afirmam os cantores. Bran, isso é só uma história, como os

contos de Florian, o Tolo. Uma fábula da Era dos Heróis - o

meistre soltou um estalido com a língua. - É preciso que ponha

esses sonhos de lado, só vão lhe partir o coração.

A menção a sonhos despertou-lhe a memória.

- Sonhei outra vez com o corvo na noite passada. Aquele com

três olhos. Voou até o meu quarto e me disse para ir com ele,

e foi o que fiz. Descemos às criptas. Meu pai estava lá, e

conversamos. Ele estava triste.

- E por quê? - Luwin espreitou pela sua luneta.

- Tinha qualquer coisa a ver com Jon, parece-me - o sonho fora

profundamente perturbador, mais que qualquer outro dos

sonhos com o corvo. - Hodor não quer descer às criptas.

O meistre estivera desatento, Bran percebeu. Tirou o olho da

luneta, pestanejando.

- Hodor não quer...

- Descer às criptas. Quando acordei, disse-lhe para me levar até

lá embaixo, para ver se meu pai estava mesmo lá. A princí pio,

não entendia o que eu dizia, mas levei-o até os degraus

dizendo--lhe para ir por ali e depois acolá, só que, lá chegando,

não quis descer. Limitou-se a ficar no degrau superior e a

dizer "Hodor", como se estivesse com medo do escuro, mas eu

tinha um archote. Deixou-me tão furioso que quase lhe dei

uma pancada na cabeça, como a Velha Ama faz sempre -

viu o modo como o meistre franzia as sobrancelhas e

acrescentou depressa: - Mas não dei.

- Ótimo. Hodor é um homem, não uma mula que se possa

espancar.

- No sonho, voei até lá embaixo com o corvo, mas não posso

fazer isso quando estou acordado - Bran explicou.

- Por que quer descer às criptas?

- Já disse. Para ir atrás do meu pai.

O meistre puxou a corrente que lhe envolvia o pescoço, como

fazia muitas vezes quando se sentia desconfortável.

- Bran, querida criança, um dia, Lorde Eddard se sentará lá

embaixo, na pedra, ao lado de seu pai e do pai de seu pai e de

todos os Stark até os velhos Reis do Norte... mas, se os deuses

forem bondosos, isso não acontecerá senão daqui a muitos

anos. Seu pai é prisioneiro da rainha em Porto Real. Não está

nas criptas.

- Ele estava lá ontem à noite. Conversei com ele.

- Rapaz teimoso - suspirou o meistre, pondo o livro de lado. -

Quer ir ver?

- Não posso, Hodor não quer ir, e os degraus são estreitos e

tortuosos demais para a Dançarina.

- Acho que posso resolver esse problema.

Em vez de Hodor, chamaram a selvagem Osha. Era alta, dura e

não se queixava, indo de bom grado onde quer que a

mandassem.

- Vivi a minha vida para lá da Muralha, um buraco no chão não

há de me aborrecer, senhores - ela disse.

- Verão, anda - chamou Bran quando ela o ergueu em braços

fortes como metal. O lobo gigante largou o osso e seguiu Osha,

que atravessou o pátio com Bran e desceu os degraus em

espiral até a fria abóbada subterrânea. Meistre Luwin seguia à

frente com um archote. Bran nem se importou - muito - que

ela o transportasse nos braços, e não às costas. Sor Rodrik

ordenara que tirassem as correntes de Osha, pois a mulher

servira bem e fielmente desde que estava em Winterfell. Ainda

usava as pesadas grilhetas de ferro em torno dos tornozelos -

um sinal de que ainda não confiavam inteiramente nela -mas

não prejudicavam seus passos seguros nos degraus.

Bran não recordava a última vez em que estivera nas criptas.

Fora antes, com certeza. Quando era pequeno, costumava

brincar ali com Robb, Jon e as irmãs.

Desejou que estivessem ali agora; a cripta talvez não parecesse

tão escura e assustadora. Verão avançou pelas sombras cheias

de ecos, e então parou, ergueu a cabeça e farejou o ar gelado e

morto. Mostrou os dentes e rastejou para trás, com os olhos

brilhando, dourados à luz do archote do meistre. Até Osha,

dura como ferro velho, parecia desconfortável.

- Gente sombria - disse ao observar a longa fila Stark em

granito, nos seus tronos de pedra.

- Eram os Reis do Inverno - sussurrou Bran. Por algum motivo,

parecia errado falar alto naquele lugar.

Osha sorriu.

- O inverno não tem rei. Se o tivesse visto, saberia, rapaz de

verão.

- Eles foram os Reis do Norte durante milhares de anos - disse

Meistre Luwin, erguendo o archote bem alto para que a luz

brilhasse nos rostos de pedra. Alguns eram homens cabeludos

e barbudos, desgrenhados como os lobos que se agachavam a

seus pés. Outros se apresentavam escanhoados, com traços

magros e aguçados como as espadas longas que tinham sobre

as pernas. Homens duros para tempos duros. Venham -

caminhou vivamente pela cripta, passando pela procissão de

pilares de pedra e pelas infinitas figuras esculpidas. Uma língua

de chamas projetava-se do archote erguido enquanto ele

prosseguia.

A abóbada era cavernosa, mais longa que o próprio Winterfell,

e Jon dissera-lhe uma vez que havia outros níveis abaixo,

criptas ainda mais profundas e mais escuras onde estavam

enterrados os outros reis. Não seria bom perder a luz. Verão

recusou-se a se afastar dos degraus, mesmo quando Osha

seguiu o archote com Bran nos braços.

- Lembra de suas histórias, Bran? - perguntou o meistre

enquanto caminhavam. - Conta a Osha quem eles eram e o que

fizeram, se puder.

Bran olhou para os rostos que passavam e as histórias vieram -

lhe à memória. O meistre contara-as, e a Velha Ama dera-lhes

vida.

- Aquele é Jon Stark. Quando os atacantes vindos do mar

desembarcaram no leste, expulsou--os e construiu o castelo em

Porto Branco. O filho foi Rickard Stark, não o pai do meu pai,

mas outro Rickard, que conquistou o Gargalo do Rei do

Pântano e casou-se com sua filha. Theon Stark é aquele muito

magro de cabelos compridos e barba estreita. Chamavam -no

"Lobo Faminto", porque estava sempre em guerra. Aquele é um

Brandon, o alto com ar sonhador, era Brandon, o Construtor

Naval, porque adorava o mar. Sua tumba está vazia. Tentou

navegar para oeste, através do Mar do Poente, e nunca mais foi

visto. O filho era Brandon, o Incendiário, porque passou o

archote em todos os navios do pai por desgosto. Ali está

Rodrik Stark, que conquistou a Ilha dos Ursos num combate de

luta livre e a deu aos Mormont. E aquele é Torrhen Stark, o

Rei Que Ajoelhou. Foi o último Rei do Norte e o primeiro

Senhor de Winterfell, depois de se render a Aegon, o

Conquistador. Ah, ali, aquele é Cregan Stark. Lutou uma vez

contra o Príncipe Aemon, e o Cavaleiro do Dragão disse que

nunca tinha defrontado melhor espadachim - estavam agora

quase no fim, e Bran sentiu-se submergir em tristeza. - E ali

está o meu avô, Lorde Rickard, que foi decapitado pelo Rei

Louco Aerys. A filha Lyanna e o filho Brandon estão nas

sepulturas ao seu lado. Eu, não, outro Brandon, irmão do meu

pai. Não era previsto que tivessem estátuas, que i sto é só para

os senhores e reis, mas meu pai os amava tanto que as mandou

fazer.

- A donzela é bonita - disse Osha.

- Estava prometida a Robert, mas o Príncipe Rhaegar a raptou

e violentou - explicou Bran.

- Robert lutou uma guerra para reconquistá-la. Matou Rhaegar

no Tridente com o seu martelo, mas Lyanna morreu e ele

nunca a teve de volta.

- Uma história triste - disse Osha -, mas aqueles buracos vazios

são mais tristes.

- A tumba de Lorde Eddard, para quando seu dia chegar - disse

Meistre Luwin. - Foi aqui que viu seu pai no sonho, Bran?

- Sim

-

a

memória

o

fez

estremecer,

Olhou

desconfortavelmente em volta, com os pelos da nuca eriçados.

Ouvira um ruído? Estaria alguém ali?

Meistre Luwin aproximou-se do sepulcro aberto, com o archote

na mão.

- Como pode ver, ele não está aqui. Nem estará, durante muitos

anos. Os sonhos são apenas sonhos, menino - enfiou o braço

na escuridão do interior da tumba, como se fosse a boca de um

grande animal qualquer. - Vê? Está bem vaz...

A escuridão saltou sobre ele, rosnando.

Bran viu olhos que eram como fogo verde, uma cintilação de

dentes, pelo tão negro como o breu que os rodeava. O archote

saltou dos dedos do meistre, rolou pelo rosto de pedra de

Brandon Stark e caiu aos pés da estátua, com as chamas

lambendo-lhe as pernas. A luz ébria e irregular do archote,

viram Luwin lutar com o lobo gigante, batendo-lhe no focinho

com a mão enquanto os maxilares se fechavam sobre a outra.

- Verão! - Bran gritou.

E Verão veio, precipitando-se das trevas atrás deles, uma

sombra em salto. Esbarrou em Cão Felpudo e atirou-o para

trás, e os dois lobos gigantes rolaram e voltaram a rolar num

emaranhado de pelo cinzento e negro, mordendo-se um ao

outro, enquanto Meistre Luwin se punha em pé com

dificuldade, com o braço rasgado e ensanguentado. Osha

apoiou Bran no lobo de pedra de Lorde Rickard e correu para

prestar assistência ao meistre, A luz do archote que se

extinguia, lobos de sombra com seis metros de altura lutavam

na parede e no teto.

- Felpudo - chamou uma voz sumida. Quando Bran ergueu os

olhos, o irmão mais novo estava em pé na abertura da

sepultura do pai. Dando uma última dentada no focinho de

Verão, Cão Felpudo afastou-se e pôs-se ao lado de Rickon. -

Deixe meu pai em paz - avisou Rickon a Luwin. - Deixe-o em

paz.

- Rickon - disse Bran suavemente. - O pai não está aqui,

- Está, sim, Eu o vi - lágrimas brilhavam no rosto de Rickon. -

Eu o vi ontem à noite.

- No seu sonho?...

Rickon confirmou com a cabeça.

- Deixe-o. Deixe-o em paz. Ele agora vem para casa, como

prometeu. Vem para casa.

Bran nunca antes vira Meistre Luwin com uma expressão tão

incerta. Sangue pingava-lhe do braço, onde Cão Felpudo

rasgara a lã da manga e a carne que estava por baixo.

- Osha, o archote - ele pediu, mordendo a dor, e ela o apanhou

antes que se apagasse. Manchas de fuligem enegreciam ambas

as pernas do retrato do tio de Bran, - Aquele... aquele animal -

prosseguiu Luwin - devia estar acorrentado nos canis.

Rickon deu uma palmadinha no focinho de Cão Felpudo, úmido

de sangue.

- Eu o libertei. Ele não gosta de correntes - o lobo lambeu-lhe

os dedos.

- Rickon - disse Bran -, quer vir comigo?

- Não. Gosto disto aqui.

- Aqui está escuro. E frio.

- Não tenho medo. Tenho de esperar pelo pai.

- Pode esperar comigo - disse Bran. - Vamos esperar juntos, eu,

você e os nossos lobos -ambos os lobos lambiam as feridas, e

precisavam de um exame atento.

- Bran - disse firmemente o meistre -, eu sei que você tem boas

intenções, mas Cão Felpudo é selvagem demais para andar à

solta. Eu sou o terceiro homem que ele ataca. Dê -lhe a

liberdade do castelo, e é só questão de tempo antes que mate

alguém. A verdade é dura, mas o lobo tem de ser acorrentado,

ou... - hesitou.

... ou morto, pensou Bran, mas o que disse foi:

- Ele não foi feito para correntes. Esperaremos na sua torre,

todos nós.

- Isso é completamente impossível - disse Meistre Luwin.

Osha sorriu.

- Se bem me lembro, o pequeno lorde aqui é o rapaz -

devolveu o archote a Luwin e voltou a pegar Bran. - A torre do

meistre.

- Você vem, Rickon?

O irmão concordou.


- Se Felpudo vier também - disse, correndo atrás de Osha e

Bran, e não houve nada que Meistre Luwin pudesse fazer a não

ser segui-los, mantendo um olho cauteloso nos lobos.

A torre de Luwin estava tão atravancada que Bran se espantava

de o meistre conseguir encontrar fosse o que fosse. Instáveis

pilhas de livros cobriam mesas e cadeiras, fileiras de frascos

rolhados revestiam as prateleiras, tocos de velas e poças de

cera seca estavam espalhados pela mobília, a luneta miriana,

feita de bronze, apoiava-se num tripé perto da porta da

varanda, cartas estelares pendiam das paredes, mapas

sombreados encontravam-se espalhados por entre as esteiras,

havia papéis, penas e potes de tinta por toda a parte, e tudo se

achava manchado pelos excrementos dos corvos que se

empoleiravam nas traves. Seus estridentes quorcs soaram,

vindos do teto, enquanto Osha lavava, limpava e enfaixava as

feridas do meistre, seguindo suas concisas instruções.

- Isto é uma loucura - disse o pequeno homem cinzento

enquanto ela pincelava as dentadas do lobo com um unguento

que ardia. - Concordo que é estranho que ambos tenham

sonhado o mesmo sonho, mas quando paramos para pensar,

vemos que é natural. Sentem saudade do senhor seu pai, e

sabem que ele está preso. O medo pode tornar febril a mente

de um homem e lhe dar estranhos pensamentos. Rickon é novo

demais para perceber...

-Já tenho quatro anos - disse Rickon, Espiava as gárgulas na

Primeira Fortaleza pela luneta. Os lobos selvagens estavam

instalados em lados opostos da grande sala redonda, lambendo

as feridas e roendo ossos.

- ...novo demais e... ooh, pelos sete infernos, isso arde, não, não

pare, mais. Novo demais, como dizia, mas você, Bran, já tem

idade para saber que sonhos são apenas sonhos.

- Alguns são, outros, não - Osha jogou leite de fogo vermelho-

claro num longo corte. Luwin arquejou. - Os filhos da floresta

podiam lhe dizer uma coisa ou duas a respeito dos sonhos.

Corriam lágrimas pelo rosto do meistre, mas ele sacudiu a

cabeça teimosamente.

- Os filhos... sobrevivem apenas em sonhos. Hoje. Mortos e

enterrados. Chega, já chega. Agora as ataduras. Unguentos e

depois as faixas, e aperte-as bem, porque vai sangrar.

- A Velha Ama diz que os filhos conheciam as canções das

árvores, que podiam voar como aves e nadar como peixes e

falar com os animais - disse Bran. - Diz que criavam música

tão bela que nos fazia chorar como bebês só de ouvi-la.

- E faziam tudo isso com magia - disse Meistre Luwin,

distraído. - Gostaria que aqui estivessem agora. Um feitiço

curaria meu braço com menos dor, e poderiam falar com Cão

Felpudo e dizer-lhe para não morder - lançou ao grande lobo

negro um relance zangado pelo canto do olho. - Aprenda o

seguinte, Bran: o homem que confia em feitiços luta com

espada de vidro. E os filhos confiavam. Venha cá, deixe -me

mostrar uma coisa - pôs-se abruptamente em pé, atravessou a

sala e regressou com um frasco verde na mão boa. - Olhe para

isto - disse, enquanto tirava a rolha e, com um abanão, fazia

cair um punhado de pontas de seta brilhantes e negras.

Bran pegou uma.

- É feita de vidro - curioso, Rickon aproximou-se da mesa para

espiar.

- Vidro de dragão - disse Osha ao sentar-se ao lado de Luwin,

com as ataduras na mão.

- Obsidiana - insistiu Meistre Luwin, estendendo o braço

ferido. - Forjada nas fogueiras dos deuses, nas profundezas da

terra. Os filhos da floresta caçavam com isso há milhares de

anos. Eles não trabalhavam o metal. Em lugar de cota de

malha, usavam longas camisas de folhas entrelaçadas e

envolviam as pernas com cortiça, para que parecessem se

fundir com a floresta. No lugar de espadas, usavam lâminas de

obsidiana.

- E ainda usam - Osha colocou unguentos suaves sobre as

mordidas no braço do meistre e os atou bem apertados com

longas faixas de linho.

Bran aproximou a ponta de seta dos olhos. O vidro negro era

liso e brilhante. Achou-o belo.

- Posso ficar com uma?

- Como quiser - disse o meistre.

- Também quero uma - disse Rickon. - Quero quatro. Tenho

quatro anos.

Luwin o obrigou a contá-las.

- Cuidado, ainda são afiadas, podem cortá-lo.

- Fala mais dos filhos - Bran pediu. Era importante.

- Que quer saber?

- Tudo.

Meistre Luwin puxou o colar de correntes onde lhe irritava o

pescoço.

- Eram pessoas da Era da Aurora, as primeiras, de antes dos

reis e dos reinos. Naquele tempo, não havia castelos ou

fortalezas, não havia cidades, nem sequer se encontrava uma

vila mercantil entre aqui e o mar de Dorne. Não havia homens

nenhuns. Só os filhos da floresta habitavam as terras a que

hoje chamamos os Sete Reinos. Eram um povo escuro e belo,

de baixa estatura, não eram mais altos que crianças, mesmo na

idade adulta. Viviam nas profundezas dos bosques, em

cavernas, no meio dos lagos e em aldeias secretas nas árvores.

Como eram leves, os filhos eram ligeiros e graciosos. Os dois

sexos caçavam juntos, com arcos de represeiros e laços. Seus

deuses eram os deuses da floresta, dos rios e das pedras, os

velhos deuses cujos nomes são secretos. Seus sábios

chamavam-se videntes verdes, e esculpiam estranhos rostos

nos represeiros para vigiar os bosques. Ninguém sabe durante

quanto tempo os filhos reinaram aqui nem de onde vieram.

Mas, há cerca de doze mil anos, os Primeiros Homens

chegaram do oriente, atravessando o Braço Partido de Dorne

antes de ele ter sido partido. Chegaram com espadas de bronze

e grandes escudos de couro, montados em cavalos. Nenhum

cavalo fora alguma vez visto deste lado do mar estreito. Não há

dúvida que os filhos ficaram tão atemorizados pelos cavalos

como os Primeiros Homens, pelos rostos nas árvores. Quando

os Primeiros Homens construíram fortalezas e fazendas,

abateram os rostos e os queimaram. Horrorizados, os filhos

partiram para a guerra. As antigas canções dizem que os

videntes verdes usaram magia negra para fazer o mar subir e

varrer a terra, quebrando o Braço, mas era tarde demais para

fechar a porta. As guerras prolongaram-se até a terra ficar

rubra com o sangue de homens e filhos da floresta, mais destes

que daqueles, pois os homens eram maiores e mais fortes, e

madeira, pedra e obsidiana eram fraca oposição contra o

bronze. Por fim, prevaleceu a sensatez das duas raças, e os

chefes e heróis dos Primeiros Homens encontraram-se com os

videntes verdes e dançarinos da floresta nos bosques de

represeiros de uma ilhota no grande lago chamado Olho de

Deus. Foi aí que forjaram o Pacto. Aos Primeiros Homens

foram dadas as terras costeiras, os planaltos e os prados

luminosos, as montanhas e os pântanos, mas a floresta

profunda ficaria para sempre nas mãos dos filhos, e nenhum

outro represeiro seria destruído pelo machado em todo o

território. Para que os deuses testemunhassem a assinatura, a

todas as árvores da ilha foi dada uma cara e, mais tarde, foi

formada a sagrada Ordem dos Homens Verdes para vigiar a

Ilha das Caras. O Pacto iniciou quatro mil anos de amizade

entre os homens e os filhos da floresta. Com o tempo, os

Primeiros Homens até puseram de lado os deuses que tinham

trazido

consigo

e

passaram a adorar os deuses secretos da floresta. A assinatura

do Pacto pôs fim à Era da Aurora e iniciou a Era dos Heróis.

O punho de Bran enrolou-se em volta da brilhante ponta de

seta negra.

- Mas o senhor disse que os filhos da floresta estão agora todos

mortos.

- Aqui estão - disse Osha, enquanto cortava com os dentes o

fim da última atadura. - A norte da Muralha as coisas são

diferentes. Foi para lá que os filhos foram, tal como os gigantes

e as outras raças antigas.

Meistre Luwin suspirou.

- Mulher, por favor, devia estar morta ou encarcerada. Os Stark

a trataram com mais bondade do que merece. Não é bom

retribuir-lhes a simpatia enchendo a cabeça dos rapazes de

besteiras,

- Diz para onde eles foram - Bran desafiou. - Quero saber.

- Eu também - disse Rickon, num eco.

- Ah, muito bem - resmungou Luwin, - Enquanto os reinos dos

Primeiros Homens mantiveram o poder, o pacto manteve-se ao

longo de toda a Era dos Heróis, da Longa Noite e do

nascimento dos Sete Reinos, mas por fim chegou uma época,

muitos séculos mais tarde, em que outros povos atravessaram

o mar estreito. Os ândalos foram os primeiros; uma raça de

guerreiros altos de cabelos claros que chegaram com aço, fogo

e a estrela de sete pontas dos novos deuses pintada no peito.

As guerras prolongaram-se ao longo de centenas de anos, mas,

no fim, todos os seis reinos do Sul caíram perante eles. Só

aqui, onde o Rei do Norte repeliu todos os exércitos que

tentaram atravessar o Gargalo, permaneceu a lei dos Primeiros

Homens. Os ândalos incendiaram os bosques de represeiros,

destruíram os rostos a machadadas, mataram os filhos da

floresta onde os encontraram e proclamaram por todo o lado o

triunfo dos Sete sobre os velhos deuses. Por isso, os filhos

fugiram para o norte...

Verão começou a uivar.

Meistre Luwin interrompeu-se, sobressaltado. Quando Cão

Felpudo se ergueu de um salto e juntou sua voz à do irmão, o

terror apertou o coração de Bran.

- Está para chegar - sussurrou, com a certeza, do desespero.

Compreendeu que o sabia desde a noite anterior, desde que o

corvo o levara até as criptas para dizer adeus. Sabia, mas não

acreditara. Desejava que Meistre Luwin tivesse razão. O corvo,

pensou, o corvo de três olhos...

Os uivos pararam tão subitamente como tinham começado.

Verão atravessou o chão da torre até junto de Cão Felpudo e

pôs-se a lamber um emaranhado de pelo ensanguentado no

pescoço do irmão. Da janela veio um ruído de asas.

Um corvo pousou no parapeito de pedra cinzenta, abriu o bico

e soltou um ruído duro e rouco de aflição.

Rickon começou a chorar. As pontas de seta caíram de sua mão

uma por uma e tamborilaram no chão. Bran o puxou para si e

o abraçou.

Meistre Luwin olhou para a ave negra como se fosse um

escorpião com penas. Ergueu-se, lento como um sonâmbulo, e

dirigiu-se à janela. Quando assobiou, o corvo saltou para cima

de seu braço enfaixado. Trazia sangue seco nas asas.

- Um falcão - murmurou Luwin -, talvez uma coruja. Pobre

animal, é incrível que tenha sobrevivido - tirou-lhe a carta da

perna.

Bran deu por si tremendo enquanto o meistre desenrolava o

papel.

- O que é? - perguntou, apertando o irmão com mais força

ainda.

- Você sabe o que é, rapaz - disse Osha, de uma forma que não

era desprovida de bondade, e pousou-lhe a mão na cabeça.

Meistre Luwin olhou-os, estupidificado, um homenzinho

cinzento com sangue na manga da veste de lã cinzenta e

lágrimas nos olhos brilhantes e cinzentos.

- Senhores - disse aos rapazes, numa voz que se tinha tornado

rouca e sem força -, nós... teremos de encontrar um escultor

que conheça bem as suas feições...


Sansa


No quarto da torre, no coração da Fortaleza de Maegor, Sansa

entregou-se às trevas. Ar Fechou as cortinas em volta da cama,

dormiu, acordou chorando e voltou a adormecer. Quando não

mais conseguiu dormir, ficou deitada sob os cobertores,

tremendo de desgosto. Os criados iam e vinham trazendo

refeições, mas a visão de comida era mais do que conseguia su -

portar. Os pratos empilhavam-se na mesa junto à janela,

intocados, estragando, até que os criados os levassem de volta.

Por vezes, seu sono era de chumbo e sem sonhos, e acordava

mais cansada do que estivera quando fechara os olhos. Mas

esses eram os melhores momentos, pois, quando sonhava,

sonhava com o pai. Acordada ou dormindo, via-o, via os

homens de manto dourado empurrá-lo para baixo, via Sor Ilyn

avançar a passos largos, desembainhando Gelo da bainha que

levava às costas, via o momento... o momento em que... quisera

afastar os olhos, quisera fazê-lo, perdera o apoio das pernas e

caíra de joelhos, mas de algum modo não fora capaz de virar a

cabeça, e todo mundo gritava e berrava, e o seu príncipe

sorrira-lhe, ele sorrira e ela se sentira segura, mas só por um

momento, até dizer aquelas palavras, e as pernas do pai... era

isso que recordava, as pernas, a maneira como elas se tinham

sacudido quando Sor Ilyn... quando a espada...

Se calhar, também vou morrer, disse a si mesma, e a ideia

não lhe pareceu assim tão terrível. Se se atirasse da janela,

poderia pôr fim ao sofrimento, e nos anos vindouros os

cantores escreveriam canções sobre o seu pesar. Seu corpo

jazeria sobre as pedras, lá embaixo, quebrado e inocente,

envergonhando todos aqueles que a tinham traído. Sansa

chegara a atravessar o quarto e a abrir as venezianas... mas

então a coragem a deixara, e correra de volta à cama, aos

soluços.

As criadas tentavam conversar com ela quando lhe traziam as

refeições, mas nunca lhes deu resposta. Uma vez, o Grande

Meistre Pycelle veio ao quarto com uma caixa cheia de frascos

e garrafas, para perguntar se estava doente. Pôs a mão em sua

testa, obrigou-a a despir-se e tocou-a por todo o lado enquanto

a criada a segurava. Quando saiu, deu-lhe uma poção de

aguamel e ervas e disse-lhe para beber um gole todas as noites.

Ela a bebeu toda de uma vez e voltou a adormecer.

Sonhou com passos na escada da torre, um agourento raspar

de couro em pedra feito por um homem que subia lentamente

até seu quarto, degrau por degrau. Tudo o que podia fazer era

comprimir-se contra a porta e escutar, tremendo, enquanto ele

se aproximava cada vez mais. Sabia que era Sor Ilyn Payne

vindo buscá-la, com Gelo na mão, para cortar-lhe a cabeça. Não

havia para onde fugir, não havia esconderijo nenhum, nenhuma

maneira de trancar a porta. Por fim, os passos pararam e ela

soube que ele estava mesmo do outro lado, ali, em pé,

silencioso, com seus olhos mortos e a longa cara marcada. Foi

então que se percebeu nua. Agachou-se, tentando cobrir-se

com as mãos, ao mesmo tempo em que a porta começava a se

abrir, rangendo, com a ponta da espada espreitando...

Acordou murmurando:

- Por favor, por favor, serei boa, serei boa, por favor, não -

mas não havia ninguém para ouvi-la.

Quando por fim vieram realmente buscá-la, Sansa não chegou

a ouvir os passos. Foi Joffrey quem abriu a porta, não Sor Ilyn,

e sim o rapaz que fora o seu príncipe. Estava na cama,

enrolada sobre si mesma, com as cortinas cerradas, e não

soube dizer se era meio-dia ou meia-noite. A primeira coisa

que ouviu foi a porta batendo. Depois, as colchas da cama

foram puxadas para trás, e ela ergueu a mão contra a sú bita

luz e os viu em pé a seu lado.

- Esta tarde a apresentarei na audiência - disse Joffrey. - Trate

de se banhar e vestir algo próprio para minha prometida -

Sandor Clegane estava ao lado dele com um gibão simples

marrom e uma capa verde, com o rosto queimado hediondo à

luz da manhã. Atrás deles encontravam-se dois cavaleiros da

Guarda Real trajando longos mantos de cetim branco.

Sansa puxou a manta até o queixo para se cobrir.

- Não - choramingou -, por favor... deixe-me em paz.

- Se recusar a se levantar e se vestir, meu Cão de Caça fará

isso por você - disse Joffrey.

- Suplico-lhe, meu príncipe...

- Eu agora sou rei. Cão, tire-a da cama.

Sandor Clegane agarrou-a pela cintura e a ergueu da cama de

penas enquanto ela se debatia numa luta frágil. O cobertor

caiu ao chão. Por baixo, tinha apenas uma fina camisa de

dormir cobrindo-lhe a nudez.

- Faz o que lhe pedem, criança - disse Clegane. - Vista-se -

empurrou-a até o roupeiro, quase com gentileza.

Sansa afastou-se deles.

- Eu fiz o que a rainha pediu, escrevi as cartas, escrevi o que

ela me disse para escrever. Vossa Graça prometeu que seria

misericordioso. Por favor, deixe-me ir para casa. Não cometerei

traições, serei boa, juro, não tenho sangue de traidor, não

tenho. Só quero ir para casa - recordando-se da boa educação,

baixou a cabeça. - Se for sua vontade - terminou em voz fraca.

- Não é - disse Joffrey. - A mãe diz que eu ainda devo me casar

com você, portanto, ficará aqui e obedecerá.

- Eu não quero me casar com você - choramingou Sansa. -

Cortou a cabeça do meu pai!

- Ele era um traidor. Nunca prometi poupá-lo, só ser

misericordioso, e isso fui. Se ele não fosse seu pai, teria

mandado dilacerá-lo ou flagelá-lo, mas lhe ofereci uma morte

limpa.

Sansa fixou os olhos nele, vendo-o pela primeira vez. Vestia um

gibão carmesim almofadado com um padrão de leões e uma

capa de pano de ouro com um colarinho elevado que lhe en -

quadrava o rosto. Perguntou-se como podia alguma vez tê-lo

achado bonito. Tinha uns lábios tão moles e vermelhos como

os vermes que se encontravam depois das chuvas, e os olhos

eram vaidosos e cruéis.

- Odeio-o - sussurrou.

O rosto do Rei Joffrey endureceu.

- Minha mãe me disse que não é próprio que um rei bata na

esposa. Sor Meryn.

O cavaleiro estava em cima dela antes sequer de ter tempo de

pensar, puxando-lhe a mão para trás quando tentou proteger o

rosto e dando-lhe um murro na orelha com as costas de um

punho enluvado. Sansa não se lembrava de ter caído, mas,

quando deu por si, estava estatelada nas estei ras. A cabeça

ressoava. Sor Meryn Trant pairava sobre ela, com sangue nos

nós dos dedos de sua luva de seda branca.

- Irá me obedecer agora, ou terei de mandá-lo castigá-la de

novo?

Sansa sentia a orelha dormente. Tocou-a, e as pontas dos

dedos vieram úmidas e vermelhas,

- Eu... como... às suas ordens, senhor.

- Vossa Graça — corrigiu Joffrey. - Procurarei por você na

audiência - virou-se e saiu.

Sor Meryn e Sor Arys seguiram-no, mas Sandor Clegane ficou

por tempo suficiente para a colocá-la em pé.

- Poupe-se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer.

- O que... o que ele quer? Diga-me, por favor.

- Quer vê-la sorrindo, perfumada, e sendo a senhora sua amada

- rouquejou Cão de Caça. - Quer ouvi-la recitar todas as

palavrinhas bonitas da maneira que a septã lhe ensinou. Quer

que o ame... e que o tema.

Depois de ele sair, Sansa voltou a estender-se nas esteiras,

olhando fixamente para a parede, até que duas criadas de

quarto deslizaram timidamente para dentro do aposento.

- Vou precisar de água quente para o meu banho, por favor -

disse-lhes -, e de perfume, e algum pó para esconder este roxo

- o lado direito do rosto estava inchado e começava a doer,

mas sabia que Joffrey queria vê-la bela.

A água quente a fez pensar em Winterfell, e retirou forças daí.

Não se lavara desde o dia em que o pai morrera, e f icou

sobressaltada ao ver como a água ficara suja. As criadas

limparam o sangue do rosto, rasparam a sujeira das costas,

lavaram os cabelos e os escovaram até saltarem em espessos

caracóis ruivos. Sansa não falou nada, exceto para lhes dar

ordens; eram criadas Lannis-ter, não suas, e não confiava nelas.

Quando chegou a hora de se vestir, escolheu o vestido de seda

verde que usara no torneio. Lembrou-se de como Joff fora

galante naquela noite no banquete. Talvez o vestido o fizesse

recordar também e talvez a tratasse com mais gentileza.

Bebeu um copo de soro de leite coalhado e beliscou alguns

biscoitos doces enquanto esperava, para acalmar o estômago.

Era meio-dia quando Sor Meryn regressou. Tinha envergado a

armadura branca; um camisão de escamas esmaltada s com

relevos em ouro, um elmo alto com um esplendor dourado

como timbre, grevas, gorjal, manoplas e botas de metal

reluzente, um pesado manto de lã preso com um leão dourado.

O visor fora removido do elmo para exibir seu rosto severo;

bolsas sob os olhos, uma boca larga e amarga, cabelos cor de

ferrugem pintalgados de cinza.

- Minha senhora - disse, fazendo uma reverência, como se não

a tivesse espancado havia menos de três horas. - Sua Graça

ordenou-me que a escoltasse até a sala do trono.

- Ordenou também que me batesse se me recusasse a ir?

- Está se recusando a vir, senhora? - o olhar não tinha

expressão alguma. Nem sequer olhou de relance a marca que

lhe deixara.

Sansa compreendeu que o homem não a odiava; nem a amava.

Não sentia absolutamente nada por ela. Para ele, era apenas

uma... uma coisa.

- Não - respondeu, pondo-se em pé. Quis exaltar-se, magoá-lo

como ele a magoara, prevenido de que, quando fosse rainha, o

mandaria para o exílio se alguma vez se atrevesse a lhe bater

de novo... mas lembrou-se do que Cão de Caça lhe dissera, e

tudo o que disse foi: - Farei o que quer que Sua Graça ordene.

- Tal como eu - ele respondeu.

- Sim... mas o senhor não é um verdadeiro cavaleiro, Sor

Meryn.

Sansa sabia que Sandor Clegane teria rido se tivesse ouvido

aquilo. Outros homens a teriam amaldiçoado, avisado para que

se calasse, até suplicado perdão. Sor Meryn Trant não fez nada

disso. Ele simplesmente não se importou.

Além de Sansa, o balcão estava deserto. Ficou em pé, de cabeça

baixa, lutando por reter as lágrimas, enquanto lá embaixo

Joffrey se sentava no seu Trono de Ferro e distribuía o que lhe

aprazia chamar justiça. Nove casos em dez pareciam aborrecê-

lo; esses, permitia que o conselho deles tratasse, contorcendo -

se continuamente enquanto Lorde Baelish, o Grande Meistre

Pycelle ou a Rainha Cersei resolviam o assunto. Mas quando

escolhia decidir, nem mesmo a rainha sua mãe era capaz de

influenciado.

Um ladrão foi trazido à sua presença e ele mandou Sor Ilyn

cortar-lhe a mão, ali mesmo, na sala de audiências. Dois

cavaleiros vieram apresentar-lhe uma disputa sobre umas

terras, e ele decretou que deveriam decidida em duelo na

manhã seguinte.

- Até a morte - acrescentou. Uma mulher caiu de joelhos para

pedir a cabeça de um homem executado por traição. Que o

amava, disse ela, e que o queria ver decentemente enterrado. -

Se amou um traidor, deve ser também traidora - disse Joffrey.

Dois homens de mantos dourados arrastaram-na para as

masmorras.

Lorde Slynt, o da cara de sapo, sentava-se ao fundo da mesa do

conselho, usando um gibão de veludo negro e uma reluzente

capa de pano de ouro, acenando com aprovação cada vez que o

rei pronunciava uma sentença. Sansa fitou duramente aquele

rosto feio, lembrando-se de como o homem atirara o pai ao

chão para que Sor Ilyn o decapitasse, desejando poder feri-lo,

desejando que algum herói lhe atirasse ao chão e lhe cortasse

a cabeça. Mas uma voz em seu interior sussurrou: Não há

heróis, e ela se lembrou do que Lorde Petyr lhe dissera, ali

naquela mesma sala: "A vida não é uma canção, querida.

Poderá aprender isso um dia, para sua mágoa". Na vida, os

monstros vencem, disse a si mesma, e agora era a voz de Cão

de Caça que ouvia, um raspar frio, de metal em pedra. "Poupe -

se de alguma dor, menina, e dê-lhe o que ele quer."

O último caso foi o de um roliço cantor de taberna, acusado de

fazer uma canção que ridicularizava o falecido Rei Robert. Joff

ordenou-lhe que fosse buscar sua harpa e o obrigou a cantar a

canção perante a corte. O cantor chorou e jurou que nunca

mais voltaria a cantá-la, mas o rei insistiu. Era uma canção

mais ou menos engraçada, toda ela sobre Robert lutando com

um porco. Sansa sabia que o porco era o javali que o matara,

mas em alguns versos quase parecia que o que o homem

cantava era sobre a rainha. Depois de a canção terminar,

Joffrey anunciou que decidira ser misericordioso. O cantor

poderia ficar ou com os dedos ou com a língua. Teria um dia

para escolher. Janos Slynt acenou.

Sansa viu, aliviada, que aquele foi o último caso da tarde, mas

sua provação ainda não tinha terminado. Quando a voz do

arauto pôs fim à audiência, ela fugiu do balcão, mas foi

deparar com Joffrey à sua espera no fundo da escada curva.

Cão de Caça encontrava-se com ele, bem como Sor Meryn. O

jovem rei a examinou com ar crítico dos pés à cabeça.

- Está com aspecto muito melhor do que de manhã.

- Obrigada, Vossa Graça - disse Sansa. Palavras ocas, mas que o

fizeram acenar e sorrir.

- Acompanhe-me - ordenou Joffrey, oferecendo-lhe o braço. Ela

não teve alternativa a não ser aceitar. O toque da mão dele a

teria arrebatado em outros tempos; agora lhe causava arrepios.

- O dia do meu nome chegará em breve - disse Joffrey

enquanto se esgueiravam pelos fundos da sala do trono. -

Haverá um grande banquete e presentes. Que irá me oferecer?

- Eu... eu não pensei nisso, senhor.

- Vossa Graça - disse ele em tom cortante. - É mesmo uma

menina estúpida, não é? É o que a minha mãe diz.

- Diz? - depois de tudo o que aconteceu, aquelas palavras

deviam ter perdido o poder de magoá-la, mas de algum modo

não era assim. A rainha sempre fora tão boa para ela.

- Ah, sim. Preocupa-se com os nossos filhos, com a hipótese de

serem estúpidos como você, mas eu lhe disse que não se

preocupasse - o rei fez um gesto, e Sor Meryn abriu uma porta

para eles passarem.

- Obrigada, Vossa Graça - murmurou Sansa. Cão de Caça

tinha razão, pensou. Sou só um passarinho, repetindo as

palavras que me ensinaram. O sol descera abaixo da muralha

ocidental, e as pedras da Fortaleza Vermelha brilhavam,

escuras como sangue.

- Eu a engravidarei assim que seja capaz de conceber - disse

Joffrey enquanto a levava pelo pátio de treinos. - Se o primeiro

for estúpido, cortarei sua cabeça e arranjarei uma esposa mais

inteligente. Quando será capaz de ter filhos?

Sansa não conseguia olhar para ele, de tanto que se

envergonhava.

- Septã Mordane diz que a maior parte... a maior parte das

moças bem-nascidas tem o desabrochar aos doze ou treze anos.

Joffrey acenou com a cabeça.

- Por aqui - levou-a para dentro da guarita, até a base dos

degraus que levavam às ameias. Sansa sacudiu-o, tremendo. Só

agora compreendera para onde se dirigiam.

- Não - disse, com a voz transformada num arquejo assustado.

- Por favor, não, não me obrigue, suplico-lhe...

Joffrey apertou os lábios.

- Quero lhe mostrar o que acontece aos traidores.

Sansa sacudiu violentamente a cabeça.

- Não vou. Não vou.

- Posso dizer a Sor Meryn que a arraste até lá em cima - disse.

- Não gostaria disso. É melhor que faça o que eu digo - Joffrey

estendeu o braço para ela, e Sansa esquivou-se, recuando até

esbarrar em Cão de Caça.

- Obedece, menina - disse-lhe Sandor Clegane, voltando a

empurrá-la para o rei. Sua boca torceu-se no lado queimado do

rosto, e Sansa quase foi capaz de ouvir o resto. Ele conseguirá

que suba, aconteça o que acontecer; portanto, dê -lhe o

que quer.

Forçou-se a tomar a mão do Rei Joffrey, A subida era algo

saído de um pesadelo; cada degrau era uma luta, como se

puxasse os pés de dentro da lama que lhe chegava aos

tornozelos, e havia mais degraus do que teria acreditado, um

milhar de milhares de degraus, e o horror que a esperava nas

muralhas.

Visto das altas ameias da guarita, o mundo inteiro estendia -se

abaixo deles. Sansa via o Grande Septo de Baelor, na colina de

Visenya, onde o pai morrera. Na outra extremidade da Rua das

Irmãs erguiam-se as ruínas enegrecidas pelo fogo do Poço dos

Dragões. A oeste, o sol, vermelho e inchado, estava meio

escondido por trás do Portão dos Deuses. Tinha o mar salgado

nas costas, e ao sul via-se o mercado dos peixes, as docas e a

corrente cheia de remoinhos da Torrente da Água Negra. E ao

norte...

Virou-se para esse lado, e viu apenas a cidade, ruas, vielas,

colinas e vales, e mais ruas e mais vielas, e a pedra de

muralhas distantes. Mas sabia que para lá delas havia campo

aberto, fazendas, prados e florestas, e para lá de tudo isso, ao

norte, ao norte e depois ainda mais para o norte, fi cava

Winterfell.

- Está olhando para onde? - Joffrey perguntou. - O que queria

que visse é isto, aqui mesmo.

Um espesso parapeito de pedra protegia o limite exterior da

muralha, erguendo-se até o queixo de Sansa, com fendas

abertas a cada metro e meio para os arqueiros. As cabeças

estavam encravadas entre as fendas, ao longo do topo da

muralha, empaladas em hastes de ferro para ficarem viradas

para a cidade. Sansa as vira no momento em que pusera os pés

ali, mas o rio, as ruas agitadas e o sol poente eram muito mais

bonitos. Ele pode me obrigar a olhar para as cabeças, disse

consigo mesma, mas não pode me obrigar a vê -las,

- Este é seu pai - disse. - Este aqui. Cão, vire-o para que ela

consiga vedo.

Sandor Clegane pegou na cabeça pelos cabelos e a virou. A

cabeça cortada fora mergulhada em alcatrão para se manter

preservada durante mais tempo. Sansa olhou-a calmamente,

sem veda totalmente. Não se assemelhava mesmo a Lorde

Eddard, pensou; nem sequer parecia real.

- Tenho de olhar durante quanto tempo?

Joffrey pareceu desapontado.

- Quer ver os outros? - havia uma longa fileira.

- Se der prazer a Vossa Graça...

Joffrey marchou com ela ao longo do muro, passando por mais

uma dúzia de cabeças e duas hastes vazias.

- Estou reservando aquelas para meus tios Stannis e Renly -

explicou. As outras cabeças estavam mortas e encravadas na

muralha havia muito mais tempo que a do seu pai. Apesar do

alcatrão, a maioria estava irreconhecível. O rei apontou para

uma e disse: - Ali está sua septã - mas Sansa nem se teria

apercebido de que se tratava de uma mulher. O maxilar

apodrecera e caíra, e as aves tinham comido uma orelha e a

maior parte de uma bochecha.

Sansa se perguntara o que teria acontecido a Septã Mordane,

embora agora lhe parecesse que sempre o soubera.

- Por que foi morta? - perguntou. - Jurara perante os deuses...

- Era uma traidora - Joffrey parecia mal-humorado. De algum

modo, Sansa o estava aborrecendo. - Não disse o que pretende

me dar pelo dia do meu nome. Em vez disso, talvez deva ser eu

a lhe dar algo, gostaria?

- Se lhe agradar, senhor - disse Sansa,

Quando ele sorriu, Sansa compreendeu que caçoava dela.

- Seu irmão também é um traidor, compreende? - voltou a

virar a cabeça de Septã Mordane ao contrário. - Lembro-me do

seu irmão de Winterfell. Meu cão o chamou de senhor da

espada de madeira. Não é verdade, cão?

- Chamei? - respondeu Cão de Caça. - Não me lembro.

Joffrey deu petulantemente de ombros.

- Seu irmão derrotou meu tio Jaime. Minha mãe diz que foi por

traição e engano. Chorou quando ouviu a notícia. As mulheres

são todas fracas, até ela, embora finja que não é. Diz que

temos de ficar em Porto Real para o caso de meus outros tios

atacarem, mas eu não me importo. Depois do banquete do dia

do meu nome, vou reunir uma tropa e matarei eu mesmo seu

irmão. Será isso que lhe darei, Senhora Sansa. A cabeça de seu

irmão.

Uma espécie de loucura tomou conta de Sansa naquele

instante, e ouviu-se a dizer:

- Talvez meu irmão me dê a vossa cabeça..

Joffrey fez uma carranca.

- Nunca deve zombar de mim dessa maneira. Uma esposa fiel

não zomba de seu senhor. Sor Meryn, ensine-lhe.

Daquela vez, o cavaleiro a agarrou pelo queixo e manteve sua

cabeça imóvel enquanto lhe batia. Bateu-lhe duas vezes, da

esquerda para a direita e, com mais força, da direita para a

esquerda. O lábio de Sansa abriu-se e correu-lhe sangue pelo

queixo, misturando-se com o sal de suas lágrimas.

- Não devia passar o tempo todo chorando - disse-lhe Joffrey. -

É mais bela ao sorrir.

Sansa obrigou-se a sorrir, com medo de que ele pudesse dizer

a Sor Meryn para que batesse de novo se não o fizesse, mas

não bastou, o rei ainda balançou a cabeça.

- Limpe o sangue, está toda descomposta.

O parapeito exterior chegava-lhe ao peito, mas ao longo da

borda interna do caminho não havia nada, nada, a não ser um

longo mergulho até o chão, vinte ou vinte e cinco metros mais

abaixo. Bastaria um empurrão, disse a si mesma. Ele estava

mesmo ali, bem ali, sorrindo-lhe afetadamente com aqueles

lábios que eram como vermes gordos. Podia fazê-lo. Podia.

Faça-o agora mesmo, Nem importaria se caísse com ele. Não

importaria nem um bocadinho.

- Vem cá, menina - Sandor Clegane ajoelhou à sua frente, entre

ela e Joffrey. Com uma delicadeza surpreendente para um

homem tão grande, limpou o sangue que lhe escorria do lábio

aberto.

O momento passara. Sansa baixou os olhos.

- Obrigada - disse quando ele acabou. Era uma boa menina, e

lembrava-se sempre da boa educação.


Daenerys


Asas ensombraram seus sonhos febris.

- Você não quer acordar o dragão, não é?

Caminhava por um longo corredor sob grandes arcos de pedra.

Não devia olhar para trás, não podia olhar para trás. A frente

havia uma porta, minúscula na distância, mas mesmo de longe

viu que estava pintada de vermelho. Caminhou mais depressa,

e seus pés nus deixaram pegadas sangrentas na pedra.

- Você não quer acordar o dragão, quer?

Viu a luz do sol no mar dothraki, na planície viva, rica com os

odores da terra e da morte. O vento agitava o capim, que

ondulava como água. Drogo a envolvia em braços fortes, e a

mão dele afagou-lhe o sexo e o abriu, e acordou aquela doce

umidade que era só dele, e as estrelas lhes sorriram, estrelas

num céu diurno. "Casa", ela sussurrou quando ele a penetrou e

a encheu com o seu sêmen, mas de súbito as estrelas

desapareceram, e as grandes asas varreram o céu azul e o

mundo pegou fogo.

- ... não quer acordar o dragão, quer?

O rosto de Sor Jorah estava contraído e desgostoso. "Rhaegar

foi o último dragão", disse-lhe. Aquecia suas mãos translúcidas

num braseiro brilhante onde ovos de pedra cintilavam, verme-

lhos como carvões. Num momento estava ali, e no seguinte

desvanecia-se, sem cor na pele, menos sólido que o vento. "O

último dragão", sussurrou, em um frágil fio de voz, e

desapareceu. Dany sentiu a escuridão atrás de si, e a porta

vermelha parecia mais longínqua que nunca.

- ... não quer acordar o dragão, quer?

Viserys estava à sua frente, gritando. "O dragão não pede,

puta. Você não dá ordens ao dragão. Eu sou o dragão e serei

coroado." O ouro derretido escorria-lhe pelo rosto como cera,

abrindo profundos canais em sua carne."Eu sou o dragão e

serei coroado!" guinchou, e seus dedos saltaram como

serpentes, apertando-lhe os mamilos, beliscando, torcendo,

mesmo depois de os olhos estourarem e escorrerem como

gelatina por bochechas secas e enegrecidas.

- ... não quer acordar o dragão...

A porta vermelha estava tão longe à sua frente, e Dany sentia a

respiração gelada atrás de si, aproximando-se pesadamente, Se

a apanhasse, teria uma morte que seria mais que morte,

uivando para sempre sozinha na escuridão. Pôs-se a correr.

não quer acordar o dragão...

Conseguia sentir o calor dentro de si, um terrível ardor no

ventre. O filho era alto e orgulhoso, com a pele acobreada de

Drogo e os cabelos louros prateados dela, com olhos violeta em

forma de amêndoas. E sorriu-lhe, e começou a erguer a mão na

direção da dela, mas quando abriu a boca, o fogo jorrou. Viu o

coração arder-lhe no peito, e num instante ele desaparecera,

consumido como uma traça por uma vela, transformado em

cinzas. Chorou pelo filho, pela promessa de uma boca querida

no seu seio, mas as lágrimas transformaram-se em vapor

quando lhe tocaram a pele.

- ... quer acordar o dragão...

Fantasmas alinhavam-se ao longo do corredor, vestidos com as

vestes desbotadas de reis. Nas mãos traziam espadas de fogo

pálido. Tinham cabelos de prata, cabelos de ouro e cabelos

brancos de platina, e seus olhos eram de opala e ametista, de

turmalina e jade. "Mais depressa", gritaram, "mais depressa,

mais depressa". Ela correu, com os pés derretendo a pedra

onde a tocavam. "Mais depressa!", gritavam os fantasmas

como se fossem um só, e ela gritou e atirou-se em frente. Uma

grande faca de dor rasgou-lhe as costas, e sentiu a pele abrir-

se, cheirou o fedor de sangue ardendo e viu a sombra de asas.

E Daenerys Targaryen levantou voo.

- ... acordar o dragão...

A porta erguia-se na sua frente, a porta vermelha, tão próxima,

tão próxima, o corredor era um borrão à sua volta, o frio

ficava para trás. E agora já não havia pedra, e ela voava pelo

mar dothraki, cada vez mais alto, com o verde ondulando por

baixo, e tudo o que vivia e respirava fugia aterrorizado da

sombra de suas asas. Conseguia sentir o cheiro de casa,

conseguia vê-la, ali, por trás daquela porta, campos verdejantes

e grandes casas de pedra e braços que a mantivessem quente,

ali. Escancarou a porta.

-... o dragão...

E viu o irmão Rhaegar, montado num garanhão tão negro

como a sua armadura. Fogo cintilava, vermelho, através da

fenda estreita da viseira de seu elmo. "O último dragão",

sussurrou, tênue, a voz de Sor Jorah."O último, o último." Dany

ergueu o polido visor negro do irmão. O rosto que estava lá

dentro era o dela.

Depois daquilo, durante muito tempo, só houve dor, o fogo em

seu interior e os sussurros das estrelas.

Acordou sentindo o sabor das cinzas.

- Não - gemeu -, por favor, não.

- Khaleesi? - Jhiqui pairou sobre ela, como uma corça

assustada.

A tenda estava mergulhada em sombras, silenciosa e fechada.

Flocos de cinzas saltavam de um braseiro, e Dany seguiu-os

com os olhos enquanto atravessavam o buraco da fumaça, no

topo da tenda. Voar, pensou. Tinha asas, estava voando. Mas

fora apenas um sonho.

- Ajude-me - sussurrou, lutando por se erguer. - Traga-me... -

tinha a voz em sangue como uma ferida, e não conseguia

pensar no que queria. Por que doía tanto? Era como se seu

corpo tivesse sido rasgado em fatias e reconstruído. - Quero...

- Sim, khaleesi - e nesse mesmo instante Jhiqui partira,

saltando da tenda, aos gritos.

Dany precisava... de alguma coisa... de alguém... de quê? Sabia

que era importante. Era a única coisa do mundo que

importava. Rolou de lado, apoiando-se sobre um cotovelo,

lutando contra a manta que se emaranhava nas pernas. Mexer-

se era tão difícil. O mundo nadou, entontecido. Tenho de...

Encontraram-na caída sobre o tapete, rastejando na direção de

seus ovos de dragão. Sor Jo-rah Mormont ergueu-a nos braços

e a levou de volta às sedas de dormir, enquanto ela lutava

debilmente contra ele. Por cima do ombro do cavaleiro, viu as

três aias, Jhogo, com sua pequena sombra de bigode, e a cara

larga e achatada de Mirri Maz Duur.

- Tenho - tentou dizer-lhes -, preciso...

- ... dormir, princesa - disse Sor Jorah.

- Não - disse Dany. - Por favor. Por favor.

- Sim - cobriu-a com seda, apesar de ela estar ardendo. -

Durma e ficará de novo forte, khaleesi. Volte para nós - e

então Mirri Maz Duur estava ali, a maegi, inclinando uma taça

contra seus lábios. Sentiu o sabor de leite azedo e mais alguma

outra coisa, algo espesso e amargo. Líquido quente escorreu-

lhe pelo queixo. Sem saber bem como, engoliu. A tenda ficou

mais sombria, e o sono tomou-a de novo. Desta vez não

sonhou. Flutuou, serena e em paz, num mar negro que não

conhecia litorais.

Depois de algum tempo, uma noite, um dia, um ano, não

saberia dizer, voltou a acordar. A tenda estava escura, com as

paredes de seda batendo como asas quando as rajadas de vento

sopravam lá fora. Dessa vez Dany não tentou se levantar.

- Irri - chamou -, Jhiqui, Doreah - chegaram imediatamente. -

Tenho a garganta seca, tão seca - e trouxeram-lhe água. Estava

morna e sem sabor, mas Dany bebeu sofregamente e mandou

Jhiqui buscar mais. Irri umedeceu um pano suave e afagou -lhe

a testa. - Estive doente - disse

Dany.

A

jovem

dothraki

confirmou com um gesto. - Quanto tempo? - o pano era cal-

mante, mas Irri parecia tão triste que a assustou.

- Muito - sussurrou a jovem. Quando Jhiqui regressou com

mais água, Mirri Maz Duur veio com ela, com olhos pesados de

sono.

- Beba - disse a maegi, voltando a levantar a cabeça de Dany

até a taça, mas desta vez era só vinho. Doce, doce vinho. Dany

bebeu e voltou a deitar-se, ouvindo o som suave da própria

respiração. Sentiu o peso nos membros quando o sono deslizou

para voltar a tomá-la.

- Traga-me... - murmurou, com a voz embaraçada e sonolenta. -

Traga... quero segurar...

- Sim? - perguntou a maegi - Que deseja, khaleesi!

- Traga-me... ovo... ovo de dragão... por favor... - as pestanas

transformaram-se em chumbo, e ficou cansada demais para

segurá-las.

Quando acordou pela terceira vez, um dardo de luz d ourada do

sol jorrava pelo buraco de fumaça da tenda, e tinha os braços

enrolados em volta de um ovo de dragão, Era o mais claro,

com escamas da cor de creme de manteiga, com veios em

volutas de ouro e bronze, e Dany conseguia sentir seu calor.

Sob as sedas de dormir, uma fina película de transpiração

cobria-lhe a pele nua. Orvalho de dragão, pensou. Passou

levemente os dedos sobre a superfície da casca, seguindo as

volutas de ouro, e na profundidade da rocha sentiu que algo se

torcia e esticava em resposta. Não se assustou. Todo seu medo

tinha desaparecido, ardera.

Dany tocou a testa. Sob a película de suor a pele estava fria ao

toque, a febre desaparecera. Esforçou-se para sentar. Houve um

momento de tontura, e uma dor profunda entre as coxas. Mas

sentia-se forte. As aias se precipitaram ao som de sua voz.

- Água - disse-lhes -, um jarro de água, a mais fria que

consigam encontrar. E fruta, acho eu. Tâmaras.

- Às suas ordens, khaleesi.

- Quero ver Sor Jorah - disse, pondo-se em pé. Jhiqui trouxe-

lhe um roupão de sedareia e envolveu-lhe os ombros com ele. -

E também quero um banho quente, e Mirri Maz Duur, e... -

as recordações chegaram-lhe todas ao mesmo tempo, e ela

vacilou. - Khal Drogo - forçou-se a dizer, observando o rosto

delas com terror. – Ele...?

- O khal vive - respondeu Irri em voz baixa... Mas Dany viu-

lhe uma escuridão nos olhos quando disse as palavras, e assim

que acabou de falar, a jovem fugiu para ir buscar água.

Dany virou-se para Doreah.

- Conte-me.

- Eu... eu vou buscar Sor Jorah - disse ajovem lysena, inclinando

a cabeça e fugindo da tenda. Jhiqui teria fugido também, mas

Dany a segurou pelo pulso e a manteve presa.

- O que está acontecendo? Tenho de saber. Drogo... e meu filho

- por que não teria se lembrado da criança até agora? - O meu

filho... Rhaego... onde está ele? Quero vê-lo.

A aia baixou os olhos.

- O menino... não sobreviveu, khaleesi - a voz dela era um

murmúrio assustado.

Dany soltou-lhe o pulso. Meu filho está morto, pensou,

enquanto Jhiqui saía da tenda. De algum modo já o sabia.

Soubera desde que acordara pela primeira vez com as lágrimas

de Jhiqui. Não, soubera-o antes de acordar. O sonho regressou-

lhe, súbito e vívido, e lembrou-se do homem alto com a pele

acobreada e a longa cabeleira de prata dourada, rebentando em

chamas.

Sabia que devia chorar, mas tinha os olhos secos como cinza.

Chorara no sonho, e as lágrimas tinham se transformado em

vapor no rosto. Todo o pesar foi queimado em mim, disse a

si mesma. Sentia-se triste, e no entanto... conseguia sentir

Rhaego afastando-se dela, como se nunca tivesse existido.

Sor Jorah e Mirri Maz Duur entraram alguns momentos mais

tarde, e deram com Dany em pé junto aos outros ovos de

dragão, os que ainda estavam dentro do cofre. Pareciam -lhe tão

quentes como aquele com o qual dormira, o que era muito

estranho.

- Sor Jorah, venha cá - disse. Tomou-lhe a mão e pousou-a no

ovo negro com as volutas escarlates. - O que sente?

- Casca, dura como pedra - o cavaleiro estava cauteloso. -

Escamas.

- Calor?

- Não. Pedra fria - afastou a mão. - Princesa, está bem? Devia

estar de pé, assim tão fraca?

- Fraca? Sinto-me forte, Jorah - para agradá-lo, reclinou-se

numa pilha de almofadas. -Conte-me como meu filho morreu.

- Não chegou a viver, minha princesa. As mulheres dizem... -

vacilou, e Dany reparou como a carne pendia solta no seu

corpo, e como coxeava quando se movia.


- Conte-me. Conte-me o que as mulheres dizem.

Ele virou o rosto. Tinha os olhos assombrados.

- Elas dizem que a criança era...

Dany esperou, mas Sor Jorah não foi capaz de dizer. Seu rosto

escureceu de vergonha. Ele próprio parecia quase um cadáver.

- Monstruosa - terminou Mirri Maz Duur por ele. O cavaleiro

era um homem poderoso, mas Dany compreendeu naquele

momento que a maegi era mais forte, e mais cruel, e infinita-

mente mais perigosa. - Deformada, Fui eu quem a puxou.

Tinha escamas como um lagarto, era cega, trazia um vestígio

de cauda e pequenas asas de couro como as de um morcego.

Quando o toquei, a carne desprendeu-se do osso, e por dentro

estava cheia de vermes e fedia a decomposi ção. Estava morta

havia anos.

Escuridão, pensou Dany. A terrível escuridão que vinha por

trás para devorá-la. Se olhasse para trás, estaria perdida.

- Meu filho estava vivo e forte quando Sor Jorah me trouxe

para esta tenda - disse. - Sentia-o dar pontapés e lutar para

nascer.

- Pode ser que sim, pode ser que não - respondeu Mirri Maz

Duur -, mas a criatura que saiu de seu ventre era como eu

disse. Havia morte naquela tenda, khaleesi.

- Só sombras - desvendou Sor Jorah, mas Dany conseguia sentir

a dúvida em sua voz. - Eu vi, maegi. Vi-a, sozinha, dançando

com as sombras.

- A sepultura produz longas sombras, Senhor de Ferro - disse

Mirri. - Longas e escuras, e no fim nenhuma luz consegue

resistir a elas.

Dany sabia que Sor Jorah matara seu filho. Fizera aquilo por

amor e lealdade, mas a transportara para um lugar onde

nenhum homem vivo devia ir e entregara seu filho às trevas.

Ele também o sabia; o rosto cinzento, os olhos vazios, o coxear.

- As sombras também o tocaram, Sor Jorah - disse-lhe Dany. O

cavaleiro não deu resposta. Ela se virou para a esposa de deus.

- Preveniu-me de que só a morte podia pagar pela vida. Pen sei

que se referisse ao cavalo.

- Não - disse Mirri Maz Duur. - Era nisso que queria acreditar.

Conhecia o preço. Conhecia? Conhecia? Se olhar para trás,

estou perdida.

- O preço foi pago - disse Dany. - O cavalo, meu filho, Quaro e

Qotho, Haggo e Cohollo. O preço foi pago, pago e pago -

ergueu-se das almofadas. - Onde está Khal Drogo? Mostre-me,

esposa de deus, maegi, maga de sangue, o que quer que seja.

Mostre-me Khal Drogo. Mostre-me o que comprei com a vida

de meu filho.

- Às suas ordens, khaleesi - disse a velha. - Venha, a levarei

até ele.

Dany estava mais fraca do que julgara. Sor Jorah pôs o braço

ao seu redor e a ajudou a ficar em pé.

- Há tempo suficiente para isto mais tarde, princesa - disse ele

em voz baixa.

- Quero vê-lo agora, Sor Jorah.

Depois da escuridão da tenda, o mundo lá fora era tão

brilhante que cegava. O sol queimava como ouro derretido, e a

terra estava seca e vazia. As aias esperavam com frutas, vinho

e água, e Jhogo aproximou-se para ajudar Sor Jorah a suportar-

lhe o peso. Aggo e Rakharo seguiam atrás. O clarão do sol na

areia fez com que lhe fosse difícil ver mais, até Dany erguer a

mão para dar sombra aos olhos. Viu as cinzas de uma fogu eira,

alguns cavalos que andavam às voltas, apaticamente, em busca

de um pouco de capim, tendas e esteiras espalhadas. Uma

pequena multidão de crianças reunira-se para vê-la, e atrás

delas vislumbrou mulheres que tratavam de seus deveres e

velhos mirrados que olhavam o céu azul uniforme com olhos

cansados, enxotando fracamente moscas de sangue. Uma

contagem mostraria umas cem pessoas, não mais. Onde as

outras quarenta mil tinham montado acampamento, só o vento

e a poeira restavam agora.

- O khalasar de Drogo desapareceu - disse ela.

- Um khal que não pode montar não é um khal - disse Jhogo.

- Os dothrakis seguem apenas os fortes - disse Sor Jorah. -

Lamento, minha princesa. Não havia maneira de detê -los. Ko

Pono foi o primeiro a partir, chamando-se a si mesmo Khal

Pono, e muitos o seguiram. Jhaqo não esperou muito tempo

para fazer o mesmo. O resto foi se esgueirando noite após

noite, em bandos grandes e pequenos. Há uma dúzia de novos

khalasares no mar dothraki, no lugar que em tempos passados

foi apenas de Drogo.

- Os velhos ficaram - disse Aggo. - Os assustados, os fracos e

os doentes. E nós, que juramos. Nós ficamos.

- Levaram as manadas de Khal Drogo, khaleesi - disse Rakharo.

- Não éramos suficientes para impedir. É direito dos fortes

roubar dos fracos. Levaram também muitos escravos, do khal e

seus, mas deixaram alguns.

- Eroeh? - perguntou Dany, lembrando-se da criança assustada

que salvara fora da cidade dos Homens-Ovelhas.

- Mago, que é agora companheiro de sangue de Khal Jhaqo,

capturou-a para si - disse Jhogo. - Montou-a por cima e por

baixo e a deu ao seu khal, e Jhaqo a deu aos seus outros

companheiros de sangue. Eram seis. Quando ficaram satisfeitos,

cortaram-lhe a garganta.

- Foi o destino dela, khaleesi - disse Aggo.

Se olhar para trás, estou perdida.

- Foi um destino cruel - disse Dany -, mas não tão cruel como

será o de Mago, Prometo, pelos velhos deuses e pelos novos,

pelo deus-ovelha e pelo deus-cavalo e por todos os deuses que

vivem. Juro pela Mãe das Montanhas e o Ventre do Mundo.

Antes de acabar com eles, Mago e Ko Jhaqo suplicarão pela

clemência que mostraram a Eroeh,

Os dothrakis trocaram olhares inseguros.

- Khaleesi - explicou a aia Irri, como se estivesse falando com

uma criança. - Jhaqo é agora um khal, à frente de vinte mil

cavaleiros.

Dany ergueu a cabeça,

- E eu sou Daenerys, nascida na Tempestade, Daenerys da Casa

Targaryen, do sangue de Aegon, o Conquistador, e Maegor, o

Cruel, e da velha Valíria antes deles. Sou a filha do dragão, e,

juro-lhes, esses homens morrerão aos gritos. Agora leve -me a

Khal Drogo.

Jazia sobre a terra vermelha e nua, de olhos fixos no sol.

Uma dúzia de moscas de sangue pousara em seu corpo,

embora ele não parecesse senti-las, Dany enxotou-as e

ajoelhou-se a seu lado. Os olhos dele estavam muito abertos,

mas não viam, e ela compreendeu de imediato que Drogo

estava cego. Quando sussurrou seu nome, não pareceu ouvir. A

ferida no peito estava curada como jamais poderia estar, com a

cicatriz que a cobria cinzenta e vermelha e hedionda.

- Por que ele está aqui sozinho ao sol? - perguntou-lhes.

- Parece gostar do calor, princesa - disse Sor Jorah. - Seus

olhos seguem o sol, embora não o veja. Consegue fazer algo

semelhante ao andar. Vai para onde o levam, mas não mais

longe. Come se lhe puserem comida na boca e bebe se lhe

escorrerem água para os lábios.

Dany beijou o seu sol-e-estrelas suavemente na testa, e ergueu-

se para encarar Mirri Maz Duur.

- Seus feitiços são caros, maegi.

- Ele vive - disse Mirri Maz Duur. - Você pediu vida, e pagou

por vida.

- Isto não é vida para quem era como Drogo. Sua vida eram

gargalhadas e carne assando numa fogueira, e um cavalo entre

as pernas. Sua vida eram um arakh na mão e as campainhas

tinindo no cabelo enquanto cavalgava ao encontro de um

inimigo. Sua vida eram os seus companheiros de sangue, e eu,

e o filho que lhe devia ter dado.

Mirri Maz Duur não deu resposta.

- Quando voltará a ser como era? - quis saber Dany.

- Quando o sol nascer no ocidente e se puser no oriente - disse

Mirri Maz Duur. - Quando os mares secarem e as montanhas

forem sopradas pelo vento como folhas. Quando seu ventre

voltar a ganhar vida para dar à luz um filho vivo. Então, e não

antes, ele regressará.

Dany fez um gesto para Sor Jorah e os outros.

- Deixem-nos. Quero falar a sós com esta maegi - Mormont e

os dothrakis retiraram-se. - Você sabia - disse Dany depois de

eles irem embora. Sentia dor, por dentro e por fora, mas a

fúria dava-lhe forças. - Você sabia o que eu estava comprando

e conhecia o preço, e mesmo assim me deixou pagá-lo.

- Foi errado da parte deles terem queimado meu templo - disse

placidamente a pesada mulher de nariz achatado. - Isso

enfureceu o Grande Pastor.

- Isto não foi trabalho de nenhum deus -Dany disse friamente.

Se olhar para trás, estou perdida.

- Enganou-me. Assassinou meu filho dentro de mim.

- O garanhão que monta o mundo já não queimará cidades. O

seu khalasar não transformará nações em poeira.

- Eu intervim por você - disse Dany, angustiada. - Salvei-a.

- Salvou-me? - cuspiu a lhazarena. - Três guerreiros já tinham

me possuído, não como um homem possui uma mulher, mas

por trás, como um cão possui uma cadela. O quarto estava

dentro de mim quando você passou por ali. Como foi que me

salvou? Vi a casa do meu deus arder, o lugar onde curei

homens bons sem conta. Também me queimaram a casa, e na

rua vi pilhas de cabeças. Vi a cabeça de um padeiro que me

fazia o pão. Vi a cabeça de um rapaz que salvei da febre do

olho morto havia só três luas. Ouvi crianças chorando quando

os guerreiros as arrancaram de casa à chicotada. Diga-me lá

outra vez o que salvou.

- A sua vida.

Mirri Maz Duur soltou uma gargalhada cruel.

- Olha para o seu khal e vê de que serve a vida quando todo o

resto desapareceu.

Dany chamou os homens do seu khas e lhes pediu para

prenderem Mirri Maz Duur e atarem seus pés e mãos, mas a

maegi sorriu-lhe quando a levaram, como se partilhassem um

segredo. Uma palavra, e Dany podia ter feito com que a

decapitassem... mas o que teria então? Uma cabeça? Se a vida

não tinha valor, que valor tinha a morte?

Levaram Khal Drogo até sua tenda, e Dany ordenou-lhes que

enchessem uma banheira, e desta vez não houve sangue na

água. Foi ela mesma que lhe deu o banho, lavando a terra e o

pó dos braços e do peito, limpando o-rosto com um pano

suave, ensopando os longos cabelos negros e escovando os nós

e embaraços até ficarem de novo brilhantes como os recordava.

Quando acabou, o sol já tinha se posto havia muito, e Dany

estava exausta. Parou para beber e comer, mas só conseguiu

mordiscar um figo e engolir um gole de água. O sono teria

sido uma libertação, mas já dormira o suficiente... na verdade,

até demais. Devia aquela noite a Drogo, por todas as noites

que tinham existido e ainda poderiam existir.

A memória da primeira cavalgada juntos a acompanhou quando

o levou para a escuridão do exterior, pois os dothrakis

acreditavam que todas as coisas de importância na vida de um

homem tinham de ser realizadas a céu aberto. Disse a si

mesma que havia poderes mais fortes que o ódio, e feitiços

mais velhos e verdadeiros que qualquer um que a maegi

tivesse aprendido em Asshai. A noite estava negra e sem lua,

mas por cima de sua cabeça mil estrelas ardiam, brilhantes.

Tomou aquilo como um presságio.

Nenhum suave cobertor verde lhes deu ali as boas-vindas, só o

chão duro e poeirento, nu e semeado de pedras. Não havia

árvores agitando-se ao vento, e não havia um córrego que lhe

acalmasse os medos com a música suave das águas. Dany disse

a si mesma que as estrelas bastariam.

- Lembre-se, Drogo - murmurou. - Lembre-se da nossa primeira

cavalgada juntos, no dia em que casamos. Lembre -se da noite

em que fizemos Rhaego, com o khalasar à nossa volta e os

seus olhos no meu rosto. Lembre-se de como a água estava fria

e limpa no Ventre do Mundo. Lembre-se, meu sol-e-estrelas.

Lembre-se e volte para mim.

O parto a tinha deixado demasiado dolorida e r asgada para

introduzi-lo dentro de si como teria desejado, mas Doreah

ensinara-lhe outras maneiras. Dany usou as mãos, a boca, os

seios. Arranhou-o com as unhas, cobriu-o de beijos e segredou-

lhe, rezou e contou-lhe histórias, e quando terminou, o tinha

banhado com as suas lágrimas. Mas Drogo nem sentiu, nem

falou, nem se ergueu.

E quando a alvorada sem vida surgiu num horizonte vazio,

Dany compreendeu que ele estava realmente perdido.

- Quando o sol nascer a oeste e se puser a leste - disse

tristemente. - Quando os mares secarem e as montanhas forem

sopradas pelo vento como folhas. Quando meu ventre voltar a

ganhar vida e der à luz um filho vivo. Então regressará, meu

sol-e-estrelas, e não antes.

Nunca, gritou a escuridão, nunca, nunca, nunca.

Dentro da tenda Dany encontrou uma almofada de seda suave

estofada de penas. Apertou-a contra os seios enquanto voltava

para junto de Drogo, para junto do seu sol-e-estrelas. Se olhar

para trás, estou perdida, Até andar lhe doía, e queria dormir,

dormir e não sonhar.

Ajoelhou, beijou Drogo nos lábios e apertou a almofada contra

o rosto.


Tyrion


- Eles têm o meu filho - disse Tywin Lannister.

- Têm, senhor - a voz do mensageiro estava abafada de

exaustão. No peito de seu manto rasgado o javali malhado de

Crakehall encontrava-se meio obscurecido por sangue seco.

Um dos seus filhos, pensou Tyrion. Bebeu um gole de vinho e

não disse uma palavra, pensando em Jaime. Quando ergueu o

braço, uma dor atacou-lhe o cotovelo, lembrando-o da sua

própria breve experiência de batalha. Amava o irmão, mas não

gostaria de estar com ele no Bosque dos Murmúrios nem por

todo o ouro de Rochedo Casterly.

Os capitães e vassalos do senhor seu pai tinham se tornado

muito silenciosos à medida que o emissário ia contando sua

história. O único som que se ouvia eram os estalidos e silvos

do tronco que ardia na lareira ao fundo da longa e arejada sala

comum.

Depois das dificuldades do longo e implacável avanço para o

sul, a ideia de passar nem que fosse uma só noite numa

estalagem tinha animado imensamente Tyrion... embora tivesse

preferido que não fosse outra vez aquela estalagem, com todas

as recordações que trazia. O pai estabe lecera um ritmo

desgastante, que cobrara seu preço. Homens feridos na batalha

o acompanhavam o melhor que podiam, ou eram abandonados

à própria sorte. Todas as manhãs deixavam mais al guns à beira

da estrada, homens que adormeciam para nunca mais acordar.

Todas as tardes eram mais alguns os que caíam no caminho. E

todas as noites mais alguns desertavam, esgueirando -se na

direção das sombras. Tyrion sentira-se quase tentado a ir com

eles.

Estava no primeiro andar, desfrutando o conforto de uma cama

de penas e do calor do corpo de Shae a seu lado, quando o

escudeiro o acordara para dizer que chegara um mensageiro

com novas terríveis de Correrrio. Queria dizer que tudo fora

em vão. A corrida para o sul, as marchas forçadas que

pareciam não ter fim, os cadáveres abandonados junto à

estrada... tudo para nada. Robb Stark chegara a Correrrio já há

vários dias,

- Como pôde isto acontecer? - gemeu Sor Harys Swyft - Como?

Mesmo depois do Bosque dos Murmúrios, Correrrio estava

cercado por um anel de ferro, rodeado por uma grande tropa...

Que loucura fez Sor Jaime decidir dividir seus homens em três

acampamentos separados? Certamente sabia como isso os

deixaria vulneráveis.

Melhor que você, seu covarde sem queixo, pensou Tyrion.

Jaime podia ter perdido Correrrio, mas enfurecia-o ouvir o

irmão ser caluniado por gente como aquele Swyft, um lambe-

botas sem vergonha, cuja maior realização fora casar a filha,

igualmente desprovida de queixo, com Sor Kevan, ligando-se

assim aos Lannister.

- Eu teria feito o mesmo - respondeu o tio, de forma bem mais

calma do que Tyrion teria respondido. - O senhor nunca viu

Correrrio, Sor Harys, caso contrário saberia que Jaime pouca

escolha teve. O castelo ergue-se na extremidade da ponta de

terra onde o Pedregoso deságua no

Ramo Vermelho do Tridente. Os rios formam dois lados de um

triângulo, e quando o perigo espreita, os Tully abrem as

comportas a montante para criar um fosso largo no terceiro

lado, transformando Correrrio numa ilha. As muralhas erguem -

se a pique da água, e de suas torres os defensores controlam as

margens opostas ao longo de muitas milhas. Para cortar todos

os caminhos, um sitiante tem de erguer um acampamento a

norte do Pedregoso, outro a sul do Ramo Vermelho, e um

terceiro entre os rios, a oeste do fosso. Não há outra maneira,

nenhuma.

- Sor Kevan fala a verdade, senhores - disse o emissário. -

Construímos paliçadas de hastes aguçadas em volta dos

acampamentos, mas não foi o suficiente, em especial sem aviso

e com os rios a nos separar uns dos outros. Caíram primeiro

sobre o acampamento norte. Ninguém esperava um ataque.

Marq

Piper

andara

atacando

nossos

comboios

de

abastecimentos, mas não tinha mais de cinquenta homens. Sor

Jaime saíra para lidar com eles na noite anterior... bem, com o

que pensávamos que fossem eles. Fora-nos dito que a tropa

Stark se encontrava a leste do Ramo Verde, marchando para o

sul...

- E seus batedores? - o rosto de Sor Gregor Clegane poderia

ter sido talhado em pedra. O fogo na lareira dava-lhe à pele

um sombrio tom alaranjado e profundas sombras sobre os

olhos. - Não viram nada? Não lhes avisaram de nada?

O mensageiro manchado de sangue balançou a cabeça.

- Nossos batedores iam desaparecendo. Pensávamos que fosse

obra de Marq Piper. Aqueles que voltavam nada tinham visto.

- Um homem que nada vê não tem necessidade de olhos -

declarou Montanha. - Arranqueis e os dê ao batedor seguinte.

Diga-lhe que espera que quatro olhos possam ver melhor que

dois... e, senão, o homem que vier depois terá seis.

Lorde Tywin Lannister virou a cabeça para estudar Sor Gregor.

Tyrion viu uma cintilação de ouro quando a luz brilhou nas

pupilas do pai, mas não saberia dizer se o olhar era de

aprovação ou repugnância. Era frequente que Lorde Tywin se

mantivesse em silêncio em conselho, preferindo escutar antes

de falar, um hábito que o próprio Tyrion tentava imitar. Mas

aquele silêncio não era comum, até para ele, e não tinha tocado

no vinho.

- Disse que chegaram de noite? - interveio Sor Kevan.

O homem confirmou fatigadamente com a cabeça.

- O Peixe Negro comandou a vanguarda, abatendo as nossas

sentinelas e afastando as paliçadas para o assalto principal.

Quando nossos homens perceberam o que estava acontecendo,

já jorravam cavaleiros das margens, e galopavam pelo

acampamento de espadas e archotes na mão. Eu estava

dormindo no acampamento ocidental, entre os rios. Quando

ouvimos a luta e vimos as tendas que eram incendiadas, Lorde

Brax nos levou para as jangadas e tentamos atravessar, mas a

corrente nos puxou para jusante e os Tully começaram a atirar

pedras com as catapultas que tinham nas muralhas. Vi uma

jangada ser esmagada até restarem apenas gravetos, e mais três

que foram viradas, e os homens atirados ao rio e afogados... e

aqueles que conseguiram atravessar encontraram os Stark à

sua espera nas margens do rio.

Sor Flement Brax usava um capote prateado e roxo e tinha a

expressão de um homem que não conseguia compreender o

que acabara de ouvir.

- O senhor meu pai...

- Lamento, senhor - disse o mensageiro. - Lorde Brax envergava

armadura e cota de malha quando sua jangada se virou. Era

muito nobre.

Era um tolo, pensou Tyrion, movendo a taça em círculos e

fitando as profundezas do vinho. Atravessar um rio de noite

numa jangada tosca, usando armadura, com um inimigo à

espera do outro lado... se isso era nobreza, escolheria sempre a

covardia. Perguntou a si mesmo se Lorde Brax se teria sentido

particularmente nobre quando o peso de seu aço o puxou para

baixo nas águas negras.

- O acampamento entre os rios também foi derrotado - dizia o

mensageiro. - Enquanto tentávamos fazer a travessia, mais

homens dos Stark vieram do oeste, duas colunas de cavalaria

armada. Vi o gigante acorrentado de Lorde Umber e a á guia

dos Mallister, mas era o rapaz quem os comandava, com um

lobo monstruoso correndo ao seu lado. Não estava lá para ver,

mas diz-se que o animal matou quatro homens e dilacerou uma

dúzia de cavalos. Nossos lanceiros formaram uma linha de

defesa e aguentaram a primeira investida deles, mas quando os

Tully os viram em combate, abriram os portões de Correrrio e

Tytos Blackwood comandou um ataque pela ponte levadiça e os

apanhou pela retaguarda.

- Que os deuses nos protejam - exclamou Lorde Lefford.

- Grande-Jon Umber incendiou as torres de cerco que

estávamos construindo. Lorde Blackwood encontrou Edmure

Tully a ferros entre os outros cativos, e fugiu com todos eles.

Nosso acampamento ao sul estava sob o comando de Sor Forley

Préster. Retirou em boa ordem quando viu que os outros

acampamentos estavam perdidos, com dois mil lanceiros e

outros tantos arqueiros, mas o mercenário tyroshi que

comandava seus cavaleiros livres abaixou seus estandartes e

passou para o lado do inimigo,

- Maldito seja o homem - o tio Kevan soava mais zangado que

surpreso. - Preveni Jaime para não confiar nele. Um homem

que luta por dinheiro é leal apenas à sua bolsa.

Lorde Tywin entrecruzou os dedos sob o queixo. Só os olhos se

moviam enquanto escutava. As suíças eriçadas e douradas

enquadravam um rosto tão imóvel que poderia ter sido uma

máscara, mas Tyrion via minúsculas gotículas de suor que

salpicavam a cabeça rapada do pai.

- Como pôde isto acontecer? - gemeu de novo Sor Harys

Swyft. - Sor Jaime aprisionado, o cerco quebrado... isto é uma

catástrofel

Sor Addam Marbrand disse:

- Estou certo de que todos nos sentimos gratos pela sua

reafirmação do óbvio, Sor Harys. A questão é: o que vamos

fazer agora?

- Que podemos fazer? A tropa de Jaime está toda massacrada,

capturada ou posta em fuga, e os Stark e os Tully instalaram-

se bem no meio da nossa linha de abastecimento. Estamos

separados do oeste! Eles podem marchar sobre Rochedo

Casterly se bem entenderem, e quem os impedirá? Senhores,

estamos derrotados. Temos de pedir a paz.

- Paz? - Tyrion fez rodar o vinho pensativamente, bebeu um

grande trago e atirou a taça vazia ao chão, estilhaçando -a em

mil pedaços. - Aí está a sua paz, Sor Harys. Meu querido sobri-

nho a quebrou de vez quando decidiu ornamentar a Fortaleza

Vermelha com a cabeça de Lorde Eddard. Será mais fácil beber

vinho desta taça do que convencer Robb Stark a fazer a paz

agora. Ele está ganhando... ou não reparou ainda?

- Duas batalhas não fazem uma guerra - insistiu Sor Addam. -

Estamos longe da derrota. Eu gostaria de ter oportunidade de

experimentar meu aço contra este rapaz Stark.

- Talvez consintam numa trégua e nos permitam trocar os

nossos prisioneiros pelos deles - sugeriu Lorde Lefford.

- A menos que troquem três por um, ainda sairemos perdendo

- disse Tyrion em voz ácida.

- E que temos nós para oferecer pelo meu irmão? A cabeça

podre de Lorde Eddard?

- Ouvi dizer que a Rainha Cersei tem as filhas da Mão - disse

esperançosamente Lefford.

- Se devolvêssemos as irmãs ao rapaz...

Sor Addam soltou uma fungadela de desdém.

- Teria de ser um completo idiota para trocar a vida de Jaime

Lannister por duas meninas.

- Então temos de pagar resgate por Sor Jaime, custe o que

custar - disse Lorde Lefford. Tyrion revirou os olhos.

- Se os Stark sentirem necessidade de ouro, podem derreter a

armadura de Jaime.

- Se pedirmos uma trégua, nos julgarão fracos - argumentou

Sor Addam. - Devíamos marchar imediatamente contra eles.

- Certamente que os nossos amigos na corte podem ser

persuadidos ajuntar tropas frescas às nossas - disse Sor Harys.

- E alguém poderia regressar a Rochedo Casterly a fim de

recrutar uma nova tropa.

Lorde Tywin Lannister pôs-se em pé.

- Eles têm o meu filho - voltou a dizer, numa voz que cortou

a conversa como uma espada corta sebo, - Deixem-me. Todos

vocês.

Como se fosse a própria alma da obediência, Tyrion levantou-

se para sair com os outros, mas o pai fixou os olhos nele.

- Você não, Tyrion. Fica. E você também, Kevan. O resto, fora.

Tyrion voltou a deixar-se cair no banco, surpreendido até ficar

sem fala. Sor Kevan atravessou a sala até as barricas de vinho.

- Tio - chamou Tyrion -, se fizesse o favor...

- Toma - o pai ofereceu-lhe a sua taça, com o vinho intocado.

Agora Tyrion estava realmente perplexo. Bebeu.

Lorde Tywin sentou-se.

- Tem razão quanto ao Stark. Vivo, podíamos ter usado Lorde

Eddard para forjar uma paz com Winterfell e Correrrio, uma

paz que nos daria o tempo de que precisamos para lidar com

os irmãos de Robert. Morto... - sua mão enrolou-se num

punho. - Loucura. Completa loucura.

- Joff é só um rapaz - fez notar Tyrion. - Na sua idade também

fiz alguns disparates. O pai lançou-lhe um olhar penetrante.

- Suponho que devamos nos sentir gratos por ele ainda não ter

casado com uma prostituta. Tyrion bebericou o vinho,

perguntando-se qual seria a reação de Lorde Tywin se lhe

atirasse a taça na cara.

- Nossa posição é pior do que julga - continuou o pai. - Parece

que temos um novo rei. Sor Kevan pareceu abatido.

- Um novo... quem? Que fizeram a Joffrey?

A mais tênue das centelhas de desagrado brincou nos finos

lábios de Lorde Tywin.

- Nada... por enquanto. Meu neto ainda ocupa o Trono de

Ferro, mas o eunuco ouviu sussurros vindos do sul. Renly

Baratheon casou-se com Margaery Tyrell em Jardim de Cima

nesta quinzena que passou, e agora reivindicou a coroa. O pai

e os irmãos da noiva dobraram os joelhos e lhe prestaram

juramento.

- Essas são novas graves - quando Sor Kevan franzia a testa, as

rugas que nela havia aprofundavam-se como precipícios.

- Minha filha ordena que cavalguemos para Porto Real de

imediato, a fim de defender a Fortaleza Vermelha contra o Rei

Renly e o Cavaleiro das Flores - sua boca apertou-se. -

Ordena, notem bem. Em nome do rei e do conselho.

- Como está o Rei Joffrey com essas notícias? - perguntou

Tyrion, com certo humor negro.

- Cersei ainda não achou por bem contar-lhe - disse Lorde

Tywin. - Teme que ele possa insistir em marchar ele próprio

contra Renly.

- Com que exército? - perguntou Tyrion. - Espero que não

tenha em mente lhe dar este.

- Ele fala em comandar a Patrulha da Cidade - disse Lorde

Tywin.

- Se ele levar a Patrulha, deixará a cidade indefesa - disse Sor

Kevan. - E com Lorde Stannis em Pedra do Dragão...

- Sim - Lorde Tywin baixou o olhar para o filho. - Eu pensava

que fosse você aquele que nasceu para bobo, Tyrion, mas

parece que me enganei.

- Ora, pai - disse Tyrion -, isso quase que soa como um elogio

- inclinou-se para a frente, concentrado. - E Stannis? É ele o

mais velho, não Renly. Que sente ele a propósito da pretensão

do irmão?

O pai franziu as sobrancelhas.

- Desde o princípio sinto que Stannis é maior ameaça do que

todos os outros juntos. E, no entanto, não faz nada. Ah, Varys

ouve os seus sussurros. Que Stannis está construindo navios,

que Stannis está contratando mercenários, que Stannis mandou

vir um umbromante6 de Asshai. Que quer dizer isso? Será

alguma parte verdade? - encolheu os ombros, irritado. - Kevan,

traga o mapa.

Sor Kevan fez o que lhe foi pedido. Lorde Tywin desenrolou o

couro, alisando-o.

- Jaime deixou-nos em mau estado. Roose Bolton e o resto de

sua tropa estão a norte de nós. Nossos inimigos possuem as

Gêmeas e Fosso Cailin. Robb Stark está instalado a oeste,

portanto não podemos retirar para Lannisporto e para o

Rochedo, a menos que decidamos dar batalha, Jaime encontra -

se prisioneiro, e o seu exército, para todos os fins práticos,

deixou de existir. Tho-ros de Myr e Beric Dondarrion

continuam a incomodar nossos destacamentos logísticos. Para

leste temos os Arryn, Stannis Baratheon ocupa Pedra do

Dragão e, no sul, Jardim de Cima e Ponta Tempestade

convocam os vassalos.

Tyrion deu um sorriso torto.

- Anime-se, pai. Pelo menos Rhaegar Targaryen continua morto.

- Tive esperança de que tivesse mais que gracejos a oferecer,

Tyrion - disse Lorde Tywin Lannister.

Sor Kevan franziu as sobrancelhas sobre o mapa, com a testa

abrindo sulcos.

- Robb Stark já terá agora consigo Edmure Tully e os senhores

do Tridente. Seu poderio combinado pode exceder o nosso. E

com Roose Bolton atrás de nós... Tywin, se permanecermos

aqui, temo que possamos ser apanhados entre três exércitos.

- Não tenho nenhuma intenção de permanecer aqui. Temos de

tratar dos nossos assuntos com o jovem Lorde Stark antes que

Renly Baratheon tenha chance de se pôr em marcha desde

Jardim de Cima. Bolton não me preocupa. É um homem

cuidadoso, e o tornamos mais cuidadoso no Ramo Verde. Ele

será lento na perseguição. Portanto... de manhã partimos para

Harrenhal. Kevan, quero que os batedores de Sor Addam nos


6 Leitor de sombras.

ocultem os movimentos. Dê-lhe todos os homens que te peça, e

mande-os em grupos de quatro. Não quero desaparecimentos.

- Às suas ordens, senhor, mas... por que Harrenhal? É um lugar

sombrio e sem sorte. Há quem diga que é amaldiçoado.

- Que digam - disse Lorde Tywin. - Solte de Sor Gregor e

mande-o à nossa frente com os seus salteadores. Mande

também Vargo Hoat e os seus cavaleiros livres, e Sor Amory

Lorch.

Cada um deve ter trezentos homens a cavalo. Digadhes que

quero ver as terras do rio em chamas do Olho de Deus ao

Ramo Vermelho.

- Elas arderão, senhor - disse Sor Kevan, pondo-se de pé. -

Darei as ordens - fez uma reverência e dirigiu-se à porta.

Quando ficaram sós, Lorde Tywin olhou de relance para Tyrion.

- Seus selvagens podem apreciar um pouco de rapina. Diga-lhes

que podem acompanhar Vargo Hoat e saquear à vontade...

bens, gado, mulheres, podem ficar com o que quiserem e

queimar o resto.

- Dizer a Shagga e a Timett como pilhar é como dizer a um

galo como cantar - comentou Tyrion -, mas preferia mantê-los

comigo - os selvagens podiam ser rudes e indisciplinados, mas

eram dele, e confiava mais neles do que em quaisquer dos

homens do pai. Não iria abrir mão de seus homens.

- Então é melhor que aprenda a controlá-los. Não quero ver a

cidade saqueada.

- A cidade? - Tyrion sentiu-se perdido. - Que cidade seria essa?

- Porto Real. Vou mandá-lo para a corte.

Era a última coisa em que Tyrion Lannister teria pensado.

Estendeu a mão para o vinho e pensou no assunto por um

momento, enquanto bebia,

- E que devo eu fazer lá?

- Governar - seu pai disse concisamente.

Tyrion estremeceu de riso.

- Minha querida irmã pode ter uma coisa ou duas a dizer a

respeito disso.

- Deixe-a dizer o que quiser. O filho dela tem de ser controlado

antes que nos arruíne a todos. Culpo esses patetas do

conselho... o nosso amigo Petyr, o venerável Grande Meistre e

aquela maravilha castrada, Lorde Varys. Que tipo de conselhos

eles estão dando a Joffrey enquanto ele salta de loucura em

loucura? De quem foi a ideia de fazer senhor aquele Janos

Slynt? O pai do homem era um açougueiro, e dão a ele

Harrenhal. Harrenhal, que foi a sede de reis! Não que ele

algum dia ponha os pés no castelo enquanto eu tiver algo a

dizer sobre o assunto. Dizem--me que escolheu para símbolo

uma lança ensanguentada. Minha escolha teria sido um cutelo

ensanguentado - o pai não levantara a voz, mas Tyrion

conseguia ver a ira no ouro de seus olhos. - E demitir Selmy,

qual é o sentido disso? Sim, o homem está velho, mas o nome

de Barristan, o Ousado, ainda tem peso no reino. Emprestava

honra a qualquer homem que servisse. Poderá alguém dizer o

mesmo de Cão de Caça? Alimenta-se o cão com ossos por

baixo da mesa, não se dá a ele um lugar ao lado do trono -

brandiu o dedo na cara de Tyrion. - Se Cersei não conseguir

domar o rapaz, você tem de fazê-lo. E se esses conselheiros

estiverem fazendo jogo duplo...

Tyrion sabia.

- Hastes - suspirou. - Cabeças. Muralhas.

- Vejo que aprendeu algumas lições comigo.

- Mais do que pensa, pai - respondeu Tyrion em voz baixa.

Terminou o vinho e pôs a taça de lado, pensativo, Uma parte

de si estava mais satisfeita do que queria admitir. A outra

recordava a batalha a montante do rio, e perguntava a si

mesmo se estava sendo de novo enviado para defender o flanco

esquerdo. - Por que eu? - perguntou, inclinando a cabeça para

o lado. - Por que não meu tio? Por que não Sor Addam, Sor

Flement ou Lorde Serrett? Por que não um homem... maior?

Lorde Tywin pôs-se abruptamente em pé.

- É meu filho.

Foi então que compreendeu. Desistiu dele, pensou. Seu

maldito canalha, julga que Jaime é um homem morto, e

portanto eu sou tudo o que lhe resta, Tyrion quis

esbofeteado, cuspir-lhe na cara, puxar o punhal, arrancar-lhe o

coração e ver se era feito de ouro velho e duro como diziam os

plebeus. Mas ficou ali sentado, em silêncio e imóvel.

Os cacos da taça partida rangeram sob os saltos do pai quando

Lorde Tywin atravessou a sala.

- Uma última coisa - disse ele da porta. - Não levará a

prostituta para a corte.

Tyrion ficou sozinho na sala comum durante um longo tempo

depois de o pai ir embora. Por fim, subiu os degraus até suas

acolhedoras águas-furtadas sob a torre sineira. O teto era

baixo, mas isso para um anão não chegava a ser um problema.

Da janela via o cadafalso que o pai erigira no pátio. O cadáver

da estalajadeira girava lentamente na ponta de uma corda

sempre que o vento noturno soprava. Sua carne tornara-se tão

escassa e esfarrapada como as esperanças dos Lannister.

Shae soltou um murmúrio sonolento e rolou para ele quando

se sentou na borda da cama de penas. Enfiou a mão sob a

manta e envolveu com ela um seio suave, e os olhos dela se

abriram.

- Senhor - disse, com um sorriso sonolento.

Quando sentiu o mamilo enrijecer, Tyrion beijou-a.

- Tenho em mente levá-la para Porto Real, querida - sussurrou.


Jon


A égua relinchou baixinho quando Jon apertou a cilha.

- Calma, querida senhora - disse ele em voz suave, acalmando-a

com um afago. O vento sussurrava no estábulo, uma fria

respiração de morte no seu rosto, mas Jon não lhe prestou

atenção. Atou o rolo à sela, sentindo os dedos cheios de

cicatrizes rígidos e desastrados. - Fantasma - chamou, em voz

baixa -, aqui - e o lobo ali estava, com olhos que eram como

brasas. -Jon, por favor. Não pode fazer isto.

Ele montou, com as rédeas na mão, e fez o cavalo girar para a

noite. Samwell Tarly estava à porta do estábulo, com a lua

cheia espreitando-lhe sobre o ombro. Gerava uma sombra de

gigante, imensa e negra.

- Sai da minha frente, Sam.

-Jon, não pode - disse Sam. - Não vou deixar que faça isso.

- Eu preferia não machucá-lo - disse-lhe Jon. - Afaste-se, Sam,

ou o atropelo.

- Não fará. Precisa me ouvir. Por favor...

Jon enterrou as esporas na carne da égua, que saltou para a

porta. Por um instante Sam manteve-se imóvel, com o rosto

tão redondo e pálido como a lua que tinha atrás, a boca trans -

formada num O de surpresa que se alargava. No último

momento, quando já estavam quase sobre ele, saltou para o

lado como Jon soubera que faria, tropeçou e caiu. A égua

saltou sobre ele, penetrando na noite.

Jon subiu o capuz de seu pesado manto e deixou as rédeas

soltas. Castelo Negro encontrava-se silencioso e imóvel quando

cavalgou para o exterior, com Fantasma correndo a seu lado.

Sabia que havia homens observando na muralha atrás de si,

mas os olhos deles estavam virados para o norte, não para o

sul. Ninguém o veria partir, ninguém além de Sam Tarly, que

lutava para se pôr de pé na poeira dos velhos estábulos.

Esperava que Sam não tivesse se machucado ao cair daquela

maneira. Era tão pesado e desajeitado que seria mesmo coisa

de Sam quebrar o pulso ou torcer o tornozelo ao sair do

caminho.

- Eu o preveni - disse Jon em voz alta. - De qualquer forma,

isto não tinha nada a ver com ele - flexionou a mão queimada

enquanto cavalgava, abrindo e fechando os dedos cheios de

cicatrizes. Ainda lhe doíam, mas era bom não ter as ataduras.

O luar prateava os montes enquanto ele seguia a fita retorcida

da estrada real. Precisava se afastar o máximo possível da

Muralha antes que percebessem que desaparecera. De manhã

deixaria a estrada e avançaria por campos, florestas e córregos

a fim de despistar os perseguidores, mas no momento a

velocidade era mais importante que a dissimulação. Afinal, não

era como se eles não adivinhassem para onde se dirigia.

O Velho Urso estava habituado a se levantar à primeira luz da

aurora, portanto, Jon tinha até essa hora para pôr tantas léguas

quantas pudesse entre si e a Muralha,., se Sam Tarly não o

traísse. O gordo rapaz era obediente e fácil de assustar, mas

amava Jon como a um irmão. Se fosse interrogado, não havia

dúvida de que Sam lhes diria a verdade, mas Jon não o

imaginava desafiando os guardas à porta da Torre do Rei para

acordar Mormont,

Quando Jon não aparecesse na cozinha para ir buscar o café da

manhã do Velho Urso, procurariam na sua cela e encontrariam

Garralonga sobre a cama. Tinha sido duro abandoná-la, mas

Jon não estava suficientemente despido de honra para levá -la

consigo. Nem mesmo Jorah Mormont o fizera quando fugira em

desgraça. Sem dúvida que Lorde Mormont encontraria alguém

mais merecedor daquela lâmina. Jon sentia-se mal ao pensar no

velho. Sabia que sua deserção seria como sal na ferida, ainda

em carne viva, da desgraça do filho. Parecia uma pobre

maneira de lhe pagar pela confiança, mas nada havia a fazer.

Fizesse o que fizesse, Jon sentia-se como se estivesse traindo

alguém.

Nem mesmo agora sabia se estava fazendo a coisa honrosa. Os

sulistas tinham a vida mais facilitada. Tinham seus septões com

quem falar, alguém para lhes desvendar a vontade dos deuses e

os ajudar a distinguir o bem do mal. Mas os Stark adoravam os

velhos deuses, os deuses sem nome, e se as árvores -coração

ouviam, não falavam.

Quando as últimas luzes de Castelo Negro desapareceram atrá s

dele, Jon refreou a égua, pondo-a a trote. Tinha uma longa

viagem à sua frente e só aquele cavalo para transportá -lo.

Havia fortificações e aldeias de agricultores ao longo do

caminho ao sul, onde conseguiria trocar a égua por uma

montaria descansada quando precisasse de uma, mas não se

estivesse ferida ou arrebentada.

Precisaria encontrar novas roupas em breve; o mais provável

era que tivesse de roubar. Estava vestido de negro dos pés à

cabeça; botas altas de montar em couro, calças e túnica de

ráfia, um colete de couro e um pesado manto de lã. A espada e

o punhal estavam embainhados em pele negra de toupeira, e a

camisa e a touca que tinha guardados no alforje eram de cota

de malha negra. Qualquer uma daquelas peças significaria sua

morte se fosse apanhado. Um estranho vestido de negro era

visto com uma suspeita fria em todas as aldeias e fortalezas a

norte do Gargalo, e haveria em breve homens à sua procura.

Assim que os corvos de Meistre Aemon levantassem voo, Jon

sabia que não encontraria porto seguro. Nem mesmo em

Winterfell. Bran poderia querer deixado entrar, mas Meistre

Luwin tinha mais bom-senso. Trancaria os portões e o

mandaria embora, tal como devia fazer. Era melhor nem passar

por lá.

Mas via claramente o castelo com o olho da mente, como se

tivesse partido no dia anterior; as grandes muralhas de granito,

o Grande Salão com os seus cheiros de fumaça, de cães e de

carne assando, o aposento privado do pai, o quarto na torre

onde dormira. Parte de si nada mais desejava do que ouvir de

novo a gargalhada de Bran, jantar uma das tortas de carne com

bacon de Gage, ouvir a Velha Ama contar as suas histórias

sobre os filhos da floresta e Florian, o Tolo.

Mas não abandonara a Muralha para isso; partira porque era,

no fim das contas, filho de seu pai e irmão de Robb. O

presente de uma espada, mesmo de uma espada tão boa como

Garralonga, não fazia dele um Mormont. Tampouco era Aemon

Targaryen. Três vezes o velho escolhera, e três vezes escolhera

a honra, mas isso era ele. Mesmo agora Jon não conseguia

decidir se o meistre ficara por ser fraco e covarde ou por ser

forte e leal. Mas compreendia o que o velho quisera dizer

quando falara da dor da escolha; compreendia isso bem demais.

Tyrion Lannister afirmara que a maior parte dos homens mais

depressa negava uma verdade dura do que a encarava, mas Jon

estava farto de negações. Ele era quem era: Jon Snow, bastardo

e perjuro, sem mãe, sem amigos e perdido. Durante o resto de

sua vida, não importa o quanto durasse, estaria condenado a

viver como um estranho, o homem silencioso nas sombras que

não se atreve a pronunciar o seu verdadeiro nome. Aonde quer

que fosse nos Sete Reinos precisaria viver uma mentira, para

que todas as mãos não se levantassem contra ele. Mas não

importava, desde que vivesse tempo suficiente para ocupar o

seu lugar ao lado do irmão e ajudar a vingar o pai.

Lembrava-se de Robb como o vira pela última vez, em pé, no

pátio, com neve derretendo nos cabelos ruivos. Jon teria de

encontrá-lo em segredo, disfarçado. Tentava imaginar a

expressão na cara de Robb quando ele se revelasse, O irmão

sacudiria a cabeça e sorriria, e diria... diria...

Não conseguia ver o sorriso. Por mais que tentasse, não

conseguia vê-lo. Deu por si pensando no desertor que o pai

decapitara no dia em que encontraram os lobos gigantes.

- Você disse as palavras - dissera-lhe Lorde Eddard. - Você fez

um juramento perante os seus irmãos, perante os velhos

deuses e os novos - Desmond e Gordo Tom tinham arrastado o

homem até ao toco. Os olhos de Bran estavam dilatados como

pires, e Jon tivera de lhe lembrar que mantivesse o cavalo

controlado. Lembrava-se da expressão no rosto do pai quando

Theon Greyjoy lhe dera Gelo, dos salpicos de sangue na neve,

do modo como Theon pontapeara a cabeça quando ela rolara

até junto de seus pés.

Perguntou-se o que teria feito Lorde Eddard se o desertor fosse

o irmão Benjen em vez daquele estranho esfarrapado. Teria

sido diferente? Tinha de ser, com certeza, com certeza... e

Robb lhe daria as boas-vindas, sem dúvida. Tinha de fazê-lo,

caso contrário...

Não valia a pena pensar nisso. A dor latejou, bem no interior

dos dedos, quando se agarrou com força às rédeas. Jon bateu

com os calcanhares no cavalo e pôs-se a galope, correndo pela

estrada real como que para fugir das suas dúvidas. Não tinha

medo da morte, mas não queria morrer assim, amarrado e

decapitado como um simples salteador. Se tinha de perecer,

que fosse de espada na mão, lutando contra os assassinos do

pai. Não era um verdadeiro Stark, nunca o fora... mas podia

morrer como se fosse. Que dissessem que Eddard Stark fora

pai de quatro filhos, não de três.

Fantasma manteve o ritmo durante quase meia légua, com a

língua vermelha pendendo da boca. O homem e o cavalo

abaixaram a cabeça quando ele pediu mais velocidade à égua.

O lobo desacelerou, parou, observando, com os olhos

brilhando, vermelhos, o luar. Desapareceu atrás dele, mas Jon

sabia que o seguiria, no seu próprio ritmo.

Luzes dispersas cintilaram através das árvores em frente, de

ambos os lados da estrada: Vila Toupeira. Um cão ladrou

quando Jon passou por ele, e ouviu o zurro rouco de uma mula

vindo do estábulo, mas fora isso a vila estava silenciosa. Aqui e

ali, a cintilação das lareiras brilhava em janelas cobertas,

esgueirando-se por entre ripas de madeira, mas eram só uma

mão-cheia.

Vila Toupeira era maior do que parecia, pois três quartos dela

eram subterrâneos, estendendo--se em profundas caves quentes

ligadas por um labirinto de túneis. Até o bordel ficava lá em -

baixo, sem nada na superfície além de uma cabana de madeira

que não era maior que uma latrina, com uma lanterna

vermelha pendurada sobre a porta. Na Muralha podia-se ouvir

os homens chamando às prostitutas "tesouros enterrados", Jon

perguntou a si mesmo se algum de seus irmãos de negro

estaria lá embaixo naquela noite, escavando. Isso também era

quebra de votos, mas ninguém parecia se importar.

Só bem depois de passar pela vila é que Jon voltou a reduzir o

passo. Nessa altura ele e a montaria já estavam úmidos de

suor. Desmontou, tremendo, com a mão queimada doendo. En-

controu um monte de neve que derretia sob as árvores, clara

ao luar, pingando água que ia formar pequenos charcos pouco

profundos. Jon acocorou-se e juntou as mãos em taça,

aprisionando a água corrente entre os dedos. A neve derretida

estava fria como gelo. Bebeu, espalhou um pouco no rosto, até

sentir um formigamento nas bochechas. Os dedos latejavam

mais do que em qualquer dos últimos dias, e também sentia a

cabeça palpitar. Estou fazendo o que é certo, disse a si

mesmo, então, por que me sinto tão mal?

O cavalo estava espumando, e Jon pegou nas rédeas e o levou a

pé durante algum tempo. A estrada quase não era

suficientemente larga para que dois cavaleiros passassem lado a

lado, com o piso entrecortado por pequenos córregos e cheio

de pedras. Aquela corrida fora realmente estúpida, um convite

para um pescoço quebrado. Jon se questionou o que lhe teria

dado. Estaria assim com tanta pressa de morrer? No meio das

árvores, o grito distante de um animal assustado qualquer o

fez erguer os olhos, A égua relinchou nervosamente. Teria o

lobo encontrado alguma presa? Envolveu a boca nas mãos.

- Fantasma1. - gritou. - Fantasma, a mim - a única resposta foi

um rumor de asas atrás de si quando uma coruja levantou vôo.

Franzindo as sobrancelhas, Jon prosseguiu caminho. Levou a

égua durante meia hora, até que ela secou. Fantasma não

apareceu. Jon queria montar e voltar a cavalgar, mas estava

preocupado com o lobo desaparecido.

- Fantasma - voltou a chamar. - Onde está? A mim! Fantasma!

- nada naquela floresta podia incomodar um lobo gigante, até

um lobo gigante meio crescido, a menos que... não, Fantasma

era inteligente demais para atacar um urso, e se houvesse uma

alcateia de lobos nas imediações, Jon certamente os teria

ouvido uivando.

Devia comer, decidiu. Os alimentos lhe acalmariam o estômago

e dariam a Fantasma a chance de alcançá-lo. Ainda não havia

perigo; Castelo Negro ainda dormia. No alforje encontrou um

biscoito, um pedaço de queijo e uma pequena maçã escura e

murcha. Trouxera também carne de vaca salgada e uma fat ia

de bacon que surrupiara das cozinhas, mas queria poupar a

carne para o dia seguinte. Depois de ficar sem ela, teria de

caçar, e isso por hora o atrasaria.

Jon sentou-se sob as árvores e comeu biscoito e queijo

enquanto a égua pastava ao longo da Estrada do Rei. Deixou a

maçã para o fim. Tinha se tornado um pouco mole, mas a

polpa ainda estava ácida e sumarenta. Já chegara ao caroço

quando ouviu os sons: cavalos, vindos do norte. Rapidamente,

Jon saltou e correu para a égua. Poderia fugir? Não, estavam

perto demais, certamente os ouviriam, e se viessem de Castelo

Negro...

Levou a égua para longe da estrada, para trás de uma espessa

mata de árvores-sentinela cinza-- esverdeadas.

- Agora silêncio - disse, numa voz abafada, agachando-se a fim

de espreitar por entre os ramos. Se os deuses fossem bondosos,

os cavaleiros passariam sem detectá-lo. O mais provável era

que fossem apenas pessoas simples de Vila Toupeira,

lavradores a caminho dos campos, se bem que, o que estariam

fazendo na estrada no meio da noite...

Ficou ouvindo o som dos cascos que aumentava a um ritmo

constante, enquanto os cavalos se aproximavam a trote rápido

pela Estrada do Rei. Julgando pelo ruído, eram pelo menos

cinco ou seis cavaleiros. As vozes esgueiraram-se por entre as

árvores.

- ...certeza de que ele veio por aqui?

- Não podemos ter certeza..

- Tanto quanto sabem, pode bem ter se dirigido para o leste.

Ou abandonado a estrada para cortar através da floresta. Era o

que eu faria.

- Na escuridão? Estúpido. Se não caísse do cavalo e quebrasse o

pescoço, se perderia e acabaria de volta à Muralha quando o

sol nascesse.

- Não acabava nada - Grenn soava irritado. - Cavalgava para o

sul. Pode-se guiar pelas estrelas.

- E se o céu estivesse nublado? - perguntou Pyp.

- Então não ia.

Outra voz interrompeu.

- Sabem onde eu estaria, se fosse comigo? Em Vila Toupeira,

para escavar tesouros enterrados - o riso estridente do Sapo

trovejou através das árvores. A égua de jon resfolegou.

- Calem-se todos - disse Halder. - Acho que ouvi qualquer

coisa.

- Onde? Não ouvi nada - os cavalos pararam.

- Você não consegue ouvir o próprio peido.

- Consigo, sim - insistiu Grenn.

- Calem-se!

Caíram todos no silêncio, à escuta. Jon deu por si prendendo a

respiração. Sam, pensou. Não fora até o Velho Urso, mas

também não fora para a cama, acordara os outros rapazes.

Malditos sejam todos. Chegada a alvorada, se não estivessem

nas camas, seriam também chamados desertores. Que

pensavam eles que estavam fazendo?

O silêncio abafado pareceu esticar-se e voltar a esticar-se. De

onde Jon espreitava, conseguia ver as pernas dos cavalos deles

através dos galhos. Por fim, Pyp falou.

- Que foi que ouviu?

- Não sei - admitiu Halder. - Um som, pensei que pudesse ser

um cavalo, mas...

- Ali não há nada.

Pelo canto do olho Jon vislumbrou uma forma branca que se

deslocava por entre as árvores. Ouviu-se o restolhar de folhas,

e Fantasma saiu das sombras aos saltos, tão subitamente que a

égua de Jon se assustou e soltou um relincho.

- Ali! - gritou Halder.

- Também ouvi!

- Traidor - disse Jon ao lobo gigante enquanto saltava para a

sela. Virou a cabeça da égua para escapulir por entre as

árvores, mas eles estavam em cima antes que avançasse três

metros.

-Jon! - gritou Pyp às suas costas.

- Para - disse Grenn, - Não pode escapar de todos.

Jon fez rodopiar a montaria para enfrentá-los, puxando a

espada.

- Voltem. Não quero machucar ninguém, mas o farei se tiver de

ser.

- Um contra sete? - Halder fez um sinal. Os rapazes

espalharam-se, rodeando-o.

- Que querem de mim? - Jon quis saber.

- Queremos levá-lo de volta para o seu lugar - disse Pyp.

- Meu lugar é com meu irmão.

- Seus irmãos agora somos nós - disse Grenn.

- Eles cortam sua cabeça se o apanharem, sabe? - Sapo soltou

uma gargalhada nervosa. -Isto é tão estúpido, é como alguma

coisa que um auroque poderia fazer.

- Não é nada - disse Grenn. - Não sou perjuro nenhum. Disse

as palavras e foi a sério.

- Eu também - disse-lhes Jon. - Não compreendem? Eles

assassinaram meu pai. É a guerra, meu irmão Robb está

lutando nas terras do rio...

- Nós sabemos - disse Pyp solenemente. - Sam nos contou tudo.

- Temos pena pelo seu pai - disse Grenn -, mas não importa.

Depois de dizer as palavras, não pode partir, aconteça o que

acontecer.

- Tenho de partir - disse Jon fervorosamente.

- Você disse as palavras - lembroudhe Pyp. - Agora começa a

minha vigia, foi isto que disse. Não terminará até a minha

morte.

- Viverei e morrerei no meu posto - acrescentou Grenn,

concordando com a cabeça.

- Não é preciso me dizer as palavras, conheço-as tão bem como

vocês - agora estava zangado. Por que não podiam deixá-lo ir

em paz? Só tornavam as coisas mais difíceis.

- Soa a espada na escuridão - entoou Halder.

- O vigilante nas muralhas - piou Sapo.

Jon insultou-os a todos. Eles não lhe deram atenção. Pyp fez

avançar o cavalo, recitando:

- Sou o fogo que arde contra o frio, a luz que traz consigo

a alvorada, a trombeta que acorda os que dormem, o

escudo que defende os reinos dos homens.

- Não se aproxime - preveniu-o Jon, brandindo a espada. - Falo

sério, Pyp - eles nem sequer traziam armaduras, podia cortá-

los aos pedacinhos se tivesse de ser.

Matthar rodeara-o por trás. E juntou-se ao coro.

- Dou a minha vida e a minha honra à Patrulha da Noite.

Jon bateu com os calcanhares na égua, fazendo-a descrever um

círculo. Os rapazes estavam agora em toda a sua volta,

aproximando-se por todos os lados.

- Por esta noite... - Halder aproximou-se a trote, vindo da

esquerda.

- ...e por todas as noites que estão por vir - terminou Pyp.

Estendeu a mão para as rédeas de Jon. - Portanto, sua escolha

é esta. Ou me mata ou torna comigo.

Jon ergueu a espada... e a abaixou, impotente.

- Maldito seja - disse. - Malditos sejam todos,

- Temos de atar suas mãos ou promete que voltará

pacificamente? - perguntou Halder.

- Não fugirei, se é isso que quer saber - Fantasma saiu das

árvores e Jon enviou-lhe um olhar zangado. - Pouca ajuda você

me deu - disse. Os profundos olhos vermelhos olharam-no com

inteligência.

- É melhor que nos apressemos - disse Pyp. - Se não estivermos

de volta antes da primeira luz da aurora, o Velho Urso terá

todas as nossas cabeças.

Da viagem de regresso Jon Snow pouco recordaria. Pareceu

mais curta que a viagem para o sul, talvez por ter a cabeça em

outro lugar. Pyp marcou o ritmo, galopando, ritmando o passo,

trotando e depois rebentando de novo a galope. Vila Toupeira

chegou e partiu, já com a lanterna por cima do bordel há

muito extinta. Fizeram um bom tempo. A alvorada ainda estava

a uma hora de distância quando Jon vislumbrou as torres de

Castelo Negro à frente do grupo, escuras contra a pálida

imensidão da Muralha. Dessa vez não as sentia como uma casa.

Podiam levá-lo de volta, disse Jon a si mesmo, mas não podiam

obrigá-lo a ficar. A guerra não terminaria de manhã, nem no

dia seguinte, e os amigos não podiam vigiá-lo dia e noite.

Esperaria a sua hora, faria com que pensassem que se sentia

satisfeito por permanecer ali... e então, quando relaxassem,

partiria de novo. Da próxima vez, evitaria a Estrada do Rei.

Seguiria a Muralha para o leste, talvez até mesmo ao mar, uma

trajetória mais longa, mas mais segura. Ou até talvez para o

oeste, para as montanhas, e depois para o sul pelos passos de

altitude. Era esse o caminho dos selvagens, duro e perigoso,

mas pelo menos ninguém o seguiria. Não se aproximaria cem

léguas de Winterfell ou da Estrada do Rei.

Samwell Tarly os esperava nos estábulos velhos, abandonado

no chão e de encontro a um fardo de feno, ansioso demais para

dormir. Ergueu-se e sacudiu-se.

- Eu... estou feliz por terem te encontrado, Jon.

- Mas eu não - disse Jon, desmontando.

Pyp saltou do cavalo e olhou para o céu que clareava,

descontente.

- Dá-nos uma ajuda para tratar dos cavalos, Sam - disse o

pequeno rapaz. - Temos um longo dia pela frente e nenhum

descanso para enfrentá-lo, graças a Lorde Snow.

Quando o dia rompeu, Jon dirigiu-se às cozinhas como fazia

todas as madrugadas. Hobb Três-Dedos não lhe disse nada

quando lhe deu a refeição matinal do Velho Urso, Naquele dia

eram três ovos vermelhos cozidos, com pão frito, uma fatia de

presunto e uma tigela de ameixas secas. Jon levou a comida

para a Torre do Rei. Foi encontrar Mormont no banco da

janela, escrevendo. O corvo caminhava de um lado para o

outro por cima de seus ombros, resmungando "Grão, grão,

grão", A ave soltou um guincho quando Jon entrou.

- Põe a comida na mesa - disse o Velho Urso, olhando-o de

relance. - Quero um pouco de cerveja.

Jon abriu uma janela que tinha os tapumes corridos, tirou o

jarro de cerveja do parapeito exterior e encheu um corno.

Hobb dera-lhe um limão, ainda frio da Muralha. Jon o esmagou

no punho. O sumo escorreu-lhe por entre os dedos. Mormont

bebia limão na cerveja todos os dias, e dizia que era por isso

que ainda tinha os dentes,

- Sem dúvida que amava seu pai - disse Mormont quando Jon

lhe trouxe o corno. - As coisas que amamos destroem-nos

sempre, rapaz. Lembra de quando lhe disse isso?

- Lembro - disse Jon em tom carrancudo. Não queria falar da

morte do pai, nem mesmo com Mormont.

- Vê se nunca se esquece. As verdades duras são aquelas que se

deve segurar bem. Vá buscar meu prato. E outra vez presunto?

Que seja. Está com um ar cansado. Seu passeio ao luar foi as-

sim tão cansativo?

Jon sentiu a garganta seca.

- Você sabe?

"Saber", disse o corvo dos ombros de Mormont.

"Saber". O Velho Urso bufou.

-Julga que me escolheram para Senhor Comandante da

Patrulha da Noite por ser estúpido que nem um toco, Snow ?

Aemon disse-me que partiria. Eu lhe disse que regressaria.

Conheço os meus homens... e também os meus rapazes, A

honra o levou à Estrada do Rei... e a honra o trouxe de volta.

- Foram os meus amigos que me trouxeram de volta - disse

Jon.

- Acaso disse que tinha sido a sua honra? - Mormont

inspecionou o prato.

- Mataram meu pai. Esperavam que eu não fizesse nada?

- Em boa verdade, esperávamos que fizesse precisamente o que

fez - Mormont experimentou uma ameixa e cuspiu o caroço. -

Ordenei que fosse vigiado. Você foi visto saindo. Se seus

irmãos não o tivessem ido buscar, teria sido apanhado no

caminho, e não por amigos. A menos que tenha um cavalo com

asas como um corvo. Tem?

- Não - Jon sentia-se um idiota.

- Ê pena, um cavalo assim nos seria útil.

Jon empertigou-se. Disse a si mesmo que morreria bem; isso,

pelo menos, podia fazer.

- Conheço a pena por deserção, senhor. Não tenho medo de

morrer.

"Morre!", gritou o corvo.

- Nem de viver, espero eu - disse Mormont, cortando o

presunto com o punhal e dando um bocado à ave. - Não

desertou... ainda.

Está aqui. Se decapitássemos todos os rapazes que vão a

Vila Toupeira durante a noite, só fantasmas patrulhariam a

Muralha. Mas talvez pretenda fugir de novo amanhã, ou daqui

a uma quinzena. E isso? É essa a sua esperança, rapaz?

Jon manteve-se em silêncio.

- Era o que eu pensava - Mormont tirou a casca de um ovo

cozido. - Seu pai está morto, rapaz. Julga que pode trazê -lo de

volta?

- Não - respondeu, carrancudo.

- Ótimo - disse Mormont. - Vimos os mortos regressar, você e

eu, e não é algo que eu queira ver de novo - comeu o ovo em

duas dentadas e arrancou um pedaço de casca do meio dos

dentes. - Seu irmão está no terreno com todo o poder do Norte

com ele. Qualquer um dos senhores seus vassalos comanda

mais espadas do que poderá encontrar em toda a Patrulha da

Noite. Por que imaginará você que precisam da sua ajuda? É

um guerreiro assim tão poderoso, ou tem um gramequim no

bolso para te dar magia à espada?

Jon não tinha resposta para lhe dar. O corvo bicava um ovo,

quebrando a casca. Enfiando o bico através do buraco, puxou

bocados de clara e de gema. O Velho Urso suspirou.

- Não é o único atingido por esta guerra. Quer eu goste quer

não, minha irmã marcha na tropa do seu irmão, ela e aquelas

suas filhas, vestidas com cotas de malha de homem. Maege é

uma velha snark grisalha, teimosa, com mau gênio e

voluntariosa. A bem da verdade, quase não consigo estar perto

da maldita mulher, mas isso não quer dizer que meu amor por

ela seja menor que o amor que sente pelas suas meias -irmãs -

franzindo as sobrancelhas, Mormont pegou o último ovo e o

esmagou no punho até que a casca estalou. - Ou talvez queira.

Mas, seja como for, me desgostaria da mesma forma se ela

fosse morta, e você não me vê fugir. Eu disse as palavras, tal

como você. Meu lugar é aqui... Onde é o seu, rapaz?

Não tenho lugar nenhum, Jon quis dizer. Sou um bastardo,

não tenho direitos, nem nome, nem mãe, e agora nem

sequer um pai. Mas as palavras não vinham.

- Não sei.

- Eu sei - disse o Senhor Comandante Mormont. - Os ventos

frios se levantam, Snow. Para lá da Muralha, as sombras

alongam-se. Cotter Pyke escreve sobre vastas manadas de alces

correndo ao sul e a leste na direção do mar, e também de

mamutes. Diz que um de seus homens descobriu enormes

pegadas deformadas a menos de três léguas de Atalaialeste.

Patrulheiros da Torre Sombria encontraram aldeias inteiras

abandonadas, e de noite Sor Denys diz que veem fogueiras nas

montanhas, enormes clarões que ardem do pôr do sol até a

alvorada. Quorin Halfhand trouxe um cativo das profundezas

da Garganta, e o homem jura que Mance Rayder está reunindo

toda a sua gente num novo forte secreto que acreditam ter

encontrado, para que fim só os deuses sabem. Julga que seu tio

Benjen foi o único patrulheiro que perdemos neste último ano?

"Ben Jen", crocitou o corvo, inclinando a cabeça., com

pedacinhos de ovo caindo do bico. "Ben Jen. Ben Jen"

- Não - disse Jon. Tinha havido outros. Muitos.

- Julga que a guerra do seu irmão é mais importante que a

nossa? - ladrou o velho.

Jon mordeu o lábio. O corvo bateu as asas na sua direção.

"Guerra, guerra, guerra, guerra", cantou.

- Não é - disse-lhe Mormont. - Os deuses nos salvem, rapaz,

você não é cego e não é estúpido. Quando os mortos andam à

caça na noite, julga que importa quem se senta no Trono de

Ferro?

- Não - Jon não pensara no assunto daquela maneira.

- O senhor seu pai o enviou até nós, Jon. Por que,

quem poderá dizê-lo? "Por quê? Por quê? Por

quê?", gritou o corvo.

- Tudo o que sei é que o sangue dos Primeiros Homens corre

nas veias dos Stark. Os Primeiros Homens construíram a

Muralha, e diz-se que se lembram de coisas que os outros

esqueceram. E aquele seu animal... foi ele que nos levou às

criaturas, que o preveniu do morto nas escadas. Sor Jaremy

chamaria sem dúvida a isso um acaso, mas ele está morto, e eu

não - Lorde Mormont espetou a ponta do punhal num pedaço

de presunto. - Acho que era o seu destino estar aqui, e quero

você e seu lobo conosco quando avançarmos para lá da

Muralha.

As palavras fizeram com que as costas de Jon se arrepias sem

de excitação.

- Para lá da Muralha?

- Você ouviu o que eu disse. Pretendo encontrar Ben Stark,

vivo ou morto - mastigou e engoliu. - Não vou ficar aqui

docilmente sentado à espera das neves e dos ventos gelados.

Temos de saber o que está acontecendo. Desta vez, a Patrulha

da Noite avançará em força, contra o Rei-para-lá-da-Muralha,

os Outros, ou seja o que for que se encontre por lá. Pretendo

ser eu próprio a comandá-los - apontou o punhal para o peito

de Jon. - Segundo o costume, o intendente do Senhor

Comandante é também o seu escudeiro... mas não pretendo

acordar todas as manhãs perguntando a mim mesmo se terá

fugido de novo. Por isso quero uma resposta de você, Lorde

Snow, e quero-a já. É um irmão da Patrulha da Noite... ou só

um rapazinho bastardo que quer brincar de guerra?

Jon Snow endireitou-se e inspirou profunda e longamente.

Perdoem-me, pai, Robb, Arya, Bran. .. perdoem-me não

posso ajudá-los. Ele tem razão. É este o meu lugar.

- Eu sou... seu, senhor. Seu homem.Juro. Não voltarei a fugir.

O Velho Urso resfolegou.

- Ótimo. Agora vá buscar sua espada.


Catelyn


Parecia terem se passado mil anos desde que Catelyn Stark

levara o filho bebê de Correrrio, atravessando o Pedregoso

num pequeno barco para dar início à viagem para o norte até

Winterfell. E era pelo Pedregoso que regressavam agora para

casa, embora o rapaz vestisse armadura e cota de malha em

vez de cueiros.

Robb estava sentado à proa com Vento Cinzento, descansando

a mão na cabeça do lobo gigante enquanto os remadores

puxavam os remos. Theon Greyjoy encontrava-se com ele. O tio

Brynden vinha depois no segundo barco, com Grande -Jon e

Lorde Karstark.

Catelyn ocupou um lugar perto da popa. Correram pelo

Pedregoso, deixando a forte corrente empurrá-los para lá da

Torre da Roda, O trovejar da grande roda de água que havia lá

dentro era um som de infância que trouxe um sorriso triste ao

rosto de Catelyn. Das muralhas de arenito do castelo, soldados

e criados gritavam o nome dela, e o de Robb, e "Winterfell!".

Em todos os baluartes esvoaçava o estandarte da Casa Tully:

uma truta saltante, de prata, em fundo ondulado de azul e

vermelho. Era uma visão estimulante; no entanto, não lhe

alegrava o coração. Gostaria de saber se o coração voltaria a

alegrar-se algum dia. Ah, Ned...

Abaixo da Torre da Roda descreveram uma curva larga e

cortaram as águas agitadas. Os homens puseram os ombros no

esforço. O arco largo do Portão da Água surgiu à vista, e

Catelyn ouviu o tinir de pesadas correntes quando a grande

porta levadiça de ferro foi içada. Ergueu-se lentamente

enquanto se aproximavam, e Catelyn viu que a parte de baixo

estava vermelha de ferrugem. Os trinta centímetros inferiores

pingaram lama sobre eles quando passaram por baixo, com as

pontas farpadas a meros centímetros de suas cabeças. Catelyn

ergueu o olhar para as barras e se perguntou até que

profundidade iria a ferrugem, como aguentaria a porta levadiça

um aríete e se deveria ser substituída. Nos dias que corriam,

era raro que pensamentos como aquele andassem longe de sua

mente.

Passaram sob o arco e as muralhas, saindo do sol para a

sombra e de novo para o sol. Havia barcos, grandes e

pequenos, amarrados em toda a volta, presos a anéis de ferro

incrustados na pedra. Os guardas do pai esperavam com o

irmão na escada da água. Sor Edmure Tully era um jovem

troncudo, de cabelos ruivos desgrenhados e barba cor de fogo.

Sua placa de peito tinha arranhões e deformações de batalha, e

o manto azul e vermelho estava manchado de sangue e de

fumaça. Tinha ao lado Lorde Tytos Blackwood, um homem

duro e espigado, de suíças cinzentas cortadas rente e nariz

adunco. Sua armadura, de um amarelo vivo, era incrustada de

azeviche em elaborados padrões que lembravam trepadeiras e

folhas, e um manto feito de penas de corvo envolvia os ombros

magros. Fora Lorde Tytos quem liderara a investida que

arrancara o irmão de Catelyn do acampamento Lannister.

- Traga-os - ordenou Sor Edmure.Três homens precipitaram-se

pelas escadas, entraram na água até os joelhos e puxaram o

barco para perto com longos ganchos. Quando Vento Cinzento

saltou para a terra, um deles deixou cair o cabo e cambaleou

para trás, tropeçando e sentando-se abruptamente no rio. Os

outros riram, e o homem ficou com expressão envergonhada.

Theon Greyjoy saltou por cima da borda do barco e ergueu

Catelyn pela cintura, pousando-a num degrau seco acima dele

enquanto a água lhe batia nas botas.

Edmure desceu os degraus para abraçá-la.

- Querida irmã - murmurou com voz rouca. Possuía profundos

olhos azuis e uma boca feita para sorrisos, mas agora não

sorria. Parecia desgastado e cansado, consumido pela batalha e

macilento de tensão. Tinha um curativo no pescoço, no local

onde fora ferido. Catelyn o abraçou com toda a força.

- Sua dor é minha, Cat - disse quando se separaram. - Quando

soubemos o que aconteceu a Lorde Eddard... os Lannister

pagarão, juro, terá a sua vingança.

- Isso me trará Ned de volta? - ela disse em tom cortante. A

ferida ainda era demasiado recente para palavras mais suaves.

Agora não conseguia pensar em Ned. Não queria. Não seria

bom. Tinha de ser forte. - Tudo isso pode esperar. Tenho de

ver meu pai.

- Ele a espera em seu aposento privado - disse Edmure.

- Lorde Hoster está acamado, senhora - explicou o intendente

do pai. Quando ficara aquele bom homem tão grisalho? - Deu-

me instruções para levá-la até ele imediatamente.

- Eu a levo - Edmure a acompanhou pela escada da água e pela

muralha inferior, onde Petyr Baelish e Brandon Stark tinham

no passado cruzado espadas pela sua estima. As maciças mura -

lhas de arenito da fortaleza erguiam-se ao redor. Ao

atravessarem uma porta, entre dois guardas com elmos

encimados por peixes, ela perguntou:

- Como está ele? - já temendo a resposta enquanto pronunciava

as palavras.

O olhar de Edmure era melancólico.

- Os meistres dizem que não ficará conosco muito tempo. A

dor é... constante, e atroz. Uma raiva cega a devastou, uma

raiva contra o mundo inteiro, contra o irmão Edmure e a irmã

Lysa, contra os Lannister, contra os meistres, contra Ned e

contra o pai e contra os deuses monstruosos que queriam lhe

roubar os dois.

- Devia ter me contado - disse. - Devia ter enviado uma

mensagem assim que soube.

- Ele nos proibiu. Não queria que os inimigos soubessem que

estava morrendo. Com o reino tão perturbado, temeu que, se

os Lannister soubessem como estava frágil...

- ... pudessem atacar? - terminou Catelyn, dura. Foi obra sua,

sua, sussurrou uma voz dentro dela. Se não tivesse decidido

capturar o anão...

Subiram em silêncio a escada em espiral.

A fortaleza tinha três lados, como o próprio Correrrio, e o

aposento privado de Lorde Hoster era também triangular, com

uma varanda de pedra que se projetava ao leste como se fosse

a proa de um grande navio de arenito. Dali, o senhor do

castelo podia olhar de cima para as suas muralhas e ameias, e

para lá delas, para onde as águas se encontravam. Tinha m

posto a cama do pai na varanda.

- Ele gosta de ficar ao sol, observando os rios - explicou

Edmure. - Pai, olhe quem eu trouxe. Cat veio vê-lo...

Hoster Tully sempre fora um homem grande, alto e largo na

juventude, corpulento quando envelheceu. Agora pare cia

encolhido, com o músculo e a carne arrancados dos ossos. Até

o rosto cedera. Da última vez que Catelyn o vira, os cabelos e

a barba eram castanhos, profusamente grisalhos. Agora tinham

se tornado brancos como a neve. Os olhos dele se abriram ao

som da voz de Edmure.

- Gatinha - murmurou numa voz fraca e fina, arruinada pela

dor. - Minha gatinha - um sorriso trêmulo tocoudhe o rosto

enquanto a mão procurava a dela às apalpadelas. - Fiquei à sua

espera...

- Vou deixados conversar - disse o irmão, beijando suavemente

o senhor seu pai na testa antes de se retirar.

Catelyn ajoelhou e tomou a mão do pai nas suas. Era uma mão

grande, mas estava agora sem carne, com os ossos movendo -se

soltos sob a pele, desaparecida toda a sua força.

- Devia ter me contado - disse ela. - Um mensageiro, um

corvo...

- Os mensageiros são capturados e interrogados - ele

respondeu. - Os corvos são abatidos... - foi tomado por um

espasmo de dor, e os dedos apertaram os dela com força. -

Tenho caranguejos na barriga... mordendo, sempre mo rdendo.

Dia e noite. Têm garras duras, os caranguejos. Meistre Vyman

faz-me vinho de sonhos, leite da papoula... durmo muito... Mas

quis estar acordado para vê-la, quando chegasse. Tive medo...

Quando os Lannister capturaram seu irmão, com os

acampamentos a toda a volta... tive medo de partir antes de

poder voltar a vê-la... tive medo...

- Estou aqui, pai - ela disse. - Com Robb, o meu filho. Ele

também virá vê-lo.

- O seu rapaz - ele sussurrou. - Se bem me lembro, ele tinha os

meus olhos...

- Tinha e ainda tem. E trouxemos Jaime Lannister a ferros.

Correrrio está de novo livre, pai. Lorde Holster sorriu.

- Eu vi. Ontem à noite, quando começou, eu lhes disse ... tinha

de ver. Levaram-me para a guarita... Observei das ameias. Ah,

foi uma beleza... os archotes chegaram numa onda, conseguia

ouvir os gritos que pairavam sobre o rio... doces gritos...

Quando aquela torre de cerco pegou fogo, deuses... teria

morrido então, e contente, se pudesse tê-la visto primeiro,

criança. Foi o seu rapaz que assim fez? Foi o seu R obb?

- Sim - disse Catelyn, imensamente orgulhosa. - Foi Robb... e

Brynden. Seu irmão também está aqui, senhor.

- Ele - a voz do pai era um tênue sussurro. - O Peixe Negro...

regressou? Do Vale?

- Sim.

- E Lysa? - um vento frio moveu-se através de seus finos

cabelos brancos. - Que os deuses sejam bondosos, a sua irmã...

ela também veio?

A voz dele estava tão cheia de esperança e desejo que foi duro

dizer-lhe a verdade.

- Não. Lamento...

- Ah - o rosto descaiu, e alguma luz desapareceu dos olhos. -

Tive esperança... teria gostado devê-la, antes de...

- Ela está com o filho, no Ninho da Águia.

Lorde Hoster fez um aceno cansado.

- Agora Lorde Robert, com o pobre Arryn falecido... eu me

lembro... Por que é que ela não veio com você?

- Está assustada, senhor. No Ninho da Águia sente-se segura -

beijou a testa enrugada do pai. - Robb deve estar à espera.

Quer vê-lo? E Brynden?

- O seu filho - segredou ele. - Sim. O filho de Cat. Lembro-me

que ele tinha os meus olhos. Quando nasceu.Traga-o... sim.

- E seu irmão?

O pai olhou de relance para os rios.

- Peixe Negro - disse. - Já se casou? Tomou alguma... mulher

como esposa?

Até no leito de morte, pensou Catelyn com tristeza.

- Ele não se casou. Sabe disso, pai. Nem nunca casará.

- Eu lhe disse... ordenei. Casa! Era o seu senhor. Ele sabe. Era

meu direito, arranjar-lhe um partido. Um bom partido. Uma

Redwyne. Casa antiga. Uma doce jovem, bonita... sardas...

Bethany, sim. Pobre criança. Ainda espera. Sim. Ainda...

- Bethany Redwyne casou há anos com Lorde Rowan -

lembroudhe Catelyn. - Tem três filhos dele.

- Mesmo assim - resmungou Lorde Hoster. - Mesmo assim.

Cuspiu na moça. Nos Redwyne. Cuspiu em mim. O seu senhor,

seu irmão... esse Peixe Negro. Tinha outras ofertas. A filha de

Lorde Bracken. Walder Frey... qualquer uma das três, disse

ele... Casou? Com alguém? Alguém?

- Ninguém - disse Catelyn. - Mas percorreu muitas léguas para

vê-lo, abrindo caminho, lutando até Correrio. Eu não estaria

aqui agora se Sor Brynden não nos tivesse ajudado.

- Ele sempre foi um guerreiro - sussurrou o pai. - Isso podia

fazer. Cavaleiro do Portão, sim - reclinou-se e fechou os olhos,

extremamente fatigado. - Mande-o vir. Mais tarde. Agora quero

dormir. Estou muito doente para discutir. Mande -o vir aqui

mais tarde, o Peixe Negro...

Catelyn deu-lhe um beijo suave, alisou-lhe o cabelo e deixou-o

ali, à sombra da sua fortaleza, com os seus rios a correr

embaixo. Adormecera antes ainda de ela sair do aposento.

Quando voltou à muralha inferior, Sor Brynden Tully

encontrava-se na escada da água com as botas molhadas,

conversando com o capitão dos guardas de Correrrio. Foi

imediatamente ao seu encontro.

- Ele está...?

- Morrendo - disse ela. - Como temíamos.

O rosto escarpado do tio mostrou claramente a dor que sentia.

Fez correr os dedos pelos espessos cabelos grisalhos.

- Vai me receber?

Ela confirmou com a cabeça.

- Diz que está muito doente para discutir.

Brynden Peixe Negro soltou um risinho.

- Sou um soldado velho demais para acreditar nisso. Hoster há

de ralhar comigo a respeito da jovem Redwyne até quando

acendermos a sua pira funerária, malditos sejam os seus ossos.

Catelyn sorriu, sabendo que aquilo era verdade.

- Não vejo Robb.

- Acho que foi com Greyjoy até o salão.

Theon Greyjoy estava sentado num banco no Salão Grande de

Correrrio, saboreando um corno de cerveja e ofere cendo à

guarnição do pai de Catelyn um relato do massacre no Bosque

dos Murmúrios.

- Alguns tentaram fugir, mas nós tínhamos fechado o vale pelos

dois lados, e saltamos da escuridão com espadas e lanças. Os

Lannister deviam ter pensado que eram os Outros quem os

atacava quando aquele lobo do Robb surgiu entre eles. Vi -o

arrancar o braço de um homem, e os cavalos deles

enlouqueceram com o seu cheiro. Não sei dizer quantos

homens foram atirados...

- Theon - interrompeu Catelyn -, onde posso encontrar meu

filho?

- Lorde Robb foi visitar o bosque sagrado, senhora.

Era o que Ned teria feito. Tenho de me lembrar que ele é

tanto filho do seu pai como meu. Ah, deuses, Ned...

Encontrou Robb sob a verde abóbada de folhas, rodeado de

altas sequoias e grandes e velhos olmos, ajoelhado perante a

árvore-coração, um esguio represeiro com uma cara que era

mais triste que feroz. Tinha a espada à sua frente, com a ponta

espetada na terra, e as mãos enluvadas a agarravam pelo

punho. Ao seu redor, ajoelhavam-se também: Grande-Jon

Umber, Rickard Karstark, Maege Mormont, Galbart Glover e

outros. Até Tytos Blackwood se encontrava entre eles, com o

grande manto de corvo aberto atrás de si. Estes são os que

fazem culto aos velhos deuses, percebeu Catelyn. Perguntou-se

que deuses ela cultuava nos dias que corriam, e não encontrou

resposta.

Não podia perturbá-los nas suas preces. Os deuses têm de

receber o que lhes é devido... mesmo deuses cruéis que

quiseram lhe roubar Ned e também o senhor seu pai. Por isso,

Catelyn esperou. O vento do rio soprava através dos ramos

mais altos, e olhou para a Torre da Roda, à sua direita, com

hera subindo pela parede. Enquanto esperava, foi inundada por

todas as memórias, O pai lhe ensinara a montar entre aquelas

árvores, e aquele era o olmo de onde Edmure caíra quando

quebrara o braço, e mais adiante, sob aquele caramanchão,

Lysa e ela tinham brincado aos beijos com Petyr.

Havia anos que não pensava naquilo. Como eram todos novos

então... ela não seria mais velha que Sansa, Lysa, mais nova que

Arya, e Petyr, ainda mais novo, mas ávido. As meninas tinham-

no trocado entre elas, por vezes sérias, por vezes aos risinhos.

A recordação era tão viva que quase conseguia sentir os dedos

suados dele nos seus ombros e saborear a menta de seu hálito.

Havia sempre menta crescendo no bosque sagrado, e Petyr

gostava de mascá-la. Fora um rapazinho tão ousado, sempre

metido em confusões. "Ele tentou enfiar a língua na minha

boca", confessara Catelyn à irmã mais tarde, quando ficaram a

sós. "Fez o mesmo comigo", segredara Lysa, tímida e sem

fôlego. "Eu gostei."

Robb pôs-se lentamente em pé e embainhou a espada, e

Catelyn perguntou-se se o filho teria alguma vez beijado uma

moça no bosque sagrado. Certamente que sim. Vira Jeyne Poole

lançar--lhe olhares úmidos, e algumas das criadas, mesmo as

que já tinham feito dezoito anos... Ele participara de batalhas e

matara homens com uma espada, com certeza já fora beijado.

Havia lágrimas nos olhos dela. Limpou-as, zangada.

- Mãe - chamou Robb quando a viu ali em pé. - Temos de

convocar um conselho. Há coisas para decidir.

- Seu avô gostaria de vê-lo - ela disse. - Robb, ele está muito

doente.

- Sor Edmure me disse. Lamento, mãe... por Lorde Hoster e

pela senhora. Mas primeiro temos de nos reunir. Recebemos

notícias do sul. Renly Baratheon reivindicou o trono do irmão.

- Renly? - ela disse, chocada. - Pensei que seria certamente

Lorde Stannis...

- Todos nós pensávamos o mesmo, senhora - disse Galbart

Glover,

O conselho de guerra reuniu-se no Grande Salão, em quatro

longas mesas de montar dispostas num quadrado quebrado.

Lorde Hoster estava muito fraco para participar e dormia em

sua varanda, sonhando com o sol nos rios de sua juventude.

Edmure ocupava o cadeirão dos Tully, com Brynden Peixe

Negro a seu lado e os vassalos do pai dispostos à esquerda e à

direita e ao longo das mesas laterais. A notícia da vitória em

Correrrio chegara aos senhores fugitivos do Tridente, atraindo -

os de volta. Karyl Vance entrou, agora um lorde, com o pai

morto sob o Dente Dourado. Sor Marq Piper estava com ele, e

trouxeram um Darry, filho de Sor Raymun, um rapaz que não

era mais velho que Bran. Lorde Jonos Bracken chegou das

ruínas da Barreira de Pedra, carrancudo e fanfarrão, e ocupou

um lugar tão afastado de Tytos Blackwood quanto as mesas

permitiam.

Os senhores do Norte sentaram-se do lado oposto, com Catelyn

e Robb em frente ao irmão dela. Eram menos. Grande -Jon

sentou-se à esquerda de Robb, e em seguida Theon Greyjoy;

Galbart Glover e a Senhora Mormont estavam à direita de

Catelyn. Lorde Rickard Karstark, desolado e de olhos vazios na

sua dor, ocupou seu lugar como um homem perdido num

pesadelo, com a longa barba por lavar e pentear. Deixara dois

filhos mortos no Bosque dos Murmúrios e não havia notícias

do terceiro, o mais velho, que liderara os lanceiros Ka rstark

contra Tywin Lannister no Ramo Verde.

A discussão prolongou-se noite dentro. Cada senhor tinha

direito a falar, e foi o que fizeram... e também gritaram, e

praguejaram, e argumentaram, e lisonjearam, e brincaram, e

regatearam, e bateram na mesa com canecas de cerveja, e

ameaçaram, e saíram, e regressaram, mal-humorados ou

sorrindo. Catelyn permaneceu sentada ouvindo tudo.

Roose Bolton tinha reunido os restos de sua maltratada tropa

no início do talude. Sor Heiman Tallhart e Walder Frey ainda

mantinham as Gêmeas, o exército de Lorde Tywin atravessara o

Tridente e dirigia-se para Harrenhal. E havia dois reis no reino.

Dois reis e nenhum acordo.

Muitos dos senhores vassalos queriam marchar sobre

Harrenhal de imediato, a fim de defrontar Lorde Tywin e

terminar com o poderio dos Lannister de uma vez por todas. O

jovem e temperamental Marq Piper sugeria, em vez disso, um

ataque a oeste contra Rochedo Casterly. Outros ainda

aconselhavam paciência. Correrrio estava atravessado nas

linhas de abastecimento dos Lannister, fez notar Jason

Mallister; que aguardassem o tempo certo, negando a Lorde

Tywin provisões e soldados frescos, enquanto iam fortalecendo

as defesas e descansando as tropas fatigadas. Lorde Blackwood

não queria ouvir falar daquilo. Deveriam term inar o trabalho

que tinham começado no Bosque dos Murmúrios. Marchar

contra Harrenhal e trazer também para baixo o exército de

Roose Bolton. Àquilo que Blackwood sugeria, Bracken opunha-

se, como sempre; Lorde Jonos Bracken pôs-se em pé a fim de

insistir que deviam declarar lealdade ao Rei Renly e ir para o

sul juntar as suas forças às dele.

- Renly não é o rei - disse Robb. Era a primeira vez que o filho

de Catelyn falava. Tal como o pai, sabia ouvir.

- Não pode pretender aderir a Joffrey, senhor - disse Galbart

Glover. - Ele ordenou a morte de seu pai.

- Isso faz dele um mal - respondeu Robb. - Não sei se faz de

Renly rei. Joffrey ainda é o filho legítimo mais velho de Robert,

por isso o trono é dele segundo todas as leis do reino. Se ele

morresse, e pretendo fazer com que morra, tem um irmão mais

novo. Tommen segue na linha de sucessão a Joffrey.

- Tommen não é menos Lannister que o irmão - exclamou Sor

Marq Piper.

- E como diz - disse Robb, perturbado. - Mas, mesmo assim, se

nenhum deles for rei, como pode Lorde Renly sê-lo? Ele é o

irmão mais novo de Robert. Bran não pode ser Senhor de

Winter-fell antes de mim, e Renly não pode ser rei antes de

Lorde Stannis.

A Senhora Mormont concordou.

- Lorde Stannis tem a melhor pretensão.

- Renly foi coroado - disse Marq Piper, - Jardim de Cima e

Ponta Tempestade apoiam sua pretensão, e os de Dorne não

ficarão atrás. Se Winterfell e Correrrio acrescentarem suas for -

ças às dele, teremos cinco das sete grandes casas atrás dele.

Seis, se os Arryn se moverem! Seis contra o Rochedo!

Senhores, dentro de um ano teremos todas as suas cabeças em

lanças, a rainha e o rei rapaz, Lorde Tywin, o Duende, o

Regicida, Sor Kevan, todosl Será isto que ganharemos se nos

juntarmos ao Rei Renly. Que tem Lorde Stannis contra isso

para que ponhamos tudo de lado?

- O direito - disse teimosamente Robb, Catelyn achou que o

filho soara estranhamente como o pai,

- Tem então tenção de nos declarar por Stannis? - perguntou

Edmure.

- Não sei - disse Robb. - Rezei para saber o que fazer, mas os

deuses não responderam. Os Lannister mataram meu pai por

traição, e sabemos que isso foi uma mentira, mas se Joífrey for

o rei de direito e lutarmos contra ele, nós seremos traidores.

- O senhor meu pai aconselharia cautela - disse o idoso Sor

Stevron, com o sorriso de fuinha de um Frey. - Esperem,

deixem que esses dois reis joguem o seu jogo de tronos.

Quando terminarem de lutar, podemos dobrar os joelhos ao

vencedor, ou podemos nos opor a ele, conforme seja a nossa

escolha. Com Renly armando-se, é provável que Lorde Tywin

acolha bem uma trégua... e a devolução em bom estado de seu

filho. Nobres senhores, permitam-me que vá conferenciar com

ele em Harrenhal e nos arranje bons termos e resgates...

Um rugido de afronta afogou a sua voz.

- Covarde! - trovejou Grande-Jon.

- Suplicar por uma trégua só fará com que pareçamos fracos -

declarou a Senhora Mor-mont.

- Que se danem os resgates, não devemos abdicar do Regicida

- gritou Rickard Karstark.

- Por que não fazer a paz? - perguntou Catelyn.

Os senhores olharam-na, mas foram os olhos de Robb que

sentiu, os dele, e apenas os dele.

- Senhora, eles assassinaram o senhor meu pai, seu esposo -

disse ele em tom sombrio. Desembainhou a espada e pousou-a

na mesa à sua frente, fazendo cintilar o aço brilhante contra a

madeira rústica. - Esta é a única paz que eu tenho a dar aos

Lannister.

Grande-Jon berrou a sua concordância, e outros homens

acrescentaram suas vozes, gritando, desembainhando espadas e

batendo na mesa com os punhos. Catelyn esperou até que se

calassem.

- Senhores - disse ela então -, Lorde Eddard era seu suserano,

mas eu partilhei sua cama e dei à luz os seus filhos. Julgam

que o amo menos que os senhores? - sua voz quase se

quebrou, mas Catelyn inspirou longamente e sossegou. - Robb,

se esta espada pudesse trazê-lo de volta, eu nunca deixaria que

a embainhasse até que Ned estivesse de novo ao meu lado...

Mas ele partiu, e uma centena de Bosques dos Murmúrios não

mudarão isso. Ned partiu, tal como Daryn Hornwood, tal como

os valentes filhos de Lorde Karstark, tal como muitos outros

bons homens, e nenhum deles regressará para nós.

Precisaremos ainda de mais mortes?

- É uma mulher, senhora - estrondeou Grande-Jon com sua voz

grave, - As mulheres não compreendem estas coisas.

- É o sexo gentil - disse Lorde Karstark, com rugas de dor

frescas no rosto. - Um homem tem necessidade de vingança.

- Dê-me Cersei Lannister, Lorde Karstark, e verá quão gentil

uma mulher pode ser - respondeu Catelyn. - Eu talvez não

compreenda as táticas e a estratégia... mas compreendo a futi-

lidade. Partimos para a guerra quando os exércitos Lannister

assolavam as terras do rio, e Ned era um prisioneiro,

falsamente acusado de traição. Lutamos para nos defender e

para conquistar a liberdade do meu senhor. Pois bem, uma

parte está feita, e a outra, para sempre além do n osso alcance.

Farei luto por Nec! até o fim dos meus dias, mas tenho de

pensar nos vivos. Quero as minhas filhas de volta, e a rainha

ainda as tem. Se tiver de trocar os nossos quatro Lannister

pelas duas Stark deles, chamarei a isso uma pechincha e darei

graças aos deuses. Quero-o a salvo, Robb, governando em

Winterfell do assento do seu pai. Quero que desfrute sua vida,

que beije uma moça, case com uma mulher e gere um filho.

Quero pôr fim a isto. Quero ir para casa, senhores, e chorar

pelo meu esposo.

O salão ficou muito silencioso quando Catelyn parou de falar.

- Paz - disse o tio Brynden. - A paz é doce, minha senhora...

mas em que termos? De nada serve forjar um arado a partir de

uma espada se for necessário forjar de novo a espada no dia

seguinte.

- Para que morreram Torrhen e o meu Eddard, se tiver de

regressar a Karhold sem nada a não ser os seus ossos? -

perguntou Rickard Karstark.

- Sim - disse Lorde Bracken, - Gregor Clegane arrasou meus

campos, massacrou meu povo e transformou Barreira de Pedra

em uma ruína fumegante. Deverei agora dobrar o joelho

àqueles que lhe deram as ordens? Para que lutamos, se

pusermos tudo como era antes?

Lorde Blackwood concordou, para surpresa e desânimo de

Catelyn.

- E se fizéssemos a paz com o Rei Joífrey, não seríamos entã o

traidores para o Rei Renly? E se o veado vencer o leão, em que

situação ficaremos?

- Seja o que for que decidirem, nunca chamarei um Lannister

de rei - declarou Marq Piper.

- Nem eu! - gritou o pequeno Derry. - Nunca o farei!

De novo começaram os gritos. Catelyn sentou-se, desesperada.

Estivera tão perto, pensou. Tinham quase escutado, quase,.,

mas o momento passara. Não haveria paz, não haveria pos -

sibilidade de sarar, não haveria segurança. Olhou para o filho,

observou-o enquanto escutava o debate dos senhores, de

sobrancelha franzida, perturbado, mas casado com a sua

guerra. Tinha prometido desposar uma filha de Walder Frey,

mas agora Catelyn via claramente a sua esposa: a espada que

pousara na mesa.

Catelyn estava pensando nas filhas, perguntando-se se alguma

vez voltaria a vê-las, quando Grande-Jon se pôs em pé de um

salto, - senhores! - gritou, fazendo a voz reverberar nas traves. -

Eis o que eu digo a esses dois reis! - cuspiu. - Renly Baratheon

não é nada para mim, e Stannis também não. Por que haveriam

de governar a mim e aos meus de uma cadeira florida qualquer

em Jardim de Cima ou Dorne? Que sabem eles da Muralha ou

da Mata de Lobos, ou das sepulturas dos Primeiros Homens?

Até os seus deuses estão errados. Que os Outros levem

também os Lannister, já tive deles mais do que a minha conta -

esticou a mão atrás do ombro e puxou a sua imensa espada

longa de duas mãos. - Por que não havemos de nos governar

de novo a nós próprios? Foi com os dragões que casamos, e os

dragões estão todos mortos! - apontou com a lâmina para

Robb. - Está ali o único rei perante o qual pretendo vergar o

meu joelho, senhores - trovejou. - O Rei do Norte!

Ajoelhou-se, e depositou a espada aos pés do filho de Catelyn.

- Aceitarei a paz nesses termos - disse Lorde Karstark. - Podem

ficar com o seu castelo vermelho e com a sua cadeira de ferro

também - tirou a espada da bainha. - O Rei do Norte! - disse,

ajoelhando-se ao lado de Grande-Jon.

Maege Mormont pôs-se em pé.

- O Rei do Inverno! - declarou, e pousou sua maça de espigões

ao lado das espadas. E os senhores do rio também estavam se

erguendo, Blackwood, Bracken e Mallister, casas que nunca ti -

nham sido governadas por Winterfell, mas Catelyn viu-os

erguer-se e puxar as lâminas, vergando os joelhos e gritando as

velhas palavras que não eram ouvidas no reino havia mais de

trezentos anos, desde que Aegon, o Dragão, chegara para fazer

dos Sete Reinos um só... mas agora eram ouvidas de novo,

ressoando no madeirame do salão de seu pai:


- O Rei do Norte!

- O Rei do Norte!

- O Rei do Norte!


Daenerys


A terra era vermelha, morta e ressequida, e era difícil

encontrar boa madeira. Os forrageiros regressaram com

algodoeiros nodosos, arbustos roxos, feixes de grama seca.

Abateram as duas árvores menos retorcidas, desbastaram os

galhos, arrancaram a casca e dividiram-nas, dispondo as toras

em quadrado. Encheram o centro com palha, arbustos, aparas

de casca de árvore e fardos de mato seco. Rakharo escolheu um

garanhão da pequena manada que lhes restava; não era tão

nobre como o vermelho de Khal Drogo, mas poucos cavalos o

eram. No centro do quadrado, Aggo deu-lhe uma maçã mirrada

e o abateu num instante com um golpe de machado dado entre

os olhos.

Atada de pés e mãos, Mirri Maz Duur observava da poeira com

inquietação em seus olhos negros.

- Não basta matar um cavalo - disse a Dany, - Em si mesmo, o

sangue não é nada. Não sabe as palavras para fazer um feitiço,

nem tem a sabedoria para encontrá-las. julga que a magia de

sangue é um jogo de crianças? Chamam-me maegi como se

fosse uma praga, mas tudo o que isso significa é sábio. E uma

criança, com a ignorância de uma criança. Seja o que for que

pretenda fazer, não dará resultado. Solte-me destes nós, e eu a

ajudo.

- Estou farta dos zurros da maegi - disse Dany a Jhogo. Ele

brindou-a com o chicote, e depois daquilo a esposa de deus

manteve-se em silêncio.

Por cima da carcaça do cavalo, construíram uma plataforma de

toras decepadas; troncos de árvores menores e braços das

maiores, e os mais grossos e direitos galhos que conseguiram

encontrar. Dispuseram a madeira de leste para oeste, do

nascente ao poente. Sobre a plataforma, empilharam os

tesouros de Khal Drogo: sua grande tenda, os coletes pintados,

as selas e arreios, o chicote que o pai lhe dera quando se fizera

um homem, o arakh que usara para matar Khal Ogo e o filho,

um grande arco de osso de dragão. Aggo queria juntar também

as armas que os companheiros de sangue de Drogo tinham

dado a Dany como presentes de noivado, mas ela o proibiu.

- Essas são minhas - disse-lhe - e quero ficar com elas - outra

camada de arbustos foi depositada em volta dos tesouros do

khal, e feixes de mato seco foram espalhados sobre eles.

Sor Jorah Mormont puxou-a de lado quando o sol se

aproximava do zénite.

- Princesa... - começou.

- Por que me chama assim? - desafiou Dany. - Meu irmão

Viserys era seu rei, não é verdade?

- Era, senhora.

- Viserys está morto. Eu sou sua herdeira, o último sangue da

Casa Targaryen. O que quer que fosse dele é agora meu.

- Minha... rainha - disse Sor Jorah, caindo sobre um joelho. -

Minha espada, que era dele, é sua, Daenerys. E o meu coração

também, que nunca pertenceu a vosso irmão. Sou apenas um

cavaleiro, e nada tenho a oferecerdhe exceto o exílio, mas

escute-me, suplico-lhe. Esqueça Khal Drogo. Não estará só.

Prometo-lhe que nenhum homem a levará para Vaes Dothrak a

menos que deseje ir. Não tem de se juntar às dosh khaken.

Venha para o leste comigo, Yi Ti, Qarth, o Mar de Jade, Asshai

da Sombra. Veremos todas as maravilhas que ainda há para

ver, e beberemos os vinhos que os deuses achem por bem nos

oferecer. Por favor, khakesi. Sei o que pretende fazer. Não o

faça. Não o faça.

- Tenho de fazê-lo - disse-lhe Dany. Tocou-lhe o rosto, com

carinho, com tristeza. - O senhor não compreende.

- Compreendo que o amava - disse Sor Jorah com uma voz

carregada de desespero. - Há tempos amei a senhora minha

esposa, mas não morri com ela. É a minha rainha, a minha

espada é sua, mas não me peça para me afastar enquanto sobe

para a pira de Drogo, Não a verei arder.

- É isso o que teme? - Dany deu-lhe um leve beijo na testa

larga. - Não sou assim tão infantil, querido sor.

- Não planeja morrer com ele? Jura, minha rainha?

-Juro - disse ela no Idioma Comum dos Sete Reinos que por

direito eram seus.

O terceiro nível da plataforma foi tecido com ramos que não

eram mais grossos que um dedo, e coberto com folhas e

raminhos secos. Dispuseram-nos de norte a sul, do gelo ao

fogo, e em cima colocaram uma grande pilha de suaves

almofadas e sedas de dormir. O sol começava a bai xar em

direção a oeste quando terminaram. Dany chamou os

dothrakis. Restavam menos de uma centena. Com quantos

começara Aegon?, perguntou ela a si mesma. Não importava.

- Serão o meu khalasar - disse-lhes. - Vejo os rostos de

escravos. Liberto-os. Tirem as coleiras. Partam se quiser,

ninguém lhes fará mal. Se ficarem, serão como irmãos e irmãs,

maridos e esposas - os olhos negros observavam, cautelosos,

sem expressão. - Vejo crianças, mulheres, os rostos enrugados

dos idosos. Ontem era uma criança. Hoje sou uma mulher.

Amanhã serei velha. A cada um de vocês digo: deem-me suas

mãos e os seus corações, e haverá sempre lugar para todos -

virou-se para os três jovens guerreiros do seu khas. - Jhogo, a

você ofereço o chicote de cabo de prata que foi meu presente

de noivado, nomeio-o ko e peço que jure que viverá e morrerá

como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado para me

manter a salvo do mal.

Jhogo aceitou o chicote de suas mãos, mas o rosto mostrava

confusão.

- Khakesi - disse hesitantemente -, isto não se faz. Seria uma

vergonha ser companheiro de sangue de uma mulher.

- Aggo - chamou Dany, sem prestar atenção às palavras de

Jhogo. Se olhar para trás, estou perdida. - A você ofereço o

arco de osso de dragão que foi meu presente de noivado -

tinha dupla curvatura, era de um negro brilhante e requintado,

mais alto que ela. - Nomeio-o ko, e peço que jure que viverá e

morrerá como sangue do meu sangue, cavalgando ao meu lado

para me manter a salvo do mal,

Aggo aceitou o arco com os olhos baixos.

- Não posso dizer essas palavras. Só um homem pode liderar

um khalasar ou nomear um ko.

- Rakharo - disse Dany, virando as costas à recusa -, você ficará

com o grande arakh que foi meu presente de noivado, com

ouro incrustado no cabo e na lâmina. E também o nomeio ko,

e peço que jure que viverá e morrerá como sangue do meu

sangue, cavalgando ao meu lado para me manter a salvo do

mal.

- É khaleesi - disse Rakharo, recebendo o arakh. - Cavalgarei

ao seu lado até Vaes Dothrak sob a Mãe das Montanhas, e a

manterei a salvo do mal até ocupar o seu lugar com as

feiticeiras do dosh khaleen. Não posso prometer mais.

Ela acenou, tão calmamente como se não tivesse ouvido sua

resposta, e virou-se para o último de seus campeões.

- Sor Jorah Mormont - disse -, primeiro e maior dos meus

cavaleiros, não tenho presente de noivado para lhe oferecer,

mas juro que um dia receberá das minhas mãos uma espada

longa como o mundo nunca viu outra igual, forjada por um

dragão e feita de aço valiriano. E quero pedir também seu

juramento.

- É seu, minha rainha - disse Sor Jorah, ajoelhando-se para

depositar a espada aos pés dela. -Juro servi-la, obedecê-la,

morrer pela senhora se for necessário.

- Aconteça o que acontecer?

- Aconteça o que acontecer.

- Lembrarei desse juramento. Rezo para que nunca se

arrependa de tê-lo feito - Dany o fez se levantar. Pondo-se na

ponta dos pés para lhe chegar aos lábios, deu um leve beijo no

cavaleiro e disse: - É o primeiro da minha Guarda Real.

Conseguia sentir os olhos do khalasar postos nela ao entrar na

tenda. Os dothrakis resmungavam e lançavam-lhe estranhos

olhares de soslaio com seus olhos escuros e amendoados. Dany

compreendeu que a julgavam louca. Talvez estivesse. Saberia

em breve. Se olhar para trás, estou perdida,

O banho estava escaldando quando Irri a ajudou a entrar na

banheira, mas Dany não vacilou nem gritou. Gostava do calor.

Fazia-a sentir-se limpa. Jhiqui aromatizara a água com os óleos

que Dany encontrara no mercado em Vaes Dothrak; o vapor

subia úmido e odorífero. Doreah lavou-lhe os cabelos e os

escovou, soltando os nós e os desembaraçando. Irri escovou -lhe

as costas. Dany fechou os olhos e deixou que o cheiro e a

tepidez a envolvessem. Sentia o calor ensopando a região

machucada entre as coxas. Estremeceu quando a penetrou, e

sua dor e rigidez pareceram se dissolver. Flutuou.

Quando ficou limpa, as aias ajudaram-na a sair da água. Irri e

Jhiqui secaram-na, enquanto Doreah lhe escovava os cabelos

até deixá-los como um rio de prata que lhe descia pelas costas.

Perfumaram-na com florespeciaria e canela; uma gota em cada

pulso, atrás das orelhas, na ponta dos seios pesados de leite. O

último salpico destinava-se ao sexo. O dedo de Irri foi tão

ligeiro e fresco como o beijo de um amante ao deslizar

suavemente entre seus lábios.

Depois, Dany mandou todos embora para que pudesse preparar

Khal Drogo para a sua última cavalgada às terras da noite.

Lavou-lhe o corpo e escovou e oleou seus cabelos, fazendo

correr os dedos por eles uma última vez, sentindo-lhes o peso,

recordando a primeira vez que os tocara, na noite da cavalgada

de casamento. Seus cabelos nunca foram cortados. Quantos

homens podiam morrer sem nunca terem cortado os cabelos?

Submergiu o rosto neles e inalou a escura fragrância dos óleos.

Cheirava a erva e a terra quente, a fumaça, a sêmen e a

cavalos. Cheirava a Drogo. Perdoa-me, sol da minha vida,

pensou. Perdoa-me por tudo o que fiz e por tudo o que

tenho de fazer. Paguei o preço, minha estrela, mas foi alto

demais, alto demais...

Dany entrançou seus cabelos, prendeu seus anéis de prata no

bigode e pendurou as campainhas, uma a uma. Tantas

campainhas, de ouro, prata e bronze. Campainhas para que os

inimigos o ouvissem chegar e ficassem fracos de medo. Vestiu -

o com calções de pelo de cavalo e botas altas, afivelando à

cintura um pesado cinto de medalhões de ouro e prata. Sobre

seu peito marcado por cicatrizes, enfiou um colete pintado,

velho e desbotado, aquele de que Drogo mais gostava. Para si

escolheu calças largas de sedareia, sandálias atadas até o meio

da perna e um colete como o de Drogo.

O sol estava descendo quando voltou a chamá-los para levarem

o corpo dele até a pira. Os dothrakis observaram em silêncio

quando Jhogo e Aggo o trouxeram da tenda. Dany os seguia.

Depositaram-no nas almofadas e sedas, com a cabeça voltada

para a Mãe das Montanhas, lá longe para nordeste,

- Óleo - ordenou ela, e trouxeram os jarros e despejaram o óleo

sobre a pira, empapando as sedas, os arbustos e os feixes de

mato seco, até que pingou sob as toras e o ar ficou rico de fra-

grâncias. - Tragam-me os meus ovos - ordenou Dany às aias.

Algo na sua voz as fez correr.

Sor Jorah pegou-lhe no braço.

- Minha rainha, Drogo não terá nenhuma utilidade para ovos

de dragão nas terras da noite. E melhor vendê-los em Asshai.

Venda um, e poderá comprar um navio que nos leve de volta

para as Cidades Livres. Venda os três, e será uma mulher

abastada até o fim dos seus dias.

- Não me foram dados para vender - disse-lhe Dany.

Subiu ela mesma na pira para colocar os ovos em volta do seu

sol-e-estrelas. O negro junto ao coração, debaixo do braço. O

verde ao lado da cabeça, com a trança enrolada nele. O creme

e dourado entre as pernas. Quando o beijou pela última vez,

Dany sentiu a doçura do óleo em seus lábios.

Ao descer da pira, reparou que Mirri Maz Duur a observava.

- É louca - disse roucamente a esposa de deus.

- Há assim tão grande distância entre a loucura e a sabedoria?

- perguntou Dany. - Sor Jorah, ate esta maegi à pira.

- À pir... minha rainha, não, escute-me...

- Faça o que eu digo - mesmo assim, ele hesitou até que a ira

dela flamejou. - Jurou me obedecer, acontecesse o que

acontecesse. Rakharo, ajude-o.

A esposa de deus não gritou quando a arrastaram para a pira

de Khal Drogo e a prenderam entre os seus tesouros. Foi a

própria Dany quem despejou o óleo na cabeça da mulher.

- Agradeço-lhe, Mirri Maz Duur - disse -, pelas lições que me

ensinou.

- Não me ouvirá gritar - respondeu Mirri enquanto o óleo lhe

pingava da cabeça e ensopava as suas roupas.

- Ouvirei - disse Dany -, mas o que quero não são os seus

gritos, só a sua vida. Lembro-me do que me disse. Só a morte

pode pagar pela vida - Mirri Maz Duur abriu a boca, mas não

respondeu. Ao se afastar, Dany viu que o desprezo tinha

desaparecido dos olhos negros e achatados da maegi', no seu

lugar havia algo que poderia ser medo. Depois, nada ficou por

fazer, a não ser observar o sol e procurar a primeira estrela.

Quando um senhor dos cavalos morre, seu cavalo é morto com

ele, para que possa montar orgulhoso nas terras da noite. Os

corpos são queimados a céu aberto, e o khal ergue-se na sua

montaria de chamas para ocupar o seu lugar entre as estrelas.

Quanto mais ferozmente o homem tiver queimado em vida,

mais brilhante sua estrela será na escuridão.

Jhogo a viu primeiro.

- Ali - disse ele numa voz abafada. Dany olhou e a viu, baixa,

no leste. A primeira estrela era um cometa que ardia,

vermelho. Vermelho de sangue; vermelho de fogo; a cauda do

dragão. Não poderia ter pedido um sinal mais forte.

Dany tirou o archote da mão de Aggo e o enfiou entre as

toras. O óleo pegou fogo de imediato, os arbustos e o mato

seco um instante depois. Minúsculas chamas correram pela

madeira como velozes ratos vermelhos, patinando sobre o óleo

e saltando de casca em ramo, de ramo em folha. Um calor que

aumentava soprou-lhe no rosto, suave e súbito como o hálito

de um amante, mas em segundos se tornara quente demais

para suportar. Dany deu um passo atrás, A madeira estalou,

cada vez mais alto. Mirri Maz Duur começou a cantar numa

voz estridente e ululante.

As chamas rodopiaram e contorceram-se, fazendo corridas

umas com as outras pela plataforma acima. O ocaso ondulou

quando o próprio ar pareceu liquefazer-se com o calor. Dany

ouviu toras que se fendiam e estalavam. O fogo envolveu Mirri

Maz Duur. A canção dela tornou-se mais sonora, mais

estridente... e então arquejou, uma vez e outra, e a canção

transformou-se num lamento trêmulo, agudo, sonoro e cheio

de agonia.

E agora as chamas chegavam ao seu Drogo, e o rodeavam por

completo. Suas roupas pegaram fogo, e por um instante o khal

ficou vestido com farrapos de flutuante seda cor de laranja e

elos de fumaça rodopiante, cinzenta e oleosa. Os lábios de

Dany abriram-se, e ela deu por si prendendo a respiração.

Parte de si queria ir com ele, como Sor Jorah temera, correr

para as chamas para lhe pedir perdão e introduzi-lo no seu

corpo uma última vez, deixando o fogo derreter a carne até se

tornarem um só, para sempre.

Conseguia sentir o cheiro de carne queimada, em nada

diferente da carne de cavalo assando numa fogueira. A pira

rugia no crepúsculo que se aprofundava como um grande

animal, afogando o som mais fraco dos gritos de Mirri Maz

Duur e projetando longas línguas de fogo para lamber a

barriga da noite. Quando a fumaça se tornou mais espessa, os

dothrakis se afastaram, tossindo. Grandes gotas de fogo cor de

laranja desenrolaram seus estandartes naquele vento infernal,

com as toras silvando e estalando, e fagulhas brilhantes

erguendo-se na fumaça e afastando-se, flutuando como outros

tantos vaga-lumes recém-nascidos. O calor batia o ar com

grandes asas vermelhas, afastando os dothrakis, afastando até

Mormont, mas Dany ficou no seu lugar. Era do sangue do

dragão, e tinha o fogo em si.

Sentira a verdade havia muito, pensou Dany quando deu um

passo para mais perto do incêndio, mas o braseiro nunca

estivera suficientemente quente. As chamas contorciam-se à

sua frente como as mulheres que dançaram no seu casamento,

rodopiando, cantando e fazendo girar seus véus amarelos,

laranja e carmins, terríveis de admirar, mas ao mesmo tempo

adoráveis, tão adoráveis, vivas de calor. Dany abriu os braços,

com a pele corada e brilhando. Isto também é um

casamento, pensou. Mirri Maz Duur caíra no silêncio. A

esposa de deus a julgara uma criança, mas as crianças crescem,

e aprendem.

Outro passo, e Dany sentiu o calor da areia nas solas dos pés,

apesar das sandálias. Suor escorreu-lhe pelas coxas, por entre

os seios e em regatos pelas bochechas, onde antes tinham cor -

rido lágrimas. Sor Jorah gritava atrás dela, mas eleja não

importava, somente o fogo. As chamas eram tão belas, as

coisas mais lindas que jamais vira antes, cada uma delas uma

feiticeira vestida de amarelo, laranja e escarlate, fazendo

rodopiar longos mantos fumarentos. Viu leões de fogo

carmesins e grandes serpentes amarelas e unicórnios feitos de

chamas azul-claras; viu peixes e raposas e monstros, lobos e

aves brilhantes e árvores floridas, cada uma mais bela que a

anterior. Viu um cavalo, um grande garanhão cinzento

retratado na fumaça, com uma auréola de chama azul no lugar

da crina. Sim, meu amor, meu sol-e-estrelas, sim, monte

agora, cavalgue agora.

Seu colete começara a pegar fogo, e Dany o tirou e deixou cair

ao chão. O couro pintado rebentou em súbitas chamas quando

deu um pequeno salto para mais perto do fogo, com os seios

nus perante as chamas, córregos de leite a jorrar dos mamilos

vermelhos e inchados. Agora, pensou, agora, e por um instante

vislumbrou Khal Drogo à sua frente, montado em seu garanhão

de fumaça, com um chicote de fogo na mão. Ele sorriu, e o

chicote serpenteou para a pira, silvando.

Ouviu um crac, o som de pedra que se quebra. A plataforma

de árvores, arbustos e mato começou a deslocar-se e a colapsar

sobre si mesma. Pedaços de madeira ardendo deslizaram até

junto dela, e Dany foi salpicada por cinzas e fagulhas. E algo

mais caiu, saltando e rolando, parando a seus pés; um pedaço

de rocha curva, de cor clara e com veios de ouro, quebra da e

fumegante. O rugido enchia o mundo, mas, de um modo tênue,

Dany ouviu através da catarata de fogo gritos de mulheres e

choros de crianças, incrédulas. Só a morte pode pagar pela

vida.

E então se ouviu um segundo crac, tão sonoro e cortante

como um trovão, e a fumaça agitou-se e rodopiou em torno

dela e a pira oscilou, com as toras explodindo quando o fogo

atingiu os seus corações secretos. Ouviu os gritos de cavalos

assustados e as vozes dos dothrakis em gritos de medo e

terror, e Sor Jorah chamando pelo seu nome e praguejando.

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