- Então tá sozinho, hã? - disse o maior dos homens, um careca de

semblante rude, com a pele queimada pelo vento. - Perdido na Mata

de Lobos, pobre rapaz.

- Não estou perdido - Bran não gostava da maneira como os

estranhos o olhavam. Contou quatro, mas, quando virou a cabeça,

viu outros dois atrás dele. - Meu irmão se afastou há um momento e

minha guarda estará aqui em breve.

- Tua guarda, hã? - disse um segundo homem. Uma barba cinzenta

cobria seu rosto magro. - E que é que ela guarda, senhorzinho? Isso

que vejo no seu manto é um alfinete de prata?

- Bonito - disse uma voz de mulher. Pouco se parecia com uma

mulher; era alta e esguia, com a mesma expressão dura dos outros, e

tinha os cabelos escondidos por baixo de um meio elmo em forma de

tigela. A lança que segurava era feita de dois metros e meio de

carvalho negro, com uma ponta de aço enferrujado.

- Vamos lá ver - disse o grande homem careca.

Bran observou-o ansiosamente. A roupa do homem estava imunda,

quase desfeita em pedaços, remendada aqui de marrom, ali de azul e

acolá de verde-escuro, e por todo o lado desbotada até ficar cinzenta,

mas antes aquele manto podia ter sido negro. Percebeu, com um

súbito sobressalto, que o homem atarracado e grisalho também

usava farrapos negros. De repente, Bran lembrou-se do desertor que

seu pai decapitara no dia em que tinham encontrado os filhotes de

lobo; esse homem também usava negro, e seu pai dissera que era um

desertor da Patrulha da Noite. Ninguém pode ser mais perigoso,

lembrou-se de ter ouvido Lorde Eddard dizer. O desertor sabe que

sua vida está perdida se for capturado, e por isso não vacilará

perante nenhum crime, por mais vil ou cruel que seja.

- O alfinete, rapaz - disse o homem grande. E estendeu a mão.

- Vamos também ficar com o cavalo - disse uma mulher menor que

Robb, com um rosto largo e achatado e cabelos lisos e amarelos. -

Desce, e depressa - uma faca, de gume irregular como uma serra,

deslizou-lhe para a mão de dentro da manga.

- Não - proferiu Bran. - Eu não posso...

O homem grande agarrou-lhe as rédeas antes que Bran pudesse

pensar em fazer Dançarina rodopiar e galopar para longe.

- Pode sim, senhorzinho.. e é o que vai fazer, se souber o que é bom

para você.

- Stiv, olha como ele está atado - a mulher alta apontou com a lança.

- Isso que ele diz pode ser verdade.

- Com que, então, presilhas, hã? - disse Stiv. Tirou um punhal de

uma bainha que trazia ao cinto. - Há maneiras de lidar com

presilhas.

- Você é alguma espécie de aleijado? - perguntou a mulher baixa.

Bran inflamou-se.

- Sou Brandon Stark de Winterfell, e é melhor que largue meu cavalo,

ou farei com que sejam todos mortos.

O homem magro de barba cinzenta riu.

- O rapaz é um Stark, não há dúvida. Só um Stark seria

suficientemente pateta para fazer ameaças onde homens mais

inteligentes suplicariam.

- Corte-lhe o pintinho e o enfie na boca - sugeriu a mulher baixa. -

Isto deve calá-lo.

- É tão estúpida como feia, Hali - disse a mulher alta. - O rapaz não

serve de nada morto; agora, vivo... malditos sejam os deuses, pensem

no que o Mance daria para ter como refém o próprio sangue de

Benjen Stark!

- Que o Mance se dane - praguejou o homem grande. - Quer voltar

para lá, Osha? Mais parva é você. Acha que os caminhantes brancos

se importam se tem um refém? - virou-se para Bran e golpeou a

presilha que lhe rodeava a coxa. O couro rompeu-se com um suspiro.

O golpe foi rápido e descuidado, cortando profundamente. Olhando

para baixo, Bran viu de relance a pele clara onde a lã dos calções se

rompera. Então, o sangue começou a fluir. Observou a mancha

vermelha se espalhando, sentindo-se tonto, curiosamente distante;

não tinha havido dor, nem mesmo uma ligeira sensação de tato. O

homem grande grunhiu de surpresa.

- Deponham as armas agora e lhes prometo uma morte rápida e

indolor - gritou Robb.

Bran ergueu os olhos com uma esperança desesperada, e ali estava

ele. A força das palavras era diminuída pela maneira como a voz

soava quebrada de tensão. Estava montado, com a carcaça sangrenta

de um alce depositada sobre a garupa do cavalo, e com a espada na

mão enluvada.

- O irmão - disse o homem da barba cinzenta.

- É um tipo feroz, ah, se é - troçou a mulher baixa, aquela a quem

chamavam Hali. - Pretende lutar com a gente, rapaz?

- Não seja tonto, jovem. É um contra seis - a mulher alta, Osha,

baixou a lança. - Salte do cavalo e atire a espada ao chão.

Agradeceremos delicadamente pela montaria e pelo veado, e você e

seu irmão podem seguir caminho.

Robb assobiou. Ouviram o tênue som de patas suaves sobre folhas

úmidas. A vegetação rasteira abriu-se, ramos baixos deixaram cair sua

neve acumulada, e Vento Cinzento e Verão emergiram do verde.

Verão farejou o ar e rosnou.

- Lobos - arfou Hali.

- Lobos gigantes - disse Bran. Ainda com metade do tamanho de

adultos, eram tão grandes como qualquer lobo que já tivesse visto,

mas era fácil detectar as diferenças, caso se soubesse em me reparar.

Meistre Luwin e Farlen, o mestre dos canis, lhe tinham ensinado. Um

lobo gigante tinha a cabeça maior e patas mais compridas em

proporção com o corpo, e o focinho era marcadamente mais estreito

e pronunciado. Havia algo neles de lúgubre e terrível, ali parados por

entre i neve que caía lentamente. Sangue fresco pintalgava o focinho

de Vento Cinzento.

- Cães - disse o homem grande e careca com desprezo. - E houve

quem me dissesse que não há nada como um manto de pele de lobo

para aquecer um homem à noite - fez um gesto brusco. —

Apanhem-nos.

Robb gritou "Winterfell!" e esporeou o cavalo. O castrado mergulhou

pela margem do córrego ao mesmo tempo em que os homens

esfarrapados se aproximavam. Um homem com um machado correu

contra ele, gritando e sem prudência. A espada de Robb o apanhou

em cheio no rosto com um nauseante crunch e um borrifo de sangue

brilhante. O homem de rosto magro e barba cinzenta estendeu a

mão para agarrar as rédeas, e conseguiu, durante meio segundo...,

mas então Vento Cinzento saltou sobre ele, desequilibrando-o. Caiu

de costas no córrego com um chap e um grito, brandindo

loucamente a faca quando a cabeça submergiu. O lobo gigante

mergulhou atrás dele, e a água branca tornou-se vermelha onde os

dois desapareceram.

Robb e Osha trocavam golpes no meio do córrego. A longa lança

dela era uma serpente de cabeça de aço que atacava o peito dele,

uma, duas, três vezes, mas Robb parava cada estocada com a espada,

desviando a ponta para o lado. A quarta ou quinta estocada, a

mulher alta fez um movimento largo demais e perdeu o equilíbrio, só

por um segundo. Robb investiu, derrubando-a.

A pouca distância, Verão surgiu como um relâmpago e mordeu Hali.

A faca caiu-lhe sobre as costas. Verão esquivou-se, rosnando, e voltou

a atacar. Dessa vez suas mandíbulas fecharam-se em volta da barriga

da perna da pequena mulher. Segurando a faca com ambas as mãos,

ela tentou apunhalá-lo, mas o lobo selvagem pareceu pressentir a

lâmina. Libertou-a por um instante, com a boca cheia de couro,

tecido e carne ensanguentada. Quando Hali tropeçou e caiu, atacou-a

de novo, atirando-a para trás, rasgando sua barriga com os dentes,

O sexto homem fugiu da carnificina..., mas não foi longe. Enquanto

subia pela margem mais distante do córrego, Vento Cinzento

emergiu da água, pingando. Sacudiu-se e saltou sobre o homem que

fugia, abocanhando-o com uma única dentada e atirando-se à sua

garganta quando o homem deslizou, aos gritos, de volta para a água.

E então restou apenas o homem grande, Stiv. Golpeou a presilha de

peito de Bran, agarrou-lhe o braço e puxou. De repente, Bran caiu.

Estatelou-se no chão, com as pernas enlaçadas debaixo do corpo e

um pé dentro do córrego. Não conseguia sentir o frio da água, mas

sentiu o aço quando Stiv lhe encostou o punhal na garganta.

- Afaste-se - preveniu o homem -, ou juro que abro a traquéia do

rapaz.

Robb puxou as rédeas do cavalo, respirando com força. A fúria

desapareceu dos seus olhos e o braço que segurava a espada caiu.

Nesse momento, Bran viu tudo. Verão estava atacando ferozmente

Hali, puxando reluzentes serpentes azuis de sua barriga. Os olhos

dela estavam muito abertos, mas não se moviam. Bran não sabia

dizer se a mulher estava viva ou morta. O atarracado homem

grisalho e o do machado jaziam, imóveis, mas Osha estava de joelhos,

rastejando em direção à sua lança caída. Vento Cinzento caminhou

até ela, com o pêlo encharcado, pingando.

- Chame-o! - gritou o homem grande. - Chame os dois ou o aleijado

morre agora mesmo!

- Vento Cinzento, Verão, aqui - disse Robb.

Os lobos gigantes pararam, viraram a cabeça. Vento Cinzento saltou

para junto de Robb. Verão ficou onde estava, com os olhos fitos em

Bran e no homem a seu lado. Rosnou. Tinha o focinho molhado e

vermelho, mas seus olhos ardiam.

Osha usou a base da lança como apoio para se pôr de pé. Jorrava

sangue de uma ferida no braço, onde Robb a golpeara. Bran

conseguia ver o suor que escorria pelo rosto do homem grande.

Compreendeu que Stiv estava tão assustado como ele.

- Stark - murmurou o homem -, malditos Stark - levantou a voz. -

Osha, mate os lobos e apanhe a espada dele.

- Mate-os você - ela respondeu. - Eu não chego perto desses

monstros.

Por um momento Stiv sentiu-se perdido. Sua mão tremia; Bran

sentiu um fio de sangue onde a faca fazia pressão contra seu

pescoço. O fedor do homem enchia-lhe as narinas; cheirava a medo.

- Você - gritou a Robb. - Tem um nome?

- Sou Robb Stark, herdeiro de Winterfell.

- Este é seu irmão?

- Sim.

- Se o quiser vivo, faça o que digo. Salte do cavalo.

Robb hesitou por um momento. Então, lenta e deliberadamente

desmontou e virou-se para o homem, de espada na mão.

- Agora mate os lobos.

Robb não se moveu.

- Faça o que eu digo. Os lobos ou o rapaz.

- Não! - gritou Bran. Se Robb fizesse o que ele pedia, Stiv os mataria

a ambos de qualquer modo depois de os lobos serem mortos.

O careca o agarrou pelos cabelos com a mão livre e o puxou

cruelmente, até Bran soluçar de dor.

- Cale essa boca, aleijado, está me ouvindo? - puxou com mais força.

- Está ouvindo?

Um vrum baixo veio das árvores atrás deles. Stiv soltou um arquejo

engasgado quando quinze centímetros de uma seta de ponta larga

explodiram de súbito no seu peito. A seta era vermelha viva, como se

tivesse sido pintada com sangue.

O punhal caiu da garganta de Bran. O homem grande cambaleou e

caiu no córrego de barriga para baixo, A seta partiu-se sob seu

corpo. Bran viu sua vida fugir, aos redemoinhos, pela água abaixo.

Osha olhou em volta quando os guardas de seu pai surgiram por

entre as árvores, de armas na mão, e deixou cair a lança,

- Misericórdia, senhor - ela gritou para Robb.

Os guardas tinham uma expressão estranha, pálida, no rosto ao

depararem com aquela cena de morticínio. Olhavam para os lobos,

inseguros, e quando Verão regressou para junto do cadáver de Hali

para comer, Joseth deixou cair a faca e precipitou-se para as árvores,

vomitando. Até Meistre Luwin pareceu chocado ao surgir por trás de

uma árvore, mas só por um instante. Então balançou a cabeça e

atravessou o córrego até junto de Bran.

- Está ferido?

- Ele cortou minha perna - Bran respondeu-, mas não senti nada.

Enquanto Meistre se ajoelhava para examinar a ferida, Bran virou a

cabeça. Theon Greyjoy estava ao lado de uma árvore-sentinela, de

arco na mão, e sorrindo. Sempre sorrindo. Meia dúzia dc setas

encontravam-se espetadas no chão macio a seus pés, mas ele só

precisara de uma.

- Um inimigo morto é uma beleza - anunciou.

—Jon sempre disse que você era um cretino, Greyjoy - disse Robb

em voz alta. - Devia acorrentá-lo no pátio e deixar Bran praticar um

pouco de tiro ao alvo em você,

- Devia me agradecer por ter salvado a vida do seu irmão.

- E se seu tiro tivesse falhado? - disse Robb. - E se só o tivesse

ferido? E se tivesse feito sua mão saltar ou ferido Bran em vez dele?

Sabia que o homem podia estar usando uma placa no peito, porque

tudo o que você conseguia ver era a parte de trás de seu manto. Que

teria acontecido então ao meu irmão? Chegou a pensar nisso,

Greyjoy?

O sorriso de Theon desaparecera. Encolheu os ombros, carrancudo, e

começou a arrancar as setas do chão, uma a uma.

Robb olhou então para os guardas.

- Onde estavam vocês? - exigiu saber. - Eu tinha certeza de que

vinham logo atrás de nós. Os homens trocaram olhares infelizes.

- Nós os seguíamos, senhor - disse Quent, o mais novo, cuja barba

não passava de uma suave penugem castanha. - Só que primeiro

esperamos por Meistre Luwin e pelo seu asno, com k vossa licença, e

depois, bem, aconteceu que... - deu uma olhadela a Theon e desviou

rapidamente o olhar, envergonhado.

- Eu vi um peru - disse Theon, aborrecido pela pergunta. - Como

haveria de saber que ia deixá-lo sozinho?

Robb tornou o olhar para Theon. Bran nunca o vira tão zangado,

mas não disse nada. Finalmente, ajoelhou ao lado de Meistre Luwin.

- Qual é a gravidade da ferida do meu irmão?

- Não passa de um arranhão - disse o meistre. Molhou um pano no

córrego para limpar o golpe. - Dois deles vestem-se de negro - disse

a Robb enquanto trabalhava,

Robb lançou um olhar para onde Stiv jazia, estatelado no córrego,

com o esfarrapado manto negro a mover-se irregularmente, puxado

pela corrente.

- Desertores da Patrulha da Noite - disse em tom sombrio. - Deviam

ser loucos para vir tão perto de Winterfell.

- A loucura e o desespero são muitas vezes difíceis de distinguir -

disse Meistre Luwin,

- Enterramos os corpos, senhor? - perguntou Quent.

- Eles não nos teriam enterrado - disse Robb. - Corte-lhes as cabeças,

vamos mandá-las de volta para a Muralha. Deixe o resto para os

corvos.

- E esta? - Quent sacudiu o polegar na direção de Osha.

Robb aproximou-se dela. Era uma cabeça mais alta que ele, mas caiu

sobre os joelhos quando o viu caminhar em sua direção.

- Conceda-me a vida, senhor de Stark, e serei vossa.

- Minha? Que faria eu com uma traidora?

- Eu não quebrei juramento nenhum. Stiv e Wallen fugiram da

Muralha, eu não. Os corvos negros não têm lugar para mulheres.

Theon Greyjoy aproximou-se devagar.

- Dê-a aos lobos - ele disse a Robb. Os olhos da mulher saltaram

para o que restava de Hali e afastaram-se com a mesma velocidade.

Estremeceu. Até os guardas pareceram nauseados.

- Ela é uma mulher - disse Robb.

- Uma selvagem - disse-lhe Bran. - Ela disse que deviam me manter

vivo para me levarem a Mance Rayder.

- Você tem um nome? - perguntou-lhe Robb.

- Osha, ao seu dispor - ela murmurou em tom amargo.

Meistre Luwin se levantou.

- Faríamos bem em interrogá-la.

Bran conseguiu ver o alívio no rosto do irmão.

- Será como diz, meistre. Wayn, ate-lhe as mãos, Ela volta conosco

para Winterfell... e viverá ou morrerá conforme as verdades que nos

ofereça.


Tyrion


- Quer comer? - perguntou Morel, carrancudo. Segurava um prato

de feijão cozido com a mão grossa de dedos curtos. Tyrion Lannister

estava faminto, mas recusou-se a deixar que aquele bruto o visse

rebaixado.

- Uma perna de carneiro seria agradável - disse ele da pilha de palha

suja que se acumulava a um canto de sua cela. - Talvez um prato de

ervilhas com cebola, um pouco de pão fresco cozido tom manteiga e

um jarro de vinho com açúcar para empurrar tudo para baixo. Ou

cerveja, se for mais fácil. Tento não ser esquisito demais.

- Há feijões - disse Mord. - Tome - e estendeu o braço.

Tyrion suspirou. O carcereiro não passava de cento e trinta quilos de

grosseira estupidez, com dentes podres escurecidos e pequenos olhos

escuros. O lado esquerdo do rosto era liso, com uma Beatriz no local

em que um machado lhe cortara a orelha e parte da bochecha. Era

tão previsível quanto feio, mas Tyrion tinha fome. Estendeu a mão

para o prato.

Mord o puxou para longe, sorrindo.

- 'Tá aqui - disse, segurando-o fora do alcance de Tyrion.

O anão pôs-se rigidamente em pé, sentindo dores em todas as

articulações.

- Temos de jogar o mesmo jogo idiota a cada refeição? - tentou de

novo apanhar os feijões. Mord afastou-se, arrastando os pés,

mostrando os dentes podres.

- 'Tá aqui, homem anão - esticou o braço sobre a borda onde

terminava a cela e começava o céu. - Não quer comer? Toma. Ande

para pegar.

Os braços de Tyrion eram curtos demais para alcançar o prato, e não

ia se aproximar tanto assim da borda. Bastaria um empurrão rápido

da pesada barriga branca de Mord, e ele acabaria seus dias como

uma repugnante nódoa vermelha nas pedras de Céu, como

acontecera com tantos outros prisioneiros do Ninho da Águia ao

longo dos tempos.

- Pensando bem, não tenho fome - declarou, retirando-se para o

canto da cela.

Mord grunhiu e abriu os dedos grossos. O vento capturou o prato,

virando-o ao contrário enquanto caía. Um punhado de feijões

borrifou os dois enquanto a comida tombava para longe dos seus

olhos. O carcereiro desatou a rir, fazendo a barriga tremer como

uma taça de pudim.

Tyrion sentiu um súbito ataque de raiva.

- Filho duma mula lazarenta - cuspiu. - Espero que morra de

caganeira.

Por aquilo Mord lhe deu um pontapé ao encaminhar-se para a saída,

enterrando com força a bota de ponta de aço nas costelas de Tyrion.

- Retiro o que disse! - arquejou, enquanto se retorcia na palha. - Hei

de matá-lo eu mesmo, juro! - a pesada porta reforçada de ferro

fechou-se com estrondo. Tyrion ouviu o ruído de chaves.

Para um homem pequeno, tinha sido amaldiçoado com uma boca

perigosamente grande, refletiu enquanto rastejava de volta ao canto

daquilo que os Arryn chamavam ridiculamente masmorras.

Aconchegou-se sob um cobertor fino que era sua única roupa de

cama, olhando um deslumbrante céu azul sem uma nuvem e

montanhas distantes que se pareciam prolongar até o infinito,

desejando ainda possuir o manto de pele de gato-das-sombras que

ganhara de Marillion nos dados depois de o cantor tê-lo roubado do

corpo daquele chefe salteador. A pele cheirava a sangue e mofo, mas

era quente e grossa. Mord ficara com ela no momento em que lhe

pusera os olhos em cima.

O vento puxava-lhe o cobertor com rajadas aguçadas como garras. A

cela era miseravelmente pequena, até para um anão. A menos de um

metro e meio de distância, onde deveria existir uma parede, onde

uma parede estaria em uma masmorra de verdade, o chão terminava

e o céu começava. Não tinha falta de ar fresco e luz do sol, e da lua e

das estrelas à noite, mas Tyrion teria trocado tudo isso num instante

pelo mais úmido e sombrio fosso nas entranhas de Rochedo Casterly,

- Você vai voar - garantira-lhe Mord, quando o enfiara na cela. -

Vinte dias, trinta, se calhar, cinquenta. Depois vai voar.

Os Arryn mantinham a única masmorra no reino de onde os

prisioneiros eram livres para fugir se bem entendessem. Naquele

primeiro dia, depois de levar horas cobrindo-se de coragem, Tyrion

deitara-se de barriga para baixo e rastejara até a borda para pôr a

cabeça para fora e espreitar para baixo. O Céu estava cento e oitenta

metros mais abaixo, sem nada, a não ser o ar para separá-lo do

castelo. Se esticasse o pescoço o máximo possível, conseguia ver

outras celas à direita, à esquerda e acima. Era uma abelha numa

colmeia de pedra, e alguém lhe arrancara as asas.

Fazia frio na cela, o vento uivava noite e dia e, pior que tudo o mais,

o chão era inclinado. Só um pouco, mas o suficiente. Tinha medo de

fechar os olhos, medo da possibilidade de rolar durante o sono e

acordar em total terror no momento em que deslizasse pela borda.

Pouco admirava que as celas abertas enlouquecessem os homens.

Que os deuses me.salvem, escrevera na parede um inquilino anterior

qualquer, usando algo que se parecia, de forma suspeita, com sangue,

o azul está chamando. A princípio Tyrion interrogou--se sobre quem

teria sido ele e o que lhe teria acontecido; mais tarde, decidiu que

preferia não saber.

Se ao menos tivesse calado a boca...

O maldito rapaz começara tudo, olhando-o de cima de um trono

esculpido em represeiro sob os estandartes da lua e do falcão da

Casa Arryn. Tinham olhado de cima para Tyrion Lannister ao longo

de toda a sua vida, mas era raro que quem o fizesse fosse um

menino remelento de seis anos que precisava enfiar grossas

almofadas debaixo das nádegas para se elevar à altura de um homem,

- Este é o homem mau? - perguntou o rapaz, agarrando-se à sua

boneca.

- É - respondeu a Senhora Lysa de seu trono menor, ao seu lado.

Vestia-se toda de azul e estava empoada e perfumada para os

pretendentes que lhe enchiam a corte.

- Ele é tão pequeno - observou o Senhor do Ninho da Águia, aos

risinhos.

- Este é Tyrion, o Duende, da Casa Lannister, que assassinou o

senhor seu pai - ela levantou a voz para que chegasse a todo o

comprimento do Alto Salão do Ninho da Águia, ressoando nas

paredes de um branco leitoso e nos estreitos pilares, para que todos

os homens pudessem ouvi-la. - Ele assassinou a Mão do Rei!

- Ah, e também o matei? - disse Tyrion, como um bobo.

Esta teria sido uma ótima ocasião para manter a boca fechada e a

cabeça inclinada. Agora compreendia isto; pelos sete infernos, agora

o compreendia. O Alto Salão dos Arryn era longo e austero, com

uma frieza sinistra nas paredes de mármore branco com veios azuis,

mas os rostos que o rodeavam eram de longe mais frios. O poder do

Rochedo Casterly estava distante, e não havia amigos dos Lannister

no Vale de Arryn. A submissão e o silêncio teriam sido suas melhores

defesas.

Mas o humor de Tyrion estava negro como a noite mais escura. Para

sua vergonha, fraquejara durante a última etapa de seu dia de subida

ao Ninho da Águia, e as pernas atrofiadas se tinham mostrado

incapazes de levá-lo mais alto. Bronn o transportara o resto do

caminho, e a humilhação despejara óleo nas chamas da sua ira.

- Parece que fui um tipinho bastante atarefado - disse com um

sarcasmo amargo. -Pergunto a mim mesmo onde teria arranjado

tempo para tratar de todos esses assassinatos e mortes.

Deveria ter se lembrado de com quem estava lidando. Lysa Arryn e

seu débil filho malsão não tinham ficado conhecidos na corte pelo

seu amor por frases espirituosas, especialmente quando lhes eram

dirigidas.

- Duende - Lysa disse friamente -, cuidado com essa língua trocista e

fale respeitosamente com meu filho, ou prometo que se arrependerá.

Lembre-se de onde está. Isto é o Ninho da Águia e estes ao seu redor

são os cavaleiros do Vale, homens leais que queriam bem a Jon

Arryn. Todos eles morreriam por mim.

- Senhora Arryn, se algum mal me acontecer, meu irmão Jaime ficará

feliz por se assegurar de que morram - no preciso momento em que

cuspia as palavras, Tyrion soube que eram uma loucura.

- É capaz de voar, senhor de Lannister? - perguntou a Senhora Lysa.

- Um anão tem asas? Se não, mais sensato seria engolir a próxima

ameaça que lhe vier à cabeça.

- Não fiz ameaça nenhuma - ele respondeu. - Isso foi uma promessa.

Ao ouvir aquilo, o pequeno Lorde Robert pusera-se em pé de um

salto, tão perturbado que a boneca caíra ao chão.

- Não pode nos machucar - o menino gritou. - Ninguém pode nos

machucar aqui. Diga--lhe, mãe, diga-lhe que não pode nos machucar

aqui - o rapaz começara a estremecer.

- O Ninho da Águia é inexpugnável - declarou calmamente Lysa

Arryn. Puxou o filho para junto dela, rodeando-o com a segurança de

seus rechonchudos braços brancos. - O Duende está tentando nos

assustar, meu querido. Todos os Lannister são mentirosos. Ninguém

vai machucar meu lindo filho.

O inferno era que não havia dúvida de que a mulher tinha razão.

Depois de ver o que era preciso fazer para chegar até ali, Tyrion

podia imaginar como seria um cavaleiro tentando abrir caminho até

lá, lutando, revestido de armadura, enquanto pedras e setas choviam

sobre ele dos pontos altos e inimigos o enfrentavam a cada passo. A

palavra pesadelo nem começava a descrever a situação. Não

surpreendia que o Ninho da Águia nunca tivesse sido tomado,

Mas, mesmo assim, Tyrion foi incapaz de se calar.

- Inexpugnável, não - bradou -, meramente inconveniente.

O jovem Robert apontou para baixo, com a mão tremendo.

- Você é um mentiroso. Mãe, quero vê-lo voar - dois guardas vestidos

com mantos azuis-celeste agarraram Tyrion pelos braços, levantando-

o do chão.

Só os deuses sabiam o que poderia ter acontecido se não fosse

Catelyn Stark.

- Irmã - ela chamou de seu lugar abaixo dos tronos. - Peço que se

lembre que este homem é meu prisioneiro. Não o quero ferido.

Lysa Arryn olhou de relance e friamente para a irmã por um

momento, depois se ergueu e caminhou imponentemente na direção

de Tyrion, arrastando as longas saias atrás de si. Por um instante, o

anão temeu que ela lhe batesse, mas, em vez disso, ordenou que o

largassem. Os homens atiraram-no ao chão, as pernas fugiram-lhe e

Tyrion caiu.

Deve ter apresentado um belo espetáculo quando lutou para se pôr

de pé e a perna direita entrou em espasmos, atirando-o de novo ao

chão. Gargalhadas rebentaram em todo o Alto Salão dos Arryn.

- O hospedezinho de minha irmã está demasiado cansado para se

manter em pé - anunciou a Senhora Lysa. - Sor Vardis, leve-o para a

masmorra. Um descanso em uma de nossas celas abertas lhe fará

muito bem.

Os guardas o puxaram com brusquidão. Tyrion Lannister ficou

pendurado entre eles, lançando fracos pontapés, com o rosto

vermelho de vergonha.

- Eu me lembrarei disto - disse a todos quando o levaram.

E lembrava-se, por mais inútil que isso fosse,

A princípio consolou-se com a ideia de que seu encarceramento não

podia durar muito tempo. Lysa Arryn queria humilhá-lo, era tudo.

Voltaria para buscá-lo, e em breve. Se não o fizesse, então Catelyn

Stark desejaria interrogá-lo. Daquela vez dominaria melhor a língua.

Elas não se atreveriam a matá-lo sem mais nem menos; ainda era um

Lannister de Rochedo Casterly e se derramassem seu sangue, isso

significaria guerra. Pelo menos era o que dizia a si mesmo.

Agora já não tinha tanta certeza.

Talvez seus captores só pretendessem deixá-lo ali, apodrecendo, mas

temia não ter forças para apodrecer por muito tempo, A cada dia

que passava ficava um pouco mais fraco, e era só uma questão de

tempo até que os pontapés e golpes de Mord o ferissem seriamente,

partindo-se do princípio de que o carcereiro não o mataria antes de

fome. Mais algumas noites de frio e fome, e o azul também

começaria a chamar por ele.

Gostaria de saber o que estava acontecendo para lá das paredes (as

que havia) de sua cela. Lorde Tywin teria certamente enviado

patrulhas quando a notícia lhe chegara. Jaime poderia estar naquele

momento liderando uma tropa na travessia das Montanhas da Lua. .

a menos que em vez disso se dirigisse para o norte, contra

Winterfell. Será que alguém fora do Vale chegaria a suspeitar do

local para onde Catelyn Stark o levara? Gostaria de saber o que faria

Cersei quando soubesse. O rei podia ordenar sua libertação, mas

Robert daria ouvidos à mulher ou à Mão? Tyrion não tinha ilusões

quanto ao amor de Robert pela irmã.

Se Cersei usasse a cabeça, insistiria que o próprio rei julgasse Tyrion.

Até Ned Stark pouco podia objetar a isso sem pôr em causa a honra

do rei. E Tyrion, de bom grado, tentaria sua sorte num julgamento.

Fossem quais fossem os assassinatos que lhe atribuíam, os Stark não

tinham nenhuma prova, até onde ele soubesse. Que apresentassem

seu caso perante o Trono de Ferro e os senhores da terra. Seria o

fim deles. Se ao menos Cersei fosse suficientemente inteligente para

ver isso...

Tyrion Lannister suspirou. Sua irmã não era desprovida de certa

astúcia, mas o orgulho a cegava. Veria naquilo o insulto, mas não a

oportunidade. E Jaime era ainda pior, impetuoso, teimoso e de ira

fácil. Seu irmão nunca desataria um nó se pudesse abri-lo em dois a

golpes de espada.

Perguntava a si mesmo qual deles teria enviado o salteador para

silenciar o rapaz Stark, e se teriam de fato conspirado para matar Jon

Arryn. Se a antiga Mão foi assassinada, a coisa tinha sido feita com

habilidade e sutileza. Homens da idade dele andavam sempre

morrendo de doença súbita. Por outro lado, enviar um imbecil

qualquer com uma faca roubada para matar Brandon Stark

pareciadhe inacreditavelmente tosco. E, pensando melhor, não seria

isso peculiar?...

Tyrion estremeceu. Ora, aí estava uma suspeita sórdida. Talvez o

lobo gigante e o leão não fossem os únicos animais na floresta, e, se

isto fosse verdade, alguém o estava usando como boi de piranha.

Tyrion Lannister detestava ser usado.

Tinha de sair dali, e depressa. Suas chances de dominar Mord eram

baixas ou nulas, e ninguém se preparava para lhe fazer chegar cento

e oitenta metros de corda, portanto, teria de convencê-los a libertá-

lo. Sua boca o tinha metido naquela cela, bem podia tirá-lo de lá

também.

Tyrion pôs-se em pé, fazendo o possível para ignorar a inclinação do

chão, com seu tão sutil puxão para o abismo. Bateu na porta com o

punho.

- Mordi - gritou. - Carcereiro! Mord, preciso de você! - teve de

continuar durante uns bons dez minutos até ouvir passos. Tyrion

deu um passo para trás um instante antes de a porta se abrir com

estrondo.

- Você está fazendo barulho - grunhiu Mord, com sangue nos olhos.

Pendurada à sua mão carnuda estava uma correia de couro, larga e

grossa, enrolada no punho.

Nunca lhes mostre que tem medo, lembrou-se Tyrion.

- Gostaria de ser rico? - ele perguntou.

Mord bateu nele. Balançou a correia para trás com a mão,

preguiçosamente, mas o couro apanhou Tyrion na parte de cima do

braço. A força que trazia o fez cambalear, e a dor o fez ranger os

dentes.

- Boca não, homem anão - preveniu Mord.

- Ouro - disse Tyrion, imitando um sorriso. - O Rochedo Casterly

está cheio de ouro... ahhh... - daquela vez o golpe foi dado para a

frente, e Mord colocou mais força no balanço, fazendo o couro

estalar e saltar. Atingiu Tyrion nas costelas e o pôs de joelhos,

choramingando. Forçou-se a olhar para o carcereiro. - Tão rico como

os Lannister - arquejou, - É o que se diz, Mord..

Mord grunhiu. A correia assobiou pelo ar e acertou em cheio o rosto

de Tyrion. A dor foi tanta que ele nem se deu conta de ter caído,

mas, quando voltou a abrir os olhos, estava no chão da cela. O

ouvido ressoava e a boca estava cheia de sangue. Apalpou em busca

de um apoio para se erguer, e os dedos roçaram... coisa nenhuma.

Tyrion puxou a mão para trás tão depressa como se a tivesse

escaldado, e fez o possível para prender a respiração. Tinha caído

bem na borda, a centímetros do azul.

- Mais a dizer? - Mord segurou a correia entre os punhos e deu-lhe

um forte puxão, que o fez Tyrion saltar. O carcereiro riu.

Ele não vai me empurrar, disse Tyrion desesperadamente a si mesmo

enquanto se afastava da borda engatinhando. Catelyn Stark me quer

vivo, ele não se atreverá a me matar. Limpou o sangue dos lábios

com as costas da mão, sorriu e disse:

- Essa foi forte, Mord - o carcereiro o olhou de soslaio, desconfiando

de estar sendo escarnecido. - Podia dar bom uso a um homem forte

como você - a correia voou, mas desta vez Tyrion conseguiu

esquivar-se. Levou um golpe de raspão no ombro, nada mais. - Ouro

- repetiu, afastando-se sobre os pés e as mãos como um caranguejo -

, mais ouro do que verá aqui em toda a vida. O suficiente para

comprar terras, mulheres, cavalos.. Podia ser um senhor. Lorde Mord

- Tyrion reuniu ruidosamente um globo de sangue e muco e cuspiu-

o para o céu.

- Não há ouro - Mord respondeu.

Ele está ouvindo!, pensou Tyrion.

- Tiraram-me a bolsa quando me capturaram, mas o ouro ainda é

meu. Catelyn Stark pode tomar um homem prisioneiro, mas nunca

se rebaixaria a roubá-lo. Isso não seria honroso. Ajude-me, e todo o

ouro será seu - a correia de Mord saltou, mas foi um golpe hesitante,

isolado, lento e desdenhoso. Tyrion apanhou o couro e o manteve

preso à mão. - Não haverá risco para você. Tudo o que tem a fazer é

entregar uma mensagem.

O carcereiro libertou a tira de couro da mão de Tyrion.

- Mensagem - repetiu, como se nunca tivesse ouvido a palavra. A

carranca abria-lhe profundas fendas na testa.

- O senhor me ouviu. Basta que leve minhas palavras à sua senhora.

Diga-lhe.. - o quê? O que poderia levar Lysa Arryn a se mostrar

flexível? A inspiração chegou de súbito a Tyrion Lannister. - .. Diga-

lhe que desejo confessar meus crimes.

Mord ergueu o braço e Tyrion preparou-se para mais um golpe, mas

o carcereiro hesitou. A suspeita e a cobiça guerreavam nos seus

olhos. Desejava aquele ouro, mas temia um truque; seu aspecto era

de um homem que tinha sido frequentemente enganado.

- É mentira - resmungou em tom sombrio. - Homem anão me

engana.

- Posso pôr minha promessa por escrito - garantiu Tyrion.

Alguns iletrados sentiam desdém pela escrita; outros pareciam ter

por ela uma reverência supersticiosa, como se fosse algum tipo de

magia. Felizmente, Mord pertencia ao segundo tipo. O carcereiro

abaixou a correia.

- Escrever ouro. Muito ouro.

- Ah, muito ouro - assegurou-lhe Tyrion. - A bolsa é só um aperitivo,

meu amigo. Meu irmão usa uma armadura de folha de ouro - na

verdade, a armadura de Jaime era aço dourado, mas aquele imbecil

nunca saberia a diferença.

Mord passou os dedos pela correia, pensativo, mas por fim cedeu e

foi buscar papel e tinta. Depois da carta escrita, o carcereiro franziu

as sobrancelhas ao vê-la, desconfiado.

- Agora, vá entregar minha mensagem - Tyrion ordenou.

Estava tremendo no sono quando vieram buscá-lo naquela noite.

Mord abriu a porta, mas manteve-se em silêncio. Sor Vardis Egen

acordou Tyrion com a ponta da bota.

- Em pé, Duende. Minha senhora deseja vê-lo.

Tyrion esfregou o sono dos olhos e afivelou um sorriso que não

sentia.

- Sem dúvida que sim, mas o que o faz pensar que eu desejo vê-la?

Sor Vardis franziu as sobrancelhas. Tyrion lembrava-se bem dele, dos

anos que passara em Porto Real como capitão da guarda doméstica

da Mão. Uma face quadrada e simples, cabelos grisalhos, constituição

pesada e sem sombra de humor.

- Seus desejos não são da minha conta. Em pé, ou mandarei que o

carreguem.

Tyrion pôs-se desajeitadamente em pé.

- Uma noite fria - disse em tom casual -, e o Alto Salão tem tantas

correntes de ar. Não quero apanhar um resfriado. Mord, se me fizer

um favor, vá buscar o meu manto.

O carcereiro o olhou de soslaio, com uma expressão estúpida e

desconfiada.

- O meu manto - repetiu Tyrion. - A pele de gato-das-sombras que

tirou de mim para guardar em segurança. Você se lembra.

- Vá buscar o maldito manto - disse Sor Vardis.

Mord não se atreveu a resmungar. Lançou a Tyrion um olhar que

prometia uma retribuição futura, mas foi buscar o manto. Quando o

enrolou em torno do pescoço do prisioneiro, Tyrion sorriu.

- Muito obrigado. Pensarei em você sempre que o usar - atirou a

parte da frente da longa pele por sobre o ombro direito e sentiu-se

quente pela primeira vez em vários dias. - Mostre o caminho, Sor

Vardis.

O Alto Salão dos Arryn brilhava à luz de cinquenta archotes, que

ardiam em suportes presos às paredes. A Senhora Lysa trajava-se de

seda negra, com a lua e o falcão bordados com pérolas no peito.

Como não parecia ser do tipo que se juntaria à Patrulha da Noite,

Tyrion só conseguia imaginar que ela decidira que roupas fúnebres

eram um traje apropriado para uma confissão. Os longos cabelos

ruivos, presos numa trança elaborada, caíam-lhe sobre o ombro

esquerdo. O trono mais alto ao seu lado estava vazio; sem dúvida

que o pequeno Senhor do Ninho da Águia estava embalado no seu

sono. Pelo menos por isso Tyrion sentia-se grato.

Fez uma profunda reverência e demorou-se um momento passando

os olhos pelo salão. A Senhora Arryn convocara seus cavaleiros e

servidores para ouvir a confissão, tal como ele esperara. Viu o rosto

escarpado de Sor Brynden Tully e o abrupto de Lorde Nestor Royce.

Ao lado de Nestor estava um homem mais novo com ferozes suíças

negras que só podia ser seu herdeiro, Sor Aibar. Encontrava-se ali

representada a maior parte das principais Casas do Vale. Tyrion

notou em Sor Lyn Corbray, esguio como uma espada, Lorde Hunter,

com suas pernas artríticas, a viúva Senhora Waynwood, rodeada

pelos filhos. Outros exibiam símbolos que não conhecia: uma lança

quebrada, uma víbora verde, uma torre ardente, um cálice alado.

Entre os senhores do Vale encontravam-se vários dos que tinham

sido seus companheiros na estrada de altitude: Sor Rodrik Cassei,

pálido dos ferimentos mal curados, tinha Sor Willis Wode a seu lado.

Marillion, o cantor, encontrara uma nova harpa. Tyrion sorriu.

Acontecesse o que acontecesse ali naquela noite, não queria que fosse

em segredo, e não havia ninguém melhor que um cantor para

espalhar uma história aos sete ventos.

Ao fundo da sala, Bronn preguiçava sob um pilar. Os olhos negros do

cavaleiro livre estavam fixos em Tyrion, e a mão pousava levemente

no botão do punho da espada. Tyrion olhou-o longamente,

interrogando-se...

Catelyn Stark foi a primeira a falar.

- Foi nos dito que deseja confessar seus crimes.

- Desejo, senhora - Tyrion respondeu.

Lysa Arryn sorriu para a irmã.

- As celas abertas os quebram sempre. Os deuses podem vê-los lá, e

não há escuridão onde se refugiem.

- Ele não me parece quebrado - disse Catelyn.

Lysa não lhe prestou atenção.

- Diga o que tem a dizer - ela ordenou.

E agora façamos rolar os dados, pensou com outro rápido relance

para Bronn.

- Por onde começar? Sou um homenzinho vil, confesso. Meus crimes

são incontáveis, senhores e senhoras. Deitei-me com prostitutas, não

uma, mas centenas de vezes. Desejei a morte do senhor meu pai e

também de minha irmã, nossa piedosa rainha - atrás dele, alguém

soltou um risinho. - Nem sempre tratei meus criados com delicadeza.

Joguei jogos de azar. Até cheguei a roubar neles, admito,

enrubescido. Disse muitas coisas cruéis e maliciosas a respeito dos

nobres senhores e senhoras da corte - aquilo provocou abertas

gargalhadas. - Uma vez. .

- Silêncio! - a pálida cara redonda de Lysa Arryn tomara um tom

ardente, cor-de-rosa. - O que imagina que está fazendo, anão?

Tyrion inclinou a cabeça para o lado.

- Ora, confessando os meus crimes, senhora.

Catelyn Stark deu um passo à frente.

- Você é acusado de enviar um assassino contratado para matar meu

filho Bran em sua própria cama e de conspirar para o assassinato de

Lorde Jon Arryn, a Mão do Rei.

Tyrion encolheu os ombros com ar impotente.

- Temo que esses crimes não possa confessar. Nada sei de

assassinatos.

A Senhora Lysa ergueu-se de seu trono de represeiro.

- Não serei alvo de troça. Já teve a sua brincadeirinha, Duende. Creio

que tenha gostado dela. Sor Vardis, leve-o de volta para as

masmorras... mas desta vez arranje-lhe uma cela menor, com o chão

mais inclinado.

- É assim que se faz justiça no Vale? - rugiu Tyrion, tão alto que Sor

Vardis se imobilizou por um instante. - Será que a honra fica à porta

do Portão Sangrento? Acusam-me de crimes, eu os nego e, portanto,

atiram-me em uma cela a céu aberto para que congele e morra de

fome - ergueu a cabeça, para mostrar bem a todos as nódoas negras

que Mord deixara em seu rosto.

- Onde está a justiça do rei? Será que o Ninho da Águia não faz

parte dos Sete Reinos? Diz-me que sou acusado. Muito bem. Exijo

um julgamento! Deixe-me falar, e deixe que a minha verdade ou

falsidade seja julgada abertamente, à vista dos deuses e dos homens.

Um murmúrio baixo encheu o Alto Salão. Tyrion soube que tinha

ganhado. Era bem-nascido, filho do mais poderoso senhor do reino,

irmão da rainha. Não lhe podia ser negado um julgamento. Guardas

de manto azul-celeste tinham começado a se dirigir a Tyrion, mas

Sor Vardis ordenou que parassem e olhou para a Senhora Lysa.

A pequena boca da senhora torceu-se num sorriso petulante.

- Se julgado e considerado culpado dos crimes pelos quais é acusado,

então, pelas leis do próprio rei, deverá pagar com o sangue da sua

vida. Não temos carrasco no Ninho da Águia, senhor de Lannister.

Que seja aberta a Porta da Lua.

A aglomeração de espectadores separou-se. Uma estreita porta surgiu

à vista, entre dois esguios pilares de mármore, com um crescente

esculpido na madeira branca. Aqueles que estavam mais perto da

porta recuaram quando um par de guardas marchou até ela. Um dos

homens removeu as pesadas barras de bronze; o segundo puxou a

porta para dentro. Seus mantos azuis ergueram--se dos ombros,

ondulando, apanhados pela súbita rajada de vento que entrou

uivando pela porta aberta. Do outro lado havia o vazio do céu

noturno, salpicado de estrelas frias e indiferentes.

- Admire a justiça do rei - disse Lysa Arryn. Chamas de archotes

flutuaram como flâmulas ao longo das paredes, e aqui e ali um ou

outro archote foi apagado.

- Lysa, penso que isto é insensato - disse Catelyn Stark enquanto o

vento negro rodopiava pelo salão.

Sua irmã a ignorou.

- Deseja um julgamento, senhor de Lannister. Muito bem, terá um

julgamento. Meu filho ouvirá o que tem a dizer e dará seu

julgamento. Então, pode sair... por uma porta ou pela outra.

Ela parecia tão contente consigo mesma, pensou Tyrion, e não

admirava. Como poderia um julgamento ameaçá-la, quando o senhor

juiz era o fracote do filho? Tyrion olhou de relance para a Porta da

Lua. Mãe, quero vê-lo voar!, dissera o rapaz. Quantos homens teria já

o ranhento canalhinha mandado atravessar aquela porta?

- Agradeço, minha boa senhora, mas não vejo necessidade de

incomodar Lorde Robert -disse Tyrion delicadamente. - Os deuses

conhecem a verdade da minha inocência. Desejo o seu veredicto, não

o julgamento dos homens. Exijo um julgamento por combate.

Uma tempestade de súbitas gargalhadas encheu o Alto Salão dos

Arryn. Lorde Nestor Royce resfolegou, Sor Willis gargalhou, Sor Lyn

Corbray relinchou e outros atiraram as cabeças para trás e uivaram

até que lágrimas lhes correram pelo rosto. Marillion arrancou

desajeitadamente uma nota alegre de sua nova harpa com os dedos

da mão quebrada. Até o vento pareceu assobiar com zombaria ao

entrar, aos gritos, pela Porta da Lua.

Os olhos de um azul aguado de Lysa Arryn pareceram incertos.

Tinha sido apanhada de surpresa.

- Tem certamente esse direito.

O jovem cavaleiro com a víbora verde bordada na capa deu um

passo em frente e caiu sobre o joelho.

- Minha senhora, peço a mercê de ser o campeão da vossa causa.

- A honra deve ser minha - disse o velho Lorde Hunter. - Pelo amor

que sentia pelo senhor vosso esposo, deixe-me vingar a sua morte.

- Meu pai serviu fielmente a Lorde Jon como Supremo Intendente do

Vale - trovejou Sor Aibar Royce. - Deixe-me servir agora o seu filho.

- Os deuses favorecem o homem com a causa justa - disse Sor Lyn

Corbray -, mas é comum que este acabe por ser o homem com a

espada mais hábil. Todos sabemos quem este homem é - e sorriu

modestamente.

Uma dúzia de outros homens falou ao mesmo tempo, clamando para

serem ouvidos. Tyrion achou desanimador que tantos estranhos

estivessem ansiosos por matá-lo. Este afinal talvez não tivesse sido

um plano tão inteligente como parecera.

A Senhora Lysa ergueu a mão exigindo silêncio.

- Agradeço, senhores, como sei que meu filho agradeceria se estivesse

entre nós. Não há homens nos Sete Reinos tão ousados e leais como

os cavaleiros do Vale. Gostaria de poder conceder a todos esta honra.

Mas só posso escolher um - fez um gesto. - Sor Vardis Egen, foi

sempre um bom braço direito do senhor meu esposo. Será o nosso

campeão.

Sor Vardis tinha estado singularmente silencioso.

- Minha senhora - ele disse gravemente, deixando-se cair sobre o

joelho -, peço livrar-me deste fardo, pois não tenho gosto nele. O

homem não é guerreiro nenhum. Olhe-o. Um anão, com metade do

meu tamanho e coxo das pernas. Seria vergonhoso matar um homem

assim e dar-lhe o nome de justiça.

Ah, excelente, pensou Tyrion.

- Concordo.

Lysa olhou-o furiosa.

- Você exigiu um julgamento pelo combate.

- E agora exijo um campeão, tal como a senhora arranjou um. Sei

que meu irmão Jaime tomará de bom grado o meu partido.

- Seu precioso Regicida está a centenas de léguas daqui - exclamou

Lysa Arryn.

- Envie uma ave até ele. De bom grado esperarei sua chegada.

- Defrontará Sor Vardis pela manhã.

- Cantor - disse Tyrion, virando-se para Marillion -, quando escrever

uma balada sobre isto, não se esqueça de dizer como a Senhora

Arryn negou ao anão o direito a um campeão, e o enviou, aleijado,

ferido e coxo, para defrontar seu melhor cavaleiro.

- Não estou lhe negando nada! - disse Lysa Arryn, com a voz

esganiçada de irritação. - Indique seu campeão, Duende... Se achar

que há um homem que morra por você..

- Se não fizer diferença, preferia encontrar um que mate por mim -

Tyrion olhou em volta do longo salão. Ninguém se mexeu. Por um

longo momento, perguntou a si mesmo se tudo aquilo não teria sido

um colossal disparate.

Então, houve uma agitação na parte de trás da sala.

- Eu luto pelo anão - gritou Bronn.


Eddard


Sonhou um sonho antigo, sobre três cavaleiros de manto branco,

uma torre há muito caída e Lyanna em sua cama de sangue.

No sonho, os amigos cavalgavam com ele, como o tinham feito em

vida. O orgulhoso Martyn Cassei, pai de Jory; o fiel Theo Will; Ethan

Glover, que fora escudeiro de Brandon; Sor Mark Ryswell, de fala

mansa e coração gentil; o cranogmano, Howland Reed; Lorde Dustin,

no seu grande garanhão vermelho. Ned conhecera tão bem o rosto

de cada um deles como conhecia o seu, mas os anos sugam as

memórias de um homem, mesmo aquelas que ele jurou nunca esque-

cer. No sonho, eram apenas sombras, espectros cinzentos montados

em cavalos feitos de névoa.

Eram sete, enfrentando três. No sonho, tal como acontecera na vida.

Mas aqueles três não eram homens comuns. Esperavam defronte da

torre redonda, com as montanhas vermelhas de Dorne às suas costas

e os mantos brancos ondulando ao vento. E esses três vultos não

eram sombras; seus rostos eram claros como brasas, mesmo agora.

Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã, tinha um sorriso triste nos

lábios. O cabo da grande espada chamada Alvorada espreitava-o por

sobre o ombro direito. Sor Oswell Whent apoiava-se no joelho,

afiando sua lâmina com uma pedra de polir. O morcego negro de

sua Casa estendia as asas sobre o elmo esmaltado de branco. Entre

os dois, erguia-se o velho e feroz Sor Gerold Hightower, o Touro

Branco, Senhor Comandante da Guarda Real.

- Procurei-os no Tridente - disse-lhes Ned.

- Não estávamos lá - respondeu Sor Gerold.

- Seria uma aflição para o Usurpador se tivéssemos estado -

continuou Sor Oswell.

- Quando Porto Real caiu, Sor Jaime matou o vosso rei com uma

espada dourada, e eu me pergunto onde estariam.

- Longe - disse Sor Gerold -, caso contrário, Aerys ainda possuiria o

Trono de Ferro e o nosso falso irmão estaria ardendo nos sete

infernos.

- Eu vim a Ponta Tempestade para levantar o cerco - disse-lhes Ned -

, e os senhores Tyrell e Redwyne baixaram os estandartes, e todos os

seus cavaleiros dobraram os joelhos para nos jurar fidelidade. Tinha

certeza de que os encontraria entre eles.

- Nossos joelhos não se dobram facilmente - disse Sor Arthur Dayne.

- Sor Willem Darry fugiu para Pedra do Dragão, com a sua rainha e

o Príncipe Viserys, Pensei que pudessem ter velejado com ele.

- Sor Willem é um homem bom e leal - disse Sor Oswell.

- Mas não pertence à Guarda Real - fez notar Sor Gerold. - A Guarda

Real não foge.

- Nem ontem, nem hoje - confirmou Sor Arthur, e preparou o elmo.

- Fizemos um juramento - explicou o velho Sor Gerold.

Os espectros de Ned puseram-se ao seu lado, com espadas

fantasmagóricas nas mãos. Eram sete contra três.

- E hoje começa - disse Sor Arthur Dayne, a Espada da Manhã.

Desembainhou Alvorada e a segurou com ambas as mãos. A lâmina

era pálida como vidro leitoso, viva de luz.

- Não - disse Ned com tristeza na voz. - Hoje termina - no momento

em que eles atacaram juntos numa confusão de aço e sombras, pôde

ouvir Lyanna gritar.

- Eddard! - ela chamou. Uma tempestade de pétalas de rosa soprou

através de um céu riscado de sangue, azul como os olhos da morte.

- Lorde Eddard - Lyanna chamou de novo.

- Prometo - sussurrou ele. - Lya, prometo...

- Lorde Eddard - ecoou a voz de um homem, vinda da escuridão.

Gemendo, Eddard Stark abriu os olhos. O luar escorria através das

altas janelas da Torre da Mão.

- Lorde Eddard? - uma sombra erguia-se sobre a cama.

- Quanto.. quanto tempo? - os lençóis estavam presos, a perna

revestida de talas e gesso. Um surdo latejar de dor subia-lhe pelo

flanco.

- Seis dias e sete noites - a voz pertencia a Vayon Poole. O

intendente encostou uma taça nos lábios de Ned. - Beba, senhor.

-Quê...?

- Apenas água. Meistre Pycelle disse que teria sede.

Ned bebeu. Tinha os lábios secos e rachados. A água era doce como

mel.

- O rei deixou ordens - disse-lhe Vayon Poole quando a taça ficou

vazia. - Deseja falar com o senhor.

- Amanhã - disse Ned. - Quando estiver mais forte - naquele

momento não podia enfrentar Robert. O sonho deixara-o fraco como

um gatinho.

- Senhor - disse Poole -, ele nos ordenou que o enviássemos até ele

no momento em que abrisse os olhos - o intendente tratava de

acender uma vela de cabeceira.

Ned praguejou lentamente. Robert nunca fora conhecido pela sua

paciência.

- Diga-lhe que estou fraco demais para ir vê-lo. Se deseja falar

comigo, ficarei feliz por recebê-lo aqui. Espero que o acorde de um

sono profundo. E chame... - preparava-se para dizer Jory quando se

lembrou. - Chame o capitão da minha guarda.

Alyn entrou no quarto pouco depois de o intendente se retirar.

- Senhor.

- Poole disse-me que passaram seis dias - disse Ned. - Tenho de

saber em que pé estão as coisas.

- O Regicida fugiu da cidade - disse-lhe Alyn. - Diz-se que voltou a

Rochedo Casterly para se juntar ao pai. A história sobre o modo

como a Senhora Catelyn capturou o Duende está em todos as bocas.

Reforcei a guarda, com a vossa licença.

- Está dada - assegurou-lhe Ned. - As minhas filhas?

-Têm estado com o senhor todos os dias. Sansa reza em silêncio, mas

Arya... - hesitou. - Ela não disse uma palavra desde que o trouxeram.

É uma coisinha feroz, senhor. Nunca vi tamanha ira numa menina.

- Aconteça o que acontecer - disse Ned -, quero que minhas filhas

sejam mantidas a salvo. Temo que isto seja apenas o princípio.

- Nenhum mal lhes acontecerá, Lorde Eddard - disse Alyn, - Coloco

nisso a minha vida.

- Jory e os outros...

- Entreguei-os às irmãs silenciosas, a fim de serem enviados para o

norte, para Winterfell. Jory gostaria de jazer junto ao avô.

Teria de ser o avô, pois o pai de Jory estava enterrado muito ao sul.

Martyn Cassei perecera com os outros. Ned colocara depois a torre

abaixo, e usara suas pedras sangrentas para construir oito montes

sepulcrais no topo daquela colina. Dizia-se que Rhaegar chamara

àquele lugar de torre da alegria, mas para Ned era uma memória

amarga. Tinham sido sete contra três, mas só dois sobreviveram: o

próprio Eddard Stark e o pequeno cranogmano, Howland Reed. Não

lhe parecia de bom agouro voltar a sonhar aquele sonho depois de

tantos anos.

- Agiu bem, Alyn - dizia Ned quando Vayon Poole regressou. O

intendente fez uma reverência profunda.

- Sua Graça está lá fora, senhor, e a rainha está com ele.

Ned ergueu-se mais, retraindo-se quando a perna tremeu de dor. Não

esperava a vinda de Cersei. Não vaticinava nada de bom que tivesse

vindo.

- Mande-os entrar, e depois nos deixe. O que temos a dizer não deve

sair destas paredes

- Poole assentiu e se retirou em silêncio.

Robert levara tempo para se vestir. Usava um gibão negro de veludo

com o veado coroado de Baratheon trabalhado em fio de ouro no

peito e uma capa dourada com um manto de quadrados negros e

dourados. Trazia um jarro de vinho na mão e a face já corada da

bebida. Cersei Lannister entrou atrás dele, com uma tiara incrustada

de jóias no cabelo,

- Vossa Graça - Ned o saudou. - As minhas desculpas. Não posso me

levantar.

- Não importa - disse o rei bruscamente. - Um pouco de vinho? Da

Árvore. Uma boa colheita.

- Um pequeno copo - Ned respondeu. - Ainda tenho a cabeça pesada

do leite da papoula.

- Um homem na sua posição devia se achar afortunado por ainda ter

a cabeça sobre os ombros - declarou a rainha.

- Calada, mulher - exclamou Robert, trazendo a Ned um copo de

vinho. - A perna ainda dói?

- Um pouco - disse Ned. Sentia a cabeça rodando, mas não seria bom

admitir fraqueza perante a rainha.

- Pycelle jura que vai se curar bem - Robert franziu as sobrancelhas.

- Presumo que saiba o que Catelyn fez?

- Sei - Ned bebeu um pouco de vinho. - A senhora minha esposa não

tem culpa, Vossa Graça. Tudo o que fez foi às minhas ordens.

- Eu não estou satisfeito, Ned - Robert resmungou.

- Com que direito se atreve a pôr as mãos no meu sangue? - Cersei

exigiu saber. - Quem pensa que é?

- A Mão do Rei - disse-lhe Ned com uma cortesia gelada. -

Encarregado pelo próprio senhor vosso esposo de manter a paz do

rei e executar sua justiça.

- Foi a Mão - começou Cersei -, mas agora...

- Silêncio! - o rei rugiu. - Você fez uma pergunta e ele respondeu -

Cersei calou-se, com uma ira fria, e Robert voltou a virar-se para

Ned. - Manter a paz do rei, você diz. E assim que mantém a minha

paz, Ned? Sete homens estão mortos..

- Oito - corrigiu a rainha. - Tregar morreu esta manhã, do golpe que

Lorde Stark lhe deu.

- Raptos na Estrada do Rei e bêbados promovendo chacinas nas

minhas ruas - disse o rei. - Não admitirei isso, Ned.

- Catelyn tinha bons motivos para capturar o Duende..,

- Eu disse que não admitirei! Que os motivos dela vão para o inferno.

Você vai lhe ordenar que liberte imediatamente o anão, e vai fazer as

pazes com Jaime.

- Três dos meus homens foram massacrados perante os meus olhos

porque Jaime Lannister desejou punir-me. Deverei esquecer isso?

- Meu irmão não provocou esta querela - disse Cersei ao rei. - Lorde

Stark regressava bêbado de um bordel. Seus homens atacaram Jaime

e seus guardas, tal como a mulher dele atacou Tyrion na Estrada do

Rei.

- Você me conhece melhor que isso, Robert - disse Ned. - Pergunte a

Lorde Baelish, se duvida de mim. Ele estava lá.

- Já falei com Mindinho - disse Robert. - Ele diz que se afastou para

ir buscar os homens de manto dourado antes do início da luta, mas

admite que regressavam de uma casa de prostitutas qualquer.

- De uma casa de prostitutas qualquer! Malditos sejam os seus olhos,

Robert, eu fui lá para ver a sua filha! A mãe a chamou Barra. Parece-

se com aquela primeira moça que você teve, quando éramos rapazes

no Vale - Ned observou a rainha enquanto falava; seu rosto era uma

máscara, imóvel e pálida, sem nada trair.

Robert corou.

- Barra - resmungou. - Supõe que isso me agrada? Maldita moça.

Pensei que tivesse mais bom-senso.

- Ela não deve ter mais que quinze anos, e é uma prostituta, como

poderia ter bom-senso? - disse Ned, incrédulo. A perna começava a

doer fortemente. Era difícil manter-se calmo. - A pateta da moça está

apaixonada por você, Robert.

O rei olhou de relance para Cersei.

- Isto não é um assunto adequado para os ouvidos da rainha.

- Sua Graça não gostará de nada do que tenho a dizer - respondeu

Ned. - Disseram-me que o Regicida fugiu da cidade. Dê-me licença

para trazê-lo à justiça.

O rei fez girar o vinho no copo, matutando. Bebeu um trago.

- Não - respondeu. - Não quero que isto continue. Jaime matou três

dos seus homens, você matou cinco dos dele. E acaba aqui.

- É essa a sua idéia de justiça? - inflamou-se Ned. - Se é, sinto-me

contente por já não ser a vossa Mão.

A rainha olhou para o marido,

- Se algum homem tivesse se atrevido a falar a um Targaryen do

modo como ele fala com você..

- Toma-me por Aerys? - interrompeu Robert.

- Tomo-lhe por um rei. Jaime e Tyrion são seus irmãos, segundo

todas as leis do casamento e dos laços que partilhamos. Os Stark

afastaram um e capturaram o outro. Este homem o desonra a cada

vez que respira, e aqui está você, humildemente, perguntando se sua

perna dói e se quer vinho.

O rosto de Robert estava escuro de cólera.

- Quantas vezes tenho de lhe dizer para ter tento na língua, mulher?

A face de Cersei era a imagem do desprezo.

- Que brincadeira fizeram os deuses de nós dois - disse. - Por direito,

você devia estar de saias, e eu, de cota de malha.

Roxo de raiva, o rei estendeu a mão e deu um violento golpe no

rosto da rainha. Cersei Lannister tropeçou na mesa e estatelou-se,

mas não gritou. Seus dedos magros afagaram a bochecha, onde a

pele pálida e suave já começava a ficar vermelha. No dia seguinte o

hematoma cobriria metade do rosto.

- Vou usar isto como um distintivo de honra - ela anunciou.

- Use-o em silêncio, ou volto a honrá-la - prometeu Robert. Gritou

por um guarda. Sor Moryn Trant entrou no quarto, alto e

melancólico na sua armadura branca. - A rainha está fatigada. Leve-a

para o seu quarto - o cavaleiro ajudou Cersei a pôr-se em pé e a

levou sem uma palavra.

Robert estendeu a mão para o jarro e voltou a encher seu copo.

- Está vendo o que ela me faz, Ned - o rei sentou-se, embalando o

copo de vinho. - Minha querida esposa. E mãe dos meus filhos - a

raiva tinha agora desaparecido; nos seus olhos Ned viu algo triste e

assustado. - Não devia ter batido. Não foi... não foi régio - fixou os

olhos nas mãos, como se não soubesse bem o que elas eram. -

Sempre fui forte... ninguém conseguia me enfrentar, ninguém. Como

se luta contra alguém em quem não se pode bater? - confuso, o rei

balançou a cabeça. - O Rhaegar.. o Rhaegar ganhou, maldito seja.

Matei-o, Ned, enterrei o espigão naquela armadura negra, espetei-o

no seu coração negro, e ele morreu aos meus pés. Fizeram canções

sobre isso. Mas de algum modo ele conseguiu ganhar. E agora tem

Lyanna, e eu tenho ela — o rei esvaziou o copo.

- Vossa Graça - disse Ned Stark -, temos de conversar...

Robert apertou as têmporas com as pontas dos dedos.

- Estou mortalmente farto de conversas. Amanhã vou a Mataderrei

caçar. Seja o que for que tenha a dizer, pode esperar até o meu

regresso.

- Se os deuses forem bondosos, não estarei aqui quando regressar.

Ordenou-me que voltasse para Winterfell, esqueceu?

Robert pôs-se em pé, agarrando-se a um dos pilares da cama para se

firmar nas pernas.

- Os deuses raramente são bondosos, Ned. Toma, isto é seu - tirou

do bolso no forro do manto o pesado broche da mão de prata e o

atirou em cima da cama. - Goste ou não, você é a minha Mão,

maldito seja. Proíbo-o de partir.

Ned pegou o broche de prata. Parecia que não lhe era dada escolha.

A perna latejou e sentiu-se tão impotente quanto uma criança.

- A moça Targaryen...

O rei gemeu.

- Pelos sete infernos, não comece com ela outra vez. Está feito, não

quero mais ouvir falar do assunto.

- Por que me quer como vossa Mão se se recusa a ouvir meus

conselhos?

- Por quê? - Robert riu. - E por que não? Alguém tem de governar

este maldito reino. Coloque o distintivo, Ned. Fica-lhe bem. E se

alguma vez voltar a atirá-lo na minha cara, espeto esta maldita coisa

em Jaime Lannister.

Catelyn


O céu oriental era rosa e ouro quando o sol surgiu sobre o Vale de

Arryn. Catelyn Stark viu a luz espalhar-se, com as mãos pousadas na

delicada pedra esculpida da balaustrada fora da janela. Embaixo, o

mundo passou de negro a índigo e a verde à medida que a alvorada

rastejava por campos e florestas. Pálidas névoas brancas ergueram-se

das Lágrimas de Alyssa, onde as fantasmagóricas águas mergulhavam

em uma saliência na montanha para começar sua longa queda pela

vertente da Lança do Gigante. Catelyn conseguia sentir o tênue toque

do vapor no rosto.

Alyssa Arryn vira o marido, os irmãos e todos os filhos assassinados,

mas em vida nunca derramara uma lágrima. Por isso, na morte, os

deuses tinham decretado que não conheceria descanso até que seu

choro regasse a terra negra do Vale, onde estavam enterrados os

homens que amara. Alyssa estava morta havia seis mil anos, e ainda

nem uma gota da torrente atingira o fundo do vale, muito abaixo.

Catelyn perguntou a si mesma qual seria o tamanho da cascata que

suas lágrimas fariam quando morresse.

- Conte-me o resto - disse.

- O Regicida está reunindo uma hoste no Rochedo Casterly -

respondeu Sor Rodrik Cassei do quarto atrás dela. - Seu irmão

escreve que enviou cavaleiros ao Rochedo exigindo que Lorde Tywin

proclamasse suas intenções, mas não obteve resposta. Edmure

ordenou a Lorde Vance e a Lorde Piper que aguardassem sob o

Dente Dourado. Jura que não cederá nem um pé da terra Tully sem

primeiro regá-la com sangue Lannister.

Catelyn virou as costas ao nascer do sol. Sua beleza pouco fazia para

melhorar seu humor; parecia cruel que um dia amanhecesse tão belo

e terminasse tão feio como aquele prometia.

- Edmure enviou cavaleiros e fez juramentos - disse -, mas não é

Edmure o senhor de Correrrio. E o senhor meu pai?

- A mensagem não menciona Lorde Hoster, senhora - Sor Rodrik

puxou as suíças. Tinham crescido brancas como a neve e espetadas

como um espinheiro enquanto ele se recuperava dos ferimentos; já

quase parecia ele mesmo de novo.

- Meu pai não teria dado a Edmure a defesa de Correrrio a menos

que estivesse muito doente - disse ela, preocupada. - Devia ter sido

acordada assim que esta ave chegou.

- Meistre Colemon disse-me que a senhora sua irmã achou melhor

deixá-la dormir.

- Devia ter sido acordada - insistiu Catelyn.

- O meistre disse-me que sua irmã planeja ter uma conversa com a

senhora depois do combate - Sor Rodrik respondeu.

- Então ainda tenciona ir em frente com esta farsa? - Catelyn fez

uma careta. - O anão a tocou como se fosse uma gaita, mas ela é

surda demais para ouvir a melodia. Aconteça o que acontecer esta

manhã, Sor Rodrik, já é mais que tempo de nos retirarmos. Meu

lugar é em Winterfell com meus filhos. Se estiver suficientemente

forte para viajar, pedirei a Lysa uma escolta para nos levar a Vila

Gaivotas. Podemos apanhar um navio lá.

- Outro navio? - Sor Rodrik ficou ligeiramente verde, mas conseguiu

não estremecer. -Como quiser, senhora.

O velho cavaleiro esperou à porta dos aposentos enquanto Catelyn

chamava os criados que Lysa lhe dera. Enquanto a vestiam, pensou

que, se falasse com a irmã antes do duelo, talvez fosse capaz de fazê-

la mudar de ideia. Os planos de Lysa mudavam com os seus

humores, e estes mudavam de hora em hora. A acanhada jovem que

conhecera em Correrrio tinha se transformado numa mulher que era

alternadamente

orgulhosa,

atemorizada,

cruel,

sonhadora,

imprudente, medrosa, teimosa, vaidosa e, acima de tudo, inconstante.

Quando aquele seu nojento carcereiro viera rastejando lhes dizer que

Tyrion Lannister desejava confessar, Catelyn insistira com Lysa para

que o anão fosse trazido somente a elas, mas não, nada estaria bom a

menos que a irmã conseguisse um espetáculo para metade do Vale. E

agora isto...

- O Lannister é meu prisioneiro - disse a Sor Rodrik enquanto

desciam as escadas da torre e avançavam através dos frios salões

brancos do Ninho da Águia. Catelyn vestia lã cinzenta sem

ornamentos e um cinto prateado. - Minha irmã tem de ser lembrada

disso.

À porta dos aposentos de Lysa, encontraram o tio saindo, furioso.

- Vai se juntar ao festival de tolos? - proferiu bruscamente Sor

Brynden. - Eu lhe diria para enfiar algum bom-senso na sua irmã a

tapas, se pensasse que isso teria algum resultado, mas só machucaria

sua mão.

- Chegou uma ave de Correrrio - começou Catelyn -, uma carta de

Edmure...

- Eu sei, filha - o peixe negro que prendia seu manto era a única

concessão que Brynden fazia aos ornamentos. - Tive de ouvir a

notícia da boca de Meistre Colemon. Pedi à sua irmã licença para

levar mil homens experimentados para Correrrio a toda pressa. Sabe

o que ela me disse? O Vale não pode prescindir de mil espadas, nem

mesmo de uma, Tio, é o Cavaleiro do Portão. Vosso lugar é aqui -

uma rajada de risos infantis soprou pelas portas abertas atrás dele, e

Brynden lançou um relance sombrio por sobre o ombro. - Bem,

disse-lhe que bem poderia arranjar um novo Cavaleiro do Portão.

Peixe Negro ou não, ainda sou um Tully. Partirei para Correrrio ao

cair da noite.

Catelyn não podia fingir surpresa.

- Sozinho? Sabe tão bem como eu que nunca sobreviveria à estrada

de altitude. Sor Rodrik e eu vamos regressar a Winterfell. Venha

conosco, tio. Eu lhe darei os seus mil homens. Correrrio não lutará

sozinho.

Brynden refletiu por um momento e depois concordou com um

aceno brusco.

- Será como diz. E o caminho maior para casa, mas assim é mais

provável que lá chegue. Espero por você lá embaixo - foi-se embora a

passos largos, com o manto rodopiando atrás dele.

Catelyn trocou um olhar com Sor Rodrik. Atravessaram as portas na

direção do agudo e nervoso som do riso de uma criança.

Os aposentos de Lysa abriam-se para um pequeno jardim, um círculo

de terra e plantas plantado com flores azuis e rodeado por todos os

lados de grandes torres brancas. Os construtores tinham-no

planejado como um bosque sagrado, mas o Ninho da Águia era

rodeado da pedra dura da montanha, e não importava quanta terra

era trazida do Vale, não conseguiam que um represeiro ganhasse

raízes ali. Assim, os senhores do Ninho da Águia plantaram grama e

espalharam estátuas por entre pequenos arbustos floridos. Seria ali

que os dois campeões se defrontariam para colocar suas vidas, e a de

Tyrion Lannister, nas mãos dos deuses.

Lysa, recém-escovada e vestida de veludo creme com um cordão de

safiras e selenita ao redor do pescoço leitoso, encontrava-se no

terraço que dava para o local do combate, rodeada pelos seus

cavaleiros, servidores e senhores, grandes e pequenos. A maior parte

ainda acalentava a esperança de desposá-la, dormir com ela e

governar o Vale de Arryn a seu lado. Pelo que Catelyn vira durante

sua estadia no Ninho da Águia, era uma vã esperança.

Uma plataforma de madeira fora construída para elevar a cadeira de

Robert; era aí que se sentava o Senhor do Ninho da Águia, rindo e

batendo as mãos enquanto um corcunda, vestido de retalhos azuis e

brancos, fazia suas marionetes, dois cavaleiros de madeira, se

golpearem mutuamente. Tinham sido trazidos grandes jarros de um

creme espesso e cestos de amoras silvestres, e os convidados bebiam

um vinho doce, com aroma de laranja, de taças de prata com

gravuras. Brynden chamara àquilo um festival de tolos, e não era de

admirar.

Do outro lado do terraço, Lysa riu alegremente de alguma

brincadeira de Lorde Hunter, e mordiscou uma amora espetada na

ponta do punhal de Sor Lyn Corbray. Eram os pretendentes que se

encontravam em melhor posição nas graças de Lysa.. hoje, pelo

menos. Catelyn teria dificuldades para decidir qual dos homens era

mais inadequado. Eon Hunter era ainda mais velho que Jon Arryn,

meio estropiado pela gota e amaldiçoado por três filhos conflituosos,

cada um mais ganancioso que o outro. Sor Lyn era um tipo de

loucura diferente; esbelto e bem-apessoado, herdeiro de uma casa

antiga mas empobrecida, porém vaidoso, imprudente, de

temperamento quente... e, segundo se sussurrava, notoriamente

desinteressado nos encantos íntimos das mulheres.

Quando Lysa viu Catelyn, recebeu-a com um abraço fraternal e um

beijo úmido na face.

- Não está uma manhã adorável? Os deuses nos sorriem. Experimente

uma taça de vinho, querida irmã. Lorde Hunter teve a amabilidade de

mandá-lo buscar da sua própria adega.

- Obrigada, mas não. Lysa, temos de conversar.

- Depois - prometeu a irmã, já começando a virar-lhe as costas.

- Agora - Catelyn falou mais alto do que desejara. Os homens

viraram-se para olhar. - Lysa, não pode querer seguir em frente com

esta loucura. Vivo, o Duende tem valor. Morto, não passa de comida

para corvos. E se seu campeão prevalecer aqui...

- Há poucas hipóteses de isso acontecer, senhora - assegurou-lhe

Lorde Hunter, dando-lhe pancadinhas no ombro com uma mão cheia

de sardas. - Sor Vardis é um valente lutador. Ele dará cabo do

mercenário.

- Dará? - disse friamente Catelyn. - Tenho dúvidas - ela vira Bronn

lutar na estrada de altitude; não fora por acaso que sobrevivera à

viagem, enquanto outros homens tinham morrido. Movia-se como

uma pantera, e aquela sua feia espada parecia fazer parte de seu

braço.

Os pretendentes de Lysa reuniam-se à volta delas como abelhas em

torno de uma flor.

- As mulheres pouco sabem destas coisas - disse Sor Morton

Waynwood. - Sor Vardis é um cavaleiro, querida senhora. Este outro

homem, bem, no fundo os homens desse tipo são todos covardes.

São suficientemente úteis em batalha, com milhares de companheiros

em redor, mas basta pô-los em combate individual e a virilidade lhes

escoa do corpo.

- Suponhamos então que seja verdade o que diz - disse Catelyn com

uma cortesia que lhe fez doer a boca. - O que ganharíamos com a

morte do anão? Imagina que Jaime se interessará um pouco que seja

por termos dado ao irmão um julgamento antes de o atirarmos da

montanha?

- Decapitem o homem - sugeriu Sor Lyn Corbray. - Quando o

Regicida receber a cabeça do Duende, isto lhe servirá de aviso.

Lysa sacudiu impacientemente os longos cabelos ruivos.

- Lorde Robert quer vê-lo voando - disse, como se isso decidisse

tudo. - E o Duende só tecle culpar a si próprio. Foi ele que exigiu

julgamento por combate.

- A Senhora Lysa não tinha maneira honrosa de lhe negar, mesmo se

o desejasse fazer - en-:: ou solenemente Lorde Hunter.

Ignorando-os todos, Catelyn virou todas as suas forças para a irmã.

- Lembro-lhe de que Tyrion Lannister é meu prisioneiro.

- E eu lembro a você que o anão assassinou o senhor meu esposo! - a

voz dela se ergueu. - Envenenou a Mão do Rei e deixou meu querido

bebê sem pai, e agora pretendo vê-lo pagar rx)r isso! - rodopiando,

com as saias balançando em volta das pernas, Lysa atravessou o

terraço a passos rápidos. Sor Lyn, Sor Morton e os outros

pretendentes despediram-se com acenos frios í a seguiram.

- Você acha que ele assim fez? - perguntou-lhe Sor Rodrik em voz

baixa quando ficaram de novo a sós. - Refiro-me a assassinar Jon

Arryn. O Duende ainda nega, e com grande veemência..

- Acredito que os Lannister assassinaram Lorde Arryn - respondeu

Catelyn -, mas se foi Tyrion, Sor Jaime, a rainha, ou todos juntos,

nem posso começar a decidir - Lysa tinha falado : nome de Cersei na

carta que enviara para Winterfell, mas agora parece certa de que

Tyrion é o autor do crime... talvez porque o anão estava ali, ao passo

que a rainha se encontrava a salvo atrás das muralhas da Fortaleza

Vermelha, a milhares de léguas ao sul. Catelyn quase desejava ter

queimado a carta da irmã antes de tê-la lido.

Sor Rodrik puxou as suíças.

- O veneno, bem.. é verdade que isso podia ser trabalho do anão. Ou

de Cersei. Diz-se que veneno é a arma das mulheres, com o seu

perdão, minha senhora... Agora, o Regicida... não cenho grande

apreço pelo homem, mas ele não é desse tipo. Gosta demasiado de

ver sangue naquela sua espada dourada. Terá sido veneno, senhora?

Catelyn franziu a testa, vagamente incomodada.

- De que outra forma teriam eles feito com que a morte parecesse

natural? - atrás dela Lorde Robert guinchou, deliciado, quando um

dos cavaleiros fantoches cortou o outro ao meio, derramando uma

enchente de serragem vermelha no terraço. Catelyn olhou de relance

para o sobrinho e suspirou. - O rapaz não tem absolutamente

disciplina alguma. Nunca será suficientemente forte para governar, a

menos que seja tirado da mãe por algum tempo.

- O senhor seu pai concordaria com a senhora - disse uma voz vinda

por trás de Catelyn, Virou-se e deparou com Meistre Colemon com

uma taça de vinho na mão. - Planejava mandar o rapaz para a Pedra

do Dragão, para ser criado, sabia.. Ah, mas não devia ter dito isto - o

pomo de adão oscilou ansiosamente sob a larga corrente de meistre.

- Temo que tenha bebido demais do excelente vinho de Lorde

Hunter. A perspectiva do derramamento de sangue deixou-me os

nervos todos em desordem..

- Está enganado, meistre - disse Catelyn. - Era Rochedo Casterly, não

Pedra do Dragão, e essas combinações foram feitas depois da morte

da Mão, sem consentimento da minha irmã.

A cabeça do meistre deu uma sacudidela tão vigorosa sobre o

pescoço absurdamente longo que ele próprio se pareceu por um

momento com uma marionete.

- Não, com a sua licença, minha senhora, mas foi Lorde Jon que...

Um sino soou com estrondo abaixo deles. Tanto os grandes senhores

como as criadas interromperam o que estavam fazendo e se

dirigiram para a balaustrada. Embaixo, dois guardas de manto azul-

celeste trouxeram Tyrion Lannister. O rechonchudo septão do Ninho

da Águia o escoltou até a estátua no centro do jardim, uma mulher

chorosa esculpida num mármore cheio de veios, sem dúvida uma

representação de Alyssa.

- O homenzinho mau - disse Lorde Robert, entre risinhos. - Mãe,

posso fazedo voar? Quero vê-lo voar.

- Mais tarde, meu doce bebê - prometeu-lhe Lysa.

- Primeiro o julgamento - pronunciou vagarosamente Sor Lyn

Corbray -, depois a execução.

Um momento mais tarde, os dois campeões surgiram de lados

opostos do jardim. O cavaleiro era servido por dois jovens

escudeiros; o mercenário, pelo mestre de armas do Ninho da Águia.

Sor Vardis Egen era de aço dos pés à cabeça, enfiado numa pesada

armadura couraçada sobre cota de malha e uma capa almofadada.

Grandes ornamentos esmaltados de creme e azul com o símbolo da

lua e do falcão da Casa Arryn protegiam a vulnerável articulação do

braço com o peito. Uma saia de tiras de metal cobria-lhe o corpo

desde a cintura até o meio da coxa, ao passo que um sólido gorjal lhe

rodeava a garganta. Asas de falcão projetavam-se das têmporas de

seu elmo, e a viseira era um pontiagudo bico de metal com uma

estreita fenda para dar visibilidade.

Bronn tinha uma proteção tão ligeira que parecia quase nu ao lado

do cavaleiro. Usava apenas uma cota de malha, negra e oleada,

cobrindo-lhe o torso sobre couro cozido, um meio elmo redondo de

aço com proteção para o nariz e uma rede de cota de malha na

cabeça. Botas de couro de cano alto com anteparos de aço davam-lhe

alguma proteção às pernas, e tinha discos de ferro negro cosidos aos

dedos das luvas. Mas Catelyn reparou que o mercenário era meia

mão mais alto que o adversário, com maior alcance.. e, ou ela não

sabia avaliar idades, ou Bronn era uns quinze anos mais novo.

Ajoelharam-se na relva sob a mulher chorosa, de frente um para o

outro, com o Lannister entre ambos. O septão tirou uma esfera

facetada de cristal do saco de tecido leve que trazia à cintura.

Ergueu-a bem alto acima da cabeça, e a luz estilhaçou-se. Arcos-íris

dançaram pela cara do Duende. Com voz sonora, solene e cantante, o

septão pediu aos deuses que olhassem para baixo e testemunhassem,

a fim de encontrar a verdade na alma daquele homem, para

conceder-lhe a vida e a liberdade, se fosse inocente, ou a morte, se

culpado. Sua voz ecoava nas torres em redor.

Depois de o último eco se desvanecer, o septão baixou o cristal e

partiu às pressas. Tyrion inclinou-se e segredou qualquer coisa ao

ouvido de Bronn antes que os guardas o levassem. O mercenário

pôs-se em pé, rindo, e sacudiu uma folha de relva do joelho.

Robert Arryn, Senhor do Ninho da Águia e Defensor do Vale, mexia-

se impacientemente na sua cadeira elevada.

- Quando é que eles vão lutar? - ele perguntou em tom lamentoso.

Sor Vardis foi ajudado a se erguer por um dos escudeiros. O outro

lhe trouxe um escudo triangular com quase um metro e vinte de

altura, feito de pesado carvalho pontilhado com rebites de ferro. Os

escudeiros ataram o escudo ao braço esquerdo do cavaleiro. Quando

o mestre de armas de Lysa ofereceu a Bronn um escudo semelhante,

o mercenário cuspiu e afastou-o com um gesto. Uma rude barba

negra de três dias cobria-lhe o maxilar e as bochechas, mas, se não a

cortava, não era por falta de navalha; o gume de sua espada possuía

o perigoso brilho de aço amolado todos os dias durante horas até

ficar afiado demais para ser tocado.

Sor Vardis estendeu a mão enluvada, e o escudeiro colocou-lhe entre

os dedos uma bela espada longa de dois gumes. A lâmina estava

gravada com o delicado rendilhado em prata de um céu de

montanha; o botão do punho era uma cabeça de falcão, a guarda

tinha sido esculpida com a forma de asas.

- Mandei fabricar aquela espada para Jon em Porto Real - disse Lysa

orgulhosamente aos convidados enquanto observavam Sor Vardis

experimentar um golpe. - Ele a usava sempre que se sentava no

Trono de Ferro no lugar do Rei Robert. Não é adorável? Achei

adequado que nosso campeão vingue Jon com sua própria lâmina.

A lâmina com prata gravada era sem dúvida bela, mas a Catelyn

parecia que Sor Vardis talvez messe se sentido mais confortável com

sua própria espada. No entanto, nada disse; estava cansada de

discussões fúteis com a irmã.

- Faça-os lutar! - gritou Lorde Robert.

Sor Vardis virou-se para o Senhor do Ninho da Águia e ergueu a

espada numa saudação.

- Pelo Ninho da Águia e pelo Vale!

Tyrion Lannister sentou-se na varanda do outro lado do jardim,

flanqueado pelos guardas. Foi para ele que Bronn se virou com uma

saudação apressada.

- Eles esperam a sua ordem - disse a Senhora Lysa ao senhor seu

filho,

- Lutem! - gritou o rapaz, com as mãos tremendo, agarradas à

cadeira.

Sor Vardis girou, erguendo o pesado escudo. Bronn virou-se para

enfrentá-lo. As espadas ressoaram, uma, duas vezes, testando-se. O

mercenário recuou um passo. O cavaleiro avançou, segurando o

escudo à sua frente. Tentou um golpe, mas Bronn saltou para trás,

bem para lá do seu alcance, e a lâmina prateada apenas cortou ar.

Bronn rodeou-o pela direita. Sor Vardis virou-se, seguindo-o,

mantendo o escudo entre ambos. O cavaleiro avançou, pousando

com cuidado as pés no chão irregular. O mercenário cedeu, com um

tênue sorriso brincando em seus lábios. Sor Vardis atacou, lançando

cutiladas, mas Bronn saltou para fora de seu alcance, pulando com

Igeireza por cima de uma pedra baixa, coberta de musgo. Agora, o

mercenário flanqueava pela esquerda, para longe do escudo, na

direção do lado desprotegido do cavaleiro. Sor Vardis tentou uma

estocada nas suas pernas, mas não tinha alcance suficiente. Bronn

dançou mais para a esquerda. Sor Vardis girou no mesmo lugar.

- O homem é um medroso - declarou Lorde Hunter. - Pare e lute,

covarde! - outras vozes fizeram eco daquele sentimento.

Catelyn olhou para Sor Rodrik. O mestre de armas deu uma concisa

sacudidela na cabeça.

- Ele quer fazer com que Sor Vardis o persiga. O peso da armadura e

do escudo cansará até o mais forte dos homens.

Ele vira homens treinar esgrima quase todos os dias de sua vida,

assistira, nos seus tempos, a meia centena de torneios, mas isto era

algo diferente e mais mortífero, uma dança onde o menor passo em

falso significaria a morte. E, enquanto observava, a memória de outro

duelo, em outro tempo, regressou ao espírito de Catelyn Stark, tão

nítida como se tivesse sido no dia anterior.

Tinham-se encontrado na muralha inferior de Correrrio. Quando

Brandon viu que Petyr usava apenas elmo, peitoral e cota de malha,

despiu a maior parte de sua armadura. Petyr o lembrou que podia

usá-la, mas ele rejeitara. O senhor seu pai a prometera a Brandon

Stark, e por isso foi a ele que deu o seu sinal, um lenço azul-claro

que bordara com a truta saltante de Correrrio. No momento em que

apertava o lenço entre os dedos, ela confessou:"Ele não passa de um

rapaz insensato, mas amei-o como a um irmão. Sofreria demais se o

visse morrer". E seu prometido a olhou com os frios olhos cinzentos

de um Stark e lhe prometeu poupar a vida do rapaz que a amava.

Aquela luta terminara quase tão depressa como começara. Brandon

era um homem-feito, e empurrou Mindinho ao longo de toda a

muralha e pela escada da água abaixo, fazendo chover aço sobre ele a

cada passo, até deixá-lo cambaleando e sangrando de uma dúzia de

ferimentos. "Renda-se!" ele gritou, mais de uma vez, mas Petyr

limitara-se a abanar a cabeça e continuou lutando, carrancudo.

Quando o rio já lhes batia nos tornozelos, Brandon finalmente

acabou com a luta, com um golpe brutal dado por trás que cortou a

malha e o couro de Petyr e se enterrou na carne mole sob suas

costelas, tão profundamente que Catelyn teve certeza de que a ferida

era mortal. Ele a olhara ao cair e murmurara "Cat", enquanto o

sangue vermelho vivo brotava por entre os dedos recobertos de cota

de malha. Catelyn julgara que tivesse esquecido aquilo.

Fora a última vez em que vira seu rosto... até o dia em que foi

trazida à sua presença em Porto Real.

Decorrera uma quinzena até Mindinho estar suficientemente forte

para abandonar Correrrio, mas o senhor seu pai a proibira de visitá-

lo na torre onde estava acamado. Lysa ajudara o meistre a tratar

dele; naquele tempo, era mais suave e tímida. Edmure também

tentara visitá-lo, mas Petyr o mandara embora. O irmão de Catelyn

agira como escudeiro de Brandon no duelo, e Mindinho não o

perdoaria. Assim que ficou suficientemente forte para ser movido,

Lorde Hoster Tully mandou Petyr Baelish embora em uma liteira

fechada, para terminar de se curar nos Dedos, no promontório

rochoso varrido pelo vento onde nascera.

O ressoante estrondo de aço trouxe Catelyn de volta ao presente. Sor

Vardis atacava Bronn com força, caindo-lhe em cima com o escudo e

a espada. O mercenário recuava, parando todos os golpes, saltando

agilmente sobre pedras e raízes, sem nunca afastar os olhos do

inimigo. Catelyn viu que ele era o mais rápido; a espada prateada do

cavaleiro nunca chegava perto de tocá-lo, mas sua feia lâmina

cinzenta fizera um entalhe na placa de ombro de Sor Vardis.

A breve agitação do combate terminou tão depressa como começara

quando Bronn deu um passo para o lado e deslizou para trás da

estátua da mulher chorosa. Sor Vardis golpeou o local onde ele

estivera, fazendo saltar uma faísca do mármore claro da coxa de

Alyssa.

- Eles não estão lutando bem, mãe - queixou-se o Senhor do Ninho

da Águia. - Quero que eles l u t e m .

- Vão lutar, querido filho - ela tentou sossegá-lo. - O mercenário não

pode fugir o dia todo.

Bronn saiu de trás da estátua, duro e rápido, ainda deslocando-se

para a esquerda, desferindo um golpe a duas mãos no desprotegido

lado direito do cavaleiro. Sor Vardis o parou, mas de forma

desajeitada, e a espada do mercenário relampejou para cima, na

direção de sua cabeça. Metal ressoou, e uma asa de falcão quebrou-se

com estrondo. Sor Vardis deu meio passo para trás a fim de se

recuperar do golpe e ergueu o escudo. Lascas de carvalho voaram

quando a espada de Bronn fez um entalhe na muralha de madeira. O

mercenário voltou a dar um passo para a esquerda, para longe do

escudo, e apanhou Sor Vardis no estômago, abrindo um corte

brilhante quando o aguçado gume da espada penetrou no peitoral do

cavaleiro.

Sor Vardis apoiou-se no pé para avançar, fazendo descer sua lâmina

prateada num arco violento. Bronn afastou-o para o lado e dançou

para longe. O cavaleiro esbarrou na mulher chorosa, fazendo-a

oscilar sobre a base. Entontecido, deu um passo para trás, virando a

cabeça para um lado e para o outro em busca do adversário. A

ranhura na viseira do elmo estreitava-lhe o campo de visão.

- Atrás de si, senhor! - gritou Lorde Hunter, tarde demais. Bronn fez

cair a espada, com ambas as mãos, apanhando Sor Vardis no

cotovelo do braço que empunhava a arma. As finas tiras de metal

que protegiam a articulação se quebraram com um c r u n c h . O

cavaleiro soltou um grunhido, virando-se, torcendo a espada para

cima. Dessa vez, Bronn manteve-se firme. As espadas voaram uma

contra a outra, e a canção de aço encheu o jardim e ressoou nas

torres brancas do Ninho da Águia.

- Sor Vardis está ferido - disse Sor Rodrik, com voz grave.

Catelyn não precisava que isso lhe fosse dito; tinha olhos, via o

brilhante sangue que corria ao longo do braço do cavaleiro, a

umidade dentro da articulação do cotovelo. Cada parada era um

pouco mais lenta e um pouco mais baixa que a anterior. Sor Vardis

virou o flanco ao adversário, tentando usar o escudo para bloquear a

espada do mercenário, mas Bronn deslizou ao seu redor, rápido

como um gato. Parecia ficar cada vez mais forte. Seus golpes agora

deixavam marcas. Profundos golpes brilhantes cintilavam por todo

lado, na armadura do cavaleiro, na sua coxa direita, na viseira em

forma de bico, cruzando-lhe o peitoral, um longo percorrendo-lhe o

gorjal. O ornamento da lua e do falcão sobre o braço direito de Sor

Vardis tinha sido quebrado ao meio, pendendo da presilha.

Conseguia-se ouvir sua respiração laboriosa rouquejando através das

fendas de ar da viseira.

Mesmo cegos pela arrogância, os cavaleiros e senhores do Vale eram

capazes de ver o que estava acontecendo diante de seus olhos, mas

Lysa, não.

- Basta, Sor Vardis! - ela gritou para baixo. - Acabe com eleja, meu

filhinho está ficando cansado.

E há que ser dito em honra de Sor Vardis que ele foi fiel às ordens

da sua senhora, mesmo até o fim. Num momento cambaleava para

trás, meio acocorado atrás do escudo cheio de cicatrizes, e no

seguinte avançou. O súbito ímpeto de touro apanhou Bronn

desequilibrado. Sor Vardis chocou-se contra ele e atirou a aresta do

escudo contra o rosto do mercenário. Bronn quase, q u a s e , perdeu

o apoio... cambaleou para trás, tropeçou numa pedra e agarrou-se à

mulher chorosa para manter o equilíbrio. Atirando fora o escudo, Sor

Vardis guinou sobre ele, usando ambas as mãos para erguer a

espada. O braço direito estava agora com sangue do cotovelo aos

dedos, mas seu último golpe desesperado teria talhado Bronn do

pescoço ao umbigo... se o mercenário tivesse se levantado para

recebê-lo.

Mas Bronn saltou para trás. A bela espada gravada em prata de Jon

Arryn resvalou no cotovelo de mármore da mulher chorosa e um

terço da ponta se quebrou. Bronn empurrou as costas da estátua

com o ombro. O desgastado retrato de Alyssa vacilou e caiu com

grande estrondo, e Sor Vardis Egen tombou por baixo dele.

Num instante, Bronn estava sobre o cavaleiro, chutando para o lado

o que restava do ornamento partido a fim de expor o ponto fraco

entre o braço e o peitoral. Sor Vardis jazia de lado, preso sob o

tronco quebrado da mulher chorosa. Catelyn ouviu o cavaleiro gemer

quando o mercenário ergueu sua arma com ambas as mãos e a

baixou, pondo no golpe todo o seu peso, por baixo do braço e por

entre as costelas. Sor Vardis Egen estremeceu e ficou imóvel.

Sobre o Ninho da Águia pairou o silêncio. Bronn arrancou o meio

elmo e o deixou cair na relva. Tinha o lábio amassado e sangrento

onde fora atingido pelo escudo, e os cabelos negros como o carvão

estavam empapados de suor. Cuspiu um dente partido.

- Acabou, mãe? - perguntou o Senhor do Ninho da Águia. N ão ,

Catelyn quis lhe dizer, e s t á a p e n a s c o m e ç a n d o .

- Sim - disse Lysa sombriamente, com a voz tão fria e morta como o

capitão de sua guarda.

- Posso fazer o homenzinho voar agora?

Do outro lado do jardim, Tyrion Lannister pôs-se em pé.

- E s t e homenzinho, não - disse. - Este homenzinho irá para baixo no

cesto dos nabos, muito obrigado.

- Presume... - começou Lysa.

- Presumo que a Casa Arryn recorde suas próprias palavras - disse o

Duende. - T ã o A l t o C o m o a H o n r a .

- A senhora me prometeu que eu o faria voar - gritou o Senhor do

Ninho da Águia à mãe, e começou a tremer.

O rosto da Senhora Lysa estava corado de fúria.

- Os deuses acharam por bem proclamá-lo inocente, filho. Não temos

outra escolha que não seja libertá-lo - ergueu a voz. - Guardas.

Levem o senhor de Lannister e o seu.. a sua c r i a t u r a para longe

da minha vista. Escoltem-nos até o Portão Sangrento e os libertem.

Tratem que tenham cavalos e abastecimentos suficientes para

alcançar o Tridente, e assegurem-se de que todos os seus bens e

armas lhes sejam devolvidos. Precisarão deles na estrada de altitude.

- A estrada de altitude - disse Tyrion Lannister. Lysa permitiu-se um

tênue sorriso satisfeito. Catelyn compreendeu que era outro tipo de

sentença de morte. Tyrion Lannister devia sabê-lo também. Mas o

anão concedeu à Senhora Arryn uma reverência trocista. - Que seja

conforme ordena, minha senhora. Julgo que conhecemos o caminho.


Jon


- São os rapazes mais incapazes que já treinei - anunciou Sor Alliser

Thorne depois de se reunirem todos no pátio. - Suas mãos foram

feitas para pegar em pás de recolher estrume, não em espadas, e se

dependesse de mim, iriam todos criar porcos. Mas ontem à noite me

foi dito que Gueren traz cinco rapazes novos pela Estrada do Rei.

Um ou dois podem até valer o preço de um mijo. Para abrir lugar

para eles, decidi passar oito de vocês ao Senhor Comandante, para

que faça de vocês o que bem entenda - chamou pelos nomes um a

um. - Sapo. Cabeça Dura. Auroque. Amante. Borbulha. Macaco. Sor

Vadio - por fim, olhou para Jon. - E o bastardo. Pyp soltou um

u u u p , e espetou a espada no ar. Sor Alliser fitou-o com um olhar

de réptil.

- Vão se chamar agora homens da Patrulha da Noite, mas se

acreditarem nisso, são tolos maiores ainda do que o Macaco de

Saltimbanco. Ainda são rapazes, verdes e fedendo a verão, mas

quando o inverno vier, morrerão como moscas - e com aquilo Sor

Alliser Thorne retirou-se.

Os outros rapazes reuniram-se em torno dos oito que tinham sido

nomeados, rindo, praguejando e dando-lhes os parabéns. Halder deu

uma pancada no traseiro de Sapo com o lado da espada e gritou:

- O Sapo, da Patrulha da Noite!

Gritando que um irmão negro precisava de um cavalo, Pyp saltou

para os ombros de Grenn e caíram ambos ao chão, rolando, aos

socos e aos gritos. Dareon precipitou-se para o armeiro e regressou

com um odre de tinto amargo. Enquanto passavam o vinho de mão

em mão, sorrindo como idiotas, Jon reparou em Samwell Tarly, que

estava sozinho debaixo de uma árvore morta sem folhas, a um canto

do pátio. Ofereceu-lhe o odre.

- Um trago de vinho?

Sam abanou a cabeça.

- Não, obrigado, Jon.

- Você está bem?

- Muito bem, garanto - mentiu o rapaz gordo. - Estou feliz por todos

vocês - a face redonda tremeu quando forçou um sorriso. - Um dia

você será Primeiro Patrulheiro, tal como era o seu tio.

- Tal como é - corrigiu Jon. Não aceitava que Benjen Stark estivesse

morto. Antes de poder dizer mais, Halder gritou:

- Dê aqui, pensa que vai beber tudo sozinho? - Pyp arrancou-lhe o

odre da mão e afastou-se dançando, rindo. Enquanto Grenn lhe

agarrava o braço, Pyp deu um apertão no odre e um fino jato

vermelho esguichou na cara de Jon. Halder urrou em protesto contra

o desperdício do bom vinho. Jon cuspiu e debateu-se. Matthar e Jeren

subiram no muro e começaram a jogar bolas de neve em todos eles.

Quando conseguiu se libertar, com neve nos cabelos e manchas de

vinho na capa, Samwell Tarly tinha desaparecido.

Nessa noite, o Hobb Três Dedos cozinhou para os rapazes uma

refeição especial a fim de marcar a ocasião. Quando Jon chegou à

sala comum, foi o próprio Senhor Intendente que o levou para o

banco junto ao fogo. Os homens mais velhos deram-lhe palmadas no

braço quando passou por eles. Os oito que em breve seriam irmãos

banquetearam-se com uma peça de cordeiro assada em crosta de

alho e ervas, guarnecida com raminhos de menta e rodeada com

purê de nabo nadando em manteiga.

- Da mesa do próprio Senhor Comandante - disse-lhes Bowen Marsh.

Havia saladas de espinafre, grão-de-bico e nabos-redondos, e de

sobremesa, tigelas de amoras silvestres geladas e creme doce.

- Acham que vão nos manter juntos? - Pyp quis saber enquanto se

empanturravam com todo o gosto.

Sapo fez uma careta.

- Espero que não. Estou farto de olhar para essas suas orelhas.

- Ah - disse Pyp. - Vejam o corvo chamando o melro de preto. Você

será com certeza um patrulheiro, Sapo. Vão querê-lo tão longe do

castelo quanto for possível. Se Manee Rayder atacar, levante a viseira

e mostre-lhe sua cara, ele há de fugir aos gritos.

Todos riram, menos Grenn.

- Espero que e u me torne patrulheiro.

- Você e todo mundo - disse Matthar. Todos os homens que vestiam

negro percorriam a Muralha, e esperava-se de todos que estivessem

prontos para lidar com aço na sua defesa, mas os patrulheiros eram

o verdadeiro coração lutador da Patrulha da Noite. Eram eles que se

atreviam a patrulhar para lá da Muralha, percorrendo a Floresta

Assombrada e as geladas altitudes da montanha a oeste da Torre

Sombria, lutando contra selvagens, gigantes e monstruosos ursos das

neves.

- Nem todos - disse Halder. - Para mim são os construtores. De que

serviriam os patrulheiros se a Muralha caísse?

A Ordem dos Construtores fornecia pedreiros e carpinteiros para

reparar fortalezas e torres, mineiros para escavar túneis e esmagar

pedra para estradas e caminhos, lenhadores para limpar as novas

árvores sempre que a floresta se aproximava demais da Muralha.

Uma vez, dizia-se, tinham cortado imensos blocos de gelo de lagos

congelados, bem no interior da Floresta Assombrada, arrastando-os

para o sul em trenós para que a Muralha pudesse ser erguida ainda

mais. Mas esses dias tinham terminado havia séculos; agora, tudo o

que podiam fazer era percorrer a Muralha de Atalaialeste até a Torre

Sombria, em busca de fendas ou sinais de degelo, e realizar os

reparos que conseguissem.

- O Velho Urso não é nenhum tolo - observou Daeron. - Você será

com certeza construtor, e Jon será certamente patrulheiro. É, de

todos nós, o melhor espadachim e o melhor cavaleiro, e o tio foi o

primeiro antes de... - sua voz sumiu, de forma desajeitada, quando

ele percebeu o que quase ia dizendo.

- Benjen Stark ainda é Primeiro Patrulheiro - disse-lhe Jon Snow,

brincando com sua tigela de amoras silvestres. Os outros podiam ter

desistido de toda a esperança de que o tio regressasse são e salvo,

mas ele não. Afastou as amoras, quase sem tocá-las, e levantou-se do

banco.

- Não vai comer isso? - Sapo perguntou.

- São suas - Jon quase não saboreara o grande festim de Hobb. - Não

consigo dar nem mais uma dentada - tirou o manto do gancho perto

da porta e abriu caminho para fora.

Pyp o seguiu.

- Jon, o que se passa?

- O Sam - admitiu. - Esta noite não esteve à mesa.

- Não é do feitio dele faltar a uma refeição - Pyp disse

pensativamente. - Acredita que tenha adoecido?

- Está assustado. Estamos o abandonando - recordou o dia em que

deixou Winterfell, todas as despedidas agridoces; Bran que jazia todo

quebrado, Robb com neve nos cabelos, Arya fazendo chover beijos

sobre ele depois de lhe dar Agulha. - Depois de fazermos nossos

votos, teremos todos deveres a cumprir. Alguns de nós poderão ser

enviados para longe, para Atalaialeste, ou para a Torre Sombria. Sam

continuará em treino, com gente como Rast, Cuger e esses rapazes

novos que vêm aí pela Estrada do Rei. Só os deuses sabem como

serão, mas pode apostar que Sor Alliser vai colocá-los contra ele na

primeira oportunidade que tiver.

Pyp fez uma careta.

- Você fez o que podia.

- O que podíamos fazer não bastou - Jon respondeu.

Tinha em si um profundo desassossego quando regressou à Torre de

Hardin para buscar Fantasma. O lobo gigante caminhou ao seu lado

até os estábulos. Alguns dos cavalos mais nervosos escoicearam as

baias e abaixaram as orelhas quando eles entraram. Jon colocou a

sela na sua égua, montou e cavalgou para fora de Castelo Negro,

dirigindo-se para o sul na noite iluminada pela lua. Fantasma correu

à sua frente, voando sobre o solo, desaparecendo num piscar de

olhos. Jon o deixou ir. Um lobo precisa caçar.

Não tinha nenhum destino em mente. Só queria cavalgar. Seguiu o

riacho durante algum tempo, escutando o gotejar gelado da água

sobre as pedras, e depois cortou pelos campos até a Estrada do Rei.

Estendia-se à sua frente, estreita, pedregosa e marcada por ervas

daninhas, uma estrada que não prometia nada de especial, mas o fato

de vê-la encheu Jon Snow de uma imensa saudade. Aquela estrada ia

dar em Winterfell, e depois em Correrrio, Porto Real e Ninho da

Águia, e em tantos outros lugares; o Rochedo Casterly, as Ilhas das

Caras, as montanhas vermelhas de Dorne, as cem ilhas de Bravos, no

mar, as ruínas fumegantes da velha Valíria. Todos os lugares que Jon

nunca veria. Chegava-se ao mundo por aquela estrada... e ele estava

ali.

Uma vez feitos os votos, a Muralha seria seu lar até ficar velho como

Meistre Aemon.

- Ainda não os fiz - murmurou. Não era nenhum fora da lei, obrigado

a vestir o negro ou pagar o preço pelos seus crimes. Tinha vindo

para ali livremente, e assim poderia partir... até dizer as palavras. Só

precisava avançar, e deixaria tudo para trás. Quando a lua cheia

voltasse, estaria de novo em Winterfell com os irmãos.

Com os meios-irmãos, lembrou-lhe uma voz interior. E c o m a

S e n h o r a S t a r k , q u e n ã o t e d a r á a s b o a s - v i n d a s , Não

havia lugar para ele em Winterfell, e também não o havia em Porto

Real. Nem sequer a própria mãe tivera lugar para ele. Pensar nela o

deixou triste. Quis saber quem ela era, qual o seu aspecto, por que

motivo o pai a abandonara. P o r q u e e r a u m a p r o s t i t u t a o u

u m a a d ú l t e r a , p a l e r m a . Q u a l q u e r c o i s a e s c u r a e

d e s o n r o s a , c a s o c o n t r á r i o , p o r q u e t e r i a L o r d e S t a r k

t a n t a v e r g o n h a d e f a l a r d e l a ?

Jon Snow virou as costas à Estrada do Rei para olhar para trás. Os

fogos de Castelo Negro estavam escondidos por detrás de uma

colina, mas via-se a Muralha, clara sob a lua, vasta e fria, correndo de

horizonte a horizonte.

Fez o cavalo dar meia-volta e dirigiu-se para casa.

Fantasma regressou no momento em que ultrapassava uma elevação

e via o distante brilho de uma lamparina na Torre do Senhor

Comandante. Enquanto o lobo gigante trotava ao lado do cavalo, viu

que tinha o focinho vermelho de sangue. Depois, deu por si

pensando de novo em Samwell Tarly. Ao chegar aos estábulos, já

sabia o que devia fazer.

Os aposentos de Meistre Aemon ficavam numa sólida torre de

madeira sob o viveiro dos corvos. Idoso e frágil, ele partilhava a

habitação com dois dos intendentes mais novos, que atendiam às

suas necessidades e o ajudavam a desempenhar seus deveres. Os

irmãos gracejavam, dizendo que lhe tinham sido atribuídos os dois

homens mais feios da Patrulha da Noite; como era cego, era poupado

de ter de olhar para eles. Clydas era baixo, calvo e sem queixo, com

pequenos olhos cor-de-rosa como uma toupeira. Chett tinha um

quisto no pescoço do tamanho de um ovo de pombo, e uma cara

vermelha com furúnculos e espinhas. Talvez fosse por isso que

parecia sempre tão zangado.

Foi Chett quem respondeu ao toque de Jon.

- Preciso falar com Meistre Aemon - disse-lhe Jon.

- O meistre está na cama, tal como você devia estar. Volta de manhã

e ele talvez o receba - e começou a fechar a porta.

Jon pôs a bota na soleira, mantendo-a aberta.

- Preciso falar com ele agora. De manhã será tarde demais. Chett

franziu as sobrancelhas.

- O meistre não está habituado a ser acordado durante a noite. Sabe

que idade ele tem?

- Idade suficiente para tratar os visitantes com mais educação do que

você - disse Jon. - Transmita-lhe as minhas desculpas. Não

perturbaria seu descanso se não fosse importante.

- E se eu recusar?

Jon tinha a bota solidamente apoiada contra a porta.

- Posso ficar aqui a noite inteira se for preciso.

O irmão negro fez um som de repugnância e abriu a porta para

deixá-lo entrar.

- Espere na biblioteca. Há lenha. Acenda o fogo. Não quero que o

meistre apanhe um resfriado por sua causa.

Jon já tinha a lenha estalando animadamente quando Chett fez entrar

Meistre Aemon. O velho vinha vestido com seu roupão de cama, mas

em torno da garganta trazia o colar de correntes da sua Ordem. Um

meistre não o tirava nem mesmo para dormir.

- A cadeira junto ao fogo seria agradável - disse ao sentir o calor na

face. Depois de estar confortavelmente instalado, Chett cobriu-lhe as

pernas com uma pele e foi para junto da porta.

- Lamento tê-lo acordado, meistre - disse Jon Snow.

- Não me acordou - respondeu Meistre Aemon. - Descobri que fui

necessitando de menos sono à medida que fui envelhecendo, e já

envelheci muito. É frequente passar metade da noite na companhia

de fantasmas, recordando tempos idos há cinquenta anos como se

tivessem sido ontem. O mistério de um visitante da meia-noite é

uma diversão bem-vinda. Por isso, diga-me, Jon Snow, por que veio

falar comigo a esta estranha hora?

- Para pedir que Samwell Tarly seja tirado dos treinos e admitido

como irmão da Patrulha da Noite.

- Isto não diz respeito ao Meistre Aemon - Chett protestou.

- Nosso Senhor Comandante pôs o treino dos recrutas nas mãos de

Sor Alliser Thorne -disse o meistre com gentileza. - Só ele pode dizer

quando um rapaz está pronto para fazer seus votos, como

seguramente você já sabe. Por que então veio me procurar?

- O Senhor Comandante escuta o que o senhor tem a dizer - disse-

lhe Jon. - E os feridos e doentes da Patrulha da Noite estão a seu

cargo.

- E está o seu amigo Samwell ferido ou doente?

- Ficará - garantiu Jon - a menos que o ajude.

E contou-lhe tudo, até a parte quando incitara Fantasma à garganta

de Rast. Meistre Aemon escutou em silêncio, de olhos cegos fitos no

fogo, mas o rosto de Chett foi se fechando a cada palavra.

- Sem nós para mantê-lo em segurança, Sam não terá nenhuma

chance - Jon terminou. -Ele é absolutamente i n c a p a z com uma

espada na mão. Minha irmã Arya poderia desfazê-lo, e ela sequer tem

dez anos. Se Sor Alliser o fizer lutar, é só questão de tempo até ser

ferido ou morto.

Chett não aguentou mais.

-Já vi esse rapaz gordo na sala comum - disse. - Ele é um porco, e se

o que diz for verdade, é também um irremediável covarde.

- Talvez o seja - disse Meistre Aemon. - Diga-me, Chett, o que sugere

que façamos com um rapaz destes?

- Deixe-o onde está - Chett respondeu. - A Muralha não é lugar para

os fracos. Que ele treine até estar preparado, e não importa quantos

anos sejam necessários. Sor Alliser fará dele um homem ou o matará,

conforme a vontade dos deuses.

- Isso é e s t ú pid o – disse Jon. Inspirou profundamente para

ordenar os pensamentos. - Lembro-me de que há algum tempo

perguntei a Meistre Luwin por que usava uma corrente em volta da

garganta.

Meistre Aemon tocou ligeiramente seu colar, fazendo passar os dedos

ossudos e enrugados pelos pesados elos de metal.

- Continue.

- Ele me disse que um colar de meistre é feito de elos para lembrá-lo

de seu juramento de servir - disse Jon, recordando. - Perguntei por

que cada elo era feito de um metal diferente. Disse-lhe que uma

corrente de prata combinaria muito melhor com a sua toga cinza.

Meistre Luwin deu risada. Disse-me que um meistre forja sua

corrente com o estudo. Cada um dos diferentes metais representa

um tipo diferente de aprendizagem: o ouro é o estudo do dinheiro e

das contas, a prata são as artes curativas, o ferro, as da guerra. E

disse que havia também outros significados. O colar seria para

recordar a um meistre o reino que serve, não é assim? Os Senhores

são o ouro e os cavaleiros, o aço, mas dois aros não podem fazer

uma corrente. Também é necessária a prata, o ferro e o chumbo, o

estanho, o cobre, o bronze e todo o resto, e esses são os agricultores,

ferreiros, mercadores e demais tipos de pessoas. Uma corrente

precisa de todos os tipos de metais, e uma terra precisa de todos os

tipos de pessoas.

Meistre Aemon sorriu.

- E então?

- A Patrulha da Noite também precisa de todos os tipos de pessoas.

De outro modo, por que haveria patrulheiros, intendentes e

construtores? Lorde Randyll não seria capaz de transformar Sam

num guerreiro, e Sor Alliser também não será. Não é possível

martelar o estanho e transformá-lo em ferro, por mais força que se

ponha no martelo, mas isso não significa que o estanho seja inútil.

Por que não haverá Sam de ser um intendente?

Chett franziu uma sobrancelha, irritado.

- E u sou um intendente. Pensa que é trabalho fácil, próprio para

covardes? A Ordem dos Intendentes mantém a patrulha viva.

Caçamos e cultivamos, tratamos dos cavalos, ordenhamos as vacas,

recolhemos lenha, cozinhamos as refeições. Quem você pensa que faz

as suas roupas? Quem traz abastecimentos do sul? Os intendentes.

Meistre Aemon foi mais gentil.

- Seu amigo é um caçador?

- Ele detesta caçar - Jon teve que admitir.

- E capaz de arar um terreno? - perguntou o meistre. - Sabe

conduzir uma carroça ou navegar num navio? Seria capaz de matar

uma vaca?

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