Arya corou.

- Jory prometeu não contar,

- Jory manteve a promessa - confirmou o pai com um

sorriso. - Há certas coisas que não preciso que me sejam

ditas. Até um cego podia ver que aquele lobo nunca te

deixaria de boa vontade.

- Tivemos de atirar-lhe pedras - disse ela em tom infeliz. -

Eu lhe disse para fugir, para ser livre, que já não a

queria. Havia outros lobos com quem brincar, ouvíamos

seu uivo, e Jory disse que os bosques estavam cheios de

caça, e ela teria veados para caçar. Mas ela continuava a

nos seguir, e po r fim tivemos que lhe atirar pedras.

Atingi-a duas vezes. Ela gemeu e olhou para mim, e eu me

senti tão envergonhada, mas foi a coisa certa a fazer, não

foi? A rainha a teria matado.

- Foi a coisa certa a fazer - seu pai respondeu. - E mesmo

a mentira foi... algo com certa honra - Ned colocou

Agulha de lado para abraçar Arya. Depois, voltou a pegar

a arma e caminhou até a janela, onde parou por um

momento, olhando para além do pátio. Quando se voltou

virando, tinha os olhos pensativos. Sentou-se no assento

de janela, com Agulha pousada nas co xas. - Arya, sente-se.

Tenho de tentar lhe explicar algumas coisas.

Ela empoleirou-se ansiosamente na beira da cama.

- Você é nova demais para ser sobrecarregada com todos

os meus problemas - disse-lhe -, mas também é uma Stark

de Winterfell. Conhece o nosso lema.

- O inverno está para chegar - sussurrou Arya.

- Os tempos duros e cruéis - disse o pai. - Provamo-los

no Tridente, filha, e quando Bran caiu. Você nasceu

durante o longo verão, querida, e nunca conheceu nada

além dele, mas agora o inverno está realmente chegando.

Lembra-se do selo da nossa Casa, Arya?

- O lobo gigante - ela respondeu, pensando em Nymeria.

Abraçou os joelhos contra o peito, de repente sentindo

medo.

- Deixe-me lhe dizer algumas coisas acerca de lobos , filha.

Quando as neves caem e os ventos brancos sopram, o lobo

solitário morre, mas a alcateia sobrevive. O verão é o

tempo das picuinhas. No inverno, devemos proteger uns

aos outros, nos manter quentes, partilhar nossas forças.

Por isso, se tiver de od iar, Arya, odeie aqueles que

realmente nos querem fazer mal. Septã Mor dane é uma

boa mulher, e Sansa... Sansa é sua irmã. Vocês podem ser

tão diferentes como o Sol e a Lua, mas o mesmo sangue

corre pelos seus corações. Você precisa dela, tal como ela

precisa de você... e eu preciso de ambas, que os deuses

me protejam.

Seu pai soava tão cansado que fez Arya sentir -se triste.

- Eu não odeio Sansa - disse-lhe. - Não de verdade - era só

meia mentira.

- Não quero assustá-la, mas também não vou mentir.

Viemos para um lugar escuro e perigo so, filha. Isto não é

Winterfell. Temos inimigos que nos desejam mal. Não

podemos travar uma guerra entre nós. Essa sua

obstinação,

as

fugas,

as

palavras

zangadas,

a

desobediência... em casa, eram só os jogos de verão de

uma criança. Aqui e agora, com o inverno para chegar em

breve, as coisas são diferentes. É tempo de começar a

crescer.

- Eu cresço - prometeu Arya. Nunca o amara tanto como

naquele instante. - Também posso ser forte. Posso ser tão

forte como Robb.

Ele lhe estendeu Agulha, entregando-lhe o cabo.

- Toma.

Ela olhou para a espada com espanto nos olhos. Por um

momento teve medo de tocá-la, medo de que, se

estendesse a mão, ela lhe seria de novo arrebatada, mas

então o pai disse:

- Vá lá, é sua - e ela pegou na arma.

- Posso ficar com ela? - perguntou. - De verdade?

- De verdade - ele sorriu. - Se a tirasse de você, não tenho

dúvidas de que em menos de uma quinzena encontraria

uma maça escondida debaixo da sua almofada. Tente não

apunhalar sua irmã, seja qual for a provocação.

- Não apunhalo. Prometo - Arya apertou Agulha com força

contra o peito enquanto o pai se retirava.

Na manhã seguinte, ao desjejum, pediu desculpa à Septã

Mordane. A septã a olhou com sus peita, mas o pai acenou

com a cabeça.

Três dias mais tarde, ao meio -dia, o intendente do pai,

Vayon Poole, mandou Arya até o Sa lão Pequeno. As mesas

tinham sido desmanteladas e os bancos, arrumados junto

às paredes. O salão parecia vazio, até que uma voz que

não lhe era familiar disse:

- Está atrasado, rapaz - um homem franzino com uma

cabeça calva e um nariz que mais parecia um grande bico

saiu das sombras segurando um par de estreitas espadas

de madeira. - Amanhã deve estar aqui ao meio -dia - seu

sotaque tinha a entoação das Cidades Livres, talvez

Bravos, ou Myr.

- Quem é o senhor? - perguntou Arya.

- Sou seu mestre de dança - atirou-lhe uma das armas de

madeira.

Ela tentou agarrá-la no ar, falhou, e a ouviu cair com

estrondo no chão.

- Amanhã você a agarrará. Agora, apanhe -a.

Não era apenas um pau, mas uma verdadeira espada de

madeira completa, com punho, guar da e botão. Arya a

apanhou e a agarrou nervosamente com ambas as mãos,

erguendo-a à sua frente. Era mais pesada do que parecia,

muito mais pesada do que Agulha.

O homem calvo fez estalar os cientes.

- Não é assim, rapaz. Isto não é uma espada longa, que

precisa de duas mãos para ser bran dida. Pega na arma

com uma mão.

- É pesada demais - Arya justificou.

- É tão pesada quanto precisa ser para deixá -lo forte e

para o equilíbrio. Um buraco aí dentro está cheio de

chumbo exatamente para is so. Agora, uma mão é tudo o

que é preciso,

Arya tirou a mão direita do punho e limpou a palma

suada nas calças. Segurou a espada com a mão esquerda.

Ele pareceu aprovar.

- A esquerda é boa. Tudo o que seja invertido atrapalhará

mais seus inimigos. Mas está n a posição errada. Vira o

corpo de lado, isso, assim. Você é magro como o cabo de

uma lança, sabia? Isso também é bom, o alvo é menor.

Agora, o modo de agarrar. Mostre -me - aproximou-se e

espiou-lhe a mão, afastando-lhe os dedos, rearranjando -os.

- Assim mesmo, sim. Não aperte com muita força, não,

deve segurá-la de forma hábil, delicada.

- E se a deixar cair? - perguntou Arya.

- O aço deve fazer parte do seu braço - disse-lhe o homem

calvo. - Pode deixar cair parte do seu braço? Não. Durante

nove anos, Syrio Forel foi primeira-espada do Senhor do

Mar de Bravos, ele sabe destas coisas. Escute -o, rapaz.

Era a terceira vez que o homem a chamava "rapaz".

- Sou uma menina - objetou Arya.

- Rapaz, menina - disse Syrio Forel. - É uma espada, é

tudo - fez estalar os dentes. - Isso mesmo, é assim que se

segura. Não está segurando um machado de batalha, mas

uma...

- ... agulha - terminou Arya por ele, ferozmente.

- Isso mesmo. Agora começamos a dança. Lembre -se,

criança, não é a dança de ferro de Westeros que estamos

aprendendo, a dança dos cavaleiros, que corta e bate, não.

Esta é a dança do espadachim, a dança da água, rápida e

súbita. Todos os homens são feitos de água, sabia disto?

Quando os perfura, a água jorra e eles morrem - deu um

passo para trás, ergueu a própria lâ mina de madeira. -

Agora tente me atingir.

Arya tentou atingi -lo. Tentou durante quatro horas, até

ficar com cada músculo do corpo dolorido, enquanto Syrio

Forel fazia estalar os dentes e lhe dizia que fazer. No dia

seguinte, começou o verdadeiro trabalho.


Daenerys


O Mar Dothraki - disse Sor Jorah Mormont ao puxar as

rédeas do cavalo e parar ao lado dela no topo da colina.

A seus pés, a planície estendia -se imensa e vazia, uma

vasta extensão plana que atingia e ultrapassava o

horizonte distante. Foi um mar, pensou Dany. Para lá do

lugar onde estavam não havia colinas nem montanhas,

nem árvores, cidades ou estradas, apenas a mata sem fim,

cujas folhas altas ondulavam como ondas quando o vento

soprava.

- É tão verde - ela admirou.

- Aqui e agora - concordou Sor Jorah. - Tem de vê-lo

quando floresce, flores vermelhas escuras de horizonte a

horizonte, como um mar de sangue. E quando chega a

estação seca, o mundo fica da cor de bronze velho. E isto

é apenas a hranna, menina. Há ali cem tipos de plantas,

amarelas como limão-siciliano e escuras como índigo,

azuis e cor de laranja, e as que são como arco -íris. E

dizem que nas Terras das Sombras, para lá de Asshai, há

oceanos de erva-fantasma, mais alta que um homem a

cavalo e com caules tão claros como vidro leitoso. Mata

todas as outras plantas e brilha no escuro com os

espíritos dos condenados. Os dothrakis dizem que um dia

a erva-fantasma cobrirá o mundo inteiro, e então toda a

vida terminará.

Essa idéia fez Dany se arrepiar.

- Não quero falar disso agora - ela retrucou, - Isto aqui é

tão lindo que não quero pensar na morte de tudo,

- Como desejar, Khaleesi - Sor Jorah disse respeitosamente.

Dany ouviu o som de vozes e virou -se para olhar para

trás. Ela e Mormont tinham se distan ciado do resto da

comitiva, e agora os outros vinham subindo a colina lá

embaixo. Os movimentos da criada Irri e dos jovens

arqueiros de seu khas eram fluidos como centauros, mas

Viserys ainda lutava com os estribos curtos e a sela plana.

O irmão era infeliz ali. Nunca deveria ter vindo. Magíst er

Illyrio insistira com ele para que esperasse em Pentos,

oferecera-lhe a hospitalidade de sua mansão, mas Viserys

nem quisera ouvir falar do assunto. Queria ficar com

Drogo até que a dívida fosse paga, até ter a coroa que lhe

fora prometida. "E se ele te ntar me enganar, aprenderá,

para sua desgraça, o que significa acordar o dragão", ele

garantira, pousando a mão na espada em prestada. Illyrio

pestanejara ao ouvir aquilo e lhe desejara boa sorte.

Dany percebeu que naquele momento não desejava ouvir

nenhuma das queixas do irmão. O dia estava bastante

perfeito. O céu era de um azul profundo, e muito acima

deles um falcão caça dor voava em círculos. O mar de

plantas oscilava e suspirava a cada sopro do vento, o ar

batia-lhe morno no rosto, e Dany sentia -se em paz. Não

deixaria que Viserys estragasse tudo.

- Espere aqui - disse Dany a Sor Jorah. - Diga a todos

para ficar. Diga que eu estou orde nando.

O cavaleiro sorriu. Sor Jorah não era um homem bonito.

Tinha pescoço e ombros de touro e rudes pelos negros

cobriam-lhe os braços e o pescoço de uma forma tão

densa que nada restava rara a cabeça. Mas seus sorrisos

davam conforto a Dany.

- Está aprendendo a falar como uma rainha, Daenerys.

- Uma rainha, não - ela respondeu. - Uma khaleesi - fez

girar o cavalo e galopou sozinha rela encosta abaixo.

A descida era íngreme e rochosa, mas Dany cavalgou

destemidamente, e o júbilo e o perigo d aquilo eram uma

canção no seu coração. Por toda sua vida Viserys lhe

dissera que era uma prin cesa, mas só quando montou sua

prata é que Daenerys Targaryen se sentira como uma.

A princípio não fora fácil. O khalasar levantara o

acampamento na manhã seguinte ao casa mento, dirigindo-

se para leste em direção a Vaes Dothrak, e no terceiro dia

Dany pensou que ia morrer. Feridas provocadas pela sela

abriram-se no seu traseiro, hediondas e sangrentas. As

coxas ficaram em carne viva, as rédeas fizeram nascer

bolhas nas mãos, e os músculos das pernas e das costas

estavam de tal forma doloridos que quase não era capaz

de se sentar. Quando caía o cre púsculo, as criadas tinham

de ajudá-la a desmontar,

Nem mesmo as noites traziam alívio. Khal Drogo ignorava -

a enquanto viajavam, tal como a ignorara durante o

casamento, e passava o começo da noite bebendo com

seus guerreiros e com panheiros de sangue, com petindo

com seus melhores cavalos, vendo mulheres dançar e

homens morrer. Dany não tinha lugar naquelas partes de

sua vida. Era abandonada para jantar sozinha ou com Sor

Jorah e o irmão, para depois chorar até adormecer. Mas

todas as noites, em algum momen to antes da alvorada,

Drogo vinha à sua tenda e a acordava na escuridão para

montá-la

tão

implacavelmente

como

montava

seu

garanhão. Possuía-a sempre por trás, à moda dothraki, e

Dany sentia-se grata por isso; dessa maneira, o senhor seu

marido não podia ver as lágrimas que lhe molhavam o

rosto, e podia usar a almofada para abafar seus gritos de

dor. Quando acabava, ele fechava os olhos e começava a

ressonar baixinho, e Dany se deitava ao seu lado, com o

corpo dolorido e machucado, com dores demais para

dormir.

Os dias seguiram-se a outros, e as noites seguiram -se a

outras, até Dany compreender que não conseguia suportar

aquilo nem mais um momento. Uma noite decidiu que

preferia se matar em vez de continuar...

Mas, quando conseguiu adormecer nessa noite, vol tou a

sonhar o sonho do dragão. Daquela vez Viserys não estava

nele. Só ela e o dragão. Suas escamas eram negras como a

noite, mas luzidias de sangue. Dany sentiu que aquele

sangue era dela. Os olhos do animal eram lagoas de

magma derretido, e, quando abr iu a boca, a chama surgiu,

rugindo, num jato quente. Dany podia ouvi -lo cantar para

ela. Abriu os braços ao fogo, acolheu -o, para que ele a

engolisse inteira e a lavasse, tem perasse e polisse até ficar

limpa. Podia sentir sua carne secar, enegrecer e desc amar-

se, sentia o san gue ferver e transformar-se em vapor, mas

não havia nenhuma dor. Sentia -se forte, nova e feroz.

E no dia seguinte, estranhamente, pareceu -lhe que não

doía tanto. Foi como se os deuses a tives sem escutado e

se tivessem apiedado. Até as criadas repararam na

mudança.

- Khaleesi - disse Jhiqui -, que se passa? Está doente?

- Estava - ela respondeu, em pé junto aos ovos de dragão

que Illyrio lhe oferecera quando se casara. Tocou um

deles, o maior dos três, fazendo correr a mão sobre a

casca. Negro e escarlate, pensou, como o dragão no meu sonho, A

pedra parecia estranhamente quente sob seus dedos... ou

estaria ainda sonhando? Retirou a mão, nervosamente.

Daquela hora em diante, cada dia foi mais fácil que o

anterior. As pernas ficaram mais fort es; as bolhas

arrebentaram e as mãos ganharam calos; as moles coxas

enrijeceram, flexíveis como couro.

O khal ordenara à criada Irri que ensinasse Dany montar à

moda dothraki, mas sua verdadeira professora era a

potranca. A égua parecia conhecer-lhe os estados de alma,

como se partilhassem uma mente única. A cada dia que

passava, Dany sentia-se mais segura sobre a sela. Os

dothrakis eram um povo duro e sem sentimentalismos, e

não tinham o costume de dar nomes aos animais;

portanto, Dany pensava no animal ap enas como a prata.

Nunca amara tanto coisa alguma.

À medida que a viagem foi deixando de ser uma provação,

Dany começou a reparar nas be lezas da terra que a

rodeava. Cavalgava à frente do khalasar com Drogo e seus

companheiros de sangue, e assim encontrav a todas as

regiões frescas e intactas. Atrás deles, a grande horda

podia rasgar a terra e enlamear os rios e levantar nuvens

de pó que dificultavam a respiração, mas os campos à sua

frente estavam sempre viçosos e verdejantes.

Atravessaram as colinas ondul adas de Norvos, deixando

para trás fazendas de campos amurados e pequenas

aldeias onde o povo observava ansioso, de cima de muros

brancos de estuque. Atravessaram pelo vau três largos

rios plácidos e um quarto que era rápido, estreito e

traiçoeiro, acampa ram ao lado de uma grande catarata

azul e rodearam as ruínas tombadas de uma vasta cidade

morta, onde se dizia que os fantasmas gemiam por entre

enegrecidas colunas de mármore. Correram por estradas

valirianas com mil anos de idade, retas como uma seta

dothraki. Ao longo de meia lua, atravessaram a Floresta

de Qohor, onde as folhas formavam uma abóbada dourada

muito acima deles e os troncos das árvores eram tão

largos como portões de uma cidade. Havia grandes alces

naqueles bosques, tigres malhados e lémures de pelo

prateado e enormes olhos púrpuros, mas todos fugiram

antes que o khalasar se aproximasse e Dany não chegou a

vislumbrá-los.

Por essa altura, sua agonia era uma memória que se

desvanecia. Ainda sentia-se dolorida depois de um longo

dia de viagem, mas, de algum modo, a dor incorporava

agora certa doçura, e ela subia de boa vontade para a sela

todas as manhãs, ansiosa por saber que maravilhas a

esperavam nas terras que se estendiam à frente. Começou

a encontrar prazer até mesmo nas noites, e em bora ainda

gritasse quando Drogo a possuía, nem sempre era de dor.

Na base da colina, as plantas ergueram -se à sua volta,

altas e flexíveis. Trotando, Dany pene trou na planície,

deixando-se perder na relva, abençoadamente só. No

khalasar nunca estava só. Khal Drogo só vinha encontrá-la

depois de o sol se pôr, mas as criadas a alimentavam, a

banhavam e dormiam junto à porta de sua tenda; os

companheiros de sangue de Drogo e os homens de seu

khas nunca estavam muito distantes, e o irmão era uma

sombra indesejada, dia e noite. Dany conseguia ouvi -lo no

topo da colina, com a voz esganiçada de raiva enquanto

gritava a Sor Jorah. Ela avançou, submergindo -se mais

profundamente no Mar Dothraki.

O verde a engoliu. O ar estava enriquecido com os odores

da terra e das plantas, misturados com o cheiro do cavalo,

do suor de Dany e do óleo em seu cabelo. Cheiros

dothrakis. Pareciam pertencer àquele lugar. Dany respirou

tudo aquilo, rindo. Teve uma súbita vontade de sentir o

chão debaixo dos pés, de fechar os dedos sobre aqu ele

espesso solo negro. Desmontando, deixou a prata pastando

enquanto descalçava as botas de cano alto.

Viserys chegou junto dela tão subitamente como uma

tempestade de verão, com o cavalo se empinando quando

puxou as rédeas com demasiada força.

- Como se atrevei - ele gritou com ela. - Dar ordens a mim?

A mim? — saltou do cavalo, tro peçando ao pisar no chão.

Seu rosto estava corado quando se pôs em pé. Agarrou -a

e a sacudiu, - Esqueceu-se de quem é? Olhe para você.

Olhe para você!

Dany não precisava se ol har. Estava descalça, com o

cabelo oleado, usando couros dothrakis de montar e um

vestido pintado que lhe fora dado como presente de

noivado. Parecia pertencer àquele lugar. Viserys estava

sujo e enodoado, vestido com suas sedas citadinas e cota

de malha.

Ele ainda gritava.

- Você não dá ordens ao dragão. Entende isto? Eu sou o

Senhor dos Sete Reinos, não rece berei ordens de uma

puta qualquer de chefe de horda, está ouvindo? -

introduziu a mão sob o ferido dela, enterrando

dolorosamente os dedos no seio. - Está ouvindo?

Dany o afastou com um forte empurrão.

Viserys a fitou, com os olhos lilás incrédulos. Ela nunca o

desafiara. Nunca lutara. A raiva distorceu -lhe as feições.

Ela sabia que ele agora a machucaria, e muito. Crac.

O chicote fez um som de trovão. A ponta enrolou-se no

pescoço de Viserys e o atirou para t rás. Ele se estatelou

na relva, atordoado e estrangulado. Os cavaleiros

dothrakis gritavam enquanto ele lutava por se libertar. O

dono do chicote, o jovem Jhogo, arriscou uma pergunta.

Dany não compreendeu suas palavras, mas então Irri

chegou, com Sor Jorah e o resto de seu khas,

-Jhogo pergunta se deve matá -lo, Khaleesi - disse Irri.

- Não - Dany respondeu. - Não.

Jhogo compreendeu aquilo. Um dos outros ladrou um

comentário, e os dothrakis riram. Irri disse a Viserys:

- Quaro pensa que deve cortar uma orelha para lhe

ensinar respeito.

O irmão estava de joelhos, com os dedos enterrados sob

os anéis de couro, gritando incoerent emente, lutando por

ar. O chicote enrolava-se apertado na traqueia,

- Diga-lhes que não o quero ferido - disse Dany.

Irri repetiu suas palavras em dothraki. Jhogo deu um

puxão no chicote, sacudindo Viserys como uma marionete

na ponta de uma corda. Ele se estatelou de novo, livre do

abraço de couro, com uma fina linha de sangue s ob o

queixo, no local onde o chicote cortara profundamente a

pele.

- Eu o preveni do que aconteceria, senhora - disse Sor

Jorah Mormont. - Disse-lhe para ficar na colina, conforme

havia ordenado.

- Eu sei que sim - respondeu Dany, observando Viserys,

que jazia no chão, inspirando rui dosamente ar, corado e

soluçando. Era uma coisa digna de pena. Sempre fora. Por

que nunca antes tinha compreendido? Havia um lugar oco

dentro dela, o lugar onde estivera seu medo.

- Tome o cavalo dele - ordenou Dany a Sor Jorah. Viserys

a olhou de boca aberta. Não conseguia acreditar no que

ouvia; e Dany tampouco conseguia acreditar bem no que

dizia. No entanto, as palavras vieram. - Que meu irmão

caminhe atrás de nós até o khalasar - entre os dothrakis, o

homem que não monta a cavalo não é homem nenhum, o

mais vil dos seres vis, sem honra nem orgulho. - Que

todos o vejam tal como é.

- Não! - Viserys gritou. Virou-se para Sor Jorah, suplicando

na língua comum, com palavras que os cavaleiros não

compreenderiam, - Bata-lhe, Mormont. Fira-a. É seu rei

que está ordenando. Mate estes cães dothrakis e dê -lhe

uma lição.

Os olhos do cavaleiro exilado saltaram de Dany para o

irmão; ela de pés nus, com terra entre os dedos dos pés e

óleo no cabelo, ele com suas sedas e seu aço. Dany

conseguiu ver a decisão no rosto do homem.

- Ele andará, Khaleesi - Sor Jorah decidiu. Agarrou as

rédeas do cavalo do irmão, enquanto Dany montava sua

prata.

Viserys o olhou de boca aberta e sentou -se na terra.

Manteve-se em silêncio, mas recusou -se a andar, e seus

olhos estavam cheios de veneno ao vê -los se afastar. Em

breve estava perdido por entre as plantas altas. Quando

deixaram de vê-lo, Dany ficou com receio.

- Ele conseguirá descobrir o caminho de voltai -

perguntou a Sor Jorah enquanto caminhavam,

- Mesmo um homem tão cego como seu irmão deve ser

capaz de seguir nosso rastro - respondeu o cavaleiro.

- Ele é orgulhoso. Pode se sentir muito envergonhado

para regressar.

Jorah soltou uma gargalhada.

- Para onde mais pode ir? Se não conseguir encontrar o

khalasar, certamente o khalasar o encontrará. É difícil morrer

afogado no Mar Dothraki, menina.

Dany compreendeu a verdade daquelas palavras. O khalasar

era como uma cidade em marcha, mas não marchava às

cegas. Batedores patrulhavam o terreno bem à frente da

coluna principal, alerta a qualquer sinal de caça ou

inimigos, enquanto os outros guardavam os flancos. Não

deixavam passar nada, especialmente ali, naquela terra,

naquele lugar que lhes dera origem. Aquelas planícies

eram uma parte deles... e agora também dela.

- Eu bati nele - disse ela, com espanto na voz. Agora que

o confronto terminara, parecia um estranho sonho que

tinha tido, - Sor Jorah, pense... ele estará tão zangado

quando regressar... - estremeceu. - Acordei o dragão, não

acordei?

Sor Jorah resfolegou.

- E capaz de acordar os mortos, pequena? Seu irmão

Rhaegar foi o último dragão e morreu no Tridente.

Viserys é menos que a sombra de uma serpente.

Aquelas palavras bruscas sobressaltaram -na. Era como se

tudo aquilo em que sempre acredi tara fosse subitamente

posto em causa.

- O senhor... lhe prestava vassalagem...

- É verdade, pequena - disse Sor Jorah. - E se seu irmão é

a sombra de uma serpente, em que é que isso transforma

os seus servos? - a voz dele soava amarga.

- Ele ainda é o verdadeiro rei. Ele é...

Jorah puxou as rédeas do cavalo e olhou para ela.

- Agora a verdade. Gostaria de ver

Viserys sentado num trono? Dany

refletiu sobre a ideia.

- Não seria um rei lá muito bom, não é?

-Já houve piores... , mas não muitos - o cavaleiro esporeou

o cavalo e retomou a viagem. Dany seguiu logo atrás dele.

- Mas, mesmo assim - disse -, o povo o espera. Magíster

Illyrio diz que o povo borda estan dartes do dragão e reza

para que Viserys regresse através do mar estreito para

libertá-lo.

- O povo reza por chuva, filhos saudávei s e um verão que

nunca termine - disse-lhe Sor Jorah. - Não lhe interessa se

os grandes senhores lutam suas guerras de tronos, desde

que seja deixado em paz - encolheu os ombros. - E nunca

é.

Dany

seguiu

em

silêncio

durante

algum

tempo,

trabalhando as palavras do companheiro como se fossem

um quebra-cabeça. Pensar que o povo podia se importar

tão pouco se seu soberano era um rei verdadeiro ou um

usurpador ia contra tudo o que Viserys lhe dissera. Mas

quanto mais refletia sobre as palavras de Jorah, mais lh e

soavam a verdade.

- E por quem reza o senhor, Sor Jorah? - perguntou.

- Pela pátria - disse ele, a voz carregada de saudade.

- Eu também rezo pela pátria - disse ela, acreditando no

que dizia.

Sor Jorah soltou uma gargalhada.

- Então olhe em volta, Khaleesi,

Mas não foram as planícies que Dany viu então. Foi Porto

Real e a grande Fortaleza Verme lha que Aegon, o

Conquistador, tinha construído. Foi Pedra do Dragão,

onde nascera. No olho de sua mente, esses lugares ardiam

com mil luzes, um fogo em brasa em cad a janela. No olho

de sua mente, todas as portas eram vermelhas.

- Meu irmão nunca recuperará os Sete Reinos - ela disse,

compreendendo que já sabia disso havia muito. Soubera-o

por toda a vida. Nunca se permitira dizer as palavras,

nem mesmo num sussurro, mas dizia-as agora para que

Jorah Mormont e todo mundo as ouvisse.

Sor Jorah enviou-lhe um olhar avaliador.

- Pensa que não?

- Ele não lideraria um exército mesmo se o senhor meu

marido lhe oferecesse - Dany respondeu. - Não tem nem

uma moeda, e o único c avaleiro que o segue o insulta

dizendo que é menos que uma serpente. Os dothrakis

zombam de sua fraqueza. Ele nunca nos levará para casa.

- Criança sensata - o cavaleiro sorriu.

- Não sou criança nenhuma - disse-lhe com ferocidade.

Apertou com os calcanhares os flancos de sua montaria,

pondo a prata a galope. Correu mais e mais depressa,

deixando Jorah, Irri e os outros muito para trás, com o

vento quente no cabelo e o sol que se punha vermelho no

rosto. Quando alcançou o khalasar, o crepúsculo já chegara.

Os escravos tinham erguido sua tenda junto à margem de

uma lagoa alimentada por uma nascente. Ouviam-se vozes

rudes vindas do palácio de folhas trançadas, na colina. Em

breve se ouviriam gargalhadas, quando os homens de seu

khas contassem a história que acont ecera na base da

colina. Quando Viserys chegasse, coxeando, todos os

homens, mulheres e crianças do acampamento o

reconheceriam como um caminhante. Não havia segredos

no khalasar.

Dany entregou prata aos escravos para que dela tratassem

e entrou em sua tenda. Sob a seda fazia frio, e estava

escuro. Ao deixar cair a porta de pano atrás das costas,

Dany viu um dedo de poeirenta luz vermelha estender-se

para tocar os ovos de dragão do outro lado da tenda. Por

um instante, mil gotículas de chama escarlate nadar am

perante seus olhos. Pestanejou, e elas desa pareceram.

Pedra, disse a si própria. São apenas pedra, até Illyrio lhe dissera,

os dragões estão todos mortos. Pousou a palma da mão no ovo

negro, com os dedos suavemente espalhados pela curva da

casca. A pedra estava morna. Quase quente.

- O sol - sussurrou Dany. - O sol os aqueceu durante a

viagem.

Ordenou às criadas que lhe preparassem um banho.

Doreah fez uma fogueira fora da tenda, enquanto Irri e

Jhiqui foram buscar a grande banheira de cobre - outro

presente de noivado -, montadas em cavalos de carga, e

trouxeram água da lagoa. Quando o banho começou a

fumegar, Irri a ajudou a entrar e também entrou logo a

seguir.

-Já viu alguma vez um dragão? - perguntou, enquanto Irri

lhe esfregava as costas e Jhiqui l he lavava abundantemente

o cabelo com água para tirar a areia. Ouvira dizer que os

primeiros dragões tinham vindo do leste, das Terras das

Sombras para lá de Asshai e das ilhas do Mar de Jade.

Talvez alguns ainda aí vivessem, em reinos estranhos e

selvagens.

- Dragões já não há, Khaleesi - disse Irri.

- Estão mortos - concordou Jhiqui. - Há muitos, muitos

anos.

Viserys dissera-lhe que os últimos dragões Targaryen não

tinham morrido há mais de século e meio, durante o

reinado de Aegon ui, conhecido como Desgraça dos

Dragões. E, para ela, não parecia tanto tempo assim.

- Em toda a parte? - perguntou, desapontada. - Mesmo no

leste? - a magia morrera no Oeste quando a Perdição

caíra sobre Valíria e as Terras do Longo Verão, e nem o

aço forjado com feitiços, nem os can tores de tempestade,

nem os dragões conseguiram afastá -la, mas Dany sempre

ouvira dizer que o leste era diferente. Diziam que

manticoras1 percorriam as ilhas do Mar de Jade, que

basiliscos infestavam as selvas de Yi Ti, que encantadores,

feiticeiros e aeromantes praticavam abertamente suas

artes em Asshai, ao passo que magos negros e de sangue

construíam terríveis feitiçarias na escuridão da noite. Por

que não haveria de ter também dragões?

- Dragão, não - disse Irri. - Bravos homens os matam,

porque dragões são terríveis, animais malvados. É sabido.

- É sabido - concordou Jhiqui.

- Um mercador de Qarth disse-me uma vez que os dragões

vinham da Lua - disse a loura Doreah enquanto aquecia

uma toalha perto da fogueira.

Jhiqui e Irri eram da mesma idade de Dany, jov ens

dothrakis tomadas como escravas quando Drogo destruiu

o khalasar do pai delas. Doreah era mais velha, com quase

vinte anos. Magíster Illyrio a encontrara num palácio dos

prazeres em Lys.

Molhados cabelos prateados caíram -lhe em frente aos

olhos quando Dany virou a cabeça, curiosa.

- Da Lua?

- Ele disse-me que a Lua era um ovo, Khaleesi - respondeu

a jovem lysena. - Antes havia duas luas no céu, mas uma

delas se aproximou demais do Sol e rachou com o calor.

Mil milhares de dragões jorraram de dentro dela e

beberam o fogo do Sol. É por isso que os dragões exalam

chamas. Um dia esta Lua também beijará o Sol, e então

rachará e os dragões regressarão.

As duas jovens dothrakis riram.


1Criatura mitológic a com cabeça de homem e corpo de leão. (N. T.)

- É uma tola escrava de cabelos de palha - disse Irri. - Lua

não é ovo. Lua é deus, mulher esposa do Sol. Todos

sabem.

- Todos sabem - Jhiqui concordou.

A pele de Dany estava corada e cor-de-rosa quando saiu

da banheira. Jhiqui a deitou para olear seu corpo e limpar

os poros. Depois disso, Irri aspergiu -a com flor-de-

especiaria e canela. E nquanto Doreah lhe escovava o

cabelo até brilhar como seda fiada, Dany refletiu sobre a

Lua, os ovos e os dragões.

O jantar foi uma simples refeição de frutas, queijo e pão

frito, com um cântaro de vinho com mel para

acompanhar.

- Doreah, fique e coma comi go - ordenou Dany quando

mandou embora as outras criadas. A lysena tinha cabelo

da cor de mel e olhos que eram como o céu do verão.

Ela abaixou os olhos quando ficaram sós.

- Honra-me, Khaleesi - disse, mas não era honra alguma,

apenas serviço. Ficaram sen tadas, juntas, até muito depois

de a lua nascer, conversando.

Naquela noite, quando Khal Drogo chegou, Dany o

esperava. Ele parou à porta da tenda e a olhou, surpreso.

Ela se levantou devagar, abriu suas sedas de dormir e as

deixou cair ao chão.

- Esta noite, devemos ir lá para fora, meu senhor - disse-

lhe, pois os dothrakis acreditavam que todas as coisas

com importância na vida de um homem devem ser feitas a

céu aberto.

Khal Drogo a seguiu para a luz cio luar, com os sinos no

cabelo a tilintar baixinho. A alguns metros da tenda havia

uma cama com um mole colchão de ervas, e foi para lá

que Dany o puxou. Quando ele tentou virá-la, ela pôs-lhe

a mão no peito.

- Não. Esta noite quero olhá -lo no rosto.

Não há privacidade no coração do khalasar, Dany sentiu

olhos sobre ela enquanto o despia, ouviu vozes baixas

enquanto fazia as coisas que Doreah lhe dissera para

fazer. Não tinha impor tância. Não era a khaleesi? Os dele

eram os únicos olhos que importavam, e quando o montou

viu algo neles que nunca vira antes. C avalgou-o com tanto

vigor como já cavalgara a sua prata, e quando chegou o

momento do prazer, Khal Drogo gritou seu nome.

Estavam no lado mais distante do Mar Dothraki quando

Jhiqui afagou com os dedos o suave inchaço na barriga de

Dany e disse:

- Khaleesi, está à espera de um bebê.

- Eu sei - Dany respondeu.

Isso aconteceu no décimo quarto dia do seu nome.


Bran


No pátio, lá embaixo, Rickon corria com os lobos.

Bran observava, sentado em frente à janela. Onde quer

que seu irmão fosse, Vento Cinzento estava lá primeiro,

saltando na frente para lhe cortar o caminho, até que

Rickon o via, gritava de alegria e desatava a correr em

outra direção. Cão Felpudo corria logo atrás dele,

rodopiando e mordendo se os outros lobo s se

aproximassem demais. Seu pê lo tinha escurecido até se

tornar todo negro, e seus olhos eram fogueiras verdes.

O Verão, de Bran, vinha por último. Era prata e fumo,

com olhos amarelo -ouro que viam tudo, mas era menor

que Vento Cinzento, e também mais cauteloso. Bran o

achava o mais inteli gente da ninhada. Ouvia o riso sem

fôlego do irmão, enquanto corria pela terra batida com

suas pequenas pernas de criança.

Seus olhos começaram a arder. Queria estar lá embaixo,

rindo e correndo. Zangado com aquele pensamento, Bran

esfregou as lágrimas antes que t ivessem tempo de cair. O

oitavo dia do seu nome tinha chegado e partido. Era agora

quase um homem feito, velho demais para chorar.

- Era só uma mentira - ele falou amargamente, lembrando -

se do corvo de seu sonho. - Não posso voar. Sequer posso

correr.

- Os corvos são todos mentirosos - concordou a voz da

Velha Ama da cadeira onde trico tava. - Conheço uma

história sobre um corvo.

- Não quero mais histórias - Bran exclamou, com

petulância na voz. Antes, ele gostava da Velha Ama e de

suas histórias. Antes. Agora er a diferente. Agora a

deixavam junto dele o dia inteiro, para vigiá -lo, limpá-lo e

evitar que se sentisse só, mas ela só tornava as coisas

piores. - Detesto suas histórias estúpidas.

A velha mulher mostrou-lhe um sorriso sem dentes.

- Minhas histórias? Não, meu pequeno senhor, minhas,

não. As histórias são, antes de mim e depois de mim, e

antes de você também.

Ela

era

uma

velha

muito

feia,

pensou

Bran

rancorosamente; encolhida e enrugada, quase cega,

demasiado fraca para subir escadas, sem lhe restarem

mais que alguns fios de cabelo branco para cobrir um

couro cabeludo cor -de-rosa e pintalgado. Ninguém sabia

bem que idade tinha, mas o pai dizia que já a chamavam

Velha Ama quando ele próprio ainda era rapaz.

Certamente era a pessoa mais velha de Winterfell, e talvez

dos Sete Reinos. A Ama viera para o castelo como ama de

leite de um Brandon Stark cuja mãe morrera ao dá-lo à

luz, talvez o irmão mais velho de Lorde Rickard, o avô de

Bran, ou o irmão mais novo, ou um irmão do pai de Lorde

Rickard. Às vezes a Velha Ama contava a história de uma

maneira, às vezes, de outra. Mas em to das o rapazinho

morrera aos três anos de um resfriado de verão, mas a

Velha Ama permanecera em Winterfell com seus próprios

filhos. Perdera ambos os rapazes na guerra em que Rei

Robert conquistara o trono, e o neto fora morto nas

muralhas de Pyke durante a rebelião de Balon B reyjoy. As

filhas já tinham se casado havia muito tempo, ido viver

longe e morrido, Tudo o que restava de seu sangue era

Hodor, o gigante simplório que trabalhava nas cavalariças,

mas a Velha Ama vivia e continuava a viver, com suas

agulhas e suas histórias.

- Não me interessa saber de quem são as histórias - Bran

respondeu -, eu as detesto - não queria as histórias e não

queria a Velha Ama. Queria a mãe e o pai. Queria correr

com Verão aos saltos a seu lado, subir a torre quebrada e

dar milho aos corvos, voltar a montar seu pônei com os

irmãos, e que tudo fosse como antes.

- Sei uma história sobre um rapaz que detestava histórias

- a Velha Ama insistiu com seu sorrisinho estúpido,

enquanto as agulhas se moviam, clic, clic, clic, e Bran sentiu-

se capaz de gritar com ela.

Sabia que as coisas nunca voltariam a ser como antes. O

corvo o levara para voar, ledo engano, mas, quando

acordou, estava quebrado, e o mundo mudado. Tinha m-no

abandonado todos, o pai, a mãe, as irmãs e até o irmão

bastardo Jon. O pai prometera levá-lo para Porto Real

montado num cavalo verdadeiro, mas tinham partido sem

ele. Meistre Luwin enviara uma ave com uma mensagem

para Lorde Eddard, outra para a mãe, e uma terceira para

Jon, na Muralha, mas não houve respostas. "Muitas vezes

as aves se perdem, criança", dissera -lhe o meistre. "Há

muitas milhas e muitos falcões daqui a Porto Real, e a

mensagem pode não ter chegado." Mas, para Bran, era

como se tivessem todos morrido enquanto dormia... ou

talvez ele tivesse morrido e todos o t inham esquecido.

Jory, Sor Rodrik e Vayon Poole também tinham partido, e

Hullen, Harwin e Gordo Tom, e um quarto da guarda.

Só restavam Robb e o bebê Rickon, e Robb estava

mudado, era agora o Senhor, ou tentava sê -lo. Usava uma

espada verdadeira e nunca sorria. Passava os d ias

exercitando a guarda e prati cando esgrima, fazendo o

pátio ressoar com o som do aço, enquanto Bran

observava, desam parado, da janela, A noite fechava -se com

Meistre Luwin, conversando, ou revendo os livros de

contas. Por vezes saía a cavalo com Hallis Mollen e

permanecia longe durante dias, visitando fortificações

distantes. Sempre que estava longe por mais de um dia,

Rickon chorava e perguntava a Bran se o i rmão

regressaria. E mesmo quando estava em Winterfell, Robb,

o Senhor, parecia ter mais tempo para Hallis Mollen e

Theon Greyjoy do que para os irmãos.

- Eu podia lhe contar a história de Brandon, o Construtor

- disse a Velha Ama. - Esta sempre foi a sua favorita.

Milhares e milhares de anos antes, Brandon, o Construtor,

erguera Winterfell e, segundo al guns diziam, a Muralha.

Bran conhecia a história, mas nunca fora sua favorita.

Talvez um dos ou tros Brandons tivesse gostado dela. Por

vezes a Ama falava com ele como se fosse o seu Brandon,

o bebê que amamentara há tantos anos, e por vezes o

confundia com o tio Brandon, que tinha sido morto pelo

Rei Louco antes de Bran nascer. Ela vivera tanto tempo,

dissera-lhe sua mãe uma vez, que todos os Brandons Stark

se tinham transformado numa só pessoa em sua cabeça.

- Esta não é a minha favorita - Bran respondeu. - Minhas

favoritas são as assustadoras - ouviu uma agitação

qualquer lá fora e voltou a se virar para a janela. Rickon

corria para a guarita, com os lobos atrás, mas a torre

ficava fora de seu campo de visão, por isso não podia ver

o que estava acontecendo, e socou sua coxa, frustrado,

mas não sentiu nada.

- Ah, minha querida criança de verão - disse a Velha Ama

em voz baixa -, que sabe de medo? O medo pertenc e ao

inverno, meu pequeno senhor, quando as neves se

acumulam até três metros de profundidade e o vento

gelado uiva do norte. O medo pertence à longa noite,

quando o sol esconde o rosto durante anos e as crianças

nascem, vivem e morrem sempre na escuridão, enquanto

os lobos gigantes se tornam magros e famintos, e os

caminhantes brancos se movem pelos bosques.

- Você está falando dos Outros - Bran falou, como que se

lamentando.

- Os Outros - concordou a Velha Ama. - Há milhares e

milhares de anos, caiu um in verno que era mais frio, duro

e infinito que qualquer outro na memória do homem.

Chegou uma noite que durou uma geração, e tanto

tremeram e morreram os reis em seus castelos como os

criadores de porcos em suas cabanas. As mulheres

preferiram asfixiar os f ilhos a vê-los passar fome, e

choraram, e sentiram as lágrimas congelarem em seu

rosto - a voz e as agulhas calaram --se, ela olhou Bran com

seus olhos claros e velados e perguntou: - Então, criança?

Este é o tipo de história de que gosta?

- Bem... - disse Bran com relutância - sim, só que...

A Velha Ama acenou com a cabeça.

- Nessa escuridão, os Outros vieram pela primeira vez - a

velha começou, enquanto as agu lhas faziam clic, clic, clic. -

Eram coisas frias, mortas, que odiavam o ferro, o fogo, o

toque do sol e todas as criaturas com sangue quente nas

veias.

Arrasaram

fortificações,

cidades

e

reinos,

derrubaram heróis e exércitos às centenas, montando seus

pálidos cavalos mortos e liderando hostes de assassinados.

Nem todas as espadas dos homens juntas l ogravam deter

seu avanço, e até donzelas e bebês de peito neles não

encontravam piedade. Perseguiam as donzelas através de

florestas congeladas e alimentavam seus servos mortos

com a carne de crianças humanas.

A voz da Ama tinha se tornado muito baixa, qua se um

sussurro, e Bran deu por si inclinando -se para a frente

para ouvir.

- Esses foram os tempos antes da chegada dos ândalos, e

muito antes de as mulheres terem fugido das cidades do

Roine através do mar estreito, e os cem reinos desses

tempos eram os reinos dos Primeiros Homens, que tinham

tomado estas terras dos filhos da floresta. Mas aqui e ali,

nos bosques mais densos, os filhos ainda viviam em suas

cidades de madeira e colinas ocas, e os rostos das árvores

mantinham-se vigilantes. E assim, enquanto o frio e a

morte enchiam a terra, o último herói decidiu procurar os

filhos da floresta, na esperança de que sua antiga magia

pudesse reconquistar aquilo que os exércitos dos homens

tinham perdido. Partiu para as terras mortas com uma

espada, um cavalo, um cão e uma dúzia de companheiros.

Procurou durante anos, até perder a esperança de chegar

algum dia a encontrar os filhos da floresta em suas

cidades secretas. Um por um os amigos morreram, e

também o cavalo, e por fim até o cão, e sua espada

congelou tanto que a lâmina se quebrou quando tentou

usá-la. E os Outros cheiraram nele o san gue quente e

seguiram-lhe o rastro em silêncio, perseguindo -o com

matilhas de aranhas brancas, grandes como cães de caça...

De repente a porta se abriu com um bang, e o coração de

Bran saltou-lhe até a boca num medo súbito, mas era

apenas Meistre Luwin, com Hodor parado na escada atrás

dele.

- Hodor! - anunciou o cavalariço, como era seu costume,

com um enorme sorriso para todos.

Meistre Luwin não estava sorrindo.

- Temos visitantes - anunciou -, e sua presença é

solicitada, Bran,

- Mas agora estou ouvindo uma história - o menino

protestou,

- As histórias esperam, meu pequeno senhor, e quando

regressar, elas estarão aqui - disse a Velha Ama. - Os

visitantes não são assim tão pacien tes, e muitas vezes

trazem suas próprias histórias.

- Quem é? - Bran perguntou a Meistre Luwin.

- Tyrion Lannister e alguns homens da Patrulha da Noite,

com notícias de seu irmão Jon. Robb os está recebendo.

Hodor, ajude Bran a descer até o salão?

- Hodor! - o moço concordou alegremente e abaixou -se

para passar sua grande cabeça desgrenhada pela porta,

Hodor tinha quase dois metros e quinze. Era difícil

acreditar que fosse pa rente da Velha Ama. Bran perguntou

a si mesmo se, quando envelhecesse, encarquilharia até

ficar tão pequeno como a bisavó. Não parecia provável,

mesmo que Hodor vivesse até os mil anos.

Hodor levantou Bran tão facilmente como se fosse um

pequeno amontoado de feno e aninhou-o no peito maciço.

Hodor exalava um leve odor de cavalos, mas não era um

cheiro desagradável. Seus braços eram grossos, cheios de

músculos e atapetados com pelos castanhos.

- Hodor - o gigante disse uma vez mais. Theon Greyjoy

comentara que Hodor não sabia muito, mas ninguém

podia duvidar de que conhecesse seu nome. A Velh a Ama

cacarejara como uma galinha quando Bran lhe contou isso,

e ela então confessou que o verdadeiro nome de Ho dor

era Walder. Ninguém sabia de onde viera "Hodor", ela

disse, mas quando ele começou a repe tir Hodor,

começaram a chamá-lo por esse nome. Era a única palavra

que o gigante conhecia.

Deixaram a Velha Ama no quarto da torre com suas

agulhas

e

suas

memórias.

Hodor

canta rolava

desafinadamente enquanto carregava Bran pelos degraus e

através da galeria, com Meistre Luwin atrás, esforçando -se

para acompanhar as longas passadas do cavalariço.

Robb estava sentado no cadeirão do pai, usando cota de

malha, couro fervido e o rosto severo como o de um

Senhor. Theon Greyjoy e Hallis Mollen estavam em pé a

seu lado. Uma dúzia de guardas estava disposta ao lo ngo

das paredes de pedra cinzenta, sob janelas altas e

estreitas. No centro da sala, encontravam -se o anão com

seus criados e quatro estranhos vestidos com o negro da

Patrulha da Noite. Bran sentiu a ira que pairava no salão

no momento em que Hodor o carre gou pela porta.

- Qualquer homem da Patrulha da Noite é bem -vindo aqui

em Winterfell pelo tempo que desejar ficar - seu irmão

dizia com a voz de Robb, o Senhor. Tinha a espada

pousada sobre os joelhos, mostrando o aço para que todo

mundo visse. Até Bran sabi a o que significava receber um

hóspede com uma espada desembainhada.

- Qualquer homem da Patrulha da Noite - repetiu o anão -

, mas eu, não, percebo bem o que quer dizer, meu rapaz?

Rob pôs-se de pé e apontou para o homenzinho com a

espada.

- Eu aqui sou senhor enquanto minha mãe e meu pai

estiverem fora, Lannister. Não sou seu rapaz.

- Se é um senhor, bem podia aprender a cortesia de um -

respondeu o homenzinho, ignorando a ponta da espada

apontando para sua cara. - Seu irmão bastardo ficou com

toda a elegância do seu pai, ao que parece.

- Jon - Bran arquejou nos braços de Hodor.

O anão virou-se para olhá-lo.

- Então é verdade, o rapaz está vivo. Quase não acreditei.

Vocês, os Stark, são difíceis de matar.

- E é bom que vocês, os Lannister, se lembrem disso -

disse Robb, baixando a espada. - Hodor, traga meu irmão

aqui.

- Hodor - o gigante repetiu, e trotou em frente, sorrindo,

e pousou Bran no cadeirão dos Stark, onde os Senhores de

Winterfell se sentavam desde os tempos em que

chamavam a si próprios Reis do Norte. A cadeira era de

pedra fria, polida por incontáveis traseiros; as cabeças

esculpidas de lobos selvagens rosnavam nas pontas de

seus maciços braços. Bran agarrou-as ao se sentar, com as

inúteis pernas a balançar. O grande cadeirão o fez sentir-

se quase como um bebê.

Robb pousou-lhe a mão no ombro.

- Você disse que tinha assuntos a tratar com Bran. Pois

bem, aqui está ele, Lannister.

Bran estava desconfortavelmente consciente dos olhos de

Tyrion Lannister. Um era negro e o outro, verde, e ambos

o olhavam, estudando-o, pesando-o.

- Disseram-me que era um belo escalador, Bran - disse o

homenzinho. - Diga-me, como caiu naquele dia?

- Eu nunca - insistiu Bran. Ele nunca caía, nunca, nunca,

nunca.

- O rapaz não se recorda nada da queda, nem da escalada

que a precedeu - disse Meistre Luwin com gentileza.

- Curioso - Tyrion Lannister respondeu.

- Meu irmão não está aqui para responder a perguntas,

Lannister - Robb foi conciso no aviso. - Trate logo do que

o trouxe aqui e ponha-se a caminho.

- Tenho um presente para você - disse o anão a Bran. -

Gosta de montar a cavalo, rapaz? Meistre Luwin adiantou-

se.

- Senhor, a criança perdeu o uso das pernas. Não pode se

sentar sobre um cavalo.

- Besteira - Lannister respondeu, - Com o cavalo e a sela

certos, até um aleijado pode montar . A palavra foi como

uma faca espetada no coração de Bran. Sentiu lágrimas a

subir-lhe aos olhos sem serem convidadas.

- Eu não sou um aleijado!

- Neste caso, eu não sou um anão - retrucou o anão,

torcendo a boca.

- Meu pai se alegrará quando souber - Greyjoy riu.

- Que tipo de cavalo e sela está sugerindo? - perguntou

Meistre Luwin.

- Um cavalo inteligente - Lannister respondeu. - O rapaz

não pode usar as pernas para diri gir o animal, portanto,

tem de se ajustar o cavalo ao cavaleiro, ensinar-lhe a

responder às rédeas, à voz. Eu começaria com um potro

não domado de um ano, sem ensinamentos antigos - tirou

do cinto um papel enrolado. - Entregue isto ao seu

fabricante de selas. Ele tratará do resto.

Meistre Luwin recebeu o papel da mão do anão, curioso

como um pequeno esquilo cinzento. Desenrolou-o e o

estudou.

- Estou vendo. Desenha bem, senhor. Sim, isto deve

funcionar. Deveria ter pensado nisto.

- Para mim é mais fácil, Meistre. Não é muito diferente

das minhas selas.

- Serei mesmo capaz de montar? - perguntou Bran, Queria

acreditar neles, mas tinha medo. Talvez fosse apenas mais

uma mentira. O corvo prometera-lhe que poderia voar.

- Será - disse-lhe o anão. - E juro, meu rapaz, sobre o

dorso de um cavalo, será tão alto como qualquer deles.

Robb Stark pareceu confuso.

- Isto é alguma armadilha, Lannister? O que Bran

representa para você? Por que quer ajudá -lo?

- Seu irmão Jon me pediu. E tenho um ponto fraco no

coração por aleijados, bastardos e coi sas quebradas -

Tyrion Lannister pôs a mão sobre o coração e mostrou os

dentes.

A porta que dava para o pátio foi escancarada. A luz do

sol jorrou pelo salão no momento em que Rickon entrou

de repente, sem fôlego. Os lobos gigantes vinham com ele.

O rapaz parou na porta, de olhos muito abertos, mas os

lobos entraram. Seus olhos encon traram Lannister, ou

talvez tivessem farejado seu odor. Verão foi o primeiro a

começar a rosnar. Vento Cinzento juntou-se a ele.

Aproximaram-se do homenzinho, um pela direita, o outro

pela esquerda.

- Os lobos não apreciam seu cheiro, Lannister - comentou

Theon Greyjoy.

- Talvez seja hora de me retirar - disse Tyrion. Deu um

passo para trás... e Cão Felpudo saiu das sombras atrás

dele, rosnando. Lannister recuou, e Verão precipitou -se

sobre ele, vindo do outro lado. Cambaleou para longe,

sobre pernas instáveis, e Vento Cinzento atacou-lhe o

braço, rasgando-lhe a manga com os dentes e arrancando

um pedaço de pano.

- Não! - gritou Bran do cadeirão ao mesmo tempo em que

os homens de Lannister agarra ram as armas. - Verão, aqui.

Verão, venha!

O lobo gigante ouviu a vo z, deu uma olhadela em Bran, e

de novo em Lannister. Rastejou para trás, para longe do

homenzinho, e sentou-se sob os pés oscilantes de Bran.

Robb prendera a respiração. Largou -a num suspiro e

chamou: "Vento Cinzento". Seu lobo gigante moveu -se em

sua direção, rápido e silencioso.

Agora restava apenas Cão Felpudo rugindo ao pequeno

homem, com os olhos ardendo como fogo verde.

- Rickon, chame-o - gritou Bran para o irmão mais novo, e

Rickon, como que acordando, gritou:

- Para casa, Felpudo, anda, para casa - o lobo negro

dirigiu a Lannister um último rosnado e saltou para

Rickon, que lhe deu um abraço apertado em torno do

pescoço.

Tyrion Lannister desenrolou o cachecol, limpou com ele a

testa e disse em voz monocórdia:

- Que interessante.

- Está bem, senhor? - perguntou um de seus homens, de

espada na mão. Olhava nervosa mente os lobos gigantes

enquanto falava.

- Tenho a manga rasgada e os calções úmidos por motivos

inconfessáveis, mas nada foi fe rido, além da minha

dignidade.

Até Robb parecia abalado.

- Os lobos... não sei por que fizeram isso.

- Não há dúvida de que me confundiram com o jantar -

Lannister fez uma reverência rígida a Bran. - Agradeço-lhe

por tê-los chamado, meu jovem. Garanto -lhe que me

teriam achado bas tante indigesto. E agora, realmente,

retiro-me.

- Um momento, senhor - disse Meistre Luwin. Aproximou -

se de Robb e os dois conferenciaram muito, aos sussurros.

Bran tentou ouvir o que diziam, mas suas vozes eram

baixas demais.

Robb Stark finalmente embainhou a espada:

- Eu... eu posso ter me precipitado com o senhor. Foi

bondoso com Bran e, bem... - Robb reconciliava-se com

esforço. - Ofereço-lhe a hospitalidade de Winterfell se

assim desejar, Lannister,

- Poupe-me de sua falsa cortesia, rapaz. Não gosta de mim

e não me quer aqui. Vi uma estalagem fora das suas

muralhas, na vila de inverno. Encontrarei ali uma cama e

ambos dormiremos mais facilmente. Por alguns cobres até

talvez encontre uma mulher agradável que me aqueça os

lençóis - virou-se para um dos irmãos negros, um homem

idoso com a coluna torcida e a ba rba emaranhada. -

Yoren, seguimos para o sul ao nascer do dia. Enco ntre-me

na estrada - e retirou-se, atravessando o salão com

dificuldade sobre as curtas pernas, passando por Rickon e

pela porta. Seus homens o seguiram.

Os quatro da Patrulha da Noite fica ram. Robb virou-se

para eles aparentando incerteza.

- Mandei preparar aposentos, e não lhes faltará água

quente para lavar a poeira da estrada. Espero que nos

honrem com sua presença à mesa esta noite - Robb disse

aquelas palavras de forma tão desastrada q ue até Bran

notou; era um discurso que tinha aprendido, não palavras

que lhe viessem do coração, mas os irmãos negros

agradeceram-lhe da mesma forma.

Verão seguiu pelos degraus da torre quando Hodor levou

Bran de volta para sua cama. A Velha Ama tinha

adormecido na cadeira. Hodor disse"Hodor", recolheu a

bisavó e a levou, resso nando baixinho, deixando Bran com

seus pensamentos. Robb lhe prometera que poderia parti -

cipar do festim com a Patrulha da Noite no Salão Grande.

- Verão - ele chamou. O lobo saltou para junto da cama.

Bran o abraçou com tanta força que sentiu o hálito

quente do animal na bochecha. - Agora posso montar -

sussurrou para o amigo. - Em breve poderemos ir caçar

na floresta, espere e verá.

Não demorou e Bran adormeceu. No sonho estava de n ovo

escalando, alçando-se para o alto numa velha torre sem

janelas, forçando os dedos entre pedras enegrecidas, com

os pés lutando por um ponto de apoio. Escalou mais alto,

e mais alto ainda, atravessando as nuvens e pene trando no

céu noturno, mas a torre continuava a erguer-se à sua

frente. Quando fez uma pausa para olhar para baixo,

sentiu a cabeça girar, entontecida, e seus dedos

escorregarem. Bran gritou e agarrou-se à vida. A terra

estava a mil milhas de seus pés, e ele não sabia voar. Não

sabia voar. Esperou até que o coração parasse de saltar no

peito, até poder respirar, e recomeçou a escalada. Não

havia caminho que não fosse para cima. Bem alto,

delineadas contra uma lua esbranquiçada, parecia poder

ver as formas de gárgulas. Tinha os braços machuc ados,

doendo, mas não se atre via a descansar. Forçou-se a subir

mais depressa. As gárgulas o observaram. Seus olhos

brilhavam vermelhos como carvões quentes num braseiro.

Talvez tivessem sido leões antes, mas agora estavam

retorcidas

e

grotescas.

Bran

co nseguia

ouvi-las

segredarem umas às outras em suaves vozes de pedra,

terríveis de ouvir. Não devia ouvir, disse a si mesmo, não

devia ouvir; desde que não as ouvisse, estaria a salvo.

Mas, quando as gárgulas se libertaram da pedra e

percorreram o lado da t orre até onde Bran se agarrava,

compreendeu que afinal não estava a salvo."Eu não ouvi"

choramingou, enquanto elas se aproximavam cada vez

mais."Eu não ouvi, não ouvi."

Acordou sem fôlego, perdido na escuridão, e viu uma

vasta sombra que se erguia sobre el e.

- Não ouvi - sussurrou, tremendo de medo, mas então a

sombra disse "Hodor" e acendeu a vela ao lado da cama, e

Bran suspirou de alívio.

Hodor limpou-lhe o suor com um pano morno e úmido e

o vestiu com mãos hábeis e gentis. Quando chegou a hora,

transportou-o até o Salão Grande, onde uma longa mesa

tinha sido mon tada perto da fogueira. O lugar do senhor

à cabeceira da mesa estava vazio, mas Robb sentava-se à

direita, com Bran à sua frente. Naquela noite, comeram

leitão, torta de pombo e nabos nadando em manteiga, e,

para depois, o cozinheiro prometera favos de mel. Verão

abocanhava restos da mesa que Bran lhe dava, enquanto

Vento Cinzento e Cão Felpudo lutavam por um osso num

canto. Os lobos de Winterfell já não vinham para junto da

mesa. Bran achara aquilo estranho a princípio, mas já

começava a se habituar,

Yoren era o irmão negro de maior patente, e assim o

intendente fizera-o sentar-se entre Robb e Meistre Luwin.

O velho tinha um cheiro azedo, como se há muito não

tomasse banho. Rasgava a carne com os dentes, quebrava

as costeletas para sugar o tutano dos ossos, e encolheu os

ombros quando o nome dejon Snow foi mencionado.

- A desgraça de Sor Alliser - grunhiu, e dois de seus

companheiros partilharam uma gar galhada que Bran não

compreendeu. Mas, quand o Robb lhes perguntou por

notícias de seu tio Benjen, os irmãos negros fecharam-se

num silêncio agourento.

- O que está acontecendo? - Bran perguntou.

Yoren limpou os dedos em suas vestes.

- Há más notícias, senhores, uma maneira cruel de

retribuir-lhes a carne e o hidromel, mas o homem que faz

a pergunta deve

aguentar a resposta. O

Stark

desapareceu.

Um dos outros homens disse:

- O Velho Urso o enviou para o exterior em busca de

Waymar Royce, e ele ainda não voltou, senhor.

- Está muito atrasado - disse Yoren. - O mais certo é que

esteja morto.

- Meu tio não está morto - exclamou Robb Stark em voz

alta e num tom irritado. Ergueu -se no banco e pousou a

mão no cabo da espada. - Ouviram-me? Meu tio não está

morto! - sua voz ressoou nas paredes de pedra, e Bran

subitamente sentiu medo.

O velho e malcheiroso Yoren olhou para Robb sem se

impressionar:

- Com certeza, senhor - respondeu, e sugou os dentes

para soltar um fiapo de carne preso. O mais novo dos

irmãos negros moveu-se desconfortavelmente no assento:

- Não há homem na Muralha que conheça a Floresta

Assombrada melhor que Benjen Stark. He encontrará o

caminho de volta.

- Bem - disse Yoren -, talvez sim, talvez não. Já houve

bons homens que entraram nesses bosques e jamais

voltaram.

Tudo em que Bran conseguiu pensar f oi na história da

Velha Ama sobre os Outros e o último herói, perseguido

através dos bosques brancos por mortos e aranhas tão

grandes como cães de caça. Sentiu medo por um

momento, até se lembrar de como a história terminava,

- Os filhos o ajudarão - Bran exclamou -, os filhos da

floresta!

Theon Greyjoy soltou um riso abafado, e Meistre Luwin

disse:

- Bran, os filhos da floresta morreram e desapareceram há

milhares de anos. Tudo o que de les resta são as caras nas

árvores.

- Aqui pode ser que seja verdade, Mei stre - Yoren

respondeu -, mas lá, depois da Muralha, quem pode dizer?

Lá em cima, um homem nem sempre consegue saber o que

está vivo e o que está morto.

Naquela noite, depois dos pratos retirados, Robb levou,

ele próprio, Bran para a cama. Vento Cinzento a bria

caminho e Verão vinha logo atrás. O irmão era forte para

a idade, e Bran era tão leve como uma trouxa de trapos,

mas a escada era íngreme e estreita, e Robb resfolegava

quando chegaram ao topo.

Robb colocou Bran na cama, cobriu -o e soprou a vela.

Durante algum tempo, ficou sentado ao seu lado no

escuro. Bran quis falar com ele, mas não soube o que

dizer.

- Vamos encontrar um cavalo para você, prometo - Robb

lhe disse finalmente.

- Será que eles algum dia voltarão? - Bran perguntou.

- Sim - Robb disse, com tamanha esperança na voz que

Bran soube que estava ouvindo o irmão, e não apenas

Robb, o Senhor. - Nossa mãe virá para casa em breve.

Talvez possamos sair a cavalo ao seu encontro quando ela

chegar. Não acha que a surpreenderia vê -lo montado? -

mesmo no quarto escuro Bran podia sentir o sorriso do

irmão. - E depois iremos para o norte, ver a Muralha.

Nem sequer avisaremos Jon, um dia simplesmente

chegaremos lá, você e eu. Será uma aventura.

- Uma aventura - repetiu Bran em tom ansioso. Então

ouviu seu irmão soluçar. O quarto estava tão escuro que

não conseguia ver as lágrimas no rosto de Robb, por isso

estendeu a mão e encontrou a do irmão. Seus dedos

entrelaçaram-se.


Eddard


A morte de Lorde Arryn foi uma grande tristeza para

todos nós, senhor - disse o Grande Meistre Pycelle. -

Ficarei mais que feliz contando -lhe tudo o que puder

sobre seu falecimento. Mas, por favor, sente -se. Aceita um

refresco? Talvez algumas tâmaras? Tenho também uns

caquis muito bons. Temo que o vinho não seja bom para

minha digestão, ma s posso lhe oferecer uma taça de leite

gelado adoçado com mel, na minha opinião, muito

refrescante neste calor,

O calor era inegável. Ned sentia a túnica de seda aderir

ao seu peito. Um ar pesado e úmido cobria a cidade como

um cobertor molhado de lã, e a margem do rio tinha se

tornado ingovernável quando os pobres fugiram de suas

casas quentes e sem ar para se acotovelarem por um lugar

para dormir perto da água, onde o único sopro de vento

podia ser encontrado.

- E muita gentileza - Ned agradeceu, sentand o-se.

Pycelle ergueu uma minúscula campainha de prata com o

indicador e o polegar e a fez soar suavemente. Uma jovem

e esbelta serva apressou-se a entrar no aposento privado.

- Leite gelado para a Mão do Rei e para mim, por favor,

filha. Bem doce.

Enquanto a jovem ia buscar as bebidas, o Grande Meistre

entrelaçou os dedos e pousou as mãos na barriga.

- O povo diz que o último ano do verão é sempre o mais

quente. Não é bem assim, mas mui tas vezes parece que é,

não é verdade? Em dias como este, invejo -os, nortenhos,

por suas neves de verão - a corrente pesadamente

carregada de jóias em torno do pescoço do velho tilintou

suavemente quando ele mudou de posição. - O certo é que

o verão do Rei Maekar foi mais quente do que este, e

quase tão longo. Houve tolos, a té mesmo na Cidadela, que

pensaram que isso significava que o Grande Verão tinha

enfim chegado. O verão que nunca termina, mas, no

sétimo ano, o tempo mudou subitamente e tivemos um

curto outono e um inverno terrivelmente longo. De

qualquer modo, o calor foi feroz enquanto durou.

Vilavelha fumegava e sufocava durante o dia, e ganhava

vida à noite. Costumávamos passear nos jardins junto ao

rio e discutir sobre os deuses. Recordo os cheiros dessas

noites, senhor, perfume e suor, melões prontos para

estourar, de tão maduros, pêssegos e romãs, erva -moura e

flor-de-lua. Eu era então um jovem, ainda forjando minha

corrente. O calor então não me deixava exausto como hoje

em dia - os olhos de Pycelle tinham pálpebras tão pesadas

que ele parecia meio adormecido. - Minhas desculpas,

Senhor Eddard. Não veio ouvir divagações disparatadas

acerca de um verão que já tinha sido esquecido antes do

nascimento de seu pai. Perdoe -me, se possível, os

devaneios de um velho. Temo que as mentes sejam como

espadas. As velhas enferruj am. Ah, e aqui está o nosso

leite - a criada depositou a bandeja entre eles e Pycelle

lhe concedeu um sorriso. - Querida criança - ergueu uma

taça, saboreou-a e acenou com a cabeça: - Obrigado. Pode

ir.

Depois de a jovem se retirar, Pycelle dirigiu a Ned seus

olhos claros e cheios de remela.

- Bem, onde estávamos? Ah, sim. Falávamos de Lorde

Arryn...

- É verdade - Ned tomou um gole bem -educado do leite

gelado. Estava agradavelmente frio, mas doce demais para

seu gosto.

- A bem da verdade, a Mão já não pare cia bem há algum

tempo - disse Pycelle. - Já nos sentávamos juntos no

conselho havia muitos anos, ele e eu, e os sinais estavam à

vista, mas os debitei na conta dos grandes fardos que

suportara tão fielmente durante tanto tempo. Aqueles

largos ombros estavam sobrecarregados com todas as

preocupações do reino, e mais ainda. Seu filho andava

sempre adoentado, e a senhora sua esposa, tão ansiosa,

que quase não deixava que a criança saísse de baixo de

sua vista. Era o bastante para cansar até um homem forte,

e Lorde Jon não era jovem. Não era de se admirar que

parecesse melancó lico e cansado. Pelo menos era o que eu

pensava nesse tempo. Agora, no entanto, tenho menos

certezas - abanou gravemente a cabeça.

- O que pode me dizer de sua doença final?

O Grande Meistre abriu as mãos num gesto de

desamparada mágoa:

- Ele veio ter comigo um dia em busca de certo livro, tão

robusto e sadio como sempre, embo ra me parecesse que

algo o perturbava profundamente. Na manhã seguinte,

estava retorcido de dores, doente demais par a sair da

cama. Meistre Colemon pensou que se tratasse de um

calafrio no estômago. O tempo estivera quente, e a Mão

costumava gelar o vinho, o que pode perturbar a digestão.

Quando Lorde Jon continuou a enfraquecer, fui até ele,

mas os deuses não me conced eram o poder de salvá-lo.

- Ouvi dizer que afastou Meistre Colemon.

O aceno do Grande Meistre foi tão lento e deliberado

como geleira se derretendo.

- Sim, o afastei, e temo que a Senhora Lysa nunca me

perdoe. Talvez tivesse cometido um erro, mas naquele

momento foi o que me pareceu melhor. Meistre Colemon é

para mim como um filho, e não há ninguém que mais

estime suas capacidades, mas ele é jovem, e muitas vezes

os jovens não se dão conta da fragilidade de um corpo

mais velho. E le estava tratando Lorde Ar ryn com poções

desgastantes e sumo de pimenta. Temi que pudesse matá -

lo.

- Lorde Arryn lhe disse alguma coisa durante suas

últimas horas?

Pycelle enrugou uma sobrancelha.

- No estágio final de sua febre, a Mão gritou várias vezes

o nome Robert, mas eu não saberia dizer se chamava pelo

filho ou pelo rei. A Senhora Lysa não perm itia que seu

filho entrasse no quarto, temendo que também ele caísse

doente. O rei veio e ficou sentado ao lado da cama du -

rante horas, falando e gracejando de tempos há muito

passados, na esperança de alimentar o ânimo de Lorde Jon.

Seu amor era digno de se ver.

- Nada mais aconteceu? Nenhuma última palavra?

- Quando vi que toda a esperança tinha escapado, dei à

Mão o leite de papoula, para que não sofresse. Antes de

fechar os olhos pela última vez, segredou algo ao rei, e à

senhora sua esposa, uma bê nção para o filho. A semente é

forte, ele disse. No fim, seu discurso estava por demais

confuso para ser compreendido. A morte só chegou na

manhã seguinte, mas, depois disso, Sor Jon ficou em paz.

Não voltou a falar.

Ned bebeu mais um pouco de leite, tentando não se

engasgar com sua doçura.

- Pareceu-lhe haver algo de não natural na morte de

Lorde Arryn?

- Não natural? - a voz do idoso meistre era fina como um

suspiro. - Não, não diria isso. Triste, com toda a certeza.

Mas, à sua maneira, a morte é a coisa mais natural de

todas, Lorde Eddard. Jon Arryn agora descansa em paz,

por fim aliviado de seus fardos.

- Essa doença que o acometeu - Ned voltou a falar. -

Alguma vez viu algo de semelhante em outros homens?

- Sou Grande Meistre dos Sete Reinos há quase quarenta

anos - Pycelle respondeu. - Sob o reinado do nosso bom

Robert, antes dele sob Aerys Targaryen, sob o pai deste,

Jaehaerys Se gundo, e até durante curtos meses sob o

reinado do pai de Jaehaerys, Aegon, o Afortunado, o

Quinto de Seu Nome. Vi mais doença do que gostaria de

recordar, senhor. Digo -lhe apenas isto: cada caso é

diferente, e todos os casos são semelhantes. A morte de

Lorde Jon não foi mais estra nha que qualquer outra.

- Sua esposa pensa o contrário.

O Grande Meistre acenou com a cabeça.

- Agora me lembro, a viúva é irmã de sua nobre esposa.

Se se pode perdoar a um velho seu discurso direto,

permita-me que lhe diga que a dor pode desequilibrar até

a mais forte e disci plinada das mentes, e a da Senhora

Lysa nunca foi assim. Desde o seu último natimorto que

vê inimigos em cada sombra, e a morte do senhor seu

esposo a deixou destroçada e perdida.

- Então, tem total certeza de que Jon Arryn morreu de

uma doença súbita?

- Tenho - Pycelle respondeu gravemente. - Se não foi

doença, meu bom senhor, que mais poderia ser?

- Veneno - sugeriu Ned com a voz calma.

Os olhos sonolentos de Pycelle abriram -se de súbito. O

idoso meistre agitou-se desconfortavelmente no assento.

- Um pensamento perturbador. Não estamos nas Cidades

Livres, onde tais coisas são co muns. O Grande Meistre

Aethelmure escreveu que todos os homens carregam o

homicídio no coração, mas mesmo assim o envenenador

merece menos que desprezo - o velho caiu em silêncio por

um momento, pensando de olhos perdidos. - O que está

sugerindo é possível, senhor, mas não penso que seja

provável. Qualquer meistre ignorante conhece os venenos

comuns, e o Senhor Arryn não mostrava nenhum dos

sintomas. E a Mão era amada por todos. Que tipo de

monstro em forma humana se atreveria a assassinar um

senhor tão nobre?

- Tenho ouvido dizer que veneno é uma arma de mulher.

Pycelle afagou a barba pensativamente.

- É o que se diz. Mulheres, covardes... e eunucos - limpou

a garganta e cuspiu um espesso glo bo de muco para os

juncos. Acima deles, um corvo grasnou sonoramente. -

Lorde Varys nasceu escravo em Lys, sabia? Nunca deposite

confiança em aranhas, senhor.

Aquilo não era propriamente algo que Ned precisava que

lhe fosse dito. Havia qualquer coisa em V arys que o

arrepiava.

- Eu me lembrarei do conselho, Meistre. E agradeço -lhe

pela ajuda. Já tomei bastante do seu tempo - Ned pôs-se

em pé.

O Grande Meistre Pycelle ergueu -se lentamente da cadeira

e acompanhou Ned até a porta.

- Espero que tenha ajudado um pouco a acalmar a sua

mente. Se houver algum outro serviço que eu lhe possa

prestar, basta pedir,

- Há uma coisa - disse-lhe Ned. - Tenho curiosidade em

examinar o livro que emprestou a Jon um dia antes de

cair enfermo.

- Temo que seja de pouco interesse - disse Pycelle. - Foi

um solene volume escrito pelo Grande Meistre Malleon

sobre as linhagens das grandes Casas.

- De qualquer modo, gostaria de vê -lo.

O velho abriu a porta.

- Como desejar. Tenho-o guardado por aqui. Quando

encontrá-lo, mandarei imediatamente e ntregar-lhe.

- O senhor foi de grande cortesia - disse-lhe Ned. E então,

como se algo lhe tivesse ocorrido r.e repente, disse: - Uma

última pergunta, se sua bondade me permite. O senhor

mencionou que o rei esteve à cabeceira de Lorde Arryn

quando morreu. Per gunto se a rainha o acompanhava.

- Ora, não - Pycelle respondeu. - Ela e os filhos estavam a

caminho de Rochedo Casterly, em companhia do pai. O

Senhor Tywin tinha trazido um séquito até a cidade para

o torneio do dia do nome do Príncipe Joffrey, sem dúvida

esperando ver o filho Jaime ganhar a coroa de cam peão.

Mas ficou tristemente desapontado. Caiu sobre mim a

tarefa de enviar à rainha a notícia da norte súbita de

Lorde Arryn. Nunca antes enviei uma ave de coração mais

pesado.

- Asas escuras, palavras escuras - Ned murmurou. Era um

provérbio que a Velha Ama lhe ensinara quando ainda era

um rapaz.

- É o que dizem as mulheres dos pescadores - concordou o

Grande Meistre Pycelle -, mas sabemos que nem sempre é

assim. Quando a ave de Meistre Luwin trouxe a notícia

sobre seu filho Bran, a mensagem aqueceu todos os

corações verdadeiros do castelo, não é verdade?

- É bem assim, Meistre,

- Os deuses são misericordiosos - Pycelle inclinou a

cabeça. - Visite-me sempre que desejar, Senhor Eddard.

Estou aqui para servir.

Sim, pensou Ned quando a porta se fechou, mas a quem?

No caminho de volta aos seus aposentos, deparou com a

filha Arya nos degraus em espiral da Torre da Mão,

girando os braços enquanto lutava para se equil ibrar

sobre uma perna. A pedra á spera tinha esfolado seus pés

nus. Ned parou e olhou para ela.

- Arya, o que está fazendo?

- Syrio diz que um dançarino de água é capaz de se apoiar

num dedo do pé durante horas - suas mãos bateram o ar

em busca de equilíbrio.

Ned foi obrigado a sorrir.

- Qual dos dedos? - ele brincou.

- Qualquer dedo - Arya respondeu, exasperada com a

pergunta. Saltou da perna direita par a a esquerda,

oscilando perigosamente antes de recuperar o equilíbrio.

- Precisa fazer isso aqui? - ele perguntou. - Uma queda

por estes degraus é longa e dura.

- Syrio diz que um dançarino de água nunca cai - ela

abaixou a perna para se apoiar nas duas. - Pai, Bran virá

agora viver conosco?

- Não durante muito tempo, querida - ele respondeu. - Ele

precisa recuperar as forças. Arya mordeu o lábio.

- O que Bran fará quando for cres cido?

Ned ajoelhou-se ao seu lado.

- Ele tem muitos anos para encontrar esta resposta, Arya.

Por ora, basta saber que viverá

- na noite em que a ave chegara de Winterfell, Eddard

Stark levara as filhas ao bosque sagrado do castelo, um

acre de olmos, amieiros e choupos que pairavam sobre o

rio. Ali, a árvore -coração era um grande carvalho, cujos

antigos ramos estavam cobertos de trepadeiras de bagas -

fumo; eles ah se ajoelharam para dar graças, como se

fosse um represeiro.

Sansa adormeceu ao nascer da lua, Ary a, várias horas mais

tarde, enrolando-se na erva sob o manto de Ned. Ele

manteve a vigília sozinho pelo resto das horas de sombra.

Quando a madru gada surgiu sobre a cidade, os botões

vermelho-escuros de sopros-de-dragão rodeavam as filhas.

- Sonhei com Bran - segredara-lhe Sansa. - Eu o vi

sorrindo.

- Ele ia ser um cavaleiro - Arya agora estava dizendo. -

Um cavaleiro da Guarda Real. Ainda pode ser um

cavaleiro?

- Não - Ned respondeu. Não via nenhuma razão para

mentir. - Mas um dia pode ser senhor de um grande

castelo e sentar-se no conselho do rei. Pode erguer

castelos como Brandon, o Construtor, ou dirigir um navio

pelo Mar do Poente, ou entrar para a Fé da sua mãe e

tornar-se Alto Septão - mas nunca mais correrá ao lado de seu

lobo, pensou com uma tristeza tão profunda que as

palavras não eram suficientes, ou deitar-se com uma mulher,

ou tomar nos braços o próprio filho.

Arya inclinou a cabeça, para um lado.

- E eu posso ser conselheira do rei, construir castelos ou

me tornar Alta Septã?

- Você - disse Ned, dando-lhe um suave beijo na testa -

casará com um rei e governará seu castelo, e seus filhos

serão cavaleiros, príncipes e senhores e, sim, talvez

mesmo um Alto Septão.

Arya fez um trejeito.

- Não - ela protestou -, esta é a Sansa - dobrou a perna

direita e voltou aos exercícios de equilíbrio. Ned suspirou

e a deixou ali.

No interior de seus aposentos, despiu as sedas manchadas

de suor e despejou água pela cabe ça abaixo. Alyn entrou

no momento em que secava o rosto.

- Senhor - disse -, Lorde Baelish está lá fora e pede

audiência.

- Acompanhe-o ao meu aposento privado - disse Ned,

estendendo a mão para uma túnica fresca do mais leve

linho que conseguiu encontrar. - Eu o receberei de

imediato.

Quando Ned entrou, encontrou Mindinho empoleirado no

assento na frente da janela, observando o treino com

espadas dos cavaleiros da Guarda Real no pátio lá

embaixo.

- Se ao menos a mente do velho Selmy fosse tão ágil como

sua arma - ele disse com melan colia na voz -, as reuniões

do nosso conselho seriam bem mais animadas.

- Sor Barristan é tão valente e respeitável como qualquer

homem em Porto Real - Ned tinha um profundo respeito

pelo idoso e grisalho Senhor Comandante da Guarda Real.

- E igualmente cansativo - acrescentou Mindinho. -

Embora me atreva a dizer que ele de verá conseguir bons

resultados no torneio. No ano passado derrubou o Cão de

Caça, e foi cam peão há não mais de quatro anos.

A questão de quem poderia vencer o torneio não

interessava nem um pouco a Eddard Stark.

- Há algum motivo para esta visita, Lorde Petyr, ou está

aqui apenas para apreciar a vista da minha janela?

Mindinho sorriu.

- Prometi a Cat que o ajudaria na sua investigação, e foi

o que fiz.

Ned foi apanhado de surpresa. Com ou sem promessas,

não era capaz de confiar em Lorde Petyr Baelish, que lhe

parecia muitíssimo mais inteligente do que deveria.

- Tem algo para mim?

- Alguém - Mindinho o corrigiu. - Quatro, na verdade.

Chegou a pensar em interrogar os criados da Mão?

Ned franziu as sobrancelhas.

- Gostaria de poder fazê-lo. A Senhora Arryn levou sua

comitiva de volta para o Ninho da Águia. - Nisso Lysa não

lhe fez nenhum favor. Todos os que tinham sido próximos

do marido partiram com ela quando fugiu: o meistre de

Jon, seu intendente, o capitão de sua guarda, seus

cavaleiros e criados.

- A maior parte da sua comitiva - disse Mindinho -, mas não

toda. Há alguns que conti nuam aqui. Uma criada de

cozinha grávida, casada às pressas com um dos cavalariços

de Lorde

Renly, um moço que se juntou à Patrulha da Cidade, um

ajudante de taberna expulso por roubo t o escudeiro de

Lorde Arryn.

- Seu escudeiro? - Ned estava agradavelmente surpreso.

Um escudeiro sabia frequentemente r.uito das idas e

vindas de seu senhor.

- Sor Hugh do Vale - Mindinho o identificou. - O rei o

armou cavaleiro após a morte de lorde Arryn.

- Mandarei buscá-lo - disse Ned. - E os outros.

Mindinho estremeceu.

- Senhor, venha até aqui à janela, por favor.

- Por quê?

- Venha e lhe mostrarei, senhor.

De cenho franzido, Ned atravessou a sala até a janela.

Petyr Baelish fez um gesto casual.

- Ali, do outro lado do pátio, e m frente da porta do

armeiro, vê o rapaz acocorado junto aos deg raus que

passa uma pedra de afiar pela espada?

- Que tem ele?

- Responde a Varys. A Aranha tomou grande interesse pelo

senhor e por tudo o que faz — mudou de lugar no

assento. - Olhe agora para o muro. Mais atrás para oeste,

por cima das cavalariças. Vê o guarda encostado ao

parapeito?

Ned viu o homem.

- Outro dos sopradores de segredos do eunuco?

- Não, este pertence à rainha. Note que ele se beneficia de

uma boa visão para a porta desta torre a fim de melhor

anotar quem o procura. Há outros, muitos deles

desconhecidos mesmo para mim. A Fortaleza Vermelha

está cheia de olhos. Por que acha que escondi Cat num

bordel?

Eddard Stark não sentia nenhum apreço por aquelas

intrigas.

- Pelos sete infernos - praguejou. Realmente parecia que o

homem sobre o muro o observava. Subitamente

desconfortável, Ned afastou-se da janela. - Será que todo

mundo é informante de alg uém nesta maldita cidade?

- Quase - Mindinho respondeu, e contou com os dedos da

mão. - Ora, o senhor, eu, o rei... se bem que, agora que

penso nisso, o rei conta à rainha muito mais do que devia,

e não estou total mente seguro a respeito dele - pôs-se em

pé e continuou: - Há algum homem a seu serviço em ruem

confie por inteiro?

- Sim - Ned respondeu.

- Neste caso, possuo um palácio encantador em Valíria que

adoraria lhe vender - disse Mindinho com um sorriso

irônico. - A resposta mais sensata seria não, senhor, mas,

que seja. Envie este seu modelo de perfeição a Sor Hugh e

aos outros. Suas idas e vindas serã o detectadas, mas nem

mesmo Varys, a Aranha, é capaz de vigiar todos os

homens ao seu serviço todas as horas do dia - e ãirigiu-se

para a porta.

- Lorde Petyr - Ned chamou. - ...Sinto-me grato por sua

ajuda. Talvez tivesse sido errado de minha parte

desconfiar de você.

Mindinho afagou sua pequena barba pontiaguda.

- É lento para aprender, Senhor Eddard. Desconfiar de

mim foi a coisa mais sensata que fez desde que desceu de

seu cavalo.


Jon


Jon mostrava a Dareon a melhor maneira de dar um golpe

lateral quando o novo recruta entrou no pátio de treinos.

- Seus pés precisam estar mais afastados - ele insistia. -

Não vai querer perder o equilíbrio. Assim está bem.

Agora, gire ao golpear, ponha todo o seu peso atrás da

arma.

Dareon parou e levantou o visor.

- Pelos sete deuses - Dareon murmurou. - Olha só para

isto, Jon.

Jon se virou. Pela fenda do elmo contemplou o rapaz mais

gordo que já vira, parado à porta do armeiro. Pelo

aspecto, devia pesar uns cento e trinta quilos. O colarinho

de peles de sua capa bordada p erdia-se sob seus múltiplos

queixos. Olhos claros moviam -se nervosamente naquela

grande cara redonda que mais parecia uma lua, e dedos

rechonchudos e suados limpavam-se no veludo do gibão.

- Diss... disseram-me que devia vir até aqui para... para o

treino - ele disse, para ninguém em especial.

- Um fidalgo - Pyp falou para Jon. - Do Sul, mais provável

da zona de Jardim de Cima - Pyp viajara pelos Sete Reinos

com uma trupe de pantomimeiros e vangloriava -se de ser

capaz de dizer quem eram e de onde vinham as pess oas

com quem falava só pelo som de suas vozes.

Um caçador andante tinha sido bordado em fio escarlate

no peito do manto de peles do rapaz gordo. Jon não

reconheceu o símbolo. Sor Alliser Thorne deu uma

olhadela no novo rapaz a seu cargo e disse:

- Parece que ficaram sem caçadores furtivos e ladrões lá

no Sul. Agora nos mandam porcos para guarnecer a

Muralha. Serão as peles e o veludo sua noção de

armadura, meu Senhor do Presunto?

Não demorou muito e todos perceberam que o novo

recruta trouxera consigo sua p rópria armadura: um gibão

almofadado, couro fervido, cota de malha, chapa metálica

e um elmo, e até um grande escudo de madeira e couro

decorado com o mesmo caçador andante que usava no

manto. Como nada daquilo era negro, Sor Alliser insistiu

que o rapaz se reequipasse no armeiro, o que demorou

metade da manhã. Sua largura levou Donal Noye a ter de

desmontar uma cota de malha para nela adicionar painéis

de couro dos dois lados. Para lhe pôr um elmo na cabeça,

o armeiro teve de remover o visor. Os couros fic aram tão

apertados nas pernas e por baixo dos braços que o

menino quase não conseguia se mexer. Vestido para a

batalha, o novo rapaz parecia uma salsicha inchada depois

de tanto cozimento, a ponto de arrebentar.

- Esperemos que não seja tão inepto como par ece - disse

Sor Alliser. - Halder, veja o que Sor Porquinho sabe fazer.

Jon estremeceu. Halder tinha nascido numa pedreira e

fora aprendiz de pedreiro. Tinha dezesseis anos, era alto e

musculoso, e seus golpes eram os mais duros que Jon já

experimentara.

- Isto vai ser mais feio que a bunda de uma puta -

murmurou Pyp. E foi mesmo.

Demorou menos de um minuto de luta até o gordo cair no

chão, com seu corpo tremendo enquanto sangue jorrava

através do elmo estilhaçado e por entre os dedos

rechonchudos,

- Rendo-me - ele guinchou. - Basta, rendo-me, não me

batam - Rast e alguns dos outros rapazes começaram a

rir.

Mas mesmo assim Sor Alliser não pôs fim ao assunto.

- Em pé, Sor Porquinho - gritou. - Pegue a espada - ao ver

que o rapaz continuava inerte ze chão, Tho rne fez um

gesto para Halder.

- Bata-lhe com o lado da espada até encontrar seus pés -

Halder deu uma pancada explora tória na inchada bochecha

do adversário. - Você é capaz de bater com mais força

que isso - censurou Thorne. Halder pegou a espada com

ambas as mãos e a deixo u cair com tanta força que o

golpe rasgou o couro, mesmo est ando do lado contrário

ao corte. O novo recruta guinchou de dor.

Jon deu um passo à frente. Pyp pousou a mão revestida de

cota de malha em seu braço.

—Jon, não - o pequeno rapaz falou em tom sussurrante,

com um ansioso olhar de relance p ara Sor Alliser Thorne.

- Em pé - repetiu Thorne. O gordo lutou para se erguer,

escorregou e voltou a cair pesa damente no chão. - Sor

Porquinho começa a compreender a idé ia - Sor Alliser

observou. - Outra vez.

Halder ergueu a espada para desferir outro golpe.

- Corte um presunto para nós! - pediu Rast, rindo.

Jon afastou a mão de Pyp.

- Halder, basta.

Halder olhou para Sor Alliser.

- O bastardo fala e os camponeses tremem - disse o

mestre de armas na sua voz aguçada e fria. - Recordo-lhe

que o mestre de armas aqui sou eu, Lorde Snow.

- Olhe para ele, Halder - pediu Jon, ignorando Thorne o

melhor que pôde. - Não há honra em espancar um

adversário caído. Ele se rendeu - ajoelhou-se ao lado do

rapaz gordo.

Halder baixou a espada.

- Ele se rendeu - repetiu num eco.

Os olhos cor de ônix de Sor Alliser estavam fixos em Jon

Snow:

- Diria que nosso bastardo se apaixonou - ele disse,

enquanto Jon ajudava o gordo a pôr -se em pé. - Mostre-

me seu aço, Lorde Snow.

Jon puxou a espada. Atrevia-se a desafiar Sor Alliser só

até certo ponto, e temia que tivesse scabado de

ultrapassar muito este ponto. Thorne sorriu.

- O bastardo deseja defender sua amada, portanto, vamos

fazer disto um exercício. Rato, Borbulha, ajudem aqui o

Cabeça Dura - Rast e Albett juntaram-se a Halder. - Três

de vocês devem ser suficientes para fazer a Senhora

Porquinha guinchar. Tudo o que têm a fazer é passar pelo

Bastardo.

- Fica atrás de mim - Jon disse para o gordo. Sor Alliser

com frequência enviara doi s adversários contra ele, mas

nunca três. Sabia que provavelmente iria dormir ferido e

ensanguentado naquela noite. E preparou-se para o

assalto.

De repente, Pyp pôs-se ao seu lado.

- Três contra dois fazem uma disputa melhor - disse

alegremente o pequeno rapaz. Abaixou o visor e puxou a

espada. Antes que Jon conseguisse sequer pensar em

protestar, Grenn tinha se juntado a eles.

O pátio ficou mortalmente silencioso. Jon conseguia sentir

o olhar de Sor Alliser.

- Estão à espera de quê? - perguntou o mestre de armas

a Rast e aos outros, numa voz que se tornara

enganadoramente suave, mas foi Jon quem se moveu

primeiro. Halder quase não conse guiu erguer a espada a

tempo.

Jon o fez recuar, atacando a cada golpe, mantendo o rapaz

mais velho na defesa. Conheça o seu adversário, ensinara-lhe

há tempos Sor Rodrik; e Jon conhecia Halder, brutalmente

forte, mas de paciência curta, sem gosto pela defesa.

Frustre-o e ele se abre como o pôr do sol.

O tinir do aço ressoou pelo pátio quando os outros à sua

volta se juntaram à batalha. Jon parou um violento golpe

lançado à sua cabeça, sentindo o choque do impacto a

correr-lhe pelo braço quando as espadas se chocaram.

Lançou um golpe lateral nas costelas de Halder e foi

recompensado com um grunhido abafado de dor. O

contra-ataque apanhou Jon no ombro. A cota de malha

ressoou como se algo a triturasse, e um relâmpago de dor

subiu-lhe ao pescoço. Por um instante Halder perdeu o

equilíbrio, e Jon golpeou -lhe a perna esquerda, fazendo -o

cair com uma praga e um estrondo.

Grenn mantinha-se firme como Jon lhe ensinara, dando

mais trabalho a Albett do que este gostaria. Mas Pyp

estava sob grande pressão, Rast tinha dois anos e quase

vinte quilos a mais que ele. Jon aproximou -se dele por

trás e fez ressoar seu elmo como se fosse um sino.

Quando Rast começou a cambalear, Pyp passou por baixo

de sua guarda, atirou-o ao chão e apontou a es pada para

sua garganta. Por essa altura Jon já tinha passado adiante.

Enfrentando duas espadas, Albett recuou,

- Rendo-me - ele gritou.

Sor Alliser Thorne inspecionou a cena com repugnância.

- A pantomima já se prolongou o suficiente por hoje - ele

protestou e se afastou. A sessão tinha chegado ao fim.

Dareon ajudou Halder a pôr-se em pé. O filho do pedreiro

arrancou o elmo e atirou-o para o outro lado do pátio.

- Por um instante pensei que finalmente o tinha pegado,

Snow.

- Por um instante pegou mesmo - Jon respondeu. Sob a

cota de malha e o couro seu ombro latejava. Embainhou a

espada e tentou tirar o elmo, mas, quando ergueu o

braço, a dor o fez ran ger os dentes.

- Permite-me? - perguntou uma voz. Mãos de dedos

grossos desataram o elmo do gorjal2 e ergueram-no

cuidadosamente. - Ele o feriu?

-Já fui ferido antes - Jon tocou no ombro e estremeceu. O

pátio em redor se esvaziava.

Sangue manchava o cabelo do rapa z gordo no local onde

Halder lhe quebrara o elmo.

-Meu nome é Samwell Tarly, de Monte... - calou-se e

lambeu os lábios. - Quer dizer, eu era de Monte Chifre até

que... parti. Vim vestir o negro. Meu pai é Lorde Randyll,

um vassalo dos Tyrell de Jardim de Cima. Era seu

herdeiro, só que... - sua voz se extinguiu.

- Sou Jon Snow, bastardo de Ned Stark, de Winterfell.

Samwell Tarly fez um aceno com a cabeça.

- Eu... se quiser pode me chamar de Sam. Minha mãe me

chama assim.

- E você pode chamá-lo Lorde Snow - disse Pyp enquanto

se aproximava. - Não vai querer como a mãe o chama.


2 Gorjal: nas ar maduras, a parte que p rotege o pe scoço.

- Estes dois são Grenn e Pypar - disse Jon.

- Grenn é o feio - disse Pyp.

Grenn franziu as sobrancelhas.

- Você é mais feio que eu. Pelo menos não tenho orelhas

de morcego.

- Os meus agradecimentos a todos - o rapaz gordo disse

gravemente.

- Por que não se levantou e lutou? - Grenn quis saber.

- Eu queria, garanto. Só que... não pude. Não queria que

ele me batesse mais - o menino ir lixou os olhos. – Eu...

temo que seja um covarde. O senhor meu pai sem pre

disse isto.

Grenn pareceu atingido por um raio. Até Pyp não

conseguiu encontrar palavras para respon der àquilo, ele,

que tinha palavras para tudo. Que tipo de homem se

proclama um covarde?

Samwell Tarly deve ter lido os pensamentos naqueles

rostos. Seus olhos encontraram -se com os de Jon e

fugiram, rápidos como animais assustados.

- Eu... eu lamento - ele se desculpou. - Não queria ser...

ser como sou - e caminhou pesadamente na direção do

armeiro.

Jon gritou:

- Você foi ferido - ele disse. - Amanhã fará melhor.

Sam olhou por sobre o ombro com ar fúnebre.

- Não, não farei - o menino respondeu, piscando para

reter lágrimas. - Eu nunca faço melhor. Depois de ele sair,

Grenn franziu as sobrancelhas.

- Ninguém gosta de covardes - disse desconfortavelmente.

- Era melhor que não o tivésse mos ajudado. E se os

outros pensarem que também somos covardes?

- Você é estúpido demais para ser covarde - disse-lhe Pyp.

- Não sou nada - Grenn rebateu.

- Ê, sim. Se um urso o atacasse nos bosques, seria

estúpido demais para fugir.

- Não seria nada - Grenn insistiu. - Fugiria mais depressa

que você - e parou de repente, riscando os olhos ao ver o

sorriso de Pyp e ao perceber o que acabara de dizer. Seu

grosso pescoço ficou vermelho-escuro. Jon os deixou ali

discutindo e voltou ao armeiro, pendurou a espada e tirou

a armadura deformada.

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