J o n
- E s t á bem, Snow? - perguntou Lorde Mormont, franzindo as
sobrancelhas. B e m " , grasnou o corvo. "Bem."
- Estou, senhor - mentiu Jon... muito alto, como se isso pudesse
transformar a mentira em verdade. - E o senhor?
Mormont franziu a testa.
- Um morto tentou matar-me. Como poderia estar bem? - coçou o
queixo. Sua barba cinzenta tinha sido chamuscada pelo fogo e ele a
cortara. Os curtos pelos brancos de suas novas suíças faziam-no
parecer velho, pouco confiável e mal-humorado. - Não parece estar
bem. Como está sua mão?
- Vai sarando - Jon dobrou os dedos enfaixados para lhe mostrar.
Tinha se queimado mais do que supunha ao atirar as cortinas em
chamas, e a mão direita estava enfaixada com seda até a metade do
antebraço. Na hora nada sentira; a agonia chegara mais tarde. A pele
vermelha e fendida segregou fluido, e borbulhas negras com um
aspecto terrível surgiram entre os dedos, grandes como baratas. - O
meistre diz que vou ficar com cicatrizes, mas fora isso a mão deve
ficar tão boa como era antes.
- Uma mão com cicatrizes não é nada, Na Muralha usará luvas com
frequência.
- É como diz, senhor - não eram as cicatrizes que perturbavam Jon;
era o resto, Meistre Aemon dera-lhe leite da papoula, mas mesmo
assim a dor fora terrível. A princípio sentira como se a mão ainda
estivesse em chamas, ardendo dia e noite. Só mergulhá-la em bacias
de neve e gelo moído lhe dava algum alívio. Jon estava agradecido aos
deuses por ninguém, além de Fantasma, tê-lo visto se contorcer na
cama, choramingando de dor. Quando por fim dormiu, sonhou, e
isso foi ainda pior. No sonho, o cadáver com que lutara tinha olhos
azuis, mãos negras e o rosto do pai, mas não se atrevia a contar isso
a Mormont.
- Dywen e Hake regressaram ontem à noite - disse o Velho Urso. -
Não encontraram sinal algum do seu tio, tal como os outros.
- Eu sei - Jon arrastara-se até a sala comum para jantar com os
amigos, e o fracasso na busca dos patrulheiros fora o único tema das
conversas.
- Você sabe - resmungou Mormont. - Como é que todo mundo sabe
de tudo por aqui? - não parecia esperar uma resposta. - Parece que
havia só dois... duas dessas criaturas, fossem elas o que fossem, não
os chamarei de homens. E devemos dar graças aos deuses. Mais e...
bom, não vale a pena pensar nisso. Mas vai haver mais. Posso senti-lo
nestes meus velhos ossos, e Meistre Aemon concorda. Os ventos frios
estão se erguendo. O verão está no fim, e está para chegar um
inverno como o mundo nunca viu.
O inverno está para chegar. As palavras dos Stark nunca tinham
soado ajon tão sombrias e de mau agouro como agora,
- Senhor - perguntou, hesitante -, ouvi dizer que chegou uma ave
ontem à noite..
- Chegou. Por quê?
- Tinha esperança de que trouxesse alguma notícia de meu pai.
"Pai", escarneceu o velho corvo, inclinando a cabeça enquanto
passeava pelos ombros de Mormont. "Pai"
O Senhor Comandante levantou a mão para lhe fechar o bico, mas o
corvo saltou para cima de sua cabeça, sacudiu as asas e voou através
do aposento para ir se empoleirar sobre uma janela.
- Dor e ruído - resmungou Mormont. - É só para isso que servem os
corvos. Por que aguento esse pestilento pássaro...? Se houvesse
notícias de Lorde Eddard, não acha que teria mandado te chamar?
Bastardo ou não, pertence ao seu sangue. A mensagem dizia respeito
a Sor Barristan Selmy. Parece que foi destituído da Guarda Real.
Deram seu lugar àquele cão negro Clegane, e agora Selmy é
procurado por traição. Os tontos mandaram um grupo de vigias para
capturá-lo, mas ele matou dois e escapou - Mormont bufou, não
deixando lugar a dúvidas a respeito do que pensava de homens que
mandavam guardas de mantos dourados contra um cavaleiro de
tanto renome como Barristan, o Ousado. - Temos sombras brancas
na floresta e mortos irrequietos que caminham furtivamente pelos
nossos salões, e é um rapaz que ocupa o Trono de Ferro - disse,
desgostoso.
O corvo riu estridentemente. "Rapaz, rapaz, rapaz, rapaz"
jon recordou que Sor Barristan fora a melhor esperança do Velho
Urso; se caíra, que hipótese havia de que a carta de Mormont
recebesse atenção? Fechou a mão em punho, A dor rompeu dos
dedos queimados.
- E minhas irmãs?
- A mensagem não fazia menção alguma a Lorde Eddard ou às
meninas - encolheu os ombros, irritado. - Talvez não tenham
chegado a receber minha carta. Aemon mandou duas cópias, com as
suas melhores aves, mas, quem sabe? O mais provável é que Pycelle
não tenha se dignado a responder. Não seria nem a primeira nem a
última vez. Temo que contemos com menos que nada em Porto Real.
Contam-nos o que querem que saibamos, e isso é bem pouco.
E você me conta o que quer que eu saiba, e isso é ainda menos,
pensou Jon com ressentimento. Seu irmão Robb convocara os
vassalos e partira para o sul, para a guerra, e nem uma palavra sobre
isso lhe fora ventilada... exceto por Samwell Tarly, que lera a carta
para Meistre Aemon e sussurrara o conteúdo a Jon naquela noite, em
segredo, enquanto repetia que não devia fazê-lo, Não havia dúvida de
que pensavam que a guerra do irmão não lhe dizia respeito.
Perturbava-o mais do que conseguia exprimir. Robb marchava, e ele,
não. Não importava quantas vezes Jon dissesse a si próprio que seu
lugar agora era ali, com seus novos irmãos na Muralha, sentia-se um
covarde do mesmo jeito.
"Grão", gritava o corvo. "Grão, grão".
- Ah, cale-se - disse-lhe o Velho Urso. - Snow, daqui a quanto tempo,
segundo Meistre Aemon, terá essa mão em boas condições?
- Em breve - Jon respondeu.
- Ótimo - sobre a mesa, entre os dois, Lorde Mormont depositou
uma grande espada numa bainha de metal negro ligado com prata. -
Toma. Neste caso, está pronto para isto.
O corvo desceu e aterrissou sobre a mesa, pavoneando-se na direção
da espada, com a cabeça inclinada de um modo curioso. Jon hesitou.
Não fazia nem uma vaga ideia do que aquilo significava.
- Senhor?
- O fogo derreteu a prata do botão e queimou a guarda e o punho.
Bem, que se podia esperar de couro seco e madeira velha? Mas a
lâmina... seria necessário um fogo cem vezes mais quente que aquele
para danificar a lâmina - Mormont empurrou a bainha sobre as
pranchas grossas de carvalho. - Mandei fazer o resto de novo. Toma.
"Toma", repetiu o corvo num eco, arranjando as penas com o bico.
"Toma, toma."
Com movimentos inábeis Jon pegou a espada. Pegou-a com a mão
esquerda, pois a direita, envolta em ataduras, estava ainda muito
dolorida e desajeitada. Com cuidado, puxou-a da bainha e ergueu-a
até os olhos.
O botão da espada era um pedaço de pedra clara recheado de
chumbo para equilibrar a longa lâmina. Fora esculpida à semelhança
de uma cabeça de lobo rosnando, com lascas de granada para os
olhos. O punho era de couro virgem, suave e negro, ainda sem
manchas de suor ou sangue. A lâmina propriamente dita era cerca de
quinze centímetros mais longa que aquelas a que Jon estava
habituado, delgada de forma a poder trespassar tão bem como
cortar, com três caneluras profundamente entalhadas no metal.
Enquanto Gelo era uma verdadeira espada longa de duas mãos, esta
era uma espada de mão e meia, por vezes denominada "espada
bastarda". Mas a espada do lobo, na verdade, parecia mais leve que
as que manejara antes. Quando Jon a virou de lado, conseguiu ver as
ondulações do aço escuro, onde o metal fora dobrado sobre si
próprio uma e outra vez.
- Isto é aço valiriano, senhor - disse, espantado. Seu pai o deixara
segurar Gelo muitas vezes; conhecia o aspecto e a sensação.
- É - disse-lhe o Velho Urso. - Foi a espada de meu pai, e antes, do
pai dele. Os Mormont a usaram ao longo de cinco séculos. Manejei-a
nos meus tempos, e a passei a meu filho quando vesti o negro.
Está me dando a espada do filho. Jon quase não conseguia acreditar.
A lâmina tinha um equilíbrio magnífico. As arestas cintilavam
levemente quando beijavam a luz.
- Seu filho...
- Meu filho trouxe desonra à Casa Mormont, mas pelo menos teve a
elegância de deixar a espada quando fugiu. Minha irmã a devolveu à
minha guarda, mas bastava que a visse para me recordar da desgraça
de Jorah, então a coloquei de lado e não voltei a pensar nela até que
a encontramos nas cinzas do meu quarto. O botão original era uma
cabeça de urso, em prata, mas tão desgastada que seus traços
estavam praticamente indistinguíveis. Para você, pensei que um lobo
branco seria mais adequado. Um dos nossos construtores é um
escultor razoável.
Quando Jon tinha a idade de Bran, sonhara com a realização de
grandes feitos, como os rapazes sonhavam sempre. Os detalhes de
seus feitos mudavam em cada sonho, mas era frequente imaginar
que salvava a vida do pai. Depois, Lorde Eddard declararia que Jon
provara ser um verdadeiro Stark e colocaria Gelo em suas mãos.
Mesmo então soubera que aquilo não passava de delírio de criança;
nenhum bastardo poderia jamais esperar manejar a espada do pai.
Até a recordação o envergonhava. Que tipo de homem roubava os
direitos de nascença do próprio irmão? Não tenho direito a isto,
pensou, tal como não tenho direito a Gelo. Contraiu subitamente os
dedos, sentindo uma palpitação de dor bem fundo sob a pele.
- Senhor, honra-me, mas. .
- Poupe-me os seus mas, rapaz - interrompeu Lorde Mormont. - Não
estaria aqui se não fosse você e aquele seu animal. Lutou
bravamente... e, mais importante, pensou depressa. Fogol Sim,
maldição. Já devíamos saber. Devíamos ter lembrado, A Longa Noite
já chegou antes. Ah, oito mil anos é bastante tempo, com certeza...
mas, se a Patrulha da Noite não recorda, quem recordará?
"Quem recordara, concordou o corvo falador."Quem recordará"
Na verdade, os deuses tinham atendido às preces de Jon naquela
noite; o fogo pegara nas roupas do morto e o consumira como se a
carne fosse cera e os ossos, madeira velha e seca. Bastava a Jon
fechar os olhos para ver a coisa cambalear no aposento privado,
esbarrando contra a mobília e batendo nas chamas. Era o rosto que
mais o assombrava; rodeado por uma auréola de fogo, com os
cabelos em brasa como se fossem palha, a carne morta derretendo e
escorrendo do crânio, revelando o brilho do osso que estava por
baixo.
Qualquer que fosse a força demoníaca que animava Othor, fora
expulsa pelas chamas; a coisa retorcida que tinham encontrado nas
cinzas não passava de carne queimada e ossos carbonizados. Mas em
seus pesadelos voltava a enfrentá-la... e dessa vez o cadáver ardente
tinha as feições de Lorde Eddard. Era a pele do pai que estourava e
enegrecia, os olhos do pai que escorriam pelo rosto como lágrimas
de gelatina. Jon não compreendia por que era assim, ou o que aquilo
significava, mas o assustava mais do que era capaz de exprimir.
- Uma espada é pagamento pequeno por uma vida - concluiu
Mormont. - Fique com ela. Não quero mais ouvir falar disso,
compreendido?
- Sim, senhor - o couro suave cedeu sob os dedos de Jon, como se a
espada já estivesse se moldando à sua mão. Sabia que devia sentir-se
honrado, e se sentia, no entanto...
Ele não é meu pai, O pensamento surgiu sem ser convidado na
mente de Jon. Lorde Eddard Stark é meu pai. Não o esquecerei, e não
importa quantas espadas me ofereçam. Mas não podia dizer a Lorde
Mormont que era com a espada de outro homem que sonhava..
- Também não quero cortesias - disse Mormont -, por isso, não me
agradeça. Honre o aço com ações, não com palavras.
Jon fez um aceno com a cabeça.
- Tem nome, senhor?
- Em tempos passados teve. Chamava-se Garralonga. "Garra", gritou
o corvo."Garra"
- Garralonga é um bom nome - Jon experimentou um golpe. Era
desastrado e sentia-se desconfortável com a mão esquerda, mas
mesmo assim o aço pareceu fluir pelo ar, como se tivesse vontade
própria. - Os lobos têm garras, tal como os ursos.
O Velho Urso parecia satisfeito.
- Suponho que sim. Imagino que vá preferir usar isso sobre o ombro.
E longa demais para a coxa, pelo menos até que cresça um pouco
mais. E será preciso praticar seus golpes com as duas mãos. Sor
Endrew pode lhe mostrar alguns movimentos quando as
queimaduras sararem.
- Sor Endrew? - Jon não conhecia o nome.
- Sor Endrew Tarth, um bom homem. Vem a caminho, desde a Torre
das Sombras, para assumir o cargo de mestre de armas. Sor Alliser
Thorne partiu ontem de manhã para Atalaialeste do Mar.
Jon baixou a espada.
- Por quê? - perguntou, estupidamente.
Mormont resfolegou.
- Por que o mandei, o que acha? Transporta a mão que o seu
Fantasma arrancou do pulso de Jafer Flowers. Ordenei-lhe que
embarcasse para Porto Real e a apresentasse a esse rei rapaz. Isso
deve chamar a atenção do jovem Joffrey, julgo eu... e Sor Alliser é um
cavaleiro, bem-nascido, ungido, com velhos amigos na corte, muito
mais difícil de ignorar que uma gralha com fama de grandeza.
"Gralha," Pareceu a Jon que o corvo soava vagamente indignado.
- E, além disso - prosseguiu o Senhor Comandante, ignorando o
protesto da ave -, coloca mil léguas entre você e ele sem que pareça
uma reprimenda - sacudiu o dedo na cara de Jon. - E não pense que
isto quer dizer que aprovo aquele disparate na sala comum. O valor
compensa um bom bocado de tolice, mas já não é um rapaz,
independente da idade que tenha. Isso que tem aí é uma espada de
homem, e é preciso ser homem para brandi-la. Espero que de hoje
em diante desempenhe esse papel.
- Sim, senhor - Jon voltou a enfiar a espada na bainha ligada com
prata. Mesmo que não fosse a lâmina que ele teria escolhido, era de
qualquer forma um presente nobre, e libertá-lo da malevolência de
Alliser Thorne era mais nobre ainda.
O Velho Urso coçou o queixo.
- Tinha me esquecido de como uma barba nova dá comichão - disse.
- Bem, não há como evitá-la. Estará essa sua mão suficientemente sã
para retomar seus deveres?
- Sim, senhor.
- Ótimo. A noite será fria e vou querer vinho quente com especiarias.
Arranje-me um jarro de tinto que não seja demasiado amargo, e não
seja sovina com as especiarias. E diga a Hobb que, se voltar a me
enviar carneiro cozido, o mais certo é que eu o cozinhe. Aquele
último quadril estava cinzento. Nem o pássaro o tocou - afagou a
cabeça do corvo com o polegar, e a ave soltou um quorc de
satisfação. - Desapareça. Tenho trabalho a fazer.
Os guardas sorriram-lhe de seus nichos enquanto ia serpenteando
pela escada da torre abaixo, levando a espada na mão boa.
- Bom aço - disse um homem.
- Você ganhou isso, Snow - disse-lhe outro. Jon obrigou-se a sorrir-
lhes de volta, mas não pôs o coração nos sorrisos. Sabia que devia
estar contente, mas não se sentia assim. A mão doía-lhe, e tinha na
boca o sabor da ira, embora não pudesse explicar com o que estava
irritado, ou por quê.
Meia dúzia dos seus amigos estava à espreita lá fora quando saiu da
Torre do Rei, onde o Senhor Comandante Mormont residia agora.
Tinham pendurado um alvo na porta do celeiro, para que
parecessem estar afinando a sua perícia como arqueiros, mas Jon
reconhecia tocaias quando as via. Assim que surgiu, Pyp chamou:
- Então, vem cá, deixe-me ver.
- O quê? - perguntou Jon. Sapo aproximou-se de lado.
- Sua bunda rosada, o que havia de ser?
- A espada - declarou Grenn. - Queremos ver a espada.
Jon varreu-os com um olhar acusador.
- Todos sabiam.
Pyp sorriu.
- Nem todos somos tão estúpidos como Grenn.
- São, sim - insistiu Grenn. - São mais estúpidos.
Halder encolheu os ombros como que pedindo desculpa.
- Ajudei o Pate a esculpir a pedra para o botão - disse o construtor e
seu amigo Sam comprou as granadas em Vila Toupeira.
- Mas já sabíamos mesmo antes disso - disse Grenn. - Rudge tem
ajudado Donal Noye na forja. Estava lá quando o Velho Urso lhe
levou a lâmina queimada.
- A espada! - insistiu Matt. Os outros se juntaram ao cântico. - A
espada, a espada, a espada. Jon desembainhou Garralonga e a
mostrou, virando-a de um lado para o outro para que pudessem
admirá-la. A lâmina bastarda cintilava à luz clara do dia, escura e
mortífera.
- Aço valiriano - declarou solenemente, tentando soar tão satisfeito e
orgulhoso como deveria se sentir.
- Ouvi falar de um homem que tinha uma navalha feita de aço
valiriano - Sapo declarou. - Cortou a cabeça ao tentar fazer a barba.
Pyp deu um sorriso.
- A Patrulha da Noite tem milhares de anos de idade - disse -, mas
aposto que Lorde Snow é o primeiro irmão a receber honrarias por
destruir a Torre do Senhor Comandante com um incêndio.
Os outros riram, e até Jon teve de sorrir. O incêndio que iniciara não
tinha, na verdade, destruído aquela formidável torre de pedra, mas
fizera um bom trabalho em devastar o interior dos dois andares
superiores, onde o Velho Urso tinha seus aposentos. Isso não parecia
preocupar ninguém por lá, visto que também destruíra o cadáver
assassino de Othor.
A outra criatura, a coisa com uma mão só que outrora fora um
patrulheiro chamado Jafer Flowers, também foi destruída, quase
cortada aos pedaços por uma dúzia de espadas..., mas não antes de
ter matado Sor Jaremy Rykker e mais quatro homens. Sor Jaremy
concluíra o serviço de lhe arrancar a cabeça, mas morrera mesmo
assim quando o cadáver sem cabeça lhe tirara o punhal da bainha e
o enterrara nas entranhas. A força e a coragem não eram grande
vantagem contra inimigos que não caíam porque já estavam mortos;
até as armas e as armaduras davam pouca proteção. Esse sombrio
pensamento amargava o frágil humor de Jon.
- Tenho de falar com Hobb sobre o jantar do Velho Urso - anunciou
bruscamente, devolvendo Garralonga à bainha. Os amigos tinham
boas intenções, mas não compreendiam. Não era culpa deles, na
verdade; não tinham tido de enfrentar Othor, não tinham visto o
pálido brilho daqueles olhos mortos e azuis, não tinham sentido o
frio daqueles dedos mortos e negros. Nem sabiam da luta nas terras
fluviais. Como poderia esperar que compreendessem? Virou-lhes as
costas abruptamente e afastou-se a passos largos, carrancudo. Pyp o
chamou, mas Jon não lhe deu atenção.
Depois do incêndio, tinham-no instalado de novo em sua antiga cela,
na arruinada Torre de Hardin, e foi para lá que regressou. Fantasma
estava adormecido, enrolado sobre si mesmo junto à porta, mas
ergueu a cabeça ao ouvir as botas de Jon. Os olhos vermelhos do
lobo selvagem eram mais escuros que granadas e mais sábios que os
dos homens. Jon ajoelhou, coçou sua orelha e mostrou-lhe o botão da
espada.
- Olha. É você.
Fantasma farejou o retrato de rocha esculpida e experimentou lambê-
lo. Jon sorriu.
- É você quem merece a honra - disse ao lobo... e subitamente
lembrou-se de como o encontrara, naquele dia, na neve do fim do
verão. Afastavam-se com as outras crias, mas Jon ouvira um ruído e
se virara, e ali estava ele, de pelos brancos, quase invisível no meio da
neve. Estava sozinho, pensou, longe do resto da ninhada. Era
diferente, e por isso fora afastado.
- Jon? - ele ergueu o olhar. Samwell Tarly estava lá, balançando-se
nervosamente nos calcanhares. Tinha as bochechas coradas e
enrolava-se num pesado manto de peles que fazia com que parecesse
estar pronto para a hibernação.
- Sam - Jon pôs-se em pé. - O que se passa? Quer ver a espada? - se
os outros tinham sabido, sem dúvida Sam também sabia.
O rapaz gordo abanou a cabeça.
- Em tempos passados fui herdeiro da lâmina de meu pai - disse ele
num tom soturno. -Coração da Morte. Lorde Randyll deixou-me
pegá-la algumas vezes, mas sempre me assustou. Era de aço
valiriano, bela, mas tão aguçada que tinha medo de machucar uma
das minhas irmãs. Deve ser Dickon quem a tem agora - esfregou as
mãos suadas no manto. - Eu.. ah.. Meistre Aemon quer vê-lo.
Não era o momento de mudar as ataduras. Jon franziu as
sobrancelhas, com suspeita.
- Por quê? - quis saber. Sam fez uma expressão infeliz. Era resposta
suficiente. - Você lhe disse, não foi? - perguntou Jon em tom de
zanga. - Você disse que me contou.
- Eu.. ele... Jon, eu não queria... ele perguntou.. ou melhor... eu acho
que ele sabia, ele vê coisas que mais ninguém vê..
- Ele é cego - Jon rebateu energicamente, descontente, - Eu sei o
caminho - deixou Sam ali, de pé, de boca aberta e tremendo.
Encontrou Meistre Aemon no viveiro, alimentando os corvos. Clydas
estava com ele, levando um balde de carne picada de gaiola em
gaiola.
- Sam disse que quer falar comigo?
O meistre confirmou com um meneio.
- É verdade. Clydas, dê o balde a Jon. Talvez ele tenha a bondade de
me ajudar - o irmão corcunda de olhos rosados entregou o balde a
Jon e desceu precipitadamente a escada. - Atire a carne nas gaiolas -
instruiu Aemon. - As aves farão o resto.
Jon passou o balde para a mão direita e enfiou a esquerda nos
pedaços ensanguentados. Os corvos desataram a crocitar
ruidosamente e a voar de encontro às grades, batendo no metal com
asas negras como a noite. A carne tinha sido cortada em pedaços que
não eram maiores que uma falange. Encheu a mão e atirou as fatias
cruas para dentro da gaiola, e os grasnidos e as brigas tornaram-se
mais acalorados. Voaram penas quando dois dos pássaros maiores
começaram a lutar por um pedaço. Com rapidez, Jon agarrou uma
segunda mão-cheia e atirou-a para a gaiola.
- O corvo de Lorde Mormont gosta de fruta e milho.
- E uma ave rara - disse o meistre. - A maioria dos corvos come
grãos, mas prefere carne. Torna-os fortes, e temo que apreciem o
gosto do sangue. Nisso, são como os homens... e tal como os homens,
nem todos os corvos são iguais.
Jon nada tinha a responder àquilo. Atirou carne, perguntando a si
mesmo por que teria sido chamado. Não havia dúvida de que o velho
acabaria dizendo, a seu próprio tempo. Meistre Aemon não era
homem que se pudesse apressar.
- Os pombos também podem ser treinados para transportar
mensagens - prosseguiu o meistre -, embora o corvo seja um voador
mais forte, maior, mais ousado, muito mais inteligente, mais capaz de
se defender contra falcões.. , mas os corvos são negros, e comem os
mortos, por isso alguns homens piedosos os detestam. Baelor, o Bem-
Aventurado, tentou substituir todos os corvos por pombas, sabia? - o
meistre virou os olhos brancos para Jon, sorrindo. - A Patrulha da
Noite prefere corvos.
Os dedos de Jon estavam no balde, com sangue até o pulso.
- Dywen diz que os selvagens nos chamam de gralhas - ele disse em
tom incerto.
- A gralha é a prima pobre do corvo. São ambos pedintes de negro,
odiados e incompreendidos.
Jon quis compreender qual era o assunto da conversa, e o motivo.
Que lhe interessavam corvos e pombas? Se o velho tivesse alguma
coisa a lhe dizer, por que não podia simplesmente dizê-la?
- Jon, alguma vez perguntou a si mesmo por que é que os homens da
Patrulha da Noite não têm esposas nem geram filhos? - perguntou
Meistre Aemon.
Jon encolheu os ombros.
- Não - espalhou mais um pouco de carne. Tinha os dedos da mão
esquerda escorregadios com o sangue, e a direita latejava por causa
do peso do balde.
- Para que não amem - respondeu o velho -, pois o amor é o veneno
da honra, a morte do dever.
Aquilo não lhe soava correto, mas nada disse. O meistre tinha cem
anos e era um grande oficial da Patrulha da Noite; não lhe competia
contradizê-lo. O homem idoso pareceu sentir suas dúvidas.
- Diga-me, Jon, se chegar o dia em que o senhor seu pai tiver de
escolher entre a honra por um lado e aqueles que ama pelo outro, o
que fará?
Jon hesitou. Queria dizer que Lorde Eddard nunca se desonraria,
nem mesmo por amor, mas dentro de si uma pequena voz
zombeteira segredou: Ele foi pai de um bastardo, onde está a honra
nisso? E tua mãe, que foi feito dos deveres dele para com ela, se nem
sequer lhe pronuncia o nome?
- Faria o que estivesse certo - disse... com uma voz ressonante, para
compensar a hesitação. - Acontecesse o que acontecesse.
- Então Lorde Eddard é um homem entre dez mil. A maior parte de
nós não é tão forte. O que é a honra comparada com o amor de uma
mulher? O que é o dever contra sentir um filho recém-nascido nos
braços... ou a memória do sorriso de um irmão? Vento e palavras.
Vento e palavras. Somos apenas humanos, e os deuses nos moldaram
para o amor. Esta é a nossa grande glória e a nossa grande tragédia.
Os homens que criaram a Patrulha da Noite sabiam que só a
coragem defenderia o reino da escuridão do Norte. Sabiam que não
podiam ter as lealdades divididas que lhes enfraquecessem a
determinação. Por isso juraram não ter esposas nem filhos. Mas
tinham irmãos e irmãs. Mães que os tinham dado à luz, pais que lhes
tinham dado nomes. Chegavam de uma centena de reinos
conflituosos e sabiam que os tempos podiam mudar, mas os homens
não mudam. Por isso juraram também que a Patrulha da Noite não
participaria das batalhas dos reinos que guardava. Mantiveram o
juramento. Quando Aegon assassinou o Negro Harren e lhe
conquistou o reino, o irmão de Harren era Senhor Comandante na
Muralha, com dez mil espadas à mão. Não se pôs em marcha. Nos
dias em que os Sete Reinos eram sete reinos, não se passava uma
geração sem que três ou quatro deles estivessem em guerra. A
Patrulha não participou. Quando os ândalos atravessaram o Mar
Estreito e varreram os reinos dos Primeiros Homens, os filhos dos
reis caídos mantiveram-se fiéis aos seus votos e permaneceram em
seus postos. Sempre foi assim, ao longo de anos incontáveis. É este o
preço da honra. Um covarde pode ser tão bravo como qualquer
homem quando não há nada a temer. E todos cumprimos o nosso
dever quando ele não tem um preço. Como parece fácil então seguir
o caminho da honra. Mas, cedo ou tarde, na vida de todos os homens
chega um dia em que não é fácil, um dia em que ele tem de escolher.
Alguns dos corvos ainda estavam comendo, com longos pedaços
fibrosos de carne balançando dos bicos. Os outros pareciam observá-
lo. Jon conseguia sentir o peso de todos aqueles minúsculos olhos
negros.
- E este é o meu dia. . é isso o que está dizendo?
Meistre Aemon virou a cabeça e o olhou com aqueles alvos olhos
mortos. Era como se estivesse olhando diretamente para o seu
coração. Jon sentiu-se nu e exposto. Pegou o balde com as duas mãos
e atirou o resto do conteúdo por entre as grades. Pedaços de carne e
sangue voaram para todo o lado, espantando os corvos. Levantaram
voo, gritando como loucos. As aves mais rápidas apanharam nacos
em pleno voo e engoliram avidamente. Jon deixou o balde vazio tinir
no chão.
O velho pousou a mão murcha e manchada em seu ombro.
- Dói, rapaz - disse ele em voz baixa. - Ah, sim. Escolher.,, sempre
doeu. E sempre doera. Eu sei.
- O senhor não sabe - disse Jon com amargura. - Ninguém sabe.
Mesmo que eu seja seu bastardo, ainda assim ele é meu pai...
Meistre Aemon suspirou.
- Não ouviu nada do que eu disse, Jon? Pensa que é o primeiro? -
sacudiu a velha cabeça, gesto de um cansaço impossível de descrever.
- Três vezes acharam os deuses por bem testar os meus votos. Uma
vez quando era rapaz, uma vez em plena idade adulta e uma vez
depois de envelhecer. Nessa altura, já as forças me tinham fugido, já
os olhos viam mal, mas essa última escolha foi tão cruel como a
primeira. Meus corvos traziam as notícias do Sul, palavras mais
escuras que suas asas, a ruína da minha Casa, a morte dos meus,
desgraça e desolação. Que poderia eu ter feito, velho, cego e frágil?
Estava tão impotente como um bebê de colo, mas mesmo assim me
magoava estar imóvel e esquecido enquanto abatiam o pobre neto de
meu irmão, e o filho dele, e até as crianças pequenas...
Jon ficou chocado ao ver o brilho de lágrimas nos olhos do idoso.
- Quem é o senhor? - perguntou em voz baixa, quase aterrorizado.
Um sorriso sem dentes estremeceu naqueles velhos lábios.
- Apenas um meistre da Cidadela a serviço do Castelo Negro e da
Patrulha da Noite. Na minha ordem, pomos de lado os nomes de
nossas Casas quando fazemos os votos e colocamos o colar - o velho
tocou a corrente de meistre que pendia solta em torno do pescoço
fino e descarnado. - Meu pai foi Mekar, o Primeiro de Seu Nome, e
meu irmão Aegon reinou depois dele em meu lugar. Meu avô deu-me
o nome em honra do Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, que
era seu tio, ou seu pai, depende da lenda em que se acredite.
Chamou-me Aemon..
- Aemon.. Targaryen? - Jon quase não conseguia acreditar.
- Outrora - disse o velho. - Outrora. Portanto, como vê, Jon, eu sei..
e, sabendo, não lhe direi fica ou vai. Você tem de fazer essa escolha,
e viver com ela pelo resto de seus dias. Como eu - a voz reduziu-se a
um suspiro. - Como eu. .
Daenerys
Depois da batalha, Dany levou a sua prata pelos campos de mortos.
As aias e os homens do seu khas vinham atrás, sorrindo e brincando
uns com os outros. Cascos dothrakis tinham rasgado a terra e
esmagado o centeio e as lentilhas, enquanto arakhs e setas semeavam
uma terrível nova cultura e a regavam com sangue. Cavalos
moribundos erguiam a cabeça e gritavam quando ela passava por
eles. Homens feridos gemiam e rezavam. Jaqqa rhan deslocavam-se
entre eles, os homens da misericórdia com os seus pesados
machados, fazendo colheita das cabeças dos mortos e moribundos.
Depois deles, viria um bando de mocinhas, arrancando setas dos
cadáveres até encher os cestos. E por fim viriam os cães, farejando,
magros e famintos, a matilha selvagem que nunca andava muito
longe do khalasar.
As ovelhas eram as que estavam mortas havia mais tempo. Parecia
ter milhares delas, negras de moscas, com setas espetadas em todas
as carcaças. Dany sabia que os homens de Khal Ogo tinham feito
aquilo; nenhum homem do khalasar de Drogo seria tão tolo que
desperdiçasse setas em ovelhas quando ainda havia pastores para
matar.
A vila estava em chamas, com negras colunas de fumaça rodopiando
enquanto se erguiam ao céu de um tom duro de azul. A sombra de
muros derrubados de barro seco, cavaleiros galopavam para lá e para
cá, brandindo seus longos chicotes enquanto pastoreavam os
sobreviventes para fora do entulho fumegante. As mulheres e
crianças do khalasar de Ogo caminhavam com um orgulho taciturno,
mesmo derrotadas e amarradas; eram agora escravas, mas não
pareciam temer essa condição. Com o povo da vila era diferente.
Dany sentia pena deles; lembrava-se do terror. Mães avançavam aos
tropeções, com o rosto vazio e morto, puxando pela mão crianças
soluçando. Havia apenas um punhado de homens entre eles,
aleijados, covardes e avôs.
Sor Jorah dizia que o povo daquele país chamava a si próprio
lhazareno, mas os dothrakis o chamavam de haesh rakhi, os Homens-
Ovelhas. Em outros tempos, Dany poderia tê-los tomado por
dothraki, pois possuíam a mesma pele acobreada e os olhos
amendoados. Agora, pareciam--lhe estranhos, atarracados e de rosto
achatado, com os cabelos negros cortados curtos de forma estranha.
Eram pastores de ovelhas e comedores de vegetais, e Khal Drogo
dizia que pertenciam ao sul da curva do rio. O capim do mar
dothraki não se destinava a ovelhas.
Dany viu um rapaz saltar e correr para o rio. Um cavaleiro cortou-
lhe o caminho e o fez virar--se, e os outros o encurralaram, fazendo
estalar os chicotes em seu rosto, obrigando-o a correr para lá e para
cá. Um galopou atrás dele, chicoteando-o nas nádegas até lhe deixar
as coxas vermelhas de sangue. Outro o apanhou pelo tornozelo, com
uma chicotada que o fez estatelar-se. Por fim, quando o rapaz
conseguia somente rastejar, fartaram-se da brincadeira e enfiaram-lhe
uma seta nas costas.
Encontrou Sor Jorah junto ao portão despedaçado. Usava uma capa
verde-escura sobre a cota de malha. Suas manoplas, grevas e elmo
eram de aço cinza-escuro. Os dothrakis o tinham chamado de
covarde quando pusera a armadura, mas o cavaleiro cuspira insultos
de volta, os ânimos tinham se exaltado, a espada longa colidira com o
arakh, e o guerreiro cuja troça fora mais sonora tinha sido deixado
para trás, sangrando até a morte.
Sor Jorah ergueu o visor de seu elmo de topo achatado ao se
aproximar.
- O senhor vosso esposo a espera na vila.
- Drogo não se feriu?
- Alguns golpes - respondeu Sor Jorah -, nada de mais. Matou hoje
dois khals. Primeiro Khal Ogo, e depois o filho, Fogo, que se tornou
khal quando Ogo caiu. Seus companheiros de sangue cortaram os
sinos dos cabelos deles, e agora cada passo de Khal Drogo ressoa
mais alto que antes.
Ogo e o filho tinham partilhado o banco elevado com Drogo no
banquete de batismo onde Viserys fora coroado, mas isso acontecera
em Vaes Dothrak, à sombra da Mãe das Montanhas, onde todos os
cavaleiros são irmãos e todas as querelas são postas de lado. No
campo, as coisas eram diferentes. O khalasar de Ogo estava atacando
a vila quando Khal Drogo o pegou. Dany perguntava a si mesma o
que teriam pensado os Homens-Ovelhas quando viram pela primeira
vez a poeira levantada pelos seus cavalos de cima daquelas muralhas
de barro rachado. Talvez alguns, os mais novos e mais tolos, que
ainda julgavam que os deuses escutavam as preces dos homens
desesperados, a tivessem tomado por salvamento.
Do outro lado da estrada, uma jovem que não era mais velha que
Dany soluçou numa voz fina e frágil quando um cavaleiro a atirou
para cima de uma pilha de cadáveres, de barriga para baixo, e se
enterrou nela. Outros cavaleiros desmontaram para aguardar a sua
vez. Era aquele o tipo de salvamento que os dothrakis traziam aos
Homens-Ovelhas.
Sou do sangue do dragão, recordou Daenerys Targaryen a si mesma
enquanto virava o rosto. Apertou os lábios, endureceu o coração e
continuou a seguir para o portão,
- A maior parte dos guerreiros de Ogo fugiu - disse Sor Jorah. -
Mesmo assim, pode haver até dez mil cativos.
Escravos, pensou Dany. Khal Drogo os levaria ao longo do rio até
uma das vilas da Baía dos Escravos. Quis chorar, mas disse a si
mesma que tinha de ser forte. Isto é a guerra, é assim que ela é, é
este o preço do Trono de Ferro.
- Disse ao khal que devíamos rumar a Meereen - Sor Jorah
continuou. - Pagarão melhor preço do que ele obteria de uma
caravana de escravos. Illyrio escreve que tiveram uma praga no ano
passado, e por isso os bordéis estão pagando o dobro por garotas
saudáveis, e o triplo por rapazes com menos de dez anos. Se crianças
suficientes sobreviverem à viagem, o ouro pagará todos os navios de
que precisarmos e contratará os homens para navegá-los.
Atrás deles, a moça que estava sendo violentada soltou um som de
cortar o coração, um longo lamento soluçante que durava, durava,
durava. A mão de Dany apertou as rédeas com força e virou a cabeça
da prata.
- Faça-os parar - ordenou a Sor Jorah.
- Khaleesi? - o cavaleiro parecia perplexo.
- Faça o que digo. Quero que os pare agora - falou ao seu khas com
o tom duro dos dothrakis. - Jhogo, Quaro, vão ajudar Sor Jorah. Não
quero mais violações.
Os guerreiros trocaram um olhar desconcertado. Jorah Mormont
trouxe seu cavalo para mais perto.
- Princesa - disse -, tem um coração gentil, mas não compreende. Foi
sempre assim. Estes homens derramaram sangue pelo khal. Agora
reclamam a recompensa.
Do outro lado da estrada a jovem ainda chorava, numa língua aguda
e cantante, estranha aos ouvidos de Dany. O primeiro homem já
tinha se despachado, e o segundo tomara-lhe o lugar.
- Ela é uma mulher-ovelha - disse Quaro em dothraki. - Não é nada,
kbaleesi. Os cavaleiros a estão honrando. Os Homens-Ovelhas
dormem com ovelhas, é sabido.
- É sabido - ecoou a aia Irri.
- É sabido - concordou Jhogo, escarranchado no grande garanhão
cinzento que Drogo lhe oferecera. - Se seus lamentos ofendem vossos
ouvidos, Jhogo cortará sua língua - e puxou o arakh,
- Não quero que a machuquem - disse Dany. - Eu a reivindico. Façam
o que lhes ordeno, ou Khal Drogo saberá por quê.
- Sim, kbaleesi - respondeu Jhogo, batendo com os calcanhares no
cavalo. Quaro e os outros o seguiram, com os sinos nos cabelos a
repicar.
- Vá com eles - ordenou a Sor Jorah.
- Às suas ordens - o cavaleiro deu-lhe um olhar estranho. - É mesmo
irmã de seu irmão.
- Viserys? - Dany não compreendeu.
- Não - respondeu ele. - Rhaegar - e afastou-se a galope.
Dany ouviu Jhogo gritar. Os violadores riram dele. Um homem gritou
de volta. O arakh de Jhogo relampejou, e a cabeça do homem
tombou de cima de seus ombros. Os risos transformaram-se em
pragas quando os cavaleiros levaram a mão às armas, mas, nessa
altura, Quaro, Aggo e Rakharo já se encontravam lá. Viu Aggo
apontar para o lugar, do outro lado da estrada, onde ela se
encontrava montada na sua prata. Os cavaleiros olharam-na com
frios olhos negros. Um cuspiu. Os outros retornaram às suas
montarias, resmungando.
Enquanto isso, o homem que estava sobre a jovem continuava a
entrar e sair dela, tão concentrado em seu prazer que parecia não se
dar conta do que se passava à sua volta. Sor Jorah desmontou e
arrancou-o da moça com a mão revestida de cota de malha. O
dothraki estatelou-se na lama, saltou com a faca na mão e morreu
com uma seta de Aggo na garganta. Mormont puxou a moça da pilha
de cadáveres e a enrolou em seu manto salpicado de sangue. Levou-a
até Dany.
- Que quer que façamos com ela?
A jovem tremia, de olhos dilatados e vagos. Os cabelos estavam
empastados de sangue.
- Doreah, trate de suas feridas. Não se parece com um cavaleiro, ela
talvez não a tema. O resto, comigo - e levou a prata através do
portão quebrado de madeira.
Dentro da vila era pior. Muitas das casas estavam em chamas, e os
jaqqa rhan tinham já desempenhado o seu macabro serviço.
Cadáveres sem cabeça enchiam as ruelas estreitas e sinuosas.
Passaram por outras mulheres que estavam sendo violentadas. Em
todas as vezes, Dany puxava as rédeas, mandava seu khas pôr fim
àquilo e levava a vítima como escrava. Uma delas, uma mulher de
quarenta anos, de corpo largo e nariz achatado, abençoou
hesitantemente Dany no Idioma Comum, mas das outras obteve
apenas olhares negros e sem vida. Compreendeu com tristeza que
suspeitavam dela; temiam que as tivesse poupado para um destino
pior.
- Não pode levar todas, menina - disse Sor Jorah da quarta vez que
pararam, enquanto os guerreiros de seu khas reuniam as novas
escravas atrás dela,
- Sou khaleesi, herdeira dos Sete Reinos, do sangue do dragão -
recordou-lhe Dany. - Não lhe cabe dizer o que eu não posso fazer -
do outro lado da cidade um edifício ruiu numa grande nuvem de
fogo e fumaça, e ouviam-se gritos distantes e lamentos de crianças
assustadas.
Encontraram Khal Drogo sentado fora de um templo quadrado sem
janelas, com muros largos de barro e uma cúpula bulbosa que
parecia uma imensa cebola marrom. A seu lado encontrava-se uma
pilha de cabeças mais alta que ele. Uma das setas curtas dos
Homens-Ovelhas estava espetada na carne de seu antebraço, e
sangue cobria o lado esquerdo do peito nu como um salpico de tinta.
Seus três companheiros de sangue estavam com ele.
Jhiqui ajudou Dany a desmontar; tinha-se tornado desajeitada à
medida que a barriga se tornava maior e mais pesada. Ajoelhou-se
perante o khal.
- O meu sol-e-estrelas está ferido - o golpe de arakh era longo, mas
pouco profundo; o mamilo esquerdo desaparecera, e uma aba
sangrenta de carne e pele pendia-lhe do peito como um trapo
molhado.
- É arranhão, lua da minha vida, de arakh de companheiro de sangue
de Khal Ogo - disse Khal Drogo no Idioma Comum. - Matar ele por
isso, e Ogo também - virou a cabeça, com as campainhas da trança a
ressoar suavemente. - É Ogo que ouve, e Fogo, seu khalakka, que era
khal quando o matei.
- Não há homem capaz de enfrentar o sol da minha vida - disse
Dany -, o pai do garanhão que monta o mundo.
Um guerreiro montado aproximou-se e saltou da sela. Falou com
Haggo, uma torrente de dothraki zangado rápida demais para Dany
compreender. O enorme companheiro de sangue lançou-lhe um olhar
pesado antes de se virar para seu khal.
- Este é Mago, que cavalga, no khas de Ko Jhaqo. Diz que khaleesi
ficou com sua presa, uma filha das ovelhas que era para ele montar.
O rosto de Khal Drogo estava parado e duro, mas os olhos negros
estavam curiosos quando se dirigiram a Dany.
- Conte-me a verdade disto, lua da minha vida - ordenou em
dothraki.
Dany contou-lhe o que fizera, em sua língua, para que o khal a
compreendesse melhor, com palavras simples e diretas.
Quando terminou, a testa de Drogo estava franzida.
- São estes os costumes da guerra. Essas mulheres são agora nossas
escravas, para que façamos o que quisermos delas.
- Gostaria de mantê-las a salvo - disse Dany, perguntando-se se
estaria se atrevendo demais. - Se seus guerreiros quiserem montar
estas mulheres, que as tomem com gentileza e as mantenham como
esposas. Que lhes dêem lugares no khalasar e que lhes façam filhos.
Qotho era sempre o mais cruel dos companheiros de sangue. Foi ele
que riu.
- Será que o cavalo se reproduz com ovelhas?
Algo no tom dele lembrou-lhe Viserys. Dany virou-se para ele,
zangada.
- O dragão alimenta-se quer de cavalos quer de ovelhas. Khal Drogo
sorriu.
- Vejam como ela se faz feroz! - disse. - É meu filho dentro dela, o
garanhão que monta o mundo, que a enche com o seu fogo. Monta
devagar, Qotho... se a mãe não te queimar no lugar onde se senta, o
filho te esmagará na lama. E você, Mago, recolhe a língua e encontra
outra ovelha para montar. Estas pertencem à minha khaleesi -
começou a estender a mão para Daenerys, mas, ao erguer o braço,
Drogo fez um súbito esgar de dor e virou a cabeça.
Dany quase conseguia sentir a agonia dele. As feridas eram piores do
que Sor Jorah dissera.
- Onde estão os curandeiros? - exigiu saber. O khalasar tinha dois
tipos: mulheres estéreis e escravos eunucos. As ervanárias lidavam
com poções e feitiços; os eunucos, com facas, agulhas e fogo. - Por
que não tratam do khal?
- O khal mandou o homem sem cabelo embora, khaleesi - garantiu-
lhe o velho Cohollo. Dany viu que o companheiro de sangue também
tinha sido ferido; um golpe profundo no ombro esquerdo.
- Há muitos guerreiros feridos - disse teimosamente Khal Drogo. -
Que sejam curados primeiro. Esta seta não é mais que uma picada
de mosca; este pequeno corte é só uma nova cicatriz de que me
gabar perante meu filho.
Dany via os músculos de seu peito onde a pele fora arrancada. Um
fio de sangue corria da seta que lhe perfurara o braço.
- Não cabe ao Khal Drogo esperar - proclamou. - Jhogo, procure
esses eunucos e os traga imediatamente.
- Senhora de prata - disse uma voz de mulher atrás dela -, eu posso
ajudar o Grande Cavaleiro com as suas feridas.
Dany virou a cabeça. Quem falava era uma das novas escravas, a
mulher pesada de nariz achatado que a abençoara.
- O khal não precisa de ajuda de mulheres que dormem com ovelhas
- ladrou Qotho. - Aggo, corte-lhe a língua.
Aggo agarrou-lhe os cabelos e empurrou uma faca contra a garganta
da mulher. Dany ergueu a mão.
- Não. Ela é minha. Deixem-na falar.
Os olhos de Aggo saltaram dela para Qotho, e abaixou a faca.
- Não pretendo fazer nenhum mal, ferozes cavaleiros - a mulher
falava dothraki bem. Os trajes que usava tinham sido feitos das mais
leves e melhores lãs, ricas de bordados, mas agora estavam cobertos
de lama, ensanguentados e rasgados. A mulher apertou o pano
esfarrapado do corpete contra os pesados seios, - Tenho alguns
conhecimentos nas artes curativas.
- Quem é você? - perguntou-lhe Dany.
- Chamam-me Mirri Maz Duur. Sou esposa de deus neste templo.
- Maegi - grunhiu Haggo, passando os dedos pelo arakh. Tinha o
olhar escuro. Dany lembrava-se da palavra de uma história
aterrorizadora que Jhiqui lhe contara uma noite junto à fogueira.
Uma maegi era uma mulher que dormia com demônios e praticava a
mais negra das feitiçarias, uma coisa vil, maldosa e sem alma, que
vinha até os homens no escuro da noite e sugava a vida e a força de
seus corpos.
- Sou uma curandeira - disse Mirri Maz Duur.
- Uma curandeira de ovelhas - escarneceu Qotho. - Sangue do meu
sangue, eu digo que matemos esta maegi e que esperemos pelos
homens sem cabelo.
Dany ignorou a explosão do companheiro de sangue. Aquela mulher
idosa, modesta e gorda não lhe parecia uma maegi.
- Onde aprendeu a sua arte, Mirri Maz Duur?
- Minha mãe foi esposa de deus antes de mim e ensinou-me todas as
canções e feitiços que mais agradam ao Grande Pastor, e como fazer
os fumos sagrados e unguentos das folhas, raízes e bagas. Quando
era mais nova e mais bonita, fui numa caravana a Asshai da Sombra,
para estudar com os magos de lá. Chegam navios de muitas terras a
Asshai, e fiquei durante muito tempo estudando os costumes de
curar de povos distantes. Uma cantora de lua de Jogos Nhai deu-me
de presente as suas canções de parto, uma mulher do vosso povo
cavaleiro ensinou-me as magias do capim, dos grãos e dos cavalos, e
um meistre das Terras do Poente abriu um cadáver e mostrou--me
todos os segredos que se escondem sob a pele. Sor Jorah Mormont
interveio.
- Um meistre?
- Chamava-se Marwyn - respondeu a mulher no Idioma Comum. -
Do mar. Do outro lado do mar. As Sete Terras, disse ele. Terras do
Poente. Onde os homens são de ferro e os dragões governam.
Ensinou-me esta língua.
- Um meistre em Asshai - meditou Sor Jorah. - Diz-me, Esposa de
Deus, que usava este Marwyn em volta do pescoço?
- Uma corrente tão apertada que quase o sufocava, Senhor de Ferro,
com elos de muitos metais.
O cavaleiro olhou para Dany.
- Só um homem treinado na Cidadela de Vilavelha usa uma corrente
assim - disse -, e esses homens realmente sabem muito sobre curar.
- Por que quer ajudar meu khal?
- Todos os homens pertencem ao mesmo rebanho, ou pelo menos é
isso que nos é ensinado - respondeu Mirri Maz Duur. - O Grande
Pastor enviou-me para a Terra para curar suas ovelhas, onde quer
que as encontre.
Qotho deu-lhe uma forte bofetada.
- Não somos ovelhas, matgu
- Pare com isso - disse Dany com voz zangada. - Ela é minha. Não
quero que lhe façam mal. Khal Drogo grunhiu.
- A seta tem de sair, Qotho.
- Sim, Grande Cavaleiro - respondeu Mirri Maz Duur, tocando a face
dolorida. - E seu peito tem de ser lavado e cosido para que não
ulcere.
- Trata então disso - ordenou Khal Drogo.
- Grande Cavaleiro - disse a mulher -, os meus instrumentos e
poções estão dentro da casa de deus, onde os poderes curativos são
mais fortes.
- Eu o levo, sangue do meu sangue - ofereceu-se Haggo. Khal Drogo
afastou-o com um gesto.
- Não preciso da ajuda de nenhum homem - disse, com uma voz
dura e orgulhosa. Pôs-se em pé, sem ajuda, mais alto que todos os
outros. Uma nova onda de sangue correu pelo seu peito, jorrando de
onde o arakh de Ogo lhe cortara o mamilo. Dany pôs-se depressa a
seu lado.
- Eu não sou um homem - sussurrou ela -, por isso pode se apoiar
em mim - Drogo pousou a enorme mão em seu ombro. Ela suportou
um pouco do peso dele durante a caminhada até o grande templo de
barro. Os três companheiros de sangue os seguiram. Dany ordenou a
Sor Jorah e aos guerreiros de seu khas que guardassem a entrada
para garantir que ninguém incendiaria o edifício enquanto estivessem
lá dentro.
Passaram por uma série de átrios até o alto aposento central, sob a
cebola. Uma luz tênue vinha de janelas escondidas, lá em cima.
Alguns archotes ardiam, fumacentos, em candeeiros fixos às paredes.
Havia peles de ovelha espalhadas pelo chão de barro.
- Ali - disse Mirri Maz Duur, apontando para o altar, uma maciça
pedra com veios azuis, esculpida com imagens de pastores e de seus
rebanhos. Khal Drogo deitou-se em cima dela. A velha mulher atirou
um punhado de folhas secas em um braseiro, enchendo o aposento
de fumaça odorífera. - É melhor esperarem lá fora - disse aos outros.
- Somos sangue do seu sangue - disse Cohollo. - Esperamos aqui.
Qotho aproximou-se de Mirri Maz Duur.
- É melhor que saiba isto, mulher do Deus Ovelha. Se fizer mal ao
khal, sofrerá o mesmo destino - puxou a faca de esfolar e mostrou-
lhe a lâmina,
- Ela não fará mal - Dany sentia que podia confiar naquela velha
mulher de semblante simples, com o nariz achatado; afinal de contas,
salvara-a das mãos dos violadores.
- Se têm de ficar, então ajudem - disse Mirri aos companheiros de
sangue. - O Grande Cavaleiro é forte demais para mim. Mantenham-
no parado enquanto arranco a seta de sua carne -deixou os farrapos
de seu vestido cair até a cintura enquanto abria um cofre esculpido,
e atarefou--se com garrafas e caixas, facas e agulhas. Quando estava
pronta, partiu a ponta farpada da seta e puxou a haste, enquanto
entoava um cântico na língua cantante dos lhazarenos. Aqueceu no
braseiro uma garrafa de vinho até ferver e despejou-a sobre as
feridas de Khal Drogo. Drogo amaldiçoou-a, mas não se mexeu. Ela
grudou na ferida da seta um emplastro de folhas úmidas e virou-se
para o golpe no peito, untando-o com uma pasta verde-clara antes
de voltar a pôr a aba de pele no lugar. O khal rangeu os dentes e
engoliu um grito. A esposa de deus pegou uma agulha de prata e um
fuso de fio de seda e começou a fechar a ferida. Quando terminou,
pintou a pele com unguento vermelho, cobriu-o com mais folhas e
atou o peito com um pedaço esfarrapado de couro de ovelha. - Deve
dizer as preces que vou lhe dar e manter o couro de ovelha no lugar
durante dez dias e dez noites - disse. - Vai haver febre, comichão e
uma grande cicatriz quando a ferida sarar.
Khal Drogo sentou-se, com os sinos a tilintar.
- Eu canto sobre as minhas cicatrizes, mulher-ovelha - dobrou o
braço e fez uma careta.
- Não pode beber nem vinho nem leite da papoula - preveniu-o a
mulher. - Terá dores, mas deve manter o corpo forte para combater
os espíritos do veneno.
- Sou khal - disse Drogo. - Cuspo na dor e bebo o que quiser.
Cohollo, traga-me a roupa - o homem mais velho apressou-se a sair.
- Antes - disse Dany à feia lhazarena - ouvi você falar de canções de
parto...
- Conheço todos os segredos da cama sangrenta, Senhora de Prata, e
nunca perdi um bebê - respondeu Mirri Maz Duur.
- O meu tempo está próximo - disse Dany. - Quero que cuide de
mim quando chegar, se quiser.
Khal Drogo deu risada.
- Lua da minha vida, não se pede a uma escrava, ordena-lhe. Ela fará
o que mandar - saltou do altar. - Vem, meu sangue. Os garanhões
chamam, este lugar é cinzas. É hora de montar.
Haggo seguiu o khal para fora do templo, mas Qotho deixou-se ficar
tempo suficiente para brindar Mirri Maz Duur com um olhar duro.
- Lembre-se, maegi, como passar o khal, assim passará você.
- Seja como diz, cavaleiro - respondeu-lhe a mulher, recolhendo seus
jarros e garrafas. - O Grande Pastor guarda o rebanho.
Tyrion
Em uma colina com vista sobre a Estrada do Rei, uma longa mesa
tosca de pinho tinha sido montada sob um olmo e coberta com um
tecido dourado. Era lá, ao lado de seu pavilhão, que Lorde Tywin
fazia a refeição da noite com os mais importantes de seus cavaleiros
e senhores vassalos, com a sua grande bandeira de carmim e ouro
flutuando por cima, atada a uma majestosa lança.
Tyrion chegou tarde, dolorido da cavalgada e amargo, consciente
demais de como devia ser ridículo seu aspecto enquanto se
bamboleava pela encosta acima para junto do pai. A marcha do dia
fora longa e cansativa. Pensava que talvez fosse se embebedar
bastante naquela noite. Era crepúsculo, e o ar encontrava-se vivo,
cheio de vaga-lumes.
Os cozinheiros serviam o prato de carne: cinco leitões, com a pele
ressequida e estalando, um fruto diferente em cada boca. O cheiro
trouxe-lhe água na boca.
- As minhas desculpas - começou, tomando seu lugar no banco ao
lado do tio.
- Talvez deva encarregá-lo de enterrar os mortos, Tyrion - disse
Lorde Tywin. - Caso se atrase tanto na batalha como à mesa, a luta
já terá terminado quando chegar.
- Ah, decerto que pode guardar um camponês ou dois para mim, pai
- respondeu Tyrion.
- Não muitos, que não pretendo ser ganancioso - encheu a taça de
vinho e observou um criado que trinchava o leitão. A pele quebradiça
estalava sob a faca, e da carne jorrou molho quente. Era a paisagem
mais adorável que Tyrion vira em séculos.
- Os batedores de Sor Addam dizem que a tropa Stark se deslocou
para o sul das Gêmeas
- anunciou o pai enquanto lhe enchiam o prato de fatias de porco. -
Os recrutados de Lorde Frey juntaram-se a eles. Não devem estar a
mais de um dia de marcha a norte da nossa posição.
- Por favor, pai - disse Tyrion. - Preparo-me para comer.
- Será que a ideia de enfrentar a tropa Stark o desencoraja, Tyrion?
Seu irmão Jaime estaria ansioso para lidar com eles.
- Gostaria primeiro de lidar com aquele porco. Robb Stark não é,
nem de perto, tão tenro, e nunca cheirou tão bem.
Lorde Lefford, a ave agourenta que tinha a responsabilidade pelas
provisões e pelo abastecimento, inclinou-se para a frente.
- Espero que seus selvagens não partilhem da sua relutância, caso
contrário desperdiçamos bom aço com eles.
- Meus selvagens darão excelente uso ao seu aço, senhor - respondeu
Tyrion. Quando dissera a Lefford que precisava de armas e
armaduras para equipar os trezentos homens que Ulf tinha trazido
das montanhas, parecia que lhe tinha pedido que entregasse as filhas
donzelas para lhes dar prazer.
Lorde Lefford franziu as sobrancelhas.
- Vi hoje o grande e cabeludo, aquele que insistiu em ficar com dois
machados de batalha, os de aço negro pesado com lâminas gêmeas
em crescente.
- Shagga gosta de matar com ambas as mãos - disse Tyrion,
enquanto um prato de fumegante carne de porco era depositado na
sua frente.
- Ele ainda tinha aquele seu machado de cortar lenha atado às costas.
- Shagga é da opinião de que três machados são melhores ainda que
dois - Tyrion mergulhou os dedos no prato do sal e salpicou sua
carne com uma boa pitada.
Sor Kevan inclinou-se para a frente.
- Pensamos em colocá-lo, com seus selvagens, na vanguarda quando
formos para a batalha. Sor Kevan raramente "pensava" algo que
Lorde Tywin não tivesse pensado antes. Tyrion espetara um bocado
de carne na ponta do punhal e o levara à boca. Agora o abaixava.
- Na vanguarda? - repetiu em tom incerto. Ou o senhor seu pai
descobrira um novo respeito pelas suas capacidades, ou decidira ver-
se livre do embaraço de sua descendência de uma vez por todas.
Tyrion tinha a sombria sensação de que conhecia a verdade.
- Parecem suficientemente ferozes - disse Sor Kevan.
- Ferozes? - Tyrion percebeu que estava repetindo as palavras do tio
como um pássaro treinado. O pai observava, julgando-o, pesando
cada palavra. - Deixe-me contar como eles são ferozes. Na noite
passada, um Irmão da Lua apunhalou um Corvo de Pedra por causa
de uma salsicha. Portanto, hoje, quando acampamos, três Corvos de
Pedra apanharam o homem e abriram-lhe a garganta. Talvez
esperassem recuperar a salsicha, não sei. Bronn conseguiu impedir
Shagga de cortar o membro do morto, o que foi uma sorte, mas
mesmo assim Ulf exige dinheiro de sangue, que Cronn e Shagga
recusam pagar,
- Quando falta disciplina aos soldados, a falha reside no seu
comandante - disse o pai de Tyrion.
O irmão Jaime sempre fora capaz de fazer com que os homens o
seguissem alegremente, e que morressem por ele se necessário. Esse
dom faltava a Tyrion. Comprava a lealdade com ouro, e forçava a
obediência com seu nome.
- Um homem maior seria capaz de lhes causar temor, é isso o que
está dizendo, senhor? Lorde Tywin Lannister virou-se para o irmão.
- Se os homens de meu filho não obedecerem às suas ordens, talvez
a vanguarda não seja lugar para ele. Sem dúvida que estaria mais
confortável na retaguarda, guardando a coluna com a nossa bagagem.
- Não me faça gentilezas, pai - disse Tyrion, irritado. - Se não tem
nenhum outro comando para me oferecer, liderarei a sua primeira
linha.
Lorde Tywin estudou o filho anão.
- Nada disse sobre comandos. Servirá sob as ordens de Sor Gregor.
Tyrion deu uma dentada no leitão, mastigou por um momento e
depois cuspiu-o, zangado.
- Afinal, parece que não tenho fome - disse, erguendo-se
desajeitadamente do banco. - Com a sua permissão, senhores.
Lorde Tywin inclinou a cabeça, concedendo-a. Tyrion virou-se e
afastou-se. Desceu a colina bamboleando, consciente dos olhos dos
homens às suas costas. Uma grande rajada de gargalhadas ergueu-se
atrás dele, mas não virou a cabeça. Que todos eles se engasgassem
com seus leitões.
O crepúsculo caíra, pintando de negro todos os estandartes. O
acampamento Lannister estendia-se ao longo de milhas entre o rio e
a Estrada do Rei. Por entre os homens, os cavalos e as árvores, era
fácil perder-se, e foi o que aconteceu a Tyrion. Passou por uma dúzia
de grandes pavilhões e por uma centena de fogueiras para cozinhar.
Vagalumes esvoaçavam por entre as tendas como estrelas
vagabundas. Detectou um cheiro de salsichas de alho, temperado e
saboroso, tão tentador que lhe fez rugir o estômago vazio. Ouviu, a
distância, vozes que se erguiam numa canção obscena qualquer, Uma
mulher passou por ele correndo, aos risinhos, nua sob uma capa
escura, com um perseguidor bêbado que tropeçava nas raízes das
árvores. Mais adiante, dois lanceiros enfrentavam-se por sobre um
riozinho de água, treinando sua estocada-e-parada à luz que se
desvanecia, com os peitos nus lustrosos de suor.
Ninguém olhou para ele. Ninguém lhe falou. Ninguém lhe prestou a
mínima atenção. Estava rodeado por homens que tinham prestado
vassalagem à Casa Lannister, uma vasta tropa de vinte mil, e no
entanto estava sozinho.
Quando ouviu o profundo estrondo do riso de Shagga ressoando na
escuridão, seguiu-o até os Corvos de Pedra e o pequeno canto que
ocupavam na noite. Cronn, filho de Coratt, acenou com uma caneca
de cerveja.
- Tyrion Meio-Homem! Vem, sente-se junto à minha fogueira,
partilhe a carne com os Corvos de Pedra. Temos um boi.
- Estou vendo, Cronn, filho de Coratt - a enorme carcaça vermelha
estava suspensa sobre um fogo que rugia, enfiada num espeto do
tamanho de uma pequena árvore. Sem dúvida que era uma pequena
árvore. Sangue e gordura pingavam sobre as chamas enquanto dois
Corvos de Pedra viravam a carne. - Agradeço-lhe, Mande me chamar
quando o boi estiver pronto - pelo aspecto, isso talvez acontecesse
ainda antes da batalha. Continuou a andar.
Cada clã tinha sua própria fogueira; os Orelhas Negras não comiam
com os Corvos de Pedra, os Corvos de Pedra não comiam com os
Irmãos da Lua, e ninguém comia com os Homens Queimados. A
modesta tenda que tinha arrancado dos armazéns de Lorde Lefford
depois de algumas bajulações fora erigida no centro das quatro
fogueiras. Tyrion encontrou Bronn partilhando um odre de vinho
com os novos criados. Lorde Tywin enviara-lhe um cavalariço e um
criado pessoal para atender às suas necessidades, e até insistira para
que aceitasse um escudeiro. Estavam sentados em torno das brasas
de uma pequena fogueira. Tinham uma jovem com eles; magra, de
cabelos escuros, aparentemente com não mais de dezoito anos,
Tyrion estudou-lhe o rosto por um momento, antes de ver espinhas
de peixe entre as cinzas.
- O que comeram?
- Trutas, senhor - disse o cavalariço. - Bronn as apanhou.
Truta, pensou. Leitão. Maldito seja o meu pai. Olhou com ar fúnebre
para as espinhas, com a barriga rugindo.
O escudeiro, um rapaz com o infeliz nome de Podrick Payne, engoliu
o que quer que se preparava para dizer. O rapaz era um primo
distante de Sor Ilyn Payne, o carrasco do rei... e era quase tão
silencioso como ele, embora não por falta de uma língua. Tyrion
obrigara-o a colocá-la para fora uma vez, só para ter certeza. "É
definitivamente uma língua", dissera. "Algum dia vai ter de aprender
a usá-la."
No momento não tinha paciência para tentar arrancar um
pensamento do rapaz, que suspeitava que lhe tinha sido imposto
como uma brincadeira cruel. Tyrion voltou sua atenção à moça.
- É ela? - perguntou a Bronn.
Ela se ergueu num movimento gracioso e olhou para ele, da
majestosa altura de um metro e meio ou mais.
- É, senhor, e ela pode falar por si mesma, se assim quiser. Tyrion
inclinou a cabeça para um lado.
- Sou Tyrion, da Casa Lannister. Os homens chamam-me Duende.
- Minha mãe chamou-me Shae. Os homens chamam-me... com
frequência. Bronn riu-se, e Tyrion teve de sorrir.
- Para a tenda, Shae, por favor - ergueu a aba e a manteve erguida
para ela passar. Lá dentro, ajoelhou-se para acender uma vela.
A vida de soldado não era desprovida de certas compensações. Onde
quer que se erguesse um acampamento, era certo aparecerem
seguidores. Ao fim da marcha do dia, Tyrion enviara Bronn de volta,
a fim de lhe arranjar uma prostituta apropriada. "Preferia uma
razoavelmente jovem, tão bonita quanto consiga encontrar" dissera.
"Se se lavou em algum momento deste ano, ficarei contente. Se não,
lave-a. Assegure-se de lhe dizer quem sou e a previna do que sou."
Jyck nem sempre se incomodara em fazer aquilo. Havia um olhar que
as moças por vezes davam quando vislumbravam pela primeira vez o
fidalgo a quem tinham sido contratadas para satisfazer... um olhar
que Tyrion Lannister não queria ver nunca mais.
Ergueu a vela e a observou. Bronn fizera um trabalho bastante bom;
a jovem tinha olhos de corça e era magra, com pequenos seios firmes
e um sorriso que alternava entre tímido, insolente e malvado.
Gostava daquilo.
- Devo tirar o vestido, senhor? - ela perguntou.
- A seu tempo. É donzela, Shae?
- Se isso lhe agradar, senhor - disse ela com um ar recatado.
- O que me agradaria seria obter de você a verdade, garota.
- Está bem, mas isso custará o dobro.
Tyrion decidiu que iam se dar otimamente bem.
- Sou um Lannister. Tenho ouro com fartura, e pode descobrir que
sou generoso... mas quero mais de você do que aquilo que tem entre
as pernas, embora também queira isso. Partilhará a minha tenda,
encherá meu copo de vinho, rirá dos meus gracejos, massageará as
minhas pernas doloridas depois de cada dia de marcha... e quer se
mantenha comigo durante um dia ou um ano, enquanto estivermos
juntos, não levará nenhum outro homem para a sua cama.
- É justo - ela estendeu a mão até a bainha do vestido de ráfia e
tirou-o pela cabeça, num movimento suave, atirando-o para o lado.
Por baixo, nada havia a não ser Shae. - Se não apoiar essa vela, meu
senhor vai queimar os dedos.
Tyrion apoiou a vela, tomou-lhe a mão nas suas e puxou-a
gentilmente para si. Ela se dobrou para beijá-lo. Sua boca recendia a
mel e a cravo-da-índia, e os dedos mostraram-se hábeis e cheios de
prática ao encontrar os fechos de suas roupas.
Quando a penetrou, ela o recebeu com sussurros afetuosos e
pequenos e trêmulos arquejos de prazer. Tyrion suspeitava que
aquele deleite era fingido, mas ela o fazia tão bem que não im-
portava. Não desejava tanta verdade assim.
Mais tarde, deitado em silêncio com a mulher nos braços, Tyrion
percebeu que precisava dela. Dela ou de alguém como ela. Passara-se
já quase um ano desde que dormira com uma mulher, desde antes
da sua partida para Winterfell com o irmão e o Rei Robert. Podia
bem morrer no dia seguinte ou no outro, e se isso acontecesse,
preferia partir para a cova pensando em Shae do que no senhor seu
pai, em Lysa Arryn ou na Senhora Catelyn Stark.
Sentia a suavidade dos seios dela comprimidos contra seu braço. Era
uma sensação boa. Uma canção encheu-lhe a cabeça. Suavemente,
baixinho, pôs-se a assobiar.
- Que é isso, senhor? - murmurou Shae contra seu corpo,
- Nada - respondeu. - Uma canção que aprendi quando era rapaz,
nada demais. Dorme, querida.
Quando os olhos dela se fecharam e sua respiração se tornou
profunda e regular, Tyrion deslizou por debaixo dela, gentilmente,
com cuidado para não lhe perturbar o sono. Nu, rastejou para fora,
passou por cima do escudeiro e deu a volta ao redor da tenda a fim
de urinar.
Bronn estava sentado de pernas cruzadas por baixo de um
castanheiro, perto do lugar onde tinham os cavalos presos. Amolava
o gume da espada, bem acordado; o mercenário não parecia dormir
como os outros homens.
- Onde a encontrou? - perguntou-lhe Tyrion enquanto urinava.
- Tirei-a de um cavaleiro. O homem estava relutante em desistir dela,
mas o seu nome mudou um pouco a maneira dele de pensar... isso e
o meu punhal na sua garganta.
- Magnífico - disse secamente Tyrion, sacudindo as últimas gotas. -
Acho que me lembro de ter dito encontre-me uma prostituta, e não
me faça um inimigo,
- As bonitas estavam todas tomadas - disse Bronn. - De bom grado a
levarei de volta, se preferir uma porca desdentada.
Tyrion coxeou até perto do mercenário.
- O senhor meu pai chamaria a isso insolência, e o mandaria para as
minas por impertinência.
- Ainda bem para mim que não é o seu pai - respondeu Bronn. - Vi
uma com o nariz cheio de furúnculos. Quer essa?
- O quê, e quebrar seu coração? - atirou Tyrion de volta. - Vou ficar
com Shae. Por acaso reparou no nome desse cavaleiro de quem a
roubou? Preferia não tê-lo a meu lado na batalha.
Bronn ergueu-se, rápido e gracioso como um gato, fazendo a espada
girar na mão.
- Terá a mim a seu lado na batalha, anão.
Tyrion fez um aceno. Sentia o ar da noite tépido na pele nua.
- Certifique-se de que eu sobreviva a esta batalha, e poderá escolher
a recompensa que desejar.
Bronn atirou a espada da mão direita para a esquerda e
experimentou um golpe.
- Quem iria querer matar alguém como você?
- O senhor meu pai, para começar. Pôs-me na vanguarda.
- Eu faria o mesmo. Um homem pequeno com um grande escudo.
Vai causar ataques de fúria nos arqueiros.
- Acho-o estranhamente alegre - disse Tyrion. - Devo estar louco.
Bronn embainhou a espada.
- Sem dúvida.
Quando Tyrion regressou à tenda, Shae rolou sobre o cotovelo e
murmurou em voz sonolenta:
- Acordei e o senhor não estava aqui.
- O senhor agora está aqui - deitou-se ao seu lado.
A mão dela enfiou-se entre as suas pernas atrofiadas e o encontrou
duro.
- Ah, aí está - sussurrou, afagando-o.
Tyrion perguntou-lhe pelo homem de quem Bronn a tirara, e ela
disse o nome de um servidor de um fidalgo insignificante.
- Não é preciso temer homens como ele, senhor - disse Shae, com os
dedos atarefados em seu membro. - É um homem pequeno.
- Então, e eu, o que sou? - perguntou-lhe Tyrion. - Um gigante?
- Ah, sim - ronronou ela -, o meu gigante de Lannister - então o
montou e durante algum tempo quase conseguiu fazer com que ele
acreditasse. Tyrion adormeceu sorrindo..
... e acordou na escuridão com o toque das trombetas. Shae sacudia-
lhe o ombro.
- Senhor - sussurrou. - Acorde, senhor, Estou assustada.
Grogue, sentou-se e atirou o cobertor para o lado. As trombetas
chamavam na noite, tempestuosas e urgentes, um grito que dizia
rápido, rápido, rápido, Ouviu gritos, o tinir de lanças, o relinchar de
cavalos, embora ainda nada que parecesse luta.
- As trombetas do senhor meu pai - disse. - Toque de batalha.
Pensava que o Stark ainda estivesse a um dia de marcha.
Shae balançou a cabeça, sem compreender. Seus olhos estavam bem
abertos e brancos.
Gemendo, Tyrion pôs-se em pé e abriu caminho para fora da tenda,
gritando pelo escudeiro. Farrapos de pálido nevoeiro moviam-se à
deriva pela noite, longos dedos brancos que saíam do rio. Homens e
cavalos atravessavam aos tropeções o frio da madrugada; selas eram
apertadas, carroças eram carregadas, fogueiras eram extintas. As
trombetas tocaram de novo: rápido, rápido, rápido. Cavaleiros
saltavam para cima de corcéis que resfolegavam, e homens de armas
afivelavam os cintos de suas espadas enquanto corriam. Quando
encontrou Pod, o rapaz ressonava suavemente. Tyrion deu-lhe um
bom pontapé nas costelas.
- A minha armadura - disse -, e mexa-se depressa - Bronn saiu da
névoa a trote, já armado e montado, com o seu meio elmo amassado
na cabeça. - Sabe o que aconteceu? - perguntou-lhe Tyrion.
- O rapaz Stark roubou-nos uma marcha - disse Bronn. - Esgueirou-
se ao longo da Estrada do Rei durante a noite, e agora sua tropa está
a menos de uma milha a norte daqui, em formação de batalha.
Rápido, gritaram as trombetas, rápido, rápido, rápido.
- Certifique-se de que os homens dos clãs estão prontos para partir -
Tyrion voltou a enfiar--se na tenda. - Onde está minha roupa? -
ladrou para Shae. - Ali. Não, o couro, raios partam. Sim. Traga-me as
botas.
Quando acabou de se vestir, o escudeiro tinha lhe preparado a
armadura, ou o que passava por tal coisa. Tyrion era dono de uma
boa armadura de placa pesada, habilmente manufaturada para se
ajustar ao seu corpo deformado. Infelizmente, estava em segurança
em Rochedo Casterly, mas ele não. Tinha de se arranjar com peças
avulsas encontradas nas carroças de Lorde Lefford: camisa e touca de
cota de malha, o gorjal de um cavaleiro morto, grevas e manoplas
articuladas e botas pontiagudas de aço. Algumas das peças eram
ornamentadas, outras eram simples; nada condizia ou se ajustava
como devia. A placa de peito destinava-se a um homem mais alto;
para a sua cabeça grande demais tinham encontrado um enorme
elmo em forma de balde, culminado por uma haste triangular com
trinta centímetros de comprimento.
Shae ajudou Pod a lidar com as fivelas e as braçadeiras.
- Se eu morrer, chore por mim - disse Tyrion à prostituta.
- Como ia saber? Estaria morto.
- Eu saberia.
- Acredito que sim - Shae baixou o elmo sobre sua cabeça, e Pod
ajustou o gorjal. Tyrion afivelou o cinto, pesado sob o peso da espada
curta e do punhal. Quando terminou, o cavalariço já lhe trouxera a
montaria, um formidável corcel negro com uma armadura tão pesada
como a sua. Precisou de ajuda para montar; sentia-se como se
pesasse uma tonelada. Pod entregou-lhe o escudo, uma maciça
prancha de pesado pau-ferro com tiras de aço, e, por fim, o machado
de batalha. Shae deu um passo para trás e o admirou.
- O senhor parece temível.
- O senhor parece um anão numa armadura desemparelhada - Tyrion
respondeu amargamente -, mas agradeço-lhe a bondade. Podrick, se a
batalha nos correr mal, leve a senhora em segurança para casa -
saudou-a com o machado, fez o cavalo dar meia-volta e afastou-se a
trote. Tinha o estômago transformado num duro nó, tão apertado
que doía. Atrás dele, os criados começaram a desmontar a tenda às
pressas. Pálidos dedos carmesins espalharam-se pelo leste quando os
primeiros raios de sol surgiram no horizonte. O céu ocidental tinha
um profundo tom púrpura, salpicado de estrelas. Tyrion perguntou a
si mesmo se aquele seria o último nascer do sol que veria... e se essa
dúvida era sinal de covardia. Seu irmão Jaime alguma vez
contemplara a morte antes de uma batalha?
Uma trompa de guerra soou a distância, uma profunda nota fúnebre
que gelava a alma. Os homens dos clãs subiram em seus ossudos
cavalos de montanha, berrando pragas e rudes piadas. Vários
pareciam estar bêbados. Quando Tyrion deu sinal de partida, o sol
nascente queimava os últimos elos de nevoeiro. O campo que os
cavalos tinham deixado estava carregado de orvalho, como se algum
deus de passagem tivesse espalhado um saco de diamantes pela terra.
Os homens das montanhas alinharam-se atrás dele, com cada clã
enfileirado atrás de seu líder.
A luz da alvorada, o exército de Lorde Tywin Lannister desdobrou-se
como uma rosa de ferro, com os espinhos a raiar.
O tio de Tyrion liderava o centro. Sor Kevan erguera seus
estandartes acima da Estrada do Rei. Com aljavas pendendo dos
cintos, os arqueiros apeados dispuseram-se em três longas linhas,
para leste e para oeste da estrada, e ali estavam calmamente
encordoando os arcos. Entre eles, lanceiros formavam quadrados;
atrás estava fileira após fileira de homens de armas com lanças,
espadas e machados. Trezentos cavalos pesados rodeavam Sor Kevan
e os senhores vassalos Lefford, Lydden e Serrett, com todos os seus
subordinados.
A ala direita era toda de cavalaria, cerca de quatro mil homens,
carregados com o peso de suas armaduras. Estavam ali mais de três
quartos dos cavaleiros, agrupados como um grande punho revestido
de aço. Sor Addam Marbrand tinha o comando. Tyrion viu seu
estandarte desenrolar--se quando seu porta-estandartes o sacudiu:
uma árvore ardendo, laranja e esfumaçado. Atrás dele esvoaçava o
unicórnio púrpura de Sor Flement, o javali malhado de Crakehall, o
galo anão dos Swyft e outros.
O senhor seu pai tomou posição na colina onde dormira. Em seu
redor reunia-se a reserva; uma força enorme, metade montada,
metade a pé, de cinco mil homens. Lorde Tywin escolhia quase
sempre comandar a reserva; ocupava o terreno elevado e observava o
desenrolar da batalha a seus pés, enviando suas forças quando e para
onde eram mais necessárias.
Mesmo visto de longe, o senhor seu pai era resplandecente. A
armadura de batalha de Tywin Lannister envergonhava a armadura
dourada do filho Jaime, Sua grande capa tinha sido tecida de
incontáveis camadas de pano de ouro, e era tão pesada que quase
não se agitava, mesmo quando ele avançava, e tão grande que as
pregas cobriam a maior parte do traseiro do garanhão quando se
sentava sobre a sela. Nenhuma braçadeira comum seria suficiente
para tanto peso, e a capa era mantida no lugar por um par idêntico
de leoas em miniatura, acocoradas sobre os ombros, como que em
posição de ataque. O companheiro das leoas, um macho com uma
magnífica juba, reclinava-se no topo do elmo de Lorde Tywin, com a
pata varrendo o ar enquanto rugia. Os três leões eram trabalhados
em ouro, com olhos de rubi. A armadura era de pesada placa de aço,
esmaltada de carmim-escuro; as grevas e as manoplas tinham
decorativos arabescos dourados embutidos. As ombreiras eram sóis
raiados dourados, todas as suas presilhas eram douradas, e o aço
vermelho tinha sido polido até tal lustre que brilhava como fogo à
luz do sol nascente.
Tyrion conseguia agora ouvir o rufar dos tambores do inimigo.
Recordou-se de Robb Stark como o vira pela última vez, sentado no
cadeirão do pai no Grande Salão de Winterfell, com uma espada nua
brilhando nas mãos. Recordou-se de como os lobos selvagens tinham
saltado sobre ele vindos das sombras, e de repente voltou a vê-los,
rosnando e abocanhando, com os dentes descobertos na frente do
seu rosto. Traria o rapaz os lobos consigo para a guerra? A idéia o
deixou perturbado.
Os nortenhos deviam estar exaustos depois de sua longa marcha
insone. Tyrion perguntou-se o que o rapaz pensara. Teria esperado
apanhá-los de surpresa durante o sono? Poucas hipóteses havia de
isso acontecer; não importa o que se dissesse dele, Tywin Lannister
não era nenhum tolo.
A vanguarda reunia-se à esquerda. Viu primeiro a bandeira, três cães
negros sobre fundo amarelo. Sor Gregor encontrava-se por baixo,
montado no maior cavalo que Tyrion jamais vira. Bronn deu-lhe uma
olhadela e sorriu.
- Siga sempre um homem grande para a batalha. Tyrion respondeu
com um olhar duro.
- E por quê?
- Fazem uns alvos magníficos. Aquele vai atrair os olhares de todos
os arqueiros presentes no campo.
Rindo, Tyrion olhou a Montanha com novos olhos.
- Confesso que não o tinha visto a essa luz.
Clegane não possuía esplendor algum; sua armadura era de placa de
aço de um cinza baço, marcada pelo uso duro, e não exibia nem
símbolos nem ornamentos. Indicava aos homens as suas posições
com a arma, uma espada longa de duas mãos que Sor Gregor
brandia como um homem menor poderia brandir um punhal.
- Eu mesmo matarei qualquer homem que fuja - ele estava rugindo
quando viu Tyrion. -Duende! Para a esquerda. Mantenha o rio. Se for
capaz.
A esquerda da esquerda. Para flanqueá-los, os Stark precisariam de
cavalos capazes de correr sobre a água. Tyrion levou seus homens
para a margem do rio.
- Olhem - gritou, apontando com o machado. - O rio - uma camada
de névoa pálida ainda aderia à superfície da água, com a corrente
verde-escura rodopiando por baixo. Os baixios eram lamacentos e
afogados em juncos. - Aquele rio é nosso. Aconteça o que acontecer,
mantenham-se perto da água. Não a percam nunca de vista.
Impeçam o inimigo de se interpor entre nós e o nosso rio. Se eles
conspurcarem nossas águas, arranquem seus membros e alimentem
os peixes com eles.
Shagga tinha um machado em cada mão. Bateu um de encontro ao
outro, fazendo-os ressoar.
- Meio-Homem! - gritou. Outros Corvos de Pedra acompanharam o
grito, e os Orelhas Negras e Irmãos da Lua também. Os Homens
Queimados não gritaram, mas fizeram chocalhar as espadas e as
lanças. - Meio-Homem! Meio-Homem! Meio-Homem!
Tyrion fez o corcel descrever um círculo para observar o terreno. Ali,
era ondulado e irregular; mole e lamacento perto do rio, subindo em
ligeiro declive até a Estrada do Rei, pedregoso e quebrado do outro
lado, a leste. Algumas árvores manchavam as vertentes das colinas,
mas a maior parte da terra fora limpa e plantada. Seu coração batia
no peito em uníssono com os tambores, e sentia a testa fria de suor
sob as camadas de couro e aço. Observou Sor Gregor enquanto a
Montanha cavalgava para cima e para baixo ao longo das fileiras,
gritando e gesticulando. Também esta ala era toda de cavalaria, mas
se a direita era um punho revestido de malha, de cavaleiros e
lanceiros pesados, a vanguarda era composta pelo lixo do Ocidente:
arqueiros montados com coletes de couro, um enxame indisciplinado
de cavaleiros livres e mercenários, trabalhadores rurais montados em
cavalos de arar e armados com foices e espadas enferrujadas dos
pais, rapazes meio treinados vindos dos prostíbulos de Lannisporto...
e Tyrion e seus homens dos clãs a cavalo.
- Comida para corvos - murmurou Bronn a seu lado, dando voz ao
que Tyrion deixara por dizer. Só pôde concordar com um aceno.
Teria o senhor seu pai perdido o juízo? Nenhum lanceiro, arqueiros
insuficientes, não mais que um punhado de cavaleiros, os mal
armados e os sem armadura, comandados por um bruto sem cabeça
que liderava com base na raiva.. Como podia o pai esperar que
aquela imitação grotesca de uma companhia segurasse o flanco
esquerdo?
Não teve tempo para pensar no assunto. Os tambores estavam tão
próximos que a batida se infiltrava sob sua pele e deixava suas mãos
em convulsões. Bronn desembainhou a espada, e de repente o
inimigo surgiu à frente deles, transbordando sobre os cumes das
colinas, avançando a passo medido por trás de um muro de escudos
e lanças.
Malditos sejam os deuses, olha para todos eles, pensou Tyrion,
embora soubesse que o pai tinha mais homens no terreno. Seus
capitães lideravam-nos montados em cavalos de batalha revestidos de
armadura, com os porta-estandartes transportando as bandeiras a
seu lado. Vislumbrou o alce macho dos Hornwood, o sol raiado dos
Karstark, o machado de batalha de Lorde Cerwyn e o punho
revestido de malha dos Glover... e as torres gêmeas de Frey, azuis em
fundo cinza. Lá se ia a certeza do pai de que Lorde Walder nada
faria. Podia ver-se o branco da Casa Stark por todo o lado, com os
lobos gigantes cinzentos parecendo correr e saltar à medida que os
estandartes iam se revirando e agitando no topo dos grandes
mastros. Onde está o rapaz?, interrogou-se Tyrion.
Uma trompa de guerra soou. Haruuuuuuuuuuuuu, gritou, com uma
voz tão longa, grave e arrepiante como um vento frio vindo do norte.
As trombetas dos Lannister responderam-lhe, da-DA da-DA da-
DAAAAAAA, um som de bronze e desafio, mas a Tyrion pareceu que
de algum modo soavam menores, mais ansiosas. Sentia uma agitação
nas entranhas, uma sensação de náusea líquida; esperava que não
fosse morrer enjoado.
Quando as trombetas se calaram, um silvo encheu o ar; uma vasta
nuvem de setas subiu em arco, à direita de Tyrion, de onde os
arqueiros flanqueavam a estrada. Os nortenhos desataram a correr,
gritando enquanto se aproximavam, mas as setas dos Lannister
caíram sobre eles como chuva, centenas de setas, milhares, e os
gritos de guerra iam se transformando em gritos de dor à medida
que os homens tropeçavam e caíam. Então já uma segunda nuvem
estava no ar, e os arqueiros colocavam uma terceira seta nas cordas
de seus arcos.
As trombetas gritaram de novo, da-DAAA da-DAAA da-DA da-DA da-
DAAAAAAAA. Sor Gregor brandiu sua enorme espada e berrou uma
ordem, e um milhar de outras vozes respondeu aos gritos. Tyrion
esporeou o cavalo, acrescentou mais uma voz à cacofonia, e a
vanguarda avançou.
- O rio! - gritou a seus homens enquanto avançavam. - Lembrem-se,
exterminem tudo até o rio - continuou a liderar quando passaram a
galope leve, até que Chella deu um grito de congelar o sangue e o
ultrapassou, e Shagga uivou e a seguiu. Os homens dos clãs
avançaram atrás deles, deixando Tyrion no meio da poeira que
levantaram.
Em frente, tinha se formado um crescente de lanceiros inimigos, um
duplo ouriço de aço, à espera, atrás de escudos altos de carvalho
marcados com o sol raiado de Karstark. Gregor Clegane foi o
primeiro a atingi-los, liderando uma cunha de veteranos revestidos
de armadura. Metade dos cavalos recuou no último momento,
quebrando o avanço em frente da fila de lanças. Os outros
morreram, com afiadas pontas de aço rasgando-lhes o peito. Tyrion
viu uma dúzia de homens cair. O garanhão da Montanha empinou-
se, escoiceando com cascos calçados de aço quando uma ponta de
lança farpada lhe varreu o pescoço. Enlouquecido, o animal lançou-se
a galope sobre as fileiras inimigas. Lanças o atingiram vindas de
todas as direções, mas a muralha de escudos quebrou-se sob o seu
peso. Os nortenhos fugiram dos estertores de morte do animal aos
tropeções. Enquanto o cavalo caía, resfolegando sangue e mordendo
com o seu último fôlego vermelho, a Montanha ergueu-se incólume,
varrendo as redondezas com sua grande espada de duas mãos.
Shagga arremeteu pela abertura antes que os escudos conseguissem
fechá-la, com os outros Corvos de Pedra logo atrás. Tyrion gritou:
- Homens Queimados! Irmãos da Lua! Atrás de mim! - mas a maior
parte deles estava à sua frente. Viu de relance Timett, filho de
Timett, saltar quando a sua montaria morreu em pleno galope entre
suas pernas; viu um Irmão da Lua empalado por uma lança Karstark;
observou o cavalo de Cronn estilhaçando as costelas de um homem
com um coice. Uma nuvem de setas caiu sobre eles; não saberia
dizer de onde vinham, mas caíram tanto sobre homens dos Stark
como dos Lannister, matraqueando nas armaduras ou encontrando
carne. Tyrion ergueu o escudo e escondeu-se sob ele.
O ouriço estava ruindo, e os nortenhos recuavam sob o impacto do
assalto a cavalo. Tyrion viu Shagga apanhar um lanceiro em cheio no
peito quando o louco correu sobre ele; viu o machado cortar cota de
malha, couro, músculo e pulmões. O homem morreu em pé, com a
cabeça do machado alojada no peito, mas Shagga continuou a
avançar, abrindo um escudo em dois com o machado de batalha da
mão esquerda, enquanto o cadáver balançava e tropeçava molemente
do seu lado direito. Por fim, o morto deslizou e caiu. Shagga fez
ressoar os dois machados um contra o outro e rugiu.
Então, o inimigo já havia caído sobre ele, e a batalha de Tyrion
minguou para os poucos centímetros de terreno que rodeavam seu
cavalo. Um homem de armas lançou-lhe uma estocada no peito, e
seu machado saltou, afastando a lança. O homem recuou dançando,
para outra tentativa, mas Tyrion esporeou o cavalo, fazendo-o passar
por cima dele. Bronn estava rodeado por três inimigos, mas cortou a
cabeça da primeira lança que veio contra ele e, no contragolpe,
varreu a cara de um segundo homem com sua lâmina.
Uma lança de arremesso precipitou-se sobre Tyrion, vinda da
esquerda, e alojou-se em seu escudo com um tunc de madeira.
Virou-se e lançou-se em perseguição do atirador, mas o homem
ergueu o escudo sobre a cabeça. Tyrion fez chover golpes de
machado sobre a madeira, movendo-se em círculos em redor do
homem. Lascas de carvalho saltaram e partiram voando, até que o
nortenho perdeu o equilíbrio e escorregou, caindo de costas sob o
escudo. Encontrava-se abaixo do alcance do machado de Tyrion, e
desmontar era incômodo demais, de modo que o deixou ali e foi
atrás de outro homem, apanhando-o pelas costas com um golpe em
arco de cima para baixo que lhe sacudiu o braço com o impacto.
Conseguiu com isso um momento de pausa. Puxando as rédeas,
procurou o rio. E ali estava ele, à direita. Sem saber por que, virara-
se para trás.
Um Homem Queimado passou por ele, caído sobre o cavalo. Uma
lança penetrara-lhe a barriga e saía pelas costas. Estava para lá de
qualquer ajuda, mas quando Tyrion viu um dos nortenhos correndo
e tentando agarrar-lhe as rédeas, avançou.
Sua presa enfrentou-o de espada na mão. Era alto e seco, com uma
longa camisa de cota e manoplas articuladas de aço, mas perdera o
elmo e corria-lhe sangue sobre os olhos, vindo de uma ferida na
testa. Tyrion lançou-lhe um golpe na cara, mas o homem alto o
afastou.
- Anão - gritou. - Morre - virou-se em círculo, enquanto Tyrion o
rodeava montado no cavalo, lançando-lhe golpes na cabeça e nos
ombros. Aço ressoava contra aço, e Tyrion depressa percebeu que o
homem alto era mais rápido e mais forte do que ele. Onde, nos sete
infernos, estava Bronn? - Morre - grunhiu o homem novamente,
atacando-o furiosamente. Tyrion quase não conseguiu erguer o
escudo a tempo, e a madeira pareceu explodir para dentro com a
força do golpe. Os estilhaços do escudo caíram-lhe do braço. -
Morre! - berrou o espadachim, avançando e dando uma pancada tão
forte nas têmporas de Tyrion que lhe deixou a cabeça ressoando. A
lâmina fez um hediondo som de arranhar quando o homem a puxou.
O homem alto sorriu. . até ser mordido pelo corcel de batalha de
Tyrion, rápido como uma serpente, que lhe abriu a bochecha até o
osso. Então gritou. Tyrion enterrou-lhe o machado na cabeça.
- Morre você - disse-lhe, e foi o que ele fez. Ao libertar a lâmina,
ouviu um grito.
- Eddard! - ressoou uma voz. - Por Eddard e Winterfell! - o cavaleiro
caiu sobre ele como um trovão, fazendo rodopiar a bola eriçada de
hastes de uma maça de armas por cima da cabeça. Os cavalos de
batalha se chocaram antes que Tyrion conseguisse sequer abrir a
boca para gritar por Bronn. O cotovelo direito explodiu de dor
quando as hastes penetraram através do metal fino que rodeava a
articulação. O machado foi perdido naquele instante. Estendeu a mão
para a espada, mas a maça fazia de novo um arco, dirigido ao seu
rosto. Não se deu conta de ter atingido o chão, mas quando olhou
para cima viu apenas céu. Rolou sobre o flanco e tentou se erguer,
mas o corpo estremeceu-lhe de dor e o mundo começou a latejar, O
cavaleiro que o derrubara aproximou-se. - Tyrion, o Duende -
trovejou. - E meu. Rende-se, Lannister?
Sim, pensou Tyrion, mas a palavra ficou presa na garganta. Fez um
som semelhante a um coaxar e pôs-se de joelhos com dificuldade,
procurando desajeitadamente uma arma. A espada, o punhal,
qualquer coisa...
- Rende-se? - o cavaleiro pairava sobre ele em seu cavalo de guerra
recoberto de armadura. Ambos, homem e cavalo, pareciam imensos.
A bola de hastes rodopiava num círculo lento. As mãos de Tyrion
estavam dormentes, a visão, desfocada, a bainha da espada vazia. -
Renda-se ou morrerá - declarou o cavaleiro, fazendo rodopiar o
malho cada vez mais depressa.
Tyrion conseguiu pôr-se de pé, atirando a cabeça contra a barriga do
cavalo. O animal soltou um grito terrível e empinou-se. Tentou
libertar-se da agonia da dor, retorcendo-se, choveram sangue e
vísceras sobre a cara de Tyrion e o cavalo caiu como uma avalanche.
Quando deu por si, tinha o visor tapado com lama e algo lhe
esmagava o pé. Conseguiu libertar-se, com a garganta tão apertada
que quase não conseguia falar.
- ... rend. . - coaxou por fim, num fio de voz.
- Sim - gemeu uma voz, espessa de dor.
Tyrion raspou a lama do visor para conseguir ver. O cavalo tombara
para o outro lado, para cima do cavaleiro. Este tinha a perna presa e
o braço que usara para amparar a queda torcido num ângulo
grotesco.
- Rendo-me - repetiu. Apalpando o cinto com a mão capaz, sacou
uma espada e lançou-a aos pés de Tyrion. - Rendo-me, senhor.
Aturdido, o anão ajoelhou-se e ergueu a arma. A dor atacou-lhe o
cotovelo quando moveu o braço. A batalha parecia ter se deslocado
para a frente. Ninguém permanecia naquela parte do terreno, salvo
um grande número de cadáveres. Os corvos já voavam em círculos e
aterrissavam para se alimentar. Viu que Sor Kevan trouxera seu
centro em suporte da vanguarda; sua enorme massa de lanceiros
tinha empurrado os nortenhos contra os montes. Lutava-se nas
encostas, com lanças atacando outra muralha de escudos, agora ovais
e reforçados com rebites de ferro. Enquanto observava, o ar voltou a
encher-se de setas, e os homens atrás da muralha de carvalho ruíram
sob aquele fogo assassino.
- Creio que está perdendo, senhor - disse ao cavaleiro sob o cavalo. O
homem não lhe deu resposta.
O som de cascos vindo às suas costas o fez rodopiar, embora quase
não conseguisse levantar a espada devido à tremenda dor que sentia
no cotovelo. Bronn puxou as rédeas e o olhou.
- Acabou por ser de pouco uso - disse-lhe Tyrion.
- Parece que se desembaraçou suficientemente bem sozinho -
respondeu Bronn. - Mas perdeu a haste do elmo.
Tyrion apalpou o topo do elmo. A haste tinha sido completamente
arrancada.
- Não a perdi. Sei perfeitamente onde ela está. Onde está meu
cavalo?
Quando encontraram o animal, as trombetas tinham voltado a soar, e
a reserva de Lorde Tywin desceu numa larga curva ao longo do rio.
Tyrion observou o pai, que passou por ele a grande velocidade, com
o estandarte de carmim e ouro dos Lannister ondulando sobre sua
cabeça enquanto trovejava pelo campo afora. Rodeavam-no
quinhentos cavaleiros, com a luz do sol arrancando relâmpagos das
pontas de suas lanças. Os restos das linhas dos Stark estilhaçaram-se
como vidro sob o poder daquela carga.
Com o cotovelo inchado e latejando dentro da armadura, Tyrion não
fez nenhuma tentativa de se juntar ao massacre. Ele e Bronn
partiram em busca de seus homens. Encontrou muitos entre os
mortos. Ulf, filho de Umar, jazia num charco de sangue que
coagulava, com o braço desaparecido até o cotovelo, e uma dúzia de
seus Irmãos da Lua espalhados ao redor. Shagga estava estatelado
embaixo de uma árvore, cravejado de setas, abraçado à cabeça de
Cronn. Tyrion pensou que estivessem ambos mortos, mas, quando
desmontou, Shagga abriu os olhos e disse:
- Mataram Cronn, filho de Coratt - o belo Cronn não ostentava
nenhuma marca além da mancha vermelha que tinha no peito, onde
a lança o matara. Quando Bronn puxou Shagga e o pôs de pé, o
grande homem pareceu reparar nas setas pela primeira vez.
Arrancou-as uma a uma, amaldiçoando os buracos que tinham feito
em suas camadas de cota de malha e couro e berrando como um
bebê com as poucas que haviam se enterrado na carne. Chella, filha
de Cheyk, aproximou-se enquanto arrancavam as setas de Shagga e
mostrou-lhes quatro orelhas que conseguira. Descobriram Timett
saqueando os corpos dos mortos com seus Homens Queimados. Dos
trezentos homens dos clãs que tinham seguido Tyrion Lannister para
a batalha, talvez tivesse sobrevivido metade.
Deixou os vivos tratando dos mortos, mandou Bronn tomar conta do
cavaleiro prisioneiro e foi sozinho em busca do pai. Lorde Tywin
encontrava-se sentado junto ao rio, bebericando vinho de uma taça
cravejada de jóias enquanto o escudeiro desprendia sua placa de
peito.
- Uma bela vitória - disse Sor Kevan quando viu Tyrion. - Seus
selvagens lutaram bem. Os olhos do pai estavam postos nele, verde-
claros manchados de dourado, tão frios que
Tyrion se arrepiou.
- Isso o surpreendeu, pai? - perguntou. - Estragou seus planos?
Deveríamos ter sido massacrados, não é verdade?
Lorde Tywin esvaziou a taça, sem expressão no rosto.
- Sim, pus os homens menos disciplinados na esquerda. Previ que
quebrassem. Robb Stark é um rapaz verde, provavelmente mais
ousado que sábio. Tive esperança de que, se ele visse nossa ala
esquerda ruir, pudesse mergulhar pela abertura, ansioso por uma
debandada. Depois de se ter entregado por completo, as lanças de
Sor Kevan dariam meia-volta e o apanhariam pelo flanco,
empurrando-o para o rio enquanto eu trazia a reserva.
- E achou que o melhor seria me colocar no meio dessa carnificina,
mantendo-me na ignorância de seus planos.
- Uma debandada fingida é menos convincente - disse o pai -, e não
me sinto inclinado a confiar meus planos a um homem que se
associa a mercenários e selvagens.
- Pena que meus selvagens arruinaram a sua dança - Tyrion tirou a
manopla de aço e a deixou cair ao chão, encolhendo-se com a dor
que lhe apunhalou o braço.
- O rapaz Stark mostrou ser mais cauteloso do que eu esperava de
alguém da sua idade - admitiu Lorde Tywin -, mas uma vitória é uma
vitória. Parece que está ferido.
O braço direito de Tyrion estava ensopado de sangue.
- Que bom que reparou, pai - disse ele entre dentes cerrados. - Seria
muito incômodo pedir a seus meistres para me atenderem? A menos
que lhe dê prazer a ideia de ter um anão maneta como filho...
Um grito urgente de "Lorde Tywin!" fez o pai virar a cabeça antes
que pudesse responder. Tywin Lannister pôs-se em pé quando Sor
Addam Marbrand saltou de seu corcel. O cavalo estava espumando e
s angrava na boca. Sor Addam, um homem alto de cabelos escuros
acobreados que lhe caíam sobre os ombros, coberto por uma lustrosa
armadura de aço bronzeado com a árvore em chamas de sua Casa
gravada em negro na placa de peito, caiu sobre o joelho.
- Meu suserano, capturamos alguns de seus comandantes. Lorde
Cerwyn, Sor Wylis Manderly, Harrion Karstark, quatro dos Frey.
Lorde Hornwood está morto, e temo que Roose Boíton nos tenha
escapado.
- E o rapaz? - perguntou Lorde Tywin.
Sor Addam hesitou.
- O rapaz Stark não estava com eles, senhor. Dizem que atravessou o
rio nas Gêmeas com a maior parte da cavalaria, avançando
rapidamente para Correrrio.
Um rapaz verde, recordou Tyrion, provavelmente mais ousado que
sábio. Teria soltado uma gargalhada, se não doesse tanto.
Catelyn
Os bosques estavam cheios de murmúrios. O luar tremeluzia nas
águas agitadas do córrego enquanto este abria seu caminho rochoso
pelo fundo do vale. Sob as árvores, cavalos de guerra relinchavam
baixinho e escarvavam o solo úmido e coberto de folhas, e homens
trocavam palavras nervosas em vozes segredadas. De quando em
quando ouvia-se o tinir de lanças, o leve deslizar metálico da cota de
malha, mas até esses sons eram abafados.
-Já não deve demorar, senhora - disse Hallis Mollen. Pedira a honra
de protegê-la durante a batalha que vinha aí; era seu direito, como
capitão da guarda de Winterfell, e Robb não lhe recusara. Tinha
trinta homens em seu redor, encarregados da tarefa de mantê-la
segura e levá-la a salvo até Winterfell se a luta corresse mal. Robb
quisera cinquenta; Catelyn insistira que dez seriam suficientes, que
ele necessitaria de todas as espadas para a luta. Tinham chegado aos
trinta, nenhum deles satisfeito com o resultado.
- Chegará quando chegar - disse-lhe Catelyn. Sabia que, quando
chegasse, significaria a morte. Talvez a morte de Hal. . ou a sua, ou a
de Robb. Ninguém estava a salvo. Nenhuma vida era certa. Catelyn
estava satisfeita por esperar, por escutar os murmúrios nos bosques
e a tênue música do regato, por sentir o vento morno nos cabelos.
Afinal de contas, esperar não lhe era estranho. Seus homens sempre
a tinham feito esperar. "Espera por mim, gatinha", dizia-lhe sempre o
pai quando partia para a corte, para as feiras ou para batalhas. E ela
esperava, pacientemente em pé nas ameias de Correrrio, enquanto as
águas do Ramo Vermelho e do Pedregoso passavam pelo castelo. Ele
nem sempre chegava quando dizia, e por vezes passavam-se vários
dias enquanto Catelyn mantinha sua vigília, espreitando por ameias e
seteiras até vislumbrar Lorde Hoster sobre seu velho castrado
castanho, trotando pela margem do rio até o atracadouro."Esperou
por mim?", perguntava quando se dobrava para abraçá-la. "Esperou,
gatinha?"
Brandon Stark também lhe pedira para esperar. "Não demorarei,
senhora", garantira. "Casaremos quando eu regressar." Mas quando o
dia por fim chegara, era seu irmão Eddard quem estava a seu lado
no septo.
Ned permanecera pouco mais de uma quinzena com sua nova esposa
antes de também ele partir para a guerra com promessas nos lábios.
Pelo menos, a deixara com mais do que palavras; dera-lhe um filho.
Nove luas tinham crescido e minguado, e Robb nascera em Correrrio
enquanto o pai ainda guerreava no sul. Dera-o à luz, em sangue e
dor, sem saber se Ned chegaria a vê-lo. Seu filho. Fora tão pequeno. .
E agora era por Robb que esperava... por Robb e por Jaime Lannister,
o cavaleiro dourado que os homens diziam que nunca aprendera a
esperar. "O Regicida é irrequieto e irrita-se facilmente", dissera tio
Brynden a Robb. E apostara suas vidas e suas melhores esperanças
de vitória na verdade do que dissera.
Se Robb estava assustado, não mostrava sinal disso. Catelyn observou
o filho enquanto se movia por entre os homens, tocando um no
ombro, trocando um gracejo com outro, ajudando um terceiro a
sossegar um cavalo ansioso. Sua armadura tinia levemente quando se
movia. Só a cabeça se encontrava descoberta. Catelyn viu uma brisa
agitar seus cabelos ruivos, tão parecidos com os dela, e perguntou a
si mesma quando fora que o filho crescera tanto. Quinze anos, e
quase tão alto como ela.
Deixem que cresça mais, pediu aos deuses. Deixem que conheça os
dezesseis anos, e os vinte, e os cinquenta. Deixem que cresça tão alto
como o pai, e que erga o próprio filho nos braços. Por favor, por
favor, por favor. Enquanto o observava, aquele jovem alto com a
barba nova e o lobo selvagem que lhe seguia os calcanhares, tudo o
que conseguia ver era o bebê que haviam colocado em seu peito em
Correrrio havia tanto tempo.
A noite estava quente, mas pensar em Correrrio era o suficiente para
fazê-la estremecer. Onde estão eles?, perguntou-se. Poderia o tio ter
se enganado? Tanta coisa dependia da verdade do que lhes tinha
dito. Robb dera ao Peixe Negro trezentos homens com lanças e os
enviara à frente para ocultar sua marcha.
-Jaime não sabe - dissera Sor Brynden quando regressara. - Aposto
nisso a minha vida. Nenhuma ave lhe chegou, meus arqueiros
certificaram-se disso. Vimos alguns de seus batedores, mas os que
nos viram não sobreviveram para ir lhe contar. Ele deveria tê-los
mandado em maior número. Não sabe.
- De que tamanho é a sua tropa? - perguntara o filho de Catelyn.
- Doze mil homens a pé, espalhados em torno do castelo em três
acampamentos separados, com os rios entre eles - respondera o tio,
com o sorriso assimétrico de que se lembrava tão bem. - Não há
outra forma de montar cerco a Correrrio, mas, mesmo assim, isso
será a ruína deles. Dois ou três mil homens a cavalo.
- O Regicida tem três homens contra cada um dos nossos - dissera
Galbart Glover.
- É verdade - dissera Sor Brynden -, mas há uma coisa que falta a
Sor Jaime.
- Sim? - perguntara Robb.
- Paciência.
A tropa do Norte era maior do que quando deixara as Gêmeas. Lorde
Jason Mallister trouxera as suas forças de Guardamar para se juntar
a eles quando rodeavam a nascente do Ramo Azul e se dirigiam a
galope para o sul, e outros também haviam se juntado, pequenos
cavaleiros e senhores, homens de armas sem chefe que tinham fugido
para o norte quando o exército de seu irmão Edmure fora desfeito
sob as muralhas de Correrrio. Tinham exigido o mais que se atre-
viam dos cavalos, a fim de chegar àquele lugar antes que Jaime
Lannister soubesse de sua vinda, e agora a hora estava próxima.
Catelyn viu o filho montar. Olyvar Frey segurava-lhe o cavalo. Era
filho de Lorde Walder, dois anos mais velho que Robb, e dez anos
mais jovem e ansioso. Atou o escudo de Robb no lugar e entregou-
lhe o elmo. Quando o baixou sobre o rosto que ela amava tanto, um
jovem e alto cavaleiro surgiu montado no garanhão cinzento no lugar
onde o filho estivera. Estava escuro entre as árvores, aonde a lua não
chegava. Quando Robb virou a cabeça para vê-la, só enxergava negro
dentro de seu visor.
- Tenho de percorrer a fileira, mãe - ele disse. - Meu pai diz que
devemos deixar que os homens nos vejam antes das batalhas.
- Então vá - disse ela. - Deixa que te vejam.
- Isso lhes dará coragem - disse Robb.
E quem dará coragem a mim?, ela perguntou a si mesma, mas
manteve o silêncio e obrigou-se a sorrir. Robb virou o grande
garanhão cinzento e afastou-se lentamente dela, com Vento Cinzento
a seguir-lhe os movimentos como uma sombra. Atrás dele, a guarda
de batalha entrou em formação. Quando forçara Catelyn a aceitar
seus protetores, ela insistira que ele também fosse guardado, e os
senhores vassalos tinham concordado. Muitos de seus filhos tinham
clamado pela honra de acompanhar o Jovem Lobo, como tinham
começado a chamá-lo. Torrhen Karstark e o irmão Eddard
encontravam-se entre os trinta, tal como Patrek Mallister, Pequeno-
Jon Umber, Daryn Hornwaod, Theon Greyjoy, não menos que cinco
dos muitos descendentes de Walder Frey, bem como homens mais
velhos, como Sor Wendel Manderly e Robin Flint. Um de seus
companheiros era até mesmo uma mulher: Dacey Mormont, a filha
mais velha da Senhora Maege e herdeira da Ilha dos Ursos, uma
esguia mulher de um metro e oitenta a quem fora dada uma maça
de armas numa idade em que à maioria das mulheres eram
oferecidas bonecas. Alguns dos outros senhores resmungavam a esse
respeito, mas Catelyn não queria ouvir suas queixas.
- Isto não tem a ver com a honra de suas Casas - dissera-lhes. - Tem
a ver com manter meu filho vivo e inteiro.
E se chegar a esse ponto, perguntou-se, serão trinta suficientes?
Serão seis mil suficientes?
Uma ave soltou um grito fraco a distância, um trinado agudo e
sonoro que foi como uma mão de gelo no pescoço de Catelyn. Outra
ave respondeu; uma terceira, uma quarta. Conhecia bastante bem o
seu chamado dos anos que passara em Winterfell. Picanços das
neves. Por vezes eram vistos em pleno inverno, quando o bosque
sagrado estava branco e imóvel. Eram aves do norte.
Vêm aí, pensou Catelyn.
- Vêm aí, senhora - segredou Hal Mollen. Estava sempre pronto a
afirmar o óbvio. - Que os deuses nos acompanhem.
Catelyn concordou com um aceno enquanto os bosques sossegavam
ao seu redor. No silêncio, conseguiu ouvi-los, distantes, mas
aproximando-se; os passos de muitos cavalos, o chocalhar das
espadas, lanças e armaduras, o murmúrio de vozes humanas, com
uma gargalhada aqui, uma praga ali.
Parecia durar uma eternidade. Os sons tornaram-se mais altos. Ouviu
mais risos, uma ordem gritada, o respingar de água quando
atravessaram e voltaram a atravessar o pequeno córrego. Um cavalo
resfolegou. Um homem praguejou. E então o viu por fim... só por um
instante, enquadrado entre os ramos das árvores enquanto olhava
para o fundo do vale, mas sabia que era ele. Mesmo a distância, Sor
Jaime Lannister era inconfundível. O luar tornara prateados sua
armadura e o dourado dos cabelos, e transformara o manto
carmesim em negro. Não trazia elmo.
Estivera ali e voltara a desaparecer, com a armadura prateada
escondida de novo pelas árvores. Outros seguiam atrás dele, em
longas colunas, cavaleiros, espadas juramentadas e cavaleiros livres,
três quartos da cavalaria Lannister.
- Ele não é homem para ficar sentado em uma tenda enquanto seus
carpinteiros constroem torres de cerco - prometera Sor Brynden. - Já
por três vezes acompanhou os cavaleiros em investidas, para
perseguir atacantes ou assaltar uma fortaleza obstinada.
Meneando, Robb estudara o mapa que o tio lhe desenhara. Ned
ensinara-lhe a ler mapas.
- Ataquem-no aqui - dissera, apontando. - Algumas centenas de
homens, não mais. Estandartes Tully. Quando vier atrás de vocês,
estaremos à espera - o dedo movera-se uma polegada para a
esquerda - aqui.
Aqui era uma quietude na noite, luar e sombras, um espesso tapete
de folhas mortas no chão, vertentes densamente florestadas,
descendo suavemente até o leito do córrego, com a vegetação rasteira
rarefazendo-se à medida que a altitude diminuía.
Aqui estava o filho de Catelyn em seu garanhão, dando-lhe um
último olhar e erguendo a espada numa saudação.
Aqui era o chamamento do corno de guerra de Maege Mormont, um
longo sopro grave que trovejou pelo vale vindo do leste, para lhes
dizer que os últimos cavaleiros de Jaime tinham entrado na
armadilha.
E Vento Cinzento atirou a cabeça para trás e uivou.
O som pareceu atravessar Catelyn Stark, e ela deu por si tremendo.
Era um som terrível, um som assustador, mas também havia música
nele. Por um segundo, sentiu algo semelhante à piedade pelos
Lannister lá embaixo. Então é assim que soa a morte, pensou.
HAAruuuuuuuuuuuuuuuuuuuu, veio a resposta da outra cumeada quando
Grande-Jon soprou seu corno. Para leste e oeste, as trombetas dos
Mallister e dos Frey sopraram vingança. A norte, onde o vale se
estreitava e se dobrava como um cotovelo erguido, os cornos de
guerra de Lorde Karstark adicionaram suas vozes profundas e
fúnebres àquele coro sombrio. No córrego, lá embaixo, homens
gritavam e cavalos empinavam-se.
O bosque sussurrante deixou escapar todo o seu fôlego de repente,
quando os arqueiros que Robb escondera nos ramos das árvores
dispararam suas setas e a noite entrou em erupção com os gritos de
dor de homens e cavalos. A toda volta dela, os cavaleiros ergueram as
suas lanças, e a terra e as folhas que tinham coberto as cruéis pontas
cintilantes caíram e revelaram o brilho do aço afiado. Ouviu Robb
gritar "Winterfell!" no momento em que as setas voltaram a suspirar.
Afastou-se dela a trote, levando os homens para baixo.
Catelyn ficou imóvel sobre o cavalo, com Hal Mollen e a sua guarda
em torno de si, e esperou como esperara antes, por Brandon, por
Ned, pelo pai. Encontrava-se em um ponto elevado da colina, e as
árvores escondiam a maior parte do que estava se passando lá
embaixo. Um segundo, dois, quatro, e de repente foi como se ela e
seus protetores estivessem sós na floresta. Os outros tinham se
fundido com o verde.
Mas quando ergueu os olhos para a vertente oposta, viu os cavaleiros
de Grande-Jon emergir da escuridão sob as árvores. Vinham em uma
longa linha, uma linha infinita, e quando jorraram da floresta, houve
um instante, a menor parte de um segundo, em que tudo o que
Catelyn viu foi o luar refletido nas pontas de suas lanças, como se
um milhar de fogos-fátuos descessem a vertente, enfeitados pelas
chamas prateadas.
Então piscou, e eram apenas homens, correndo para matar ou
morrer.
Mais tarde, não poderia afirmar que vira a batalha. Mas a ouviu, e o
vale ressoou com ecos. O crac de uma lança quebrada, o tinir das
espadas, os gritos de "Lannister" "Winterfell" e "Tully! Correrrio e
Tully!". Quando compreendeu que nada mais havia para ver, fechou
os olhos e escutou. A batalha ganhou vida à sua volta. Ouviu batidas
de cascos, botas de ferro chapinhando em água pouco profunda, o
som de madeira de espadas batendo em escudos de carvalho e o
raspar de aço contra aço, os silvos das setas, o trovejar dos tambores,
os gritos aterradores de mil cavalos. Homens berravam pragas e
suplicavam por misericórdia, e a recebiam (ou não), e sobreviviam
(ou morriam). As vertentes pareciam fazer truques estranhos com o
som. Uma vez, ouviu a voz de Robb, tão claramente como se
estivesse em pé a seu lado, gritando "A mim! A mim!". E ouviu seu
lobo gigante, rosnando e rugindo, escutou o estalar daqueles longos
dentes, o rasgar da carne, gritos de medo e de dor tanto de homem
como de cavalo. Haveria apenas um lobo? Era difícil dizer com
certeza.
Pouco a pouco, os sons diminuíram e desapareceram, até por fim
ficar apenas o lobo. Quando uma aurora vermelha surgiu no leste,
Vento Cinzento começou de novo a uivar.
Robb regressou para junto dela em outro cavalo, montando um
malhado castrado em vez do garanhão cinzento com que descera o
vale. Metade da cabeça de lobo no seu escudo tinha sido
despedaçada, vendo-se madeira nua onde profundos sulcos tinham
sido abertos no carvalho, mas o próprio Robb parecia não estar
ferido. No entanto, quando se aproximou, Catelyn viu que sua luva
de cota de malha e a manga de sua capa estavam negras de sangue.
- Está ferido - disse.
Robb ergueu a mão, abriu e fechou os dedos,
- Não. Isto é.. sangue de Torrhen, talvez, ou... - balançou a cabeça. -
Não sei.
Uma multidão de homens seguia-o ao longo da vertente, sujos,
amassados e sorridentes, com Theon e Grande-Jon à cabeça. Entre os
dois, arrastavam Sor Jaime Lannister, Atiraram-no ao chão em frente
do cavalo de Catelyn.
- O Regicida - anunciou Hal, sem necessidade. O Lannister levantou a
cabeça.
- Senhora Stark - disse, de joelhos. Corria-lhe sangue por uma face,
de um golpe no couro cabeludo, mas a luz pálida da aurora
devolvera-lhe o brilho do ouro aos cabelos. - Ofereceria à senhora
minha espada, mas parece que a perdi.
- Não é a sua espada que desejo, sor - disse-lhe ela. - Dê-me o meu
pai e o meu irmão Ed-mure. Dê-me as minhas filhas. Dê-me o meu
marido.
- Temo que os tenha perdido também.
- Uma pena - disse Catelyn friamente.
- Mate-o, Robb - pediu Theon Greyjoy. - Arranque-lhe a cabeça.
- Não - respondeu o filho de Catelyn, enquanto tirava a luva
sangrenta. - Ele é mais útil vivo que morto. E o senhor meu pai
nunca perdoou o assassinato de prisioneiros após uma batalha.
- Um homem sensato - disse Jaime Lannister - e honroso.
- Leve-o e acorrente-o - disse Catelyn.
- Faça como diz a senhora minha mãe - ordenou Robb - e trate para
que haja uma guarda forte à volta dele. Lorde Karstark quererá sua
cabeça num espeto.
- Isso sem dúvida - concordou Grande-Jon, gesticulando. O Lannister
foi levado para ser tratado e acorrentado.
- Por que motivo Lorde Karstark o quer morto? - perguntou Catelyn.
Robb afastou os olhos para a floresta, com a mesma expressão
pensativa que Ned fazia com frequência.
- Ele.. ele os matou..
- Os filhos de Lorde Karstark - explicou Galbart Glover.
- Os dois - disse Robb. - Torrhen e Eddard. E Daryn Hornwood
também.
- Ninguém pode acusar o Lannister de falta de coragem - disse
Glover. - Quando viu que estava perdido, reuniu os vassalos e abriu
caminho pela vertente acima, esperando chegar a Lorde Robb e
abatê-lo. E quase conseguiu,
- Perdeu a espada no pescoço de Eddard Karstark, depois de arrancar
a mão de Torrhen e de abrir o crânio de Daryn Hornwood - disse
Robb. - E todo o tempo gritava por mim. Se não tivessem tentado
detê-lo...
- ... Eu estaria agora de luto em vez de Lorde Karstark - disse
Catelyn. - Seus homens fizeram o que juraram fazer, Robb.
Morreram protegendo seu suserano. Chore por eles. Honre-os pelo
valor demonstrado. Mas agora não. Não há tempo para o luto. Pode
ter cortado a cabeça da serpente, mas três quartos do corpo ainda
estão enrolados ao redor do castelo de meu pai. Ganhamos uma
batalha, não a guerra.
- Mas que batalha! - disse Theon Greyjoy com ardor. - Senhora, o
reino não viu tamanha vitória desde o Campo de Fogo. Garanto, os
Lannister perderam dez homens por cada um dos nossos que caíram.
Capturamos perto de cem cavaleiros, e uma dúzia de senhores
vassalos. Lorde Westerling, Lorde Banefort, Sor Garth Greenfield,
Lorde Estren, Sor Tytos Brax, Maior, o Dor-neano.. e três Lannister
além de Jaime, sobrinhos de Lorde Tywin, dois dos filhos da irmã e
um do irmão morto...
- E Lorde Tywin? - interrompeu Catelyn. - Terá por acaso capturado
Lorde Tywin, Theon?
- Não - respondeu Greyjoy.
- Até que o faça, esta guerra está longe do fim. Robb ergueu a
cabeça e afastou os cabelos dos olhos.
- Minha mãe tem razão. Ainda temos Correrrio.
Daenery
As moscas voavam lentamente em volta de Khal Drogo, com as asas
zumbindo, um ruído baixo, no limiar da audição, que enchia Dany de
terror. O sol ia alto e impiedoso. O calor tremulava em ondas que
subiam dos afloramentos rochosos de colinas baixas. Um estreito fio
de suor escorria lentamente entre os seios inchados de Dany. Os
únicos sons que se ouviam eram o ruído regular dos cascos dos
cavalos, o tinir ritmado dos sinos nos cabelos de Drogo e as vozes
distantes atrás deles.
Dany observou as moscas. Eram grandes como abelhas, volumosas,
arroxeadas, brilhantes. Os dothrakis as chamavam de moscas de
sangue. Viviam em pântanos e lagoas de águas paradas, sugavam
sangue quer de homens quer de cavalos, e punham os ovos nos
mortos e nos moribundos. Drogo as odiava. Sempre que alguma se
aproximava dele, a mão disparava, rápida como um ataque de
serpente, e fechava-se à sua volta. Nunca o vira falhar. Mantinha a
mosca dentro de seu enorme punho durante o tempo suficiente para
ouvir seus frenéticos zumbidos. Depois, os dedos apertavam-se, e
quando voltava a abrir a mão, a mosca era apenas uma mancha
vermelha na palma.
Agora, uma rastejava pela garupa de seu garanhão, e o cavalo deu
uma sacudidela irritada na cauda para enxotá-la. As outras voaram
em volta de Drogo, cada vez mais perto. O khal não reagiu. Os olhos
fixavam-se em distantes colinas marrons, e as rédeas estavam soltas
nas mãos. Sob o colete pintado, um emplastro de folhas de figueira e
lama seca azul cobria a ferida que tinha no peito. As ervanárias o
tinham feito. O cataplasma de Mirri Maz Duur ardia e provocava-lhe
comichão, e ele o arrancara há seis dias, amaldiçoando-a e
chamando-a de maegu O emplastro de lama era mais calmante, e as
ervanárias fizeram também leite de papoula para ele. Tinha bebido
muito nos últimos três dias; quando não era leite de papoula, era
leite de égua fermentado ou cerveja picante.
Mas quase não tocava na comida, e agitava-se e gemia durante a
noite. Dany via como seu rosto se tornara cansado. Rhaego estava
inquieto dentro de sua barriga, dando pontapés como um garanhão,
mas nem isso despertava o interesse de Drogo como antes. Todas as
manhãs, os olhos dela encontravam novas rugas de dor em seu rosto
quando acordava de seu sono perturbado. E agora aquele silêncio.
Estava ficando assustada. Desde que tinham montado, de madrugada,
ele não dissera uma palavra. Quando ela falava, não obtinha
nenhuma resposta além de um grunhido, e desde o meio-dia nem
isso.
Uma das moscas de sangue pousou na pele nua do ombro do khal.
Outra, voando em círculos, pousou em seu pescoço e rastejou para
cima, na direção da boca. Khal Drogo oscilava na sela, fazendo soar
as campainhas, enquanto o garanhão prosseguia o caminho num
passo regular.
Dany empurrou os calcanhares contra a sua prata e aproximou-se.
- Senhor - disse em voz suave. - Drogo. Meu sol-e-estrelas.
Ele não pareceu ouvir. A mosca de sangue rastejou para baixo do
bigode pendente e instalou-se na prega ao lado do nariz. Dany arfou:
- Drogo - estendeu a mão, desajeitadamente, e tocou seu braço.
Khal Drogo cambaleou sobre a sela, inclinou-se devagar, e caiu
pesadamente do cavalo. As moscas espalharam-se por um segundo, e
depois regressaram, aos círculos, pousando em cima dele.
- Não - disse Dany, puxando as rédeas. Sem prestar atenção à barriga
pela primeira vez, saltou do cavalo e correu para ele.
A erva em sua pele estava marrom e seca. Drogo gritou de dor
quando Dany se ajoelhou a seu lado. A respiração raspava-lhe,
áspera, na garganta, e ele olhou para ela sem reconhecê-la.
- Meu cavalo - arquejou. Dany enxotou as moscas de seu peito,
esmagando uma como ele teria feito. A pele dele ardia sob seus
dedos.
Os companheiros de sangue do khal seguiam logo atrás. Dany ouviu
Haggo gritar enquanto se aproximava a galope. Cohollo saltou do
cavalo.
- Sangue do meu sangue - disse, enquanto caía de joelhos. Os outros
dois continuaram montados.
- Não - grunhiu Khal Drogo, lutando nos braços de Dany. - Tenho de
montar. Montar. Não.
- Ele caiu do cavalo - disse Haggo, olhando fixamente para baixo. O
largo rosto estava impassível, mas a voz era de chumbo.
- Não deve dizer isso - disse-lhe Dany. - Já avançamos o bastante
hoje. Acamparemos aqui.
- Aqui? - Haggo olhou em volta. A terra era parda e ressequida,
inóspita. - Isto não é lugar para acampar.
- Não cabe a uma mulher nos pedir para parar - disse Qotho -, nem
mesmo uma khaleesi.
- Acampamos aqui - repetiu Dany. - Haggo, diga-lhes que Khal Drogo
ordenou a parada. Se alguém perguntar por que, diga que o meu
tempo se aproxima e não consigo prosseguir. Cohollo, traga os
escravos, eles devem montar a tenda do khal de imediato. Qotho..
- Não me dê ordens, khaleesi - disse Qotho.
- Procure Mirri Maz Duur - disse-lhe ela. A esposa de deus devia
estar entre os outros Homens-Ovelhas, na longa coluna de escravos. -
Traga-a até mim com o seu cofre.
Qotho lançou-lhe um olhar intenso, com os olhos duros como sílex,
- A maegi - cuspiu. - Não farei isso.
- Fará - disse Dany -, senão, quando Drogo acordar, saberá por que
razão me desafiou.
Furioso, Qotho virou o garanhão e afastou-se a galope... mas Dany
sabia que regressaria com Mirri Maz Duur, por mais que não
gostasse disso. Os escravos erigiram a tenda de Khal Drogo sob um
afloramento recortado de rocha negra cuja sombra providenciava
algum alívio do calor do sol da tarde. Mesmo assim, estava sufocante
sob a sedareia quando Irri e Doreah ajudaram Dany a amparar
Drogo até o interior da tenda. Espessos tapetes ornamentados
tinham sido colocados sobre o chão, e almofadas estavam espalhadas
pelos cantos. Eroeh, a jovem tímida que Dany salvara fora das
muralhas de barro dos Homens-Ovelhas, acendeu um braseiro.
Estenderam Drogo em uma esteira trançada.
- Não - resmungou ele no Idioma Comum. - Não, não - foi tudo o
que disse, tudo o que parecia capaz de dizer.
Doreah desprendeu seu cinto de medalhões e o despiu do colete e
dos calções, enquanto Jhi-qui ajoelhava junto a seus pés para desatar
os nós das sandálias de montar. Irri quis deixar as abas da tenda
abertas para a aragem poder entrar, mas Dany a proibiu. Não queria
que ninguém visse Drogo assim, em delírio e fraco. Quando o seu
khas chegou, manteve-os lá fora, de guarda.
- Não deixe entrar ninguém sem a minha licença - disse a Jhogo. -
Ninguém. Eroeh fitou Drogo, temerosa.
- Ele morre - sussurrou.
Dany a esbofeteou.
- O khal não pode morrer. Ele é o pai do garanhão que monta o
mundo. Seu cabelo nunca foi cortado. Ainda usa as campainhas que
o pai lhe deu.
- Khaleesi - disse Jhiqui -, ele caiu do cavalo.
Tremendo, com os olhos subitamente cheios de lágrimas, Dany virou
o rosto para elas. Ele caiu do cavalo! Tinha acontecido, ela tinha
visto, e os companheiros de sangue, e sem dúvida que as aias e os
homens de seu khas também. Quantos mais? Não podia manter
segredo, e Dany sabia o que isso queria dizer. Um khal que não
conseguia montar não conseguia governar, e Drogo caíra do cavalo.
- Temos de lhe dar banho - disse ela teimosamente. Não podia
permitir-se o desespero. -Irri, manda que tragam a banheira
imediatamente. Doreah, Eroeh, encontrem água, água fria, ele está
tão quente - era uma fogueira em pele humana.
As escravas instalaram a pesada banheira de cobre no canto da
tenda. Quando Doreah trouxe o primeiro jarro de água, Dany
umedeceu um pano de seda e o pousou na testa de Drogo, sobre a
pele que queimava. Os olhos dele olharam para ela, mas não a viram.
Quando a boca se abriu, não deixou escapar nenhuma palavra, só um
gemido.
- Onde está Mirri Maz Duur? - ela exigiu saber, com a paciência
encurtada pelo medo.
- Qotho há de encontrá-la - disse Irri.
As aias encheram a banheira com água tépida que fedia a enxofre,
purificando-a com jarros de óleo amargo e punhados de folhas
esmagadas de menta. Enquanto o banho era preparado, Dany
ajoelhou-se desajeitadamente ao lado do senhor seu marido, a barriga
inchada com o filho de ambos lá dentro. Desfez-lhe a trança com
dedos ansiosos, como fizera na noite em que ele a possuíra pela
primeira vez, sob as estrelas. Pôs de lado as campainhas com
cuidado, uma a uma. Ele iria querê-las de novo quando estivesse
bem, disse Dany a si mesma.
Um sopro de ar entrou na tenda quando Aggo enfiou a cabeça
através da seda.
- Khaleesi - disse -, o ândalo chegou e pede licença para entrar. "O
ândalo" era como os dothrakis chamavam Sor Jorah.
- Sim - disse ela, erguendo-se desajeitadamente -, mande-o entrar -
confiava no cavaleiro. Ele saberia o que fazer se mais ninguém
soubesse.
Sor Jorah Mormont entrou, baixando a cabeça sob a aba da entrada
da tenda, e esperou um momento para que os olhos se ajustassem à
escuridão. No feroz calor do sul, usava calças largas de sedareia de
várias cores e sandálias abertas de montar atadas ao joelho. A bainha
de sua espada pendia de um cinto de pelo de cavalo trançado. Sob
um colete branqueado, o peito estava nu, com a pele vermelha pelo
sol.
- Fala-se ao ouvido por todo o khalasar - disse ele. - Dizem que Khal
Drogo caiu do cavalo.
- Ajude-o - suplicou Dany. - Pelo amor que diz ter por mim, ajude-o
agora.
O cavaleiro ajoelhou a seu lado. Olhou para Drogo com atenção
durante muito tempo e depois virou os olhos para Dany,
- Mande as aias embora.
Sem palavras, com a garganta apertada pelo medo, Dany fez um
gesto. Irri empurrou as outras para fora da tenda.
Quando ficaram a sós, Sor Jorah puxou o punhal. Habilmente, com
uma delicadeza surpreendente para um homem tão grande, começou
a raspar do peito de Drogo as folhas negras e a lama seca azul. O
emplastro tornara-se tão duro como os muros de barro dos Homens-
Ovelhas, e, tal como esses muros, rachava facilmente. Sor Jorah
quebrou a lama seca com a faca, afastou os pedaços da pele, puxou
as folhas uma a uma. Um cheiro doce e desagradável elevou-se da
ferida, tão forte que quase a sufocou. As folhas estavam cobertas de
sangue e pus, e o peito de Drogo, negro e cintilante de
decomposição.
- Não - sussurrou Dany enquanto as lágrimas lhe corriam pelo rosto.
- Não, por favor, deuses, ouçam-me, não.
Khal Drogo agitou-se, lutando contra algum inimigo invisível. O
sangue escorreu, lento e espesso, da ferida aberta.
- Vosso khal é um homem morto, princesa.
- Não, ele não pode morrer, não pode, era. só um corte - Dany
tomou a grande mão calosa de Drogo em suas mãos pequenas e
apertou-a com força. - Não deixarei que morra...
Sor Jorah soltou uma gargalhada amarga.
- Kholeesi ou rainha, essa ordem está para lá do seu poder. Poupe as
lágrimas, menina. Chore por ele amanhã, ou daqui a um ano. Não
temos tempo para o luto. Temos de partir, e depressa, antes que
morra.
Dany não compreendeu.
- Partir? Para onde partiríamos?
- Para Asshai, diria eu. Fica bem para o sul, no fim do mundo
conhecido, mas os homens dizem que é um grande porto.
Encontraremos um navio que nos leve de volta a Pentos. Será uma
viagem dura, não tenha ilusões. Confia em seu khasí Virão conosco?
- Khal Drogo ordenou-lhes que me mantivessem a salvo - respondeu
Dany em tom inseguro -, mas se morrer... - tocou o inchaço na
barriga. - Não compreendo. Por que haveríamos de fugir? Sou
khaleesi. Estou grávida do herdeiro de Drogo. Ele será khal após
Drogo...
Sor Jorah franziu as sobrancelhas.
- Princesa, escute-me. Os dothrakis não seguirão um bebê de peito.
Eles se curvavam perante a força de Drogo, e só perante isso.
Quando ele desaparecer, Jhaqo, Pono e o outro kos lutarão pelo seu
lugar, e seu khalasar se devorará. O vencedor não quererá rivais. O
rapaz será tirado de seu seio no momento em que nascer. Eles o
darão aos cães.
Dany abraçou-se.
- Mas por quê? - gritou com voz queixosa. - Por que haveriam de
matar um bebezinho?
- É filho de Drogo, e as feiticeiras dizem que será o garanhão que
monta o mundo. Foi profetizado. E melhor matar a criança do que se
arriscar à sua fúria quando crescer até ser homem.
O bebê deu um pontapé, como se tivesse ouvido. Dany recordou a
história que Viserys lhe contara sobre o que os cães do Usurpador
tinham feito aos filhos de Rhaegar. O filho dele também fora um
bebê, e mesmo assim o tinham arrancado do peito da mãe e
esmagado a cabeça contra uma parede. Assim eram os costumes dos
homens.
- Não podem fazer mal ao meu filho! - gritou. - Ordenarei ao meu
khas que o mantenha a salvo, e os companheiros de sangue de Drogo
irão...
Sor Jorah agarrou-a pelos ombros.
- Um companheiro de sangue morre com o seu khal Sabe disso, filha.
É certo que o levarão para Vaes Dothrak, para as feiticeiras, é o
último dever que têm para com ele em vida... quando o cumprirem,
se juntarão a Drogo nas terras da noite.
Dany não queria voltar para Vaes Dothrak e viver o resto da vida
entre aquelas terríveis velhas, mas sabia que o cavaleiro falava a
verdade. Drogo fora mais que o seu sol-e-estrelas; fora o escudo que
a mantivera a salvo.
- Não deixarei que isso aconteça - disse ela teimosamente, numa voz
infeliz. Voltou a pegar--lhe a mão. - Não deixarei.
Uma agitação na aba da tenda fez Dany virar a cabeça. Mirri Maz
Duur entrou, com uma profunda reverência. Dias de marcha atrás do
khalasar a tinham deixado coxa e exausta, com bolhas sangrentas nos
pés e covas sob os olhos. Atrás dela entraram Qotho e Haggo,
transportando o cofre da esposa de deus entre ambos. Quando os
companheiros de sangue repararam na ferida de Drogo, o cofre
deslizou dos dedos de Haggo e tombou ao chão da tenda, e Qotho
soltou uma praga tão forte que empestou o ar.
Mirri Maz Duur estudou Drogo, mantendo o rosto imóvel e morto.
- A ferida ulcerou.
- Isto é trabalho seu, maegi - disse Qotho. Haggo atirou o punho
contra o queixo de Mirri com um estalo carnudo que a jogou ao
chão. Depois a pontapeou.
- Pare com isso! - gritou Dany.
Qotho afastou Haggo da mulher, dizendo:
- Pontapés são muita misericórdia para uma maegi. Leve-a lá para
fora. Vamos prendê-la a uma estaca, para que sirva de montaria a
todos os homens que passarem por ela. E quando já nenhum a
quiser, os cães a usarão também. Doninhas rasgarão suas entranhas e
gralhas pretas se deliciarão com seus olhos. As moscas do rio
depositarão os ovos no ventre dela e beberão pus das ruínas de seus
seios... - enterrou dedos duros como ferro na carne mole e oscilante
do braço da esposa de deus e a pôs em pé.
- Não - disse Dany. - Não a quero machucada.
Os lábios de Qotho mostraram seus dentes tortos e escuros numa
terrível caricatura de sorriso.
- Não? Diz a mim que não? É melhor que reze para não a
prendermos ao lado da sua maegi. Você fez isto, tanto como ela.
Sor Jorah interpôs-se, desapertando a espada na bainha.
- Puxe as rédeas da língua, companheiro de sangue. A princesa ainda
é sua khaleesi.
- Só enquanto o sangue-do-meu-sangue sobreviver - disse Qotho ao
cavaleiro. - Quando morrer, não será nada.
Dany sentiu um aperto dentro de si.
- Antes de ser khaleesi, era do sangue do dragão. Sor Jorah, chame o
meu khas.
- Não - disse Qotho. - Nós saímos. Por enquanto.. khaleesi - Haggo
seguiu-o, carrancudo.
- Aquele a quer mal, princesa - disse Mormont. - Os dothrakis
acreditam que um homem e os seus companheiros de sangue
partilham uma vida, e Qotho a vê terminar. Um homem morto está
para lá do medo.
- Ninguém morreu - disse Dany. - Sor Jorah, posso precisar da sua
lâmina. É melhor colocar a armadura - estava mais assustada do que
se atrevia a admitir, até para si mesma.
O cavaleiro fez uma reverência.
- Às suas ordens - saiu a passos largos da tenda.
Dany virou-se para Mirri Maz Duur. Os olhos da mulher estavam
atentos.
- E assim me salvou outra vez.
- E agora você tem de salvá-lo - disse Dany. - Por favor...
- Não se pede a uma escrava - respondeu bruscamente Mirri -,
ordena - aproximou-se de Drogo, que ardia sobre a esteira, e olhou
longamente para a ferida. - Pedir ou ordenar, não faz diferença. Ele
está para lá das capacidades de um curandeiro - os olhos do khal
estavam fechados. Ela abriu um com os dedos. - Tem atenuado a dor
com leite de papoula.
- Sim - Dany admitiu.
- Fiz-lhe um cataplasma de vagem-de-fogo e não-me-piques, e atei-o
com uma pele de ovelha.
- Ele dizia que ardia. Arrancou-o. As ervanárias fizeram-lhe uma
nova, úmida e calmante.
- Sim, ardia. Há grande magia curativa no fogo, até seus homens sem
cabelo sabem disso.
- Faça um novo cataplasma - pediu Dany. - Desta vez eu asseguro
que ele não o arrancará.
- O tempo para isso passou, senhora - disse Mirri. - Tudo o que
posso fazer agora é tornar mais fácil o escuro caminho que ele tem a
percorrer, para que possa cavalgar sem dor para as terras da noite.
Terá partido pela manhã.
As palavras da mulher foram como uma faca espetada no peito de
Dany. Que tinha ela feito para tornar os deuses tão cruéis? Por fim
encontrara um lugar seguro, e por fim experimentara o amor e a
esperança. Finalmente estava a caminho de casa. E agora perdia
tudo...
- Não - suplicou. - Salve-o, e juro que a liberto. Deve conhecer uma
maneira... alguma magia, algum..
Mirri Maz Duur apoiou o peso nos calcanhares e estudou Daenerys
com os olhos negros como a noite.
- Existe um feitiço - a voz era silenciosa, pouco mais que um suspiro.
- Mas é duro, senhora, e escuro. Alguns diriam que a morte é mais
limpa. Aprendi-o em Asshai, e paguei caro pela lição. Meu professor
foi um mago de sangue vindo das Terras da Sombra.
Dany sentiu-se congelar.
- Então você é mesmo uma maegi...
- Serei? - Mirri Maz Duur sorriu. - Só uma maegi pode salvar o seu
cavaleiro agora, Senhora de Prata.
- Não há nenhuma outra maneira?
- Nenhuma.
Khal Drogo soltou um arquejo trêmulo.
- Faça-o - exclamou Dany. Não podia ter medo, era do sangue do
dragão. - Salve-o.
- Há um preço - preveniu-a a esposa de deus.
- Terá ouro, cavalos, o que quiser.
- Não é questão de ouro ou cavalos. Isto é magia de sangue, senhora.
Só a morte pode pagar a vida.
- A morte? - Dany enrolou protetoramente os braços em torno de si
própria e balançou para trás e para a frente sobre os calcanhares. - A
minha morte? - disse a si mesma que morreria por ele se tivesse de
ser. Era do sangue do dragão, não teria medo. O irmão Rhaegar
morrera pela mulher que amava.
- Não - prometeu Mirri Maz Duur. - Sua morte, não, khaleesi. Dany
tremeu de alívio.
- Faça-o.
A maegi anuiu solenemente.
- Será feito como diz. Chame seus servos.
Khal Drogo contorceu-se débilmente quando Rakharo e Quaro o
puseram no banho.
- Não - murmurou - não. Tenho de montar - uma vez dentro da
água, toda a força pareceu escoar-se de seu corpo.
- Traga seu cavalo - ordenou Mirri Maz Duur, e foi o que fizeram.
Jhiqui levou o grande garanhão vermelho para o interior da tenda.
Quando o animal sentiu o cheiro da morte, relinchou e recuou,
revirando os olhos. Foram precisos três homens para subjugá-lo.
- Que pretende fazer? - perguntou Dany.
- Precisamos do sangue - respondeu Mirri. - É este o caminho.
Jhogo afastou-se com cautela, com a mão sobre o a r a k h , Era um
jovem de dezesseis anos, magro como um chicote, destemido, de riso
fácil, com a leve sombra do primeiro bigode no lábio superior. Caiu
de joelhos perante ela.
- K h a le e s i - suplicou -, não deve fazer isto. Deixe-me matar esta
m a e g i ,
- Se a matar, matará o seu k h a l - disse Dany.
- Isto é magia de sangue - disse ele. - É proibido.
- Sou k h ale e s i, e digo que não é proibido. Em Vaes Dothrak, Khal
Drogo matou um garanhão e eu comi seu coração, para dar a nosso
filho força e coragem. Isto é a mesma coisa. A m e s m a ,
O garanhão escoiceou e recuou quando Rakharo, Quaro e Aggo o
puxaram para perto da banheira onde o k h a l flutuava como seja
estivesse morto, com sangue e pus escorrendo da ferida para ir sujar
as águas. Mirri Maz Duur entoou um cântico com palavras numa
língua que Dany não conhecia, e uma faca surgiu-lhe na mão. Dany
não chegou a ver de onde a retirara. Parecia velha; bronze vermelho
batido, em forma de folha, com a lâmina coberta de antigos glifos. A
m a e g i rasgou com ela a garganta do garanhão, sob sua nobre
cabeça, e o cavalo gritou e estremeceu enquanto o sangue jorrava
numa torrente vermelha. Teria caído, mas os homens do k h a s de
Dany mantiveram-no sobre as patas.
- Força da montaria, passa para o cavaleiro - cantou Mirri enquanto
o sangue do cavalo rodopiava para dentro das águas do banho de
Drogo. - Força do animal, passa para o homem.
Jhogo parecia aterrorizado enquanto lutava contra o peso do
garanhão, com medo de tocar na carne morta, mas também com
medo de largar. É s ó u m c a v a l o , pensou Dany. Se podia comprar
a vida de Drogo com a morte de um cavalo, pagaria esse preço mil
vezes.
Quando deixaram o garanhão cair, o banho estava vermelho-escuro, e
nada se via de Drogo a não ser o rosto, Mirri Maz Duur não
precisava da carcaça.
- Queime-a - disse-lhes Dany. Sabia que era o que faziam. Quando
um homem morria, a montaria era morta e colocada sob o seu corpo
na pira funerária, a fim de transportá-lo para as terras da noite. Os
homens do seu k h a s arrastaram a carcaça para fora da tenda. Havia
sangue por todo lado. Até as paredes de sedareia estavam manchadas
de vermelho, e as esteiras sob seus pés estavam negras e úmidas.
Foram acesos braseiros. Mirri Maz Duur atirou um pó vermelho
sobre os carvões. Dava à fumaça um odor de especiaria, um cheiro
bastante agradável, mas Eroeh fugiu aos soluços, e Dany encheu-se
de medo. Mas fora longe demais para voltar atrás agora. Mandou as
aias embora.
- Vá com elas, Senhora de Prata - disse-lhe Mirri Maz Duur.
- Eu fico - disse Dany. - O homem possuiu-me sob as estrelas e deu
vida à criança que trago dentro de mim. Não o abandonarei.
- É preciso sair. Quando eu começar a cantar, ninguém deve entrar
nesta tenda. A canção acordará poderes antigos e escuros. Os mortos
dançarão aqui esta noite. Nenhum vivente deve vê-los.
Dany inclinou a cabeça, impotente.
- Ninguém entrará - dobrou-se sobre a banheira, sobre Drogo e
seu banho de sangue, e o beijou suavemente na testa. - Traga-o
de volta para mim - sussurrou a Mirri Maz Duur antes de sair.
Lá fora, o sol estava baixo no horizonte, e o céu era de um
vermelho ferido. O khalasar acampara. Havia tendas e esteiras
de dormir até onde o olhar chegava. Soprava um vento quente.
Jhogo e Aggo cavavam um buraco de fogo para incinerar o
garanhão morto. Reunira-se uma multidão para olhar para
Dany com olhos negros e duros, com rostos como máscaras de
cobre martelado. Viu Sor Jorah Mormont, trazendo agora cota
de malha e couro, com a larga testa de quem vai perdendo
cabelo salpicada de suor. Ele abriu caminho aos empurrões por
entre os dothrakis para se pôr ao lado de Dany. Quando viu as
pegadas escarlates que as botas dela tinham deixado no chão, a
cor pareceu esvair do seu rosto.
- O que fez, pequena louca? - perguntou ele em voz rouca.
- Tinha de salvá-lo.
- Podíamos ter fugido - disse ele. - Podia tê-la levado a salvo
até Asshai, princesa. Não havia necessidade...
- Sou mesmo sua princesa? - ela perguntou.
- Sabe que sim, que os deuses nos salvem a ambos.
- Então me ajude agora.
Sor Jorah fez uma careta.
- Bem gostaria de saber como.
A voz de Mirri Maz Duur ergueu-se num lamento agudo e
ululante, fazendo passar um arrepio pelas costas de Dany.
Alguns dos dothrakis começaram a resmungar e a recuar. A
tenda brilhava com a luz vinda dos braseiros que tinha no
interior. Através da sedareia salpicada de sangue, Dany viu
sombras que se moviam.
Mirri Maz Duur dançava, e não estava só.
Dany viu um medo nu no rosto dos dothrakis.
- Isto não pode ser - trovejou Qotho.
Não vira o companheiro de sangue voltar. Tinha Haggo e
Cohollo com ele. Haviam trazido os homens sem cabelo, os
eunucos que curavam com facas, agulhas e fogo.
- Isto será - respondeu Dany.
- Maegi - rosnou Haggo. E o velho Cohollo, o Cohollo que
ligara a vida à de Drogo no dia de seu nascimento, o Cohollo
que sempre fora bondoso com ela, cuspiu-lhe em cheio na cara.
- Morrerá, maegi - prometeu Qotho -, mas a outra tem de
morrer primeiro - puxou o arakh e dirigiu-se à tenda.
- Não - gritou Dany -, não pode — pegou-o pelo ombro, mas
Qotho a empurrou. Dany caiu de joelhos, cruzando os braços
sobre a barriga para proteger a criança que tinha lá dentro. -
Parem-no - ordenou ao seu khas -, matem-no.
Rakharo e Quaro encontravam-se ao lado da aba da tenda.
Quaro deu um passo em frente, levando a mão ao cabo do
chicote, mas Qotho rodopiou, gracioso como uma bailarina,
fazendo subir o arakh curvo. A lâmina apanhou Quaro debaixo
do braço, o brilhante aço afiado cortou couro e pele, músculo e
osso da costela. Sangue jorrou quando o jovem cavaleiro
cambaleou para trás, arquejando.
Qotho libertou a lâmina.
- Senhor dos cavalos - chamou Sor Jorah Mormont. - Tente
comigo - a espada longa deslizou de sua bainha.
Qotho girou, praguejando. O arakh moveu-se tão depressa que
o sangue de Quaro foi projetado num borrifo fino, como chuva
em vento quente. A espada o parou a trinta centímetros do
rosto de Sor Jorah, e segurou-o, estremecendo por um instante
enquanto Qotho uivava de fúria. O cavaleiro estava revestido
por cota de malha, com manoplas e grevas de aço articulado e
um pesado gorjal em volta da garganta, mas não se lembrara
de colocar o elmo.
Qotho dançou para trás, fazendo girar o arakh por cima da
cabeça num borrão cintilante, brilhando como um relâmpago,
quando o cavaleiro arremeteu numa investida. Sor Jorah fez a
melhor parada que foi capaz, mas os golpes sucediam -se tão
depressa que parecia a Dany que Qotho tinha quatro arakhs
em outras tantas mãos. Ouviu o barulho de uma espada atingir
uma cota de malha, viu faíscas saltarem quando a longa lâmina
curva atingiu de raspão uma manopla. De repente, era
Mormont quem tropeçava para trás e Qotho que saltava para
um ataque. A face esquerda do cavaleiro ficou vermelha de
sangue e um golpe abriu uma fenda na cota de malha e o
deixou coxeando. Qotho gritou insultos, chamando-o de
covarde, homem de leite, eunuco em traje de ferro.
- Vai morrer agora! - prometeu, com o arakh tremendo no
ocaso vermelho. Dentro do ventre de Dany, o filho deu um
pontapé selvagem. A lâmina curva esquivou-se à direita e
mordeu profundamente a anca do cavaleiro, onde a cota de
malha fora cortada.
Mormont grunhiu, tropeçou. Dany sentiu uma dor aguda na
barriga, uma sensação úmida nas coxas. Qotho berrou de
triunfo, mas seu arakh batera em osso, e durante meio
segundo ficou preso.
Foi o bastante. Sor Jorah fez cair sua espada com toda a força
que lhe restava, fazendo-a cortar pele, músculo e osso, e o
braço de Qotho pendeu solto, balançando, preso a um fino
cordão de pele e tendões. O golpe seguinte do cavaleiro foi
dirigido à orelha do dothraki, e levava tanta fúria que pareceu
que a cara de Qotho explodiria.
Os dothrakis gritavam, Mirri Maz Duur uivava dentro da tenda
como se não tivesse nada de humano, Quaro pedia água
enquanto morria. Dany gritou por ajuda, mas ninguém a ouviu.
Rakharo lutava com Haggo, arakh dançando com arakh, até
que o chicote de Jhogo estalou, sonoro como um trovão,
enrolando-se em volta da garganta de Haggo. Um puxão, e o
companheiro de sangue tropeçou para trás, perdendo o
equilíbrio e a espada. Rakharo saltou para a frente, uivando,
empurrando o arakh para baixo com ambas as mãos através do
topo da cabeça de Haggo. A ponta prendeu-se entre os olhos,
vermelha, estremecendo. Alguém atirou uma pedra, e, quando
Dany viu, tinha o ombro rasgado e ensanguentado.
- Não - chorou -, não, por favor, parem, é demais, o preço é
demais - mais pedras vieram pelo ar. Tentou rastejar na
direção da tenda, mas Cohollo a segurou. Com os dedos em
seus cabelos, puxou sua cabeça para trás, e Dany sentiu o frio
toque da faca na garganta. - Meu bebê - gritou, e os deuses
talvez tivessem ouvido, pois, no mesmo instante, Cohollo
morreu. A seta de Aggo atingiu-o debaixo do braço e
trespassou-lhe os pulmões e o coração.
Quando por fim Daenerys encontrou forças para erguer a
cabeça, viu a multidão se dispersar; os dothrakis se
esgueirando em silêncio de volta às suas tendas e esteiras de
dormir. Alguns selavam cavalos, montavam e afastavam-se. O
sol se pusera. Fogueiras ardiam por todo o khalasar; grandes
chamas cor de laranja que crepitavam com fúria e cuspiam
fagulhas para o céu. Tentou erguer-se, mas uma dor imensa
capturou-a e a esmagou como o punho de um gigante. Ficou
sem fôlego; não conseguiu fazer mais que arquejar. O som da
voz de Mirri Maz Duur era como uma poesia fúnebre. Dentro
da tenda, as sombras rodopiavam.
Sentiu um braço sob a cintura, e Sor Jorah a ergueu. Tinha o
rosto pegajoso de sangue, e Dany viu que metade de sua orelha
tinha desaparecido. Contorceu-se em seus braços quando a dor
voltou e ouviu o cavaleiro gritar para que as aias o ajudassem.
Todos têm tanto medo assim? Conhecia a resposta. Outra
dor a assaltou, e Dany reprimiu um grito. Era como se o filho
tivesse uma faca em cada mão, como se estivesse golpeando-a
para abrir caminho para o exterior.
- Doreah, maldita seja - rugiu Sor Jorah. - Ande. Vá buscar as
parteiras.
- Elas não virão. Dizem que ela está amaldiçoada.
- Se não vierem, arranco-lhes a cabeça.
- Elas se foram, senhor - chorou Doreah.
- A maegi - disse alguém. Teria sido Aggo? - Leve-a à maegi.
Não, quis dizer Dany, não, isso não, não podem, mas quando
abriu a boca, escapou dela um longo lamento de dor, e surgiu
suor em sua pele. Que se passa com eles, não ve em? Dentro
da tenda, as formas dançavam, escuras contra a sedareia,
rodeando o braseiro e o banho sangrento, e algumas não
pareciam humanas. Vislumbrou a sombra de um grande lobo, e
outra que era como um homem envolvido em chamas.
- A Mulher-Ovelha conhece os segredos da cama de partos -
disse Irri. - Foi ela que disse, eu a ouvi dizer.
- Sim - concordou Doreah -, também a ouvi.
Não, gritou Dany, ou talvez tivesse apenas pensado em gritar,
pois nem um sussurro lhe escapou dos lábios. Agora a levavam.
Seus olhos abriram-se para um céu vazio e morto, negro, triste
e sem estrelas. Por favor, não. O som da voz de Mirri Maz
Duur ficou mais forte até encher o mundo. As formas!, gritou.
Os dançarinos!
Sor Jorah entrou com ela na tenda.
Arya
O cheiro de pão quente que vinha das lojas na Rua da Farinha
era mais doce que qualquer perfume que Arya tivesse sentido.
Inspirou profundamente e aproximou-se do pombo. Era um
pombo rechonchudo, pintalgado de marrom, atarefado bicando
uma casca de pão que tinha caído entre duas pedras do
pavimento, mas quando a sombra de Arya o tocou, levantou
vôo.
Sua espada de pau assobiou e apanhou o pombo a meio metro
do chão, e a ave tombou numa confusão de penas marrons.
Num piscar de olhos Arya estava em cima dele, agarrando uma
asa enquanto o pombo tentava voar. A ave deu-lhe uma bicada
na mão. A menina agarrou-lhe o pescoço e o torceu até sentir
os ossos quebrarem.
Comparado com apanhar gatos, apanhar pombos era fácil.
Um septão que passava a olhava de soslaio,
- Este é o melhor lugar para encontrar pombos - disse-lhe Arya
enquanto batia o pó de si e apanhava a espada de pau. - Vêm à
procura de migalhas - o homem rapidamente se afastou.
Arya atou o pombo ao cinto e começou a descer a rua. Um
homem passou por ela, empurrando um carregamento de
tortas em um carrinho de duas rodas; os cheiros eram de
mirtilos, limões e damascos. Seu estômago soltou um trovejar
oco.
- Dá-me uma? - ouviu-se dizer. - De limão ou... ou qualquer
uma.
O homem do carrinho de mão olhou-a dos pés à cabeça.
Deixou claro que não gostou do que viu.
- Três cobres.
Arya bateu com a espada de madeira contra o lado da bota.
- Troco-a por um pombo gordo - disse.
- Que os Outros levem o seu pombo - disse o homem do
carrinho de mão.
As tortas ainda vinham quentes do forno. Os cheiros enchiam-
lhe a boca de água, mas ela não tinha três cobres... ou um que
fosse. Olhou para o homem do carrinho de mão, lembrando --se
do que lhe dissera Syrio sobre ver. Era um homem baixo, com
uma pequena barriga redonda, e quando se movia parecia
favorecer um pouco a perna esquerda. Estava precisamente
pensando que, se agarrasse uma torta e fugisse, ele nunca
conseguiria apanhá-la, quando o homem disse:
- Tenha tento nessas suas mãozinhas nojentas. Os homens de
manto dourado sabem bem como lidar com ratazanazinhas
gatunas de sarjeta, ah, sabem.
Arya olhou de relance para trás. Dois dos membros da Patrulha
da Cidade estavam parados na esquina de uma viela. Os
mantos chegavam quase ao chão, com a pesada lã tingida de
um tom rico de dourado; as botas, luvas e cotas de malha eram
negras. Um trazia uma espada longa na cintura, o outro, uma
clava de ferro, Com um último relance ávido para as tortas,
Arya afastou-se do carrinho e apressou-se em ir embora. Os
homens de manto dourado não estavam prestando nenhuma
atenção especial nela, mas vê-los deu-lhe nós no estômago.
Arya andara para tão longe do castelo como pudera, mas
mesmo a distância conseguia ver as cabeças que apo dreciam no
topo das grandes muralhas vermelhas. Bandos de corvos
brigavam ruidosamente por cima de cada uma delas, densos
como moscas. Dizia-se na Baixada das Pulgas que os homens de
manto dourado se tinham aliado aos Lannister, que seu
comandante fora feito senhor, com terras no Tridente e lugar
no conselho do rei.
Arya também ouvira outras coisas, coisas assustadoras, que não
faziam sentido para ela. Havia quem dissesse que o pai
assassinara o Rei Robert e que fora morto por Lorde Renly.
Outros insistiam que fora Renly que matara o rei numa briga
de bêbados entre irmãos. Por que outro motivo teria fugido
durante a noite como um ladrão comum? Uma história dizia
que o rei fora morto por um javali enquanto caçava, outra
afirmava que morrera enquanto comia javali, empanturrando-
se tanto que explodira à mesa. Não, o rei morrera à mesa,
diziam outros, mas só porque Varys, a Aranha, o envenenara.
Não, tinha sido a rainha quem o envenenara. Não, morrera de
varíola. Não, sufocara com uma espinha de peixe.
Numa coisa todas as histórias concordavam: o Rei Robert
estava morto. Os sinos nas sete torres do Grande Septo de
Baelor tinham repicado durante um dia e uma noite, fazendo
troar sua dor pela cidade numa maré de bronze. Só faziam
soar os sinos assim quando um rei morria, dissera-lhe um
aprendiz de curtidor.
Tudo o que queria era voltar para casa, mas deixar Porto Real
não era tão fácil como esperara, Todo mundo falava de guerra,
e a densidade dos homens de manto dourado era tão grande
nas muralhas da cidade como a de moscas em... bem, nela, por
exemplo. Vinha passando as noites na Baixada das Pulgas,
sobre telhados e em estábulos, onde quer que conseguisse
encontrar um lugar para se deitar, e não demorara muito
tempo para compreender que o distrito tinha o nome certo.
Todos os dias, desde a fuga da Fortaleza Vermelha, Arya
visitava os sete portões da cidade, um de cada vez. Os Portões
do Dragão, do Leão e o Velho estavam fechados e trancados. O
da Lama e o dos Deuses estavam abertos, mas só para aqueles
que quisessem entrar na cidade; os guardas não deixavam
ninguém sair. Os que estavam autorizados a sair o faziam pelo
Portão do Rei ou pelo Portão de Ferro, mas eram homens de
armas Lannister, de manto carmesim e elmo encimado por um
leão, que lá guarneciam os postos de guarda. Espiando do
telhado de uma estalagem próxima do Portão do Rei, Arya os
viu vasculhar carroças e carruagens, forçar cavaleiros a abrir
seus alforjes e interrogar todos os que tentavam passar a pé.
Por vezes pensava em atravessar o rio a nado, mas a Torrente
da Agua Negra era larga e profunda, e todos concordavam que
suas correntes eram perigosas e traiçoeiras. Não tinha dinheiro
para pagar a um barqueiro ou comprar uma passagem de
navio. O senhor seu pai a ensinara a nunca roubar, mas estava
se tornando cada vez mais difícil lembrar por quê. Se não
saísse dali em breve, teria de arriscar a sorte com os homens
de manto dourado. Não tinha passado muita fome desde que
aprendera a derrubar aves com a espada de pau, mas temia
que tanto pombo a estivesse deixando doente. Comera dois
deles crus antes de encontrar a Baixada das Pulgas.
Na Baixada havia casas de pasto espalhadas pelas vielas, onde
enormes banheiras de guisado ferviam há anos, e podia -se
trocar metade de uma ave por uma fatia de pão do dia anterior
e uma "tigela de castanho", e até torravam a outra metade no
fogo, desde que o cliente depenasse o pombo. Arya teria dado
qualquer coisa por uma xícara de leite e um bolo de limão, mas
o castanho não era de todo mau. Costumava ter cevada e
pedaços de cenoura, cebola e nabo, e às vezes tinha até maçã
com uma película de gordura por cima. Em geral, tentava não
pensar na carne. Uma vez obtivera um pedaço de peixe.
O único problema era que essas casas nunca estavam vazias, e
mesmo enquanto devorava a comida podia senti-los
observando-a. Alguns deles não tiravam os olhos de suas botas
ou de seu manto, e sabia no que estavam pensando, Com
outros, quase conseguia sentir os olhos rastejando sob seus
couros; não sabia em que eles estavam pensando, e isso a
assustava ainda mais. Umas duas vezes fora seguida até as
vielas e perseguida depois, mas até então nenhum tinha sido
capaz de apanhá-la.
A pulseira de prata que esperava vender fora roubada na
primeira noite que passara fora do castelo, junto com a trouxa
de roupa boa, surrupiada enquanto dormia em uma casa
queimada, perto da Viela dos Porcos. Tudo o que lhe tinham
deixado foram o manto em que se enrolara, os couros que
vestia, a espada de treino de madeira... e a Agulha. Dormia em
cima da Agulha, e se não fosse isso, também a teria perdido;
valia mais que todo o resto. Desde então, Arya aco stumara-se a
caminhar com o manto enrolado no braço direito, a fim de
esconder a lâmina que trazia à cintura. A espada de madeira
era levada na mão esquerda, onde todos a pudessem ver, para
assustar ladrões, mas havia homens nas casas de pasto que não
se assustariam nem que ela tivesse um machado de batalha.
Era o suficiente para lhe fazer perder o gosto por pombo e pão
duro. Era mais comum ir dormir com fome do que se arriscar
aos olhares.
Uma vez fora da cidade, encontraria frutas do bosque prontas
para colher, ou pomares que poderia assaltar em busca de
maçãs ou cerejas. Arya lembrava-se de ver alguns da Estrada
do Rei durante a viagem para o sul. E poderia escavar em
busca de raízes na floresta, ou até caçar alguns coelhos. Na
cidade, as únicas coisas que podia caçar eram ratazanas, gatos
e cães descarnados. Ouvira dizer que as casas de pasto
ofereciam uma mão-cheia de cobres por uma ninhada de ca-
chorros, mas não gostava de pensar nisso.
Abaixo da Rua da Farinha ficava um labirinto de vilas
retorcidas e travessas. Arya lutou para atravessar a multidão,
tentando colocar distância entre si e os homens de manto
dourado. Aprendera a manter-se no centro da rua. Por vezes
tinha de se desviar de carroças e cavalos, mas pelo menos
podia vê-los aproximarem-se. Quem caminhasse junto aos
edifícios era agarrado pelas pessoas. Em algumas vielas não
havia hipótese de não roçar nas paredes; os edifícios
aproximavam-se tanto que quase se encontravam.
Um ruidoso bando de crianças pequenas passou por ela
correndo, brincando de arco. Arya ficou olhando para eles com
ressentimento, lembrando-se dos tempos em que assim
brincara com Bran, Jon e o irmão mais novo, Rickon.
Perguntou a si mesma quanto teria crescido Rickon, e se Bran
estaria triste. Teria dado tudo por ter ali Jon chamando-a
de"irmãzinha"e despenteando-lhe os cabelos. Não que
precisasse ser despenteado. Vira seu reflexo em poças, e não
lhe parecia que pudesse haver cabelos mais despenteados que
os dela.
Tentara falar com as crianças que via na rua, esperando fazer
um amigo que lhe arranjasse lugar para dormir, mas devia
falar errado ou qualquer coisa do gênero. Os pequenos
limitavam--se a mirá-la com olhos rápidos e cuidadosos, e
fugiam caso se aproximasse demais. Os irmãos e irmãs mais
velhos faziam perguntas que Arya não podia responder, davam-
lhe apelidos e tentavam roubá-la. Já no dia anterior uma
menina magricela e descalça, com o dobro de sua idade, a
tinha atirado ao chão e tentara arrancar-lhe as botas, mas Arya
dera-lhe um estalo na orelha com a espada de pau que a
afastara aos soluços e sangrando.
Uma gaivota voou aos círculos por cima de sua cabeça quando
desceu a colina em direção à Baixada das Pulgas. Arya olhou-a
de relance, pensativa, mas estava bem longe do alcance de seu
pau. A ave a fez pensar no mar. Talvez fosse esse o caminho
para fora dali. A Velha Ama costumava contar histórias sobre
rapazes que se escondiam em galés mercantes e zarpavam para
todo o tipo de aventuras. Talvez Arya pudesse fazer o mesmo.
Decidiu visitar a margem do rio. De qualquer forma, ficava a
caminho do Portão da Lama, que ainda não verificara hoje.
Os cais estavam estranhamente sossegados quando Arya
chegou lá. Viu outro par de mantos dourados, caminhando lado
a lado pelo mercado de peixe, mas nem sequer olharam para
ela. Metade das bancas estava vazia, e parecia-lhe que havia
menos navios atracados do que recordava. No Água Negra três
das galés de guerra do rei moviam-se em formação, com os
cascos pintados de dourado rasgando as águas à medida que os
remos subiam e desciam. Arya observou-as durante algum
tempo, depois se pôs a caminho ao longo do rio.
Quando viu os guardas no terceiro cais, vestidos com mantos
de lã cinza debruada de cetim branco, o coração quase parou
em seu peito. Ver as cores de Winterfell trouxe-lhe lágrimas
aos olhos. Atrás dos guardas, uma lustrosa galé mercante de
três remos balançava em suas amarras. Arya não conseguia ler
o nome pintado no casco; as palavras eram estranhas, em
miriano, bravosiano, talvez mesmo alto valiriano. Agarrou pela
manga um estivador que passava.
- Por favor - disse -, que navio é este?
- E a Bruxa dos Ventos, de Myr - disse o homem.
- Ainda está aqui - exclamou Arya. O estivador olhou-a de
modo estranho, deu de ombros e afastou-se. Arya correu para
o cais. A Bruxa dos Ventos era o navio que o pai contratara
para levada para casa... ainda à espera! Julgara que tinha
zarpado havia séculos.
Dois dos guardas jogavam dados enquanto o terceiro fazia
rondas, com a mão pousada no botão da espada. Com vergonha
de que a vissem chorar como um bebê, Arya parou para
esfregar os olhos. Os olhos, os olhos, os olhos, por que era
que...
Olha com os olhos, ouviu Syrio sussurrar.
Arya olhou. Conhecia todos os homens do pai. Os três com os
mantos cinzentos eram estranhos.
- Você - chamou aquele que fazia rondas. - Que quer aqui,
rapaz? - os outros dois ergueram os olhos dos dados.
A única coisa que Arya conseguiu fazer foi evitar saltar e fugir,
pois sabia que se o fizesse eles viriam imediatamente atrás
dela. Obrigou-se a se aproximar. Estavam à espera de uma
menina, mas a tomaram por um rapaz. Neste caso, seria um
rapaz.
- Quer comprar um pombo? - mostrou-lhe a ave morta.
- Saia daqui - disse o guarda.
Arya fez o que lhe foi dito. Não teve de fingir estar assustada.
Atrás dela, os homens voltaram aos seus dados.
Não saberia dizer como voltou à Baixada das Pulgas, mas
respirava com força quando chegou às estreitas e retorcidas
ruas de terra batida entre as colinas. A Baixada tinha um fedor
característico, o cheiro de pocilgas, estábulos e barracas de
curtumes, misturado ao odor azedo das tabernas e de bordéis
baratos. Arya abriu caminho pelo labirinto com a mente
entorpecida. Só percebeu que o pombo tinha desaparecido
quando lhe chegou um odor de castanho borbulhante vindo da
porta de uma casa de pasto. Devia ter escorregado do cinto
enquanto corria, ou alguém lhe roubara sem que se desse
conta. Por um momento quis chorar de novo. Teria de
percorrer todo o caminho de volta à Rua da Farinha e
encontrar outro pombo que estivesse tão gordo como aquele.
Longe, do outro lado da cidade, sinos começaram a tocar.
Arya olhou para cima, à escuta, perguntando-se o que o toque
significaria daquela vez.
- Que é isto agora? - gritou um homem gordo de dentro da
casa de pasto.
- Outra vez os sinos, que os deuses nos salvem - lamentou-se
uma velha.
Uma prostituta de cabelos vermelhos enfiada dentro de um
fiapo de seda pintada abriu uma janela de segundo andar.
- Foi o rapaz rei que morreu? - gritou ela para baixo,
debruçando-se sobre a rua. - Ah, os rapazes são assim, nunca
duram muito tempo - enquanto ria, um homem nu a rodeou
com os braços por detrás, mordendo-lhe o pescoço e
esfregando-lhe os pesados seios brancos que pendiam soltos
sob a camisa.
- Vadia estúpida - gritou o gordo. - O rei não está morto,
aquilo são só sinos de chamar. É só uma torre repicando.
Quando o rei morre, tocam todos os sinos da cidade,
- Olha, para de morder, senão faço tocar os seus sinos - disse
a mulher da janela para o homem atrás dela, afastando-o com
um cotovelo. - Então, quem é que morreu, se não foi o rei?
- É uma chamada - repetiu o gordo.
Dois rapazes com aproximadamente a mesma idade de Arya
passaram por ali correndo, patinhando numa poça. A velha os
amaldiçoou, mas eles prosseguiram seu caminho. Outras
pessoas também se punham em movimento, subindo a colina
para ver o que era aquele barulho. Arya correu atrás do rapaz
mais lento.
- Onde você vai? - ela gritou quando se pôs atrás dele. - O que
está acontecendo? Ele olhou de relance para trás sem diminuir
o passo.
- Os mantos dourados estão levando ele para o septo.
- Quem? - berrou Arya, correndo a toda velocidade.
- A Mão! O Buu diz que vão cortar a cabeça dele.
Uma carroça que passara pela rua deixara um sulco profundo
na rua. O rapaz saltou por cima, mas Arya não chegou a ver a
fenda. Tropeçou e caiu, de cabeça, esfolando o joelho numa
pedra e esmagando os dedos quando as mãos atingiram a terra
batida, A Agulha se emaranhou em suas pernas. Arya soluçou
enquanto lutava para se pôr de joelhos. O polegar da mão
esquerda estava coberto de sangue. Quando o pôs na boca, viu
que metade da unha tinha desaparecido, arrancada na queda.
As mãos latejavam, e o joelho também estava cheio de sangue.
- Abram alas! - gritou alguém da travessa. - Abram alas para
os senhores de Redwyne! - Arya conseguiu sair da rua a
tempo de não ser atropelada por quatro guardas montados em
cavalos enormes, passando a galope. Usavam mantos xadrezes,
azul e vinho. Atrás deles, dois jovens fidalgos cavalgavam lado
a lado num par de éguas marrons, parecidos como duas gotas
de água. Arya vira-os na muralha do castelo uma centena de
vezes; os gêmeos Redwyne, Sor Horas e Sor Hobber, jovens
desajeitados de cabelos cor de laranja e rosto quadrado e
sardento. Sansa e Jeyne Poole costumavam chamá-los Sor
Horror e Sor Babeiro, e explodiam em risinhos sempre que os
viam. Agora não pareciam divertidos.
Todo mundo se movia na mesma direção, todos com pressa de
ver o que motivava o repique dos sinos, que agora pareciam
tocar mais alto, tinindo, chamando. Arya juntou-se à corrente
de gente. Doía-lhe tanto o polegar onde a unha se partira que
só com esforço evitava chorar. Mordeu o lábio enquanto
coxeava, escutando as vozes excitadas ao seu redor.
- ... a Mão do Rei, Lorde Stark. Estão levando-o para o Septo de
Baelor.
- Ouvi dizer que ele estava morto.
- Não tarda, não tarda. Olha, tenho aqui um veado de prata que
diz que vão lhe arrancar a cabeça.
- Já vai tarde, o traidor - o homem cuspiu.
Arya lutou por encontrar a voz.
- Ele nunca... - começou, mas era apenas uma criança, e os
homens continuaram a falar por cima dela.
- Palerma! Não vão cortar-lhe a cabeça coisa nenhuma. Desde
quando eles dão um jeito em traidores nos degraus do Grande
Septo?
- Bem, não vão ungi-lo cavaleiro, com certeza. Ouvi dizer que
foi o Stark que matou o velho Rei Robert. Que lhe abriu a
garganta na floresta e que, quando o encontraram, estava lá,
frio, dizendo que tinha sido um javali velho que matara Sua
Graça.
- Ah, isso não é verdade, foi o irmão que tratou dele, aquele
Renly, o dos chifres de ouro.
- Cala essa boca mentirosa, mulher. Não sabe o que diz, sua
senhoria é um homem bom e fiel.
Quando chegaram à Rua das Irmãs, a multidão aglomerava -se,
ombro contra ombro. Arya deixou-se levar pela corrente
humana até o topo da Colina de Visenya. A praça de mármore
branco era uma massa sólida de gente, todos tagarelando
excitadamente uns com os outros e fazendo força para chegar
mais perto do Grande Septo de Baelor. Os sinos soavam muito
alto ali.
Arya contorceu-se através da multidão, esgueirando-se entre as
patas dos cavalos e agarrando-se bem à espada de pau. Do
meio da multidão, tudo o que via eram braços, pernas e
barrigas, e as sete torres esguias do septo que se erguiam por
cima da praça. Vislumbrou uma carroça de madeira e pensou
em subir nela para conseguir ver, mas outros tiveram a m esma
ideia. O carroceiro os amaldiçoou e os afastou a golpes de
chicote.
Arya ficou frenética. Ao forçar passagem até a frente da
multidão, foi empurrada contra a pedra de um pedestal.
Ergueu o olhar para Baelor, o Abençoado, o rei septão. Enfiou
a espada de pau no cinto e começou a subir. A unha quebrada
deixou manchas de sangue no mármore pintado, mas conseguiu
subir e enfiou-se entre os pés do rei.
Foi então que viu o pai.
Lorde Eddard encontrava-se em pé no púlpito do Alto Septão,
à porta do septo, apoiado em dois homens de manto dourado.
Vestia um gibão de rico veludo cinza com um lobo branco
cosido com contas na parte da frente, e um manto de lã cinza
debruada de peles, mas estava mais magro do que Arya jamais
o vira, com a longa face tensa de dor. Eram mais os homens
mantendo-o em pé do que ele se sustentando; o gesso que
envolvia a perna quebrada mostrava-se encardido e apodrecido.
O próprio Alto Septão estava atrás dele, um homem
atarracado, grisalho pela idade e enormemente gordo, usando
uma longa túnica branca e uma imensa coroa de ouro
encordoado e cristal que lhe decorava a cabeça com um arco -
íris sempre que se movia.
Em volta das portas do septo, um grupo de cavaleiros e de
grandes senhores aglomerava-se na frente do púlpito elevado
de mármore. Entre eles destacava-se Joffrey, vestido todo de
carmesim, seda e cetim adornados com veados empinados e
leões rugindo, e uma coroa de ouro na cabeça. Ao seu lado via-
se a rainha sua mãe, trajando um vestido negro de luto com
fendas carmesins e um véu de diamantes negros nos cabelos.
Arya reconheceu Cão de Caça, que usava um manto branco de
neve sobre a armadura cinza-escura, com quatro dos membros
da Guarda Real à sua volta. Viu Varys, o eunuco, deslizando
entre os senhores em chinelos suaves e com uma toga de
damasco estampada, e achou que o homem baixo com a capa
prateada e barba pontiaguda devia ser aquele que tinha um dia
lutado em duelo por sua mãe.
E ali, entre eles, estava Sansa, vestida de seda azul-celeste, com
os longos cabelos ruivos lavados e encaracolados, usando
braceletes de prata nos pulsos. Arya fechou a cara,
perguntando a si mesma o que a irmã estaria fazendo ali, e por
que parecia tão feliz.
Uma longa fileira de lanceiros de manto dourado segurava a
multidão, comandada por um homem forte, com uma armadura
elaborada, toda ela de laca negra e filigrana dourada. O manto
tinha o brilho metálico de ouro verdadeiro.
Quando o sino parou de soar, um silêncio foi lentamente
cobrindo a grande praça, e seu pai ergueu a cabeça e começou
a falar, com a voz tão fraca que Arya quase não conseguia
ouvir. As pessoas atrás dela começaram a gritar "Quê?", "Mais
alto!". O homem com a armadura de negro e dourado
aproximou-se do pai e aguilhoou-o com força. Arya quis gritar
Deixe-o em paz!, mas sabia que ninguém a ouviria. Mordeu o
lábio,
O pai ergueu a voz e recomeçou.
- Sou Eddard Stark, Senhor de Winterfell e Mão do Rei - disse,
mais alto, fazendo a voz chegar a toda a praça -, e venho até
vós para confessar minha traição perante os deuses e os
homens.
- Não - choramingou Arya, Por baixo dela, a multidão desatou
a berrar e a gritar. Insultos e obscenidades encheram o ar.
Sansa escondera o rosto nas mãos.
O pai ergueu a voz ainda mais alto, esforçando-se por ser
ouvido.
- Traí a fé do meu rei e a confiança do meu amigo Robert -
gritou. - Jurei defender e proteger seus filhos, mas antes ainda