou Dany. - Sor Jorah, ate esta maegi à pira.
- À pir... minha rainha, não, escute-me...
- Faça o que eu digo - mesmo assim, ele hesitou até que a ira
dela flamejou. - Jurou me obedecer, acontecesse o que
acontecesse. Rakharo, ajude-o.
A esposa de deus não gritou quando a arrastaram para a pira
de Khal Drogo e a prenderam entre os seus tesouros. Foi a
própria Dany quem despejou o óleo na cabeça da mulher.
- Agradeço-lhe, Mirri Maz Duur - disse -, pelas lições que me
ensinou.
- Não me ouvirá gritar - respondeu Mirri enquanto o óleo lhe
pingava da cabeça e ensopava as suas roupas.
- Ouvirei - disse Dany -, mas o que quero não são os seus
gritos, só a sua vida. Lembro-me do que me disse. Só a morte
pode pagar pela vida - Mirri Maz Duur abriu a boca, mas não
respondeu. Ao se afastar, Dany viu que o desprezo tinha
desaparecido dos olhos negros e achatados da maegi', no seu
lugar havia algo que poderia ser medo. Depois, nada ficou por
fazer, a não ser observar o sol e procurar a primeira estrela.
Quando um senhor dos cavalos morre, seu cavalo é morto com
ele, para que possa montar orgulhoso nas terras da noite. Os
corpos são queimados a céu aberto, e o khal ergue-se na sua
montaria de chamas para ocupar o seu lugar entre as estrelas.
Quanto mais ferozmente o homem tiver queimado em vida,
mais brilhante sua estrela será na escuridão.
Jhogo a viu primeiro.
- Ali - disse ele numa voz abafada. Dany olhou e a viu, baixa,
no leste. A primeira estrela era um cometa que ardia,
vermelho. Vermelho de sangue; vermelho de fogo; a cauda do
dragão. Não poderia ter pedido um sinal mais forte.
Dany tirou o archote da mão de Aggo e o enfiou entre as
toras. O óleo pegou fogo de imediato, os arbustos e o mato
seco um instante depois. Minúsculas chamas correram pela
madeira como velozes ratos vermelhos, patinando sobre o óleo
e saltando de casca em ramo, de ramo em folha. Um calor que
aumentava soprou-lhe no rosto, suave e súbito como o hálito
de um amante, mas em segundos se tornara quente demais
para suportar. Dany deu um passo atrás, A madeira estalou,
cada vez mais alto. Mirri Maz Duur começou a cantar numa
voz estridente e ululante.
As chamas rodopiaram e contorceram-se, fazendo corridas
umas com as outras pela plataforma acima. O ocaso ondulou
quando o próprio ar pareceu liquefazer-se com o calor. Dany
ouviu toras que se fendiam e estalavam. O fogo envolveu Mirri
Maz Duur. A canção dela tornou-se mais sonora, mais
estridente... e então arquejou, uma vez e outra, e a canção
transformou-se num lamento trêmulo, agudo, sonoro e cheio
de agonia.
E agora as chamas chegavam ao seu Drogo, e o rodeavam por
completo. Suas roupas pegaram fogo, e por um instante o khal
ficou vestido com farrapos de flutuante seda cor de laranja e
elos de fumaça rodopiante, cinzenta e oleosa. Os lábios de
Dany abriram-se, e ela deu por si prendendo a respiração.
Parte de si queria ir com ele, como Sor Jorah temera, correr
para as chamas para lhe pedir perdão e introduzi-lo no seu
corpo uma última vez, deixando o fogo derreter a carne até se
tornarem um só, para sempre.
Conseguia sentir o cheiro de carne queimada, em nada
diferente da carne de cavalo assando numa fogueira. A pira
rugia no crepúsculo que se aprofundava como um grande
animal, afogando o som mais fraco dos gritos de Mirri Maz
Duur e projetando longas línguas de fogo para lamber a
barriga da noite. Quando a fumaça se tornou mais espessa, os
dothrakis se afastaram, tossindo. Grandes gotas de fogo cor de
laranja desenrolaram seus estandartes naquele vento infernal,
com as toras silvando e estalando, e fagulhas brilhantes
erguendo-se na fumaça e afastando-se, flutuando como outros
tantos vaga-lumes recém-nascidos. O calor batia o ar com
grandes asas vermelhas, afastando os dothrakis, afastando até
Mormont, mas Dany ficou no seu lugar. Era do sangue do
dragão, e tinha o fogo em si.
Sentira a verdade havia muito, pensou Dany quando deu um
passo para mais perto do incêndio, mas o braseiro nunca
estivera suficientemente quente. As chamas contorciam-se à
sua frente como as mulheres que dançaram no seu casamento,
rodopiando, cantando e fazendo girar seus véus amarelos,
laranja e carmins, terríveis de admirar, mas ao mesmo tempo
adoráveis, tão adoráveis, vivas de calor. Dany abriu os braços,
com a pele corada e brilhando. Isto também é um
casamento, pensou. Mirri Maz Duur caíra no silêncio. A
esposa de deus a julgara uma criança, mas as crianças crescem,
e aprendem.
Outro passo, e Dany sentiu o calor da areia nas solas dos pés,
apesar das sandálias. Suor escorreu-lhe pelas coxas, por entre
os seios e em regatos pelas bochechas, onde antes tinham cor -
rido lágrimas. Sor Jorah gritava atrás dela, mas eleja não
importava, somente o fogo. As chamas eram tão belas, as
coisas mais lindas que jamais vira antes, cada uma delas uma
feiticeira vestida de amarelo, laranja e escarlate, fazendo
rodopiar longos mantos fumarentos. Viu leões de fogo
carmesins e grandes serpentes amarelas e unicórnios feitos de
chamas azul-claras; viu peixes e raposas e monstros, lobos e
aves brilhantes e árvores floridas, cada uma mais bela que a
anterior. Viu um cavalo, um grande garanhão cinzento
retratado na fumaça, com uma auréola de chama azul no lugar
da crina. Sim, meu amor, meu sol-e-estrelas, sim, monte
agora, cavalgue agora.
Seu colete começara a pegar fogo, e Dany o tirou e deixou cair
ao chão. O couro pintado rebentou em súbitas chamas quando
deu um pequeno salto para mais perto do fogo, com os seios
nus perante as chamas, córregos de leite a jorrar dos mamilos
vermelhos e inchados. Agora, pensou, agora, e por um instante
vislumbrou Khal Drogo à sua frente, montado em seu garanhão
de fumaça, com um chicote de fogo na mão. Ele sorriu, e o
chicote serpenteou para a pira, silvando.
Ouviu um crac, o som de pedra que se quebra. A plataforma
de árvores, arbustos e mato começou a deslocar-se e a colapsar
sobre si mesma. Pedaços de madeira ardendo deslizaram até
junto dela, e Dany foi salpicada por cinzas e fagulhas. E algo
mais caiu, saltando e rolando, parando a seus pés; um pedaço
de rocha curva, de cor clara e com veios de ouro, quebra da e
fumegante. O rugido enchia o mundo, mas, de um modo tênue,
Dany ouviu através da catarata de fogo gritos de mulheres e
choros de crianças, incrédulas. Só a morte pode pagar pela
vida.
E então se ouviu um segundo crac, tão sonoro e cortante
como um trovão, e a fumaça agitou-se e rodopiou em torno
dela e a pira oscilou, com as toras explodindo quando o fogo
atingiu os seus corações secretos. Ouviu os gritos de cavalos
assustados e as vozes dos dothrakis em gritos de medo e
terror, e Sor Jorah chamando pelo seu nome e praguejando.